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Academic year: 2021

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Os desafios da educação no Brasil

Simon Schwartzman Os temas centrais

Até recentemente, acreditava-se que os problemas centrais da educação brasileira eram a falta de escolas, as crianças que não iam à escola e a carência de verbas. Considerava-se necessário construir mais prédios escolares, pagar melhores salários aos professores e convencer as famílias a mandar seus filhos para ser educados. Foram precisos muitos anos para convencer políticos e a opinião pública de que, na verdade, as crianças vão à escola em sua grande maioria, mas aprendem pouco, e começam a abandonar os estudos quando chegam na adolescência. Os problemas principais são a má qualidade das escolas e a repetência, ou seja, a tradição de reter os alunos que não se saem bem nas provas, prática amplamente disseminada no Brasil (Fletcher 1984, Klein e Ribeiro 1991). Enquanto ainda se falava em construir mais escolas, com a diminuição da expansão demográfica e da migração interna na década de 1980 o país começou a enfrentar pela primeira vez problemas de salas de aula vazias. Em 2003, pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Pnad), haviam 40 milhões de alunos matriculados no ensino básico regular1, para uma população total de 36,7 milhões entre sete e 17 anos, um injustificado

1 O ensino básico inclui oito anos de ensino fundamental, para crianças de sete a 14 anos, e

três anos de ensino médio, ou secundário, para jovens entre os 15 e os 17. Às vezes se usa o termo “ensino elementar” para se referir aos primeiros quatro anos do ensino fundamental, o antigo curso primário.

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excedente de mais de três milhões de vagas.2 Em 2003, 55 milhões de brasileiros, uma em cada três pessoas, estavam fazendo algum tipo de curso. Os gastos brasileiros em educação são hoje da ordem de 5 a 5.5% do Produto Interno Bruto, mais do que a Argentina e Chile, e semelhante à Itália e Japão. Outros países, com recursos semelhantes, conseguem resultados bem melhores. Embora existam ainda muitas carências, que podem justificar gastos adicionais, o que se necessita agora é, sobretudo, de uma nova geração de reformas que parta de uma diagnóstico correto dos problemas, e permita usar bem todo este investimento que já existe (Schwartzman 2004b).

Figura 1

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Existe uma importante discrepância entre os números do censo escolar realizado pelo Ministério da Educação, e a pesquisa domiciliar realizada pelo IBGE. Os números mais recentes para o ensino fundamental são, respectivamente, 34 milhões no Censo Escolar de 2004 e 31,3 milhões na PNAD 2001; e, para o ensino médio, 9.1 milhões e 8,6 milhões. Essas discrepâncias podem ser explicadas, pelo menos em parte, pelo fato de que o censo escolar é realizado no início do ano, e a PNAD só em setembro, quando muitos alunos já abandonaram a escola; e pelo fato de que algumas administrações escolares provavelmente exageram em seus relatórios, já que os financiamentos dependem do número de alunos matriculados.

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Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2003, tabulação própria.

Figura 2

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2003, tabulação própria.

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Figura 3

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2003, tabulação própria.

Conforme podemos ver na Figura 1, praticamente todas as crianças na faixa dos sete aos dez anos de idade estão na escola. Portanto, o acesso deixou de ser um problema importante. Mas, conforme aparece nas figuras subseqüentes, muitos estudantes não estão no nível em que deveriam estar e há uma quantidade muito grande de adultos ocupando as vagas dos jovens desistentes. Vemos na Figura 2 que muitos jovens entre 15 e 17 anos não estão no ensino médio, como deveriam, mas ainda permanecem no ensino fundamental. A Figura 3 compara as “taxas brutas” de matrícula, isto é, o total de matriculados em relação ao grupo de idade correspondente a cada nível, com as “taxas líquidas”, ou seja, a percentagem de pessoas em cada faixa de idade que estão matriculadas no nível que lhes corresponde. De acordo com estes dados da Pnad, no ensino fundamental a taxa líquida é de cerca de 93%, uma proporção bastante satisfatória; mas a taxa bruta se aproxima dos 120%, indicando um custo adicional de 20% que é pago pela ineficiência do sistema. No nível médio, cuja cobertura líquida é de 43%, cerca de metade dos alunos têm 18 anos de idade ou mais e já deveriam ter saído educação básica. No ensino superior, que ainda matricula

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apenas 10% dentro da faixa etária (entre 18 a 24 anos de idade), cerca de metade dos alunos está com 25 anos ou mais. Estes desajustes, e as tentativas que têm sido feitas de dar uma nova oportunidade aos jovens que abandonam a escola antes de terminar os cursos ou ficam retidos sem aprender, são o objeto do capítulo de João Batista de Oliveira neste volume.

A estas distorções, causadas sobretudo pelos altos níveis de repetência, se somam a má qualidade do ensino, evidenciada pelos dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e por comparações internacionais (Crespo, Soares e Mello e Souza 2000, OECD 2001), e as elevadas taxas de evasão que ocorrem quando os jovens chegam à adolescência. Em 2003, aos 16 anos de idade, 16.7% dos brasileiros já se encontravam fora da escola; aos 18 anos, 42%. Assim, muitos passam pela escola sem aprender a ler e escrever, e saem antes de obter a titulação formal que necessitam. A má qualidade da educação não afeta a todos da mesma maneira: ela atinge, principalmente, as crianças oriundas de famílias mais pobres, e as escolas não estão preparadas para compensar estas diferenças, como mostra Francisco Soares em sua análise.

Há também problemas sérios de relevância e conteúdo que afetam sobretudo o ensino médio. Será que o aluno está aprendendo o que precisa para aprimorar sua personalidade, viver em sociedade e participar do mercado de trabalho? Até recentemente, não existia no Brasil uma referência que servisse para avaliar os resultados do desempenho dos jovens que concluem a educação básica, e funcionasse como instrumento para a análise das diferenças e base para políticas de melhoria. O Exame Nacional do Ensino Médio, analisado por Maria Helena Guimarães Castro e Sérgio Tiezzi, foi a primeira experiência neste sentido, como parte de um esforço mais amplo de desenvolvimento de indicadores sobre as características, evolução e qualidade da educação do país.

