A impregnação teórica da
percepção
DCG Filosofia da Mente Docência Orientada
Ultrapassagem pista livre - esmalte sintético sobre madeira - 160 x 160 cm. Raymundo Collares, 1968.
• “embora sua experiência da obra de arte tenha sido transformada, não há nenhuma mudança na própria obra. Ela não tem mais (ou menos) estrutura ou sentido do que tinha no princípio. Então, se há uma mudança, uma transformação, é uma transformação em você, ou talvez, na sua situação.” (Noë, p.1, 2012)
Tese da impregnação teórica da
percepção
• Tese segundo a qual o que um sujeito percebe pode variar conforme as crenças, informações e teorias que ele possui previamente ou a sua linguagem
• Objetivo: tentar compreender se há e qual o papel que o conhecimento, a experiência e a habilidade têm na compreensão
Implicações
• Se esta tese for correta, duas pessoas poderão ter percepções diferentes, ou mesmo uma
mesma pessoa pode ter percepções diferentes.
Implicações: Relativismo cultural
“as pessoas veem o que elas esperam ver, e as categorias da percepção delas são larga, se não totalmente, determinadas por seu background social e cultural. Dessa maneira, membros de diferentes culturas podem vir a ver o mundo em que vivem de maneira bastante diferente. E isso não é só uma questão de chegar a diferentes conclusões sobre o mundo a partir dos mesmos indícios; os próprios indícios que lhes são dados como membros de diferentes culturas podem ser diferentes.”(Beattie, 1966, p. 75).
Relativismo causado pela
linguagem
• Tese Sapir-Whorf
• “…nenhum indivíduo é livre para descrever a natureza com absoluta imparcialidade mas sim é condicionado a certos modos de
interpretação mesmo quando ele concebe a si mesmo como livre” [no individual is free to describe nature with absolute impartiality but is constrained to certain modes of interpretation even while he thinks himself most free (Whorf, 1956, p. 214)]
• “aos usuários de gramáticas marcadamente diferentes são apontados a diferentes tipos de observações e diferentes avaliações de atos de observações externamente similares, e por
isso, não são observadores equivalentes e devem chegar a visões de mundo de alguma forma diferentes” [users of markedly different
grammars are pointed by their grammars toward different types of observations and different evaluations of externally similar acts of observation, and hence are not equivalent as observers but must arrive at somewhat different views of the world (Whorf, 1956, p. 221).]
Relativismo em ciência
• “Em um sentido que sou incapaz de explicar melhor, os proponentes dos paradigmas
competidores praticam seus ofícios em
mundos diferentes. Um contém corpos que caem lentamente; o outro pêndulos que
Relativismo em ciência?
(...) Por exercerem sua profissão em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas veem coisas diferentes quando olham de um ponto para a mesma direção. Isso não significa que possam ver o que lhes aprouver.” (Kuhn, 2007 [1962], p. 192, grifo nosso)
Ciência em Thomas Kuhn
• Ênfase no processo dinâmico em que se
adquire conhecimento científico, em vez da preocupação com a estrutura lógica dos
produtos da pesquisa científica
• Não-distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação
• Contribuições da história da ciência
• Concepção instrumental de ciência: ciência como resolução de problemas
• Pré-ciência
• Ciência normal
• Ciência extraordinária • Revolução científica
Paradigma
“De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (Kuhn, 2007 [1969], p. 220)
2 sentidos
• Sentido estrito: o paradigma “compõe a visão de mundo” do cientista
• Sentido amplo: exemplares, experimentos
bem-sucedidos que servem como base para o desenvolvimento da ciência normal
• Não há acesso direto à realidade
“na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se através do que veem e fazem, (...)” (p. 148)
“somente após várias dessas transformações de visão é que o estudante se torna um habitante do mundo do cientista, vendo o que o cientista vê e respondendo como o cientista responde” (p. 148)
Experimentos
• Lentes inversoras • Cartas anômalas
• Brewer – velha-moça • Cubo de Necker
Limitações dos experimentos como
exemplos
• Diferença: não há uma fonte superior a qual recorrer
• “nas ciências, se as alterações perceptivas
acompanham as mudanças de paradigma, não podemos esperar que os cientistas confirmem essas mudanças diretamente.” (p. 151)
Exemplos da história da ciência
• Astronomia • Eletricidade • Química
• Física: “Desde a Antiguidade remota muitas pessoas haviam visto um ou outro objeto
pesado oscilando de um lado para outro em uma corda ou corrente até chegar ao estado de repouso” (p. 156)
• “Para os aristotélicos – que acreditavam que um corpo pesado é movido pela sua própria natureza de uma posição mais elevada para uma mais baixa, onde alcança um estado de repouso natural – o corpo oscilante estava simplesmente caindo com dificuldade” (p. 156)
• “Galileu, por outro lado, ao olhar o corpo
oscilante viu um pêndulo, um corpo que por pouco não conseguia repetir indefinidamente o mesmo movimento.” (p. 156)
• “Galileu viu todos esses fenômenos naturais de uma maneira diferente daquela pela qual tinham sido vistos anteriormente” (p. 156)
• “Do ponto de vista descritivo, a percepção aristotélica é tão acurada como a de Galileu” (p. 157)
• “os pêndulos nasceram graças a algo muito similar a uma alteração da forma visual
• “Dados os paradigmas de Galileu, as
regularidades semelhantes aos pêndulos eram quase totalmente acessíveis à primeira vista.