As grandes diferenças de qualidade que existem no ensino médio, e o grande número de jovens que abandonam os cursos antes de terminar, colocam na pauta a necessidade de aumentar o espaço para a formação profissional, que possa capacitar os jovens para o mercado de trabalho. O Brasil tem se saído razoavelmente bem na educação profissional para alguns segmentos da população, com acesso às escolas técnicas da indústria e do comércio, através do chamado “sistema S” (Sesi, Senai, Senac) mas não conseguiu dar maior amplitude a essas experiências. Em todo o

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mundo, as experiências de separar o ensino médio entre cursos mais acadêmicos e cursos profissionais, orientados para o mercado de trabalho, costumam trazer um problema de difícil solução, que é a estratificação de prestígio e reconhecimento que se estabelece entre estes segmentos, com os mais pobres sendo canalizados para os cursos profissionais de menos prestígio e remuneração, enquanto que mais privilegiados permanecem nos cursos de formação geral e se preparam para entrar nas universidades (Shavit & Müller, 2000). Os dilemas da educação profissional, e o que tem sido proposto no Brasil para solucioná-los, é o objeto do artigo de Cláudio de Moura Castro.

Uma outra questão, que permeia todos os níveis de ensino, é a da formação de professores, sem os quais nada pode ser feito. Existem evidências de que muitos professores não adquirem a formação necessária para proporcionar uma educação de qualidade, e enfrentar os problemas particularmente sérios que afetam as escolas públicas que devem atender a populações mais carentes. Os professores e professoras, no entanto, não trabalham no vácuo, mas em instituições que muitas vezes não têm o formato, os estímulos e os recursos necessários para que a atividade educacional possa se exercer plenamente (Oliveira & Schwartzman, 2002). As diferentes tentativas de lidar com esta questão no Brasil, ao longo do tempo, é o tema do trabalho de Maria Figueiredo e Roberto Cowen.

Os problemas do ensino fundamental repercutem no ensino superior de várias maneiras A pouca cobertura e a altas taxas de abandono no ensino médio fazem com que poucos, relativamente, cheguem ao ensino superior. Comparado com outros países do mesmo nível de renda, o Brasil tem um sistema universitário bastante reduzido e elitista, não somente em termos dos do número e composição social dos estudantes que admite, mas também em seu formato, baseado em um suposto modelo único de organização universitária que nunca conseguiu se implantar plenamente, mas que impede o desenvolvimento de segmentos mais adequados para o atendimento de muitas pessoas que buscam uma qualificação pelo menos razoável do ponto de vista cultural e profissional. É um sistema fortemente estratificado, com um número relativamente pequeno de excelentes instituições e cursos, razoavelmente bem financiadas e aonde é difícil entrar, e um grande número de instituições e cursos que se esforçam, muitas vezes inutilmente, para emular ou copiar o modelo das instituições e cursos de maior prestígio (Schwartzman, 2004). As universidades

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públicas, que implantaram desde os anos 60 o regime de tempo integral e as vantagens do serviço público para seus professores, são instituições caras e não têm conseguindo se expandir, abrindo espaço para o grande crescimento do ensino superior privado, de qualidade muito variada, e que já absorve cerca de 70% das matrículas. A saga da expansão das universidades públicas, e a difícil questão da implantação de sistemas adequados de controle e estímulo da qualidade tanto no setor público quanto no setor privado, são objeto dos trabalhos de Eunice Durham e Maria Helena Magalhães Castro.

Finalmente, o Brasil desenvolveu nos últimos 40 anos um sistema de pós-graduação e de pesquisa que é considerado, de maneira geral, como de muito boa qualidade, confirmando a tradição elitista do país, de investir fortemente nas áreas de ponta, mas não conseguir atender de forma satisfatória e ampla sua população. As características da pós-graduação brasileira, e os dilemas que enfrenta hoje, são o objeto do estudo de Elizabeth Balbachevsky.

De quanta educação o Brasil precisa e com que conteúdos? Não há dúvida que o ensino básico universal de qualidade é um requisito e uma exigência moral de todas as sociedades modernas, pelo bem da eqüidade social, dos valores culturais e da funcionalidade econômica. Não há dúvida tampouco que os governos devem apoiar a educação de nível superior, como fonte de conhecimento e competência para a sociedade como um todo. Entretanto, mesmo nas economias avançadas, somente um segmento do mercado de trabalho requer competências especializadas e a maior parte da educação de nível superior está relacionada ao desenvolvimento de atitudes, competências gerais e estilos de vida. O valor da educação no mercado de trabalho é em grande parte posicional, ou seja, quem tem mais educação tende a levar vantagem, mesmo que seus conhecimentos e competências não sejam especificamente requeridos ou adequados para determinados empregos. Por isto, as demandas de estudantes, educadores e acadêmicos por mais cursos, melhores salários e mais subsídios públicos em todos os níveis é crescente e aparentemente interminável, e é importante que os governantes possam conhecer os limites de seus recursos e decidir aonde estão as prioridades.3 É também parte da responsabilidade do setor público

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Para uma análise da oferta de cursos superiores e as demandas do mercado de trabalho na América Latina nos últimos anos, consulte Simon Schwartzman (2002). Sobre o tema da inflação dos

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trabalhar pela diversificação dos sistemas educacionais, atendendo de forma apropriada a uma população cada vez mais diferenciada que busca os bancos escolares, sem, no entanto, permitir que estas diferenças se transformem em hierarquias de prestígio, benefícios e oportunidades.

As origens

No início do século XX, a maioria da população na Europa Ocidental, Nova Inglaterra e Japão já era alfabetizada, enquanto no Brasil e em quase todos os outros países do mundo a educação formal só chegava a uma minoria ínfima.4 A expansão da leitura e escrita se explica pela combinação de elementos distintos. As religiões ocidentais — judaísmo, cristianismo e islamismo — põem a leitura de livros sagrados no cerne da educação infantil. Nas tradições judaicas e do protestantismo, o aprendizado acontecia no seio da família ou em pequenas escolas comunitárias e fazia parte da construção e manutenção da identidade cultural ante um ambiente desconhecido ou hostil. Em todo o mundo muçulmano, a leitura do Alcorão era e ainda é um componente essencial da formação religiosa e moral das pessoas. Mas nem sempre as religiões conseguem converter a leitura religiosa numa habilidade que pudesse ser usada fora do universo religioso e ritualístico.5 Para tanto, fazem-se necessárias outras condições, como a disponibilidade de materiais impressos, e, sobretudo, o uso da escrita e dos números para comunicar, registrar fatos, fazer negócios e trabalhar.

cursos superiores na Inglaterra e suas implicações negativas, Alison Wolf (2002). Para as múltiplas funções e diferenciação do ensino superior na América Latina e no Brasil, consulte Cláudio de Moura Castro e Daniel C Levy (1997).

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Para Europa, consultar Richard L. Venezky (1991), David Vincent (2000); Para França, François Furet e Jacques Ozouf (1977). Para Japão, consulte, dentre outros, Yoshihisa Godo e Yugiro Hayami (2000). Para os Estados Unidos, Kenneth A Lockridge (1974), E. Jennifer Monaghan (1988), Edward W Stevens, Jr. (1990).

5 “Nos países muçulmanos, é bastante difundido o conhecimento do Quran Sharif, ensinado

nas escolas religiosas chamadas madrasas. Infelizmente, esse aprendizado é pura memorização. Ainda que os alunos consigam ler o Alcorão com fluência, em geral eles não conseguem ler a escrita árabe fora desse contexto. Esse aprendizado não pode ser transferido para a leitura de outros livros ou para resolver questões de matemática” Ujwala Samant (1996)

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E mais: não basta a organização da comunidade, de baixo para cima. A disseminação de escolas na Europa foi, a princípio, obra das igrejas estabelecidas, a protestante e a católica, como parte dos movimentos de Reforma e Contra-reforma, tornando-se mais tarde tarefa e responsabilidade dos nascentes estados nacionais. A França de Napoleão sintetiza o modelo que tantos países tentaram imitar: uma nação coordenada por um governo central forte, criando instituições complexas para envolver e mobilizar todos os cidadãos numa sociedade integrada e coesa. Fazia parte destas instituições o serviço militar obrigatório, e junto com ele, um sistema nacional de educação, capaz de ensinar a todos não só a leitura e a escrita, implantando uma língua homogênea e padronizada, mas também os valores morais e cívicos considerados necessários para a nação que se formava.6

Mas não havia Estado Nacional que pudesse começar esse trabalho do zero. Na França, o Estado napoleônico construiu suas instituições educacionais a partir de uma complexa rede de escolas criadas e mantidas pela Igreja durante o Antigo Regime, assim como das tradições de educação popular que existiam em muitos lugares (Furet e Ozouf 1977). Na Europa, diferentes países lidaram com a Igreja e com tradições lingüísticas e de educação popular divergentes à sua maneira, às vezes em conflito, às vezes em cooperação, normalmente através de cooptação. Parte importante dessa história é o desenvolvimento da profissão do magistério, que ajudou a fazer das formas de ensino e aprendizagem mais espontâneas e tradicionais uma rede de escolas organizadas e padronizadas.7 A industrialização e o desenvolvimento das cidades modernas também tiveram seu papel, mas um papel que não foi tão óbvio. David Vincent argumenta, por exemplo, que a alfabetização de crianças era um “luxo” que se tornou possível por causa do progresso econômico, e não um requisito

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Quanto dos antigos valores e do simbolismo dos antigos estados nacionais ainda faz sentido nestes tempos de globalização? É uma questão que merece discussão específica, e que tem implicações importantes para a definição dos conteúdos escolares, como por exemplo no ensino da história, das línguas e da literatura, Consultar, dentre outros, Daniele Archibugi e Bengt-Ake Lundvall (2001) Marjorie Peace Lenn e Jennifer Reason Moll (2000) Martin Carnoy (1999).

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A referência clássica para análise dessa inter-relação entre Estado, Igreja e a profissão do magistério na formação dos sistemas nacionais de ensino na Europa é Margaret Scotford Archer (1979).

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para ele, embora, uma vez existindo, ela tenha ajudado no crescimento da indústria e do comércio. De fato, existem evidências de que, na Inglaterra e na França, a industrialização e a concentração urbana levaram à deterioração temporária dos padrões educacionais. A educação não podia se desenvolver em condições de pobreza extrema, mas, uma vez iniciada, se tornou um ingrediente central na constituição das sociedades modernas.

Portugal, assim como a Espanha, não foi atingido pelo movimento da Reforma. A Igreja Católica, que exercia forte controle sobre as universidades através da Ordem dos Jesuítas, não teve de responder à ameaça do protestantismo criando escolas para o povo, e isso talvez ajude a explicar por que a alfabetização não se espalhou tanto em Portugal como nos outros países europeus.

Em meados do século XVIII, sob o comando do marquês de Pombal, os jesuítas foram expulsos de Portugal e Brasil, num esforço de colocar a metrópole na linha do iluminismo europeu. Em Portugal, a reforma trouxe os primeiros esforços de criar um sistema nacional para o ensino elementar, o que marcou também o início da profissão do magistério naquele país (Nóvoa 1987). Não aconteceu nada parecido no Brasil, onde a conseqüência não intencional da Reforma Pombalina foi o desmantelamento quase total do ensino católico, o único, praticamente, que existia na época.8

No início do século XIX, a corte portuguesa se muda para o Rio de Janeiro, fugindo de Napoleão, e em 1822 o Brasil se torna independente sob um rei português. As primeiras instituições de ensino superior no país datam daqueles anos — a Academia militar no Rio de Janeiro, duas escolas de direito em São Paulo e Recife, duas escolas de medicina no Rio de Janeiro e na Bahia. Em 1838, foi fundada no Rio

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Quase não existe informação sobre quanto ensino havia no Brasil naquele tempo. Uma resposta simples seria: “muito pouco.” Segundo José Luiz de Paiva Bello (2003)., cerca de quinhentos padres jesuítas deixaram o país em 1759, fechando 17 escolas, 36 missões e vários seminários para jovens e escolas elementares. Mas ficaram outras ordens religiosas e sacerdotes seculares. Mais tarde os jesuítas puderam voltar e a Igreja continuou a desempenhar um papel importante na sociedade brasileira, inclusive no ensino, apesar dos conflitos constantes com a elite política do país. Sobre a reforma de Pombal e seu impacto no ensino no Brasil, veja Antônio Alberto Banha de Andrade (1978), Kenneth Maxwell (1995), Antônio Paim e Adolpho Crippa (1982).

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de Janeiro a primeira escola pública secundária, o Colégio Pedro II.9 O ensino primário, quando existia, ficava a cargo dos governos das províncias, de tutores particulares e padres das paróquias, exceto na capital do país, onde começaram a tomar forma os rudimentos de um sistema de ensino público. A Igreja também foi responsável por vários estabelecimentos religiosos, inclusive a famosa escola na serra do Caraça em Minas Gerais, mantida pelos padres lazaristas, que durante muitos anos foi uma das poucas alternativas para os jovens que desejavam estudar mas não podiam ir para o Rio de Janeiro ou para o exterior.

Figura 4 - Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, 186110

9 Sobre instituições de ensino superior, Simon Schwartzman (2001b); sobre o Colégio Pedro

II, Prefeitura do Rio de Janeiro (2003).

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http://www.rio.rj.gov.br/multirio/historia/modulo02/criacao_pedroii.html, acessado em 5 de dezembro de 2004. Esta ilustração faz parte do acervo do Centro de Informações de História do Brasil da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro Educação Multirio (2004)

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Figura 5 - O Colégio Caraça em Minas Gerais11

No século XIX, o Brasil era uma sociedade predominantemente rural, sob o domínio de um império centralizado que tentava adotar a pompa dos Estados Nacionais europeus, mas sem os recursos para incorporar a população empobrecida das províncias distantes, onde os ciclos econômicos do açúcar e do ouro havia muito tinham-se acabado. A sociedade brasileira compunha-se de uma pequena elite de brancos descendentes de portugueses, escravos negros, o que restava da população indígena e grandes quantidades de mestiços, ex-escravos e homens livres empobrecidos que viviam da agricultura de subsistência ou se ajeitavam para morar nas vizinhanças dos principais portos e cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife (Franco 1969, Mattoso 1988). Esse quadro demográfico e cultural começou a mudar em fins do século XIX com a chegada de imigrantes europeus e japoneses a São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados do Sul, primeiramente para substituir a mão-de-obra escrava nas rentáveis colheitas de café, e depois para habitar as grandes cidades do país. Já em 1900, um terço da população do Rio de Janeiro e de São Paulo havia nascido fora do Brasil. Na época, cerca de um terço dos jovens no Rio de Janeiro freqüentava algum tipo de escola primária ou elementar, sendo um em cada quatro numa instituição particular.

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Foto de Norbert Vogt. Disponível em http://www.viajar.de/index.html , acesssado em 5 de dezembro de 2004.

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Nessa época, o Império já havia sido substituído por um regime republicano e novas elites começavam a agitar em prol de um estado moderno que não se limitasse a imitar as instituições européias, mas que fosse realmente capaz de incorporar a população numa comunidade nacional coerente e integrada. No estado de São Paulo, pela primeira vez, um novo conceito de educação pública começou a se formar. Na década de 1890, como parte de um notável esforço de modernização do estado, unidades de ensino dispersas foram reunidas em “grupos escolares” construídos segundo os projetos arquitetônicos mais avançados da época12. Os alunos eram organizados conforme a idade e proficiência e organizou-se, pela primeira vez, um programa seqüencial de estudos, dividido em séries anuais (Souza 1998). Foram criadas novas escolas normais, que passaram por transformações no sentido de introduzir melhores métodos de ensino e um conteúdo moderno (Nagle 1974, Tanuri 1979). Depois, surgiram tentativas de reformas semelhantes na Bahia, em Minas Gerais e no Distrito Federal.

12 Até hoje, a expressão “grupo escolar” é usada no Brasil com referência a escolas

elementares que fornecem os quatro primeiros anos de ensino básico. Dentre outras iniciativas do Estado de São Paulo no período, destaca-se a criação de várias escolas de ensino superior e institutos de pesquisa. Na época, São Paulo já era o maior produtor de café do mundo e a região mais rica do país.

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Figura 6 - Escola Modelo da Luz (Grupo Escolar Prudente de Morais), criado em São Paulo em 189513

Em 1906, o governo federal aprovou uma lei para o ensino primário, reorganizando as escolas e proclamando as virtudes da caligrafia vertical, considerada muito mais eficiente, racional e adequada para se ensinar em larga escala a escrita (Faria Filho e Galvão 1998). Entretanto, durante toda a Primeira República (1889-1930), a educação primária e média continuaram sendo responsabilidade dos governos local e estadual, e somente cerca de 25% da população, no máximo, era alfabetizada.14 Os imigrantes alemães, italianos e japoneses criaram suas próprias escolas, às vezes com o apoio dos governos de seus países, ou de padres estrangeiros.15 Em 1924, foi fundada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de

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Disponível em http://www.crmariocovas.sp.gov.br/neh.php?t=001b , acessado em 5 de dezembro de 2004. Esta foto faz parte do Centro de Referências da Educação Mário Covas (2003).

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Esta informação é oriunda de um censo municipal no Rio de Janeiro em 1906 e do censo nacional de 1900, publicado pela Directoria Geral de Estatistica (1916).

15 Antes da guerra, havia cerca de cinco mil professores alemães trabalhando num sistema

escolar bem integrado que se espalhava pelos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Em São Paulo, em 1917, havia 37 escolas alemãs e 51 italianas. Os japoneses começaram a chegar em maior quantidade em meados da década de 1920, e já em 1936 havia 310 escolas estrangeiras no estado de São Paulo, das quais 215 eram japonesas. Dados de Circe Maria Fernandes Bittencourt (1990).

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Educação, com participantes de vários estados, e essa associação foi muito importante no processo de trazer a educação para a ordem do dia no país (Paim 1981).

Somente com a Revolução de 1930, que trouxe Getúlio Vargas ao poder e deu início a um novo período de centralização política, a educação finalmente surgiu como prioridade nacional. O novo governo criou o primeiro Ministério da Educação e Cultura16, e intelectuais que estiveram envolvidos com as campanhas regionais de educação e reforma do ensino publicaram um famoso “Manifesto dos Pioneiros da Nova Educação” (Azevedo 1932), que ditaria as prioridades para o ensino nos anos vindouros. Fora do Brasil, já havia movimentos em prol de uma “nova educação” e uma “nova escola” há várias décadas, com idéias tiradas das obras de Wilhelm Dilthey, Édouard Claparède, Adolphe Ferrière e outros, e divulgadas por instituições como a Ligue Internationale pour l’Éducation Nouvelle. Na década de 1920, essas idéias dominaram os debates em torno da educação em Portugal (Nóvoa 1987). No Brasil, as propostas dos “pioneiros da educação” tratavam tanto da maneira como deveria ser o ensino, através da participação ativa do aluno no processo de aprendizagem, quanto da maneira de organizar a educação, através da abertura de universidades públicas e do ensino básico gratuito, universal e obrigatório, e da formação de professores em instituições de nível universitário.

Existe ampla literatura sobre as idéias e a obra dos pioneiros e sobre o que o governo de Getúlio Vargas e seus ministros, Francisco Campos e Gustavo Capanema, fizeram ou deixaram de fazer no âmbito da educação.17 Os intelectuais e educadores da época se dividiam profundamente em suas orientações ideológicas e doutrinárias, indo desde os fascistas autoritários (Francisco Campos) e os católicos ultramontanos (Alceu Amoroso Lima) até os pragmatistas do tipo americano (Anísio Teixeira) e os

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No século XIX, a educação era responsabilidade do Ministério do Interior, ou do Império. No primeiro governo republicano houve, durante pouco tempo, o “Ministério da Instrução Pública, Serviço Postal e Telégrafos”.

17 Veja o que foi dito pelos próprios pioneiros, Fernando de Azevedo (1929), Fernando de

Azevedo (1946), Manoel Bergstrom Lourenço Filho (1967), Manoel Bergstrom Lourenço Filho (1941), Anísio Teixeira (1968). Para uma visão geral do período, Helena Maria Bousquet Bomeny e Carlos Roberto de Souza (2001), Zaia Brandão (1999), Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny e Vanda Maria Ribeiro Costa (2000).

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que acreditavam nos poderes científicos da nova pedagogia (Lourenço Filho e Fernando de Azevedo), chegando aos marxistas (Paschoal Lemme). Em parte, os conflitos estavam relacionados ao pacto assinado entre Getúlio Vargas e a Igreja Católica conservadora, segundo o qual a educação brasileira seria reorganizada sob a supervisão e direção da Igreja18 ao qual se opunham ferrenhamente os reformistas mais liberais e à esquerda.

No fim, o que prevaleceu não foram as doutrinas, mas sim os instintos burocráticos e administrativos do ministro Capanema, imbuído dos valores nacionalistas e conservadores da época. O governo Vargas criou uma burocracia muito centralizada para o ensino superior e se empenhou em conformar e controlar o ensino básico e secundário a partir de cima, mas sem assumir a responsabilidade de gerenciar e administrar as escolas, que continuaram por conta das autoridades municipais e estaduais, ou nas mãos da iniciativa privada. Duas realizações marcantes do período foram a criação do primeiro centro brasileiro de estudos e pesquisa sobre a educação, o Inep — Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Mariani 1982, Xavier 2000); e a reforma e atualização da antiga escola normal, que se transformou no novo Instituto de Educação no Rio de Janeiro, na expectativa de se tornar a versão brasileira da École Normale francesa e um modelo para o país. Mais polêmicas foram as iniciativas de mobilização dos jovens e a doutrinação dos ideais patrióticos nacionalistas através da educação religiosa, dos hinos cantados em grandes corais (um projeto caro a Heitor Villa Lobos) e, mais tarde, a política de fechar as escolas de imigrantes e prender aqueles que davam aulas para as crianças em sua língua materna (Bittencourt 1990).

Nesse período, o ensino primário, que deveria ser obrigatório e universal, durava quatro anos, dos sete aos dez anos de idade. Era seguido do ginásio, considerado como ensino secundário na época e que também durava quatro anos. Chegava-se, por fim, ao nível “colegial”, que durava de dois a três anos, concebido como curso preparatório para as universidades. O ministro Capanema se empenhou

18 O pacto assinado entre Getúlio Vargas e a Igreja Católica pelo controle das instituições de

ensino está documentado em Schwartzman, Bomeny e Costa . Quanto ao viés conservador da Igreja Católica brasileira naqueles anos e ao seu papel na educação, veja Francisco Iglésias (1971), Tânia Salem (1982).

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bastante na elaboração dos conteúdos do ensino secundário nos moldes dos ginásios ou liceus da Europa, que proporcionariam uma formação humanística e científica aos jovens que quisessem cursar as universidades. Mas a expectativa era que a maioria dos alunos tivesse uma formação mais prática em atividades agrícolas, industriais e comerciais, sem entrar nos estudos superiores. Entretanto, não havia onde formar os professores para esses cursos, nem havia muita demanda. Os empresários criaram seus próprios programas de treinamento, que se ajustavam às suas necessidades e ficavam fora do controle das autoridades educacionais;19 as escolas de comércio se espalharam como segunda opção para jovens que não conseguiam entrar nos ginásios públicos mais prestigiados nem pagar as mensalidades dos colégios católicos; e o ensino agrícola jamais se desenvolveu, a não ser em poucos lugares.

No ensino superior, a primeira legislação universitária foi aprovada em 1931, determinando uma combinação das escolas profissionais ao estilo francês com uma nova “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”, copiada da Itália, que deveria ser lugar de pesquisa, do estudo das ciências puras, e também de formação de professores para as escolas médias. Novamente o governo federal tentava um sistema bastante centralizado, com leis definindo o conteúdo dos cursos e carreiras, uma Universidade Nacional servindo de modelo para todo o país e um sistema rígido de controle e supervisão das instituições locais e particulares. Entretanto, a única universidade nacional a ser criada antes da Segunda Guerra Mundial foi a do Rio de Janeiro, agregando as antigas faculdades existentes com uma nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O estado de São Paulo, competindo com o governo federal, criou sua própria universidade primeiro, conforme o mesmo modelo, mas com um conteúdo científico e acadêmico muito mais forte. Para sua Faculdade de Filosofia foram recrutados professores na França para as ciências sociais, na Itália para física e matemática, e na Alemanha para química e ciências biológicas. Graças a este início, a Universidade de São Paulo deu origem às mais importantes tradições de pesquisa

19 As primeiras tentativas, e fracassos, do Ministério da Educação de trazer professores suíços

para criar escolas técnicas segundo as tradições européias estão descritas em Schwartzman, Bomeny e Costa (2000), capítulo 8. Até hoje, as federações patronais mantêm seus próprios sistemas de ensino técnico profissional.

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científica e tecnológica no país, e continua sendo uma das principais instituições acadêmicas do Brasil.

As concepções, os formatos institucionais e as práticas estabelecidas durante os 15 anos do regime Vargas iriam moldar o ensino brasileiro por muitas décadas. Depois da guerra, o país adentrou um período rápida modernização, crescimento econômico e urbanização que trouxe consigo uma demanda cada vez maior pela educação. O governo federal respondeu criando uma rede de universidades federais, pelo menos uma em cada estado, e os governos estaduais e municipais expandiram seus sistemas de educação elementar e média. O ensino particular também se expandiu, atendendo tanto às elites, com escolas elementares e secundárias seletivas, quanto às classes médias baixas, abrindo alternativas baratas para aqueles que não conseguiam passar nos vestibulares para as universidades públicas ou precisavam combinar estudo com trabalho.

Tardaria meio século, desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, datado de 1932, para que o marco institucional do ensino brasileiro começasse a mudar novamente. Durante esse período, o Brasil se tornou uma sociedade urbana, com comunicações interligando o país inteiro e um setor industrial bastante grande. Apesar dessa expansão, a educação parecia menos importante nas décadas de 1950 e 1960 do que em décadas anteriores. Nos anos 30, havia a crença de que a educação seria capaz de mudar a mentalidade e a alma das pessoas, sendo o caminho para o progresso. Depois, o crescimento econômico, as questões sociais e a política assumiram a primazia; a educação, de uma condição necessária para a mudança social, passou a ser vista como uma simples decorrência. Na década de 1950, Juscelino Kubitschek conduziu um ambicioso “programa de metas” para fazer do Brasil um país moderno, desenvolvendo a indústria, abrindo estradas, construindo represas e uma nova capital. Entretanto, só havia uma meta ligada à educação: o ensino técnico, com menos de 4% do orçamento de investimentos (Bomeny 2002). No mesmo período, graças ao apoio internacional da Unesco e de outras fontes, foi fundado no Rio de Janeiro um ambicioso centro nacional de pesquisas educacionais, o Cbpe, vinculado ao antigo Inep. Desta instituição surgiram muitos estudos interessantes sobre urbanização, estratificação social e mobilidade social, mas pouquíssima coisa em termos de educação (Xavier 2000).

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Mesmo assim, algumas reformas interessantes ocorreram nas décadas de 1960 e 1970. Em fins dos anos 1960, o ensino superior foi transformado, com a introdução de inovações ao estilo estadunidense, como o sistema de créditos, os departamentos acadêmicos e os programas de pós-graduação. Em 1971, seguindo as tendências internacionais, a educação obrigatória passou de quatro para oito anos, com o acréscimo dos quatro anos do antigo “ginásio” ao ensino elementar. No ensino médio, que substituiu o antigo colegial, diferentes modelos foram experimentados, buscando, sem muito êxito, uma conciliação entre a educação mais acadêmica e a formação para o mercado de trabalho.

Em 1988, depois de vinte anos de ditadura militar, foi elaborada uma nova Constituição, que declarava a educação básica um direito subjetivo” de cada indivíduo, estabelecendo que todas as universidades deveriam ser autônomas, que a pesquisa, o ensino e a extensão seriam inseparáveis e que todo o ensino público, do básico ao superior, deveria ser proporcionado gratuitamente. Nos anos seguintes, o Congresso e os grupos de interesse discutiram uma nova Lei da Educação, que acabou sendo aprovada em 1996 a partir de uma proposta de Darcy Ribeiro (a “Lei de Diretrizes e Bases”, número 9.394, de 20 de dezembro de 1996), dando, em princípio, muito mais liberdade e flexibilidade para as instituições educacionais em todos os níveis para montare seus próprios conteúdos programáticos e para gerenciar seus próprios assuntos.

Dois elos perdidos: a profissão docente e a profissão acadêmica.

Este histórico nos dá uma primeira resposta à pergunta de por que a educação no Brasil não se desenvolveu como nos outros países: a sociedade brasileira não tinha elementos que levassem a população a organizar e desenvolver suas próprias instituições de ensino, e o Estado brasileiro, tanto no nível nacional quanto no regional, não tinha os recursos financeiros e humanos, e tampouco a motivação, para integrar a população em um sistema educacional coerente e centralizado. Além disto, faltavam dois elos cruciais entre estes dois níveis, o das instituições da sociedade e o dos governos: uma profissão docente bem estruturada e organizada, para a educação básica, e uma profissão acadêmica bem constituída para o ensino superior, que pudessem desenvolver, implementar e divulgar os valores e a boa prática da educação.

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Na Europa, a profissão docente e a profissão acadêmica se desenvolveram como parte de um processo mais amplo de formação de comunidades profissionais especializadas na elaboração, uso e transmissão do conhecimento (Bourdieu 1985, Larson 1977, Muller, Ringer e Simon 1987). As profissões liberais modernas evoluíram a partir das antigas corporações de ofício e se tornaram entidades em grande medida auto-reguladas, que levaram à frente o processo de racionalização tanto do setor público quanto da vida social e da atividade empresarial, criando novas formas de prestígio e poder mas colocando também limites à atuação dos poderes absolutistas. O papel da profissão do direito na formação do Estado moderno foi objeto de atenção especial de Max Weber, e o papel das demais profissões, como a medicina e a engenharia, tem sido objeto de muitas análises nos anos mas recentes.20 A profissão científica se desenvolveu a partir das academias de ciência, e mais tarde se integrou, em grande parte, às universidades, constituindo desta forma a base da moderna profissão acadêmica21. Na Prússia, a força da profissão acadêmica conseguiu dar ao país o melhor ensino em todos os níveis no século XIX, embora contribuísse também para o desastre da década de 1930 (Ringer 1990). Na França, a Revolução quebrou o poder das antigas corporações, e ensino superior de elite passou a ser proporcionado pelas Grandes Écoles profissionais; mas a necessidade de formar professores levou à restauração das antigas universidade, organizando a profissão docente como parte integrante do Estado nacional. Conforme descrito por Randall Collins, “a universidade reconstituída era de fato uma repartição do Estado central fazendo indicações para escolas secundárias e controlando um conteúdo uniforme em todo o país” ((Collins 2000), p. 234).

É possível rastrear, no século XIX, as primeiras tentativas de trazer ao Brasil a noção de que as sociedades modernas deveriam ter à frente pessoas com a formação científica e técnica das profissões universitárias. Médicos, advogados e engenheiros tentaram convencer a sociedade de que tinham a solução para os problemas do país e

20 Veja por exemplo Max Weber (1978). Na literatura mais moderna, veja Talcott Parsons

(1958), e, na linha de interpretação crítica, Randall Collins (1979)

21

Sobre o desenvolvimento da ciência como profissão, Joseph Ben-David (1971). Sobre a profissão acadêmica no mundo de hoje, Philip G. Altbach (1996), Philip G Altbach e Sheila Slaughter (1980).

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buscaram garantir, ao mesmo tempo, os privilégios e a autonomia profissionais que achavam necessários para seu trabalho (Coelho 1999, Schwartzman 1997). Aqui, a regulação dos direitos e privilégios profissionais não foi como na Europa; ela se deu muito mais rapidamente que a criação e o fortalecimento das próprias profissões. Na década de 1930, o regime Vargas adotou uma noção de que a sociedade deveria ser organizada através de corporações organizadas hierarquicamente, que incluíam os sindicatos de trabalhadores, os sindicatos patronais e as profissões. Cada profissão teria seus próprios pré-requisitos educacionais, a serem providos ou atestados pelo Estado através de faculdades devidamente autorizadas e supervisionadas, e todos os trabalhadores, empresários e profissionais teriam de pertencer a uma entidade específica, também supervisionada pelo Estado (Boschi 1991, Costa 1999, Souza e Paim 1999). Na prática, a tentativa de organizar a sociedade de cima para baixo esvaziava as tentativas de organização da sociedade de baixo para cima e levava à formação de instituições débeis, bem como a uma ampla cooptação dos indivíduos com algum potencial de liderança para ocupar posições políticas e de poder burocrático. Para a educação, uma das principais conseqüências foi o prêmio que passou a ser pago pela posse de credenciais escolares e universitárias, criando um interminável cabo-de-guerra entre os que tentavam obtê-las com um mínimo de custos e investimentos, e seus fornecedores, por um lado, e o governo e as entidades profissionais do outro, que tentavam controlar e limitar a distribuição desses títulos.

Em Portugal, Nóvoa mostra como a profissão do magistério já se encontrava em formação no fim do século XVIII, quando seus componentes principais estavam sendo incorporados: um status social bem definido, um savoir-faire específico, instituições de capacitação, valores comuns, um arcabouço legal e institucional. Em 1794, havia 748 professores profissionais designados pela realeza (“Mestres Reais de Leitura e Escrita”) em Portugal; no Brasil, pelo menos no papel, o total era de apenas 179. Mais importante do que essa diferença numérica foi que, em todo o século XIX e no início do XX, a profissão do magistério iria se expandir em Portugal mas não no Brasil. Isso, por sua vez, está ligado ao fato de que o Brasil continuou sendo uma economia escravista e não passou por uma revolução liberal como a que aconteceu em Portugal depois da independência, eco das mudanças que varriam outros países europeus de forma tão dramática.

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Já vimos como houve propostas para desenvolver a profissão do magistério na década de 1930, tanto pelas faculdades de filosofia, ciências e letras quanto pela renovação acadêmica das antigas escolas normais. Embora o resultado geral não tenha sido bom, alguns resultados interessantes surgiram destas primeiras iniciativas. Entre eles estão a primeira geração de professores, diretores e pedagogos formados nas novas escolas normais do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e alguns outros estados; de padres e freiras qualificados para ensinar nas instituições católicas; e, claro, dos intelectuais que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova22. Mas estes pioneiros não tiveram sucessores, confirmando a ausência, até bem pouco tempo atrás, de uma bem definida e ampla profissão docente no Brasil.

Duas tendências paralelas acabaram levando à criação da profissão docente: a disseminação do ensino básico e secundário e a expansão dos cursos de educação, de pedagogia e faculdades de filosofia, responsáveis pela qualificação e certificação dos professores. Em 2002, segundo o Censo Escolar do Ministério da Educação, havia 2,4 milhões de “funções de ensino”23 na educação fundamental no Brasil, das quais cerca de um milhão e meio no ensino fundamental, meio milhão no ensino médio, e os demais em creches, na educação pré-escolar e na educação de jovens e adultos. Antigamente, a maioria dos professores do chamado “grupo escolar” (os quatro primeiros anos do ensino fundamental) tinha no máximo um diploma do nível médio obtido numa escola normal. Atualmente, 30% já têm um diploma de curso superior e existe uma lei exigindo que todos tenham tal graduação, que está associada a uma série de incentivos, no prazo de alguns anos. O resultado é uma grande demanda por cursos superiores de educação. Em 2002, dos 3.5 milhões de estudantes de nível superior no Brasil, 758 mil, estavam em cursos de formação de professores.

A instituição onde o professor vai buscar seu diploma de nível superior depende da série em que ele pretende lecionar. Para o pré-escolar e para os primeiros quatro anos do ensino fundamental, o caminho é uma faculdade de educação ou pedagogia; para os quatros anos subseqüentes e para o ensino médio, é exigido um

22

Veja entre outros Fernando de Azevedo (1971) Helena Bomeny (2001)

23

No ensino básico, é possível um professor ter mais de um contrato de trabalho, ou mais de uma “função docente”.

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diploma da matéria a ser lecionada, que deverá ser obtido numa das antigas faculdades de filosofia, ciências e letras ou num departamento de ciências. Antigamente, essas faculdades eram consideradas locais de pesquisa, conhecimento e formação de professores, combinação que se mostrou impossível de atingir. Com o tempo as ciências naturais, bem como a maioria das ciências sociais empíricas nas universidades públicas, criaram seus próprios departamentos e programas voltados para a pesquisa, nos quais a formação do professor não é considerada uma atividade de prestígio. A formação do professor continuou sendo uma atividade importante nas escolas, faculdades ou departamentos de letras, história, geografia e matemática, e nas escolas de educação e pedagogia, tanto de instituições públicas quanto particulares. Esses cursos atraem alunos de níveis de renda mais baixos que têm dificuldade para entrar nas áreas mais concorridas, ou antigos professores que voltam aos estudos, em horário noturno, em busca das credenciais que agora lhes são exigidas. São poucos os que estão se preparando para lecionar as ciências naturais, ou as disciplinas sociais modernas como economia ou ciência política24.

Em suma, o Brasil não elaborou um sistema próprio para a formação do professor, como em outros países, e a tentativa de desenvolvê-lo como parte do sistema universitário regular não funcionou muito bem. A formação do professor ficou isolada, relegada aos segmentos de menor prestígio das instituições de ensino superior e à iniciativa privada, sem a elaboração de sólidos programas de pós-graduação e pesquisa, como os existentes para as ciências naturais e as sociais mais acadêmicas (economia, sociologia, antropologia e ciências políticas). 25 Ao mesmo tempo, na medida em que o professorado se expande, ele é absorvido sobretudo pelas

24

Não se sabe a qualidade destes cursos, já que o Exame Nacional de Cursos só dava a posição relativa de cada um em relação ao conjunto, Existem evidências, no entanto, que mostram que, em sua maioria, os alunos dos cursos de educação chegam ao nível superior com grandes deficiências de formação e tendem a ser reprovados nas universidades públicas. Já no setor privado as exigências são muito menores, tendo sido observada, inclusive, uma tendência a ajustar o nível dos cursos às baixas qualificações dos alunos, tratados caridosamente como “pessoas tentando dar os primeiros passos para sair da pobreza”. (Agradeço a Graziella Moraes Dias da Silva por compartilhar essas observações feitas em seu trabalho de campo.)

25

Sobre a história da separação entre a área da educação e a sociologia, ver Graziella Moraes Dias da Silva (2002).

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secretarias de educação dos estados e municípios, e, como os demais setores da administração pública, se organiza em sindicatos e associações voltadas para a defesa de seus interesses.

Uma das conseqüências desta combinação foi que os membros dessa nova profissão do magistério ficaram, ao mesmo tempo, altamente organizados e politicamente motivados, mas com formação limitada em relação às competências e do conhecimento didático adequado às suas áreas de trabalho. Como as demais áreas profissionais, a área da educação tem seus programas de pós-graduação, publicações especializadas e congressos acadêmicos, aonde predominam as perspectivas críticas oriundas do marxismo, com referências constantes às idéias de Paulo Freire, Pierre Bourdieu e cientistas sociais como Octávio Ianni, Florestan Fernandes e Milton Santos. A preocupação com o pensamento crítico não deixa muito espaço, nem muito interesse, para os assuntos de natureza mais técnica e educacional. A sociedade é injusta, as pessoas são exploradas, os governos não ligam para os professores ou para o ensino e não há muito que se possa fazer sem que ocorra uma transformação social verdadeira e profunda, ou mesmo uma revolução.26

O desenvolvimento de um professorado profissional para o ensino superior teve início em fins da década de 1960, com a criação dos departamentos acadêmicos e a expansão das universidades públicas ocorrida nos anos que se sucederam. Antes disso, dar aulas