(...) Regularidade que não poderiam ter existido para um aristotélico (e que, de fato, não são
precisamente exemplificadas pela natureza em nenhum lugar) eram, para um homem que via a pedra oscilantes do mesmo modo que Galileu, uma consequência da experiência imediata.”
Possibilidade explicativa
• Afirmar que os dados sensíveis são os mesmos e que o que difere é unicamente a interpretação dos mesmos.
• Não parece ser o caso: em nenhum sentido normal de interpretação, interpretamos o que vemos. Vemos um pato ou um coelho, uma velha ou uma moça
• Segundo Hanson, o que diferiria é a organização dos elementos visuais.
• “Ver não é somente ter uma experiência
visual; é também a maneira em que se tem essa experiência visual” (Hanson, 1958, p. 15)
• Dois sentidos para o verbo “ver”: um sentido não epistêmico e um sentido epistêmico
• Ver como: sentido não-epistêmico, como uma criança que entra em um laboratório. Ela e o físico terão os mesmos elementos no seu
campo visual, mas a sua organização é diferente.
• O físico, no entanto, não faz mais do que simplesmente ver.
• Ver epistêmico (ou “ver que”):Ver que “é ter alguma capacidade de prever consequências” em relação àquilo que se vê
• “ver um tubo de raio-x é, no mínimo ver que, se ele fosse derrubado, quebrar-se-ia” Hanson apud Lund, p. 83)
• “ver um tubo de raio-x é ver que uma placa
sensível à luz próxima será irradiada. É ver que o objeto ficará extremamente quente e que
este deve ser feito de metal com alta temperatura de fusão” (p. 22)
• Comprometimento teórico com expectativas empíricas
O que vê uma criança quando diz que vê uma ‘chuva’ de mésons?
Objeção: cubo de Necker
• Parecem não haver comprometimentos
teórico para observar o cubo de Necker de um ou de outro jeito. Uma criança, um físico, um leigo, um músico.
• Percepção em paralelo com atividades: • “Se alguém pretende achar um caso
paradigmático de ver, seria melhor considerar como tal não a apreensão visual de manchas coloridas, mas coisas como ver que horas são, ver em que nota uma peça musical está escrita e ver se uma ferida está infeccionada”(Hanson,
• “Direi desde logo que esta concepção muito corrente do que ocorre quando os cientistas mudam sua maneira de pensar a respeito de assuntos fundamentais não pode ser nem
totalmente errônea, nem ser um simples engano. É antes uma parte essencial de um paradigma filosófico iniciado por Descartes e desenvolvido na mesma época que a dinâmica newtoniana. (...) convergem todas para a
mesma sugestão: o paradigma tradicional está, de algum modo, equivocado.” (p. 159)
• “o que ocorre durante uma revolução
científica não é totalmente redutível a uma reinterpretação de dados estáveis e
individuais. Em primeiro lugar, os dados não são inequivocamente estáveis. (...)De fato, como poderia ser assim, dada a ausência de dados fixos para o cientista interpretar?”(p. 159)
• “Queremos sugerir que o cientista que olha para a oscilação de uma pedra não pode ter nenhuma experiência que seja, em princípio, mais elementar que a visão de um pêndulo” (p. 166)
• “Na ausência de uma alternativa já
desenvolvida, considero impossível abandonar inteiramente essa perspectiva.” (p. 164)
• Problema: influência da percepção pela teoria • Para evitar consequências indesejadas: a
observação é composta por no mínimo dois
momentos: a estimulação por dados sensíveis (os mesmos para todos os observadores) e a
posterior interpretação (que difere) (Jerry Fodor, p. ex.)
• Concepção alternativa: considerar a percepção
como uma atividade que envolve conhecimento e experiência (Alva Noë, p. ex)
Referências
Hanson, N. Patterns of discovery. Cambridge: Cambridge University Press, 1975. Kuhn, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perpectiva, 2006. Lund, M. N. R. Hanson. New York: Humanity Books, 2010.
McCauley, R. ; Heinrich, J. Susceptibility to the Muller-Lyer illlusion, theory-neutral observation and the diachronic penetrability of the visual input system. Philosophical
Psychology 19, pp. 79-101, 2006.
Noë, A. Varieties of presence. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012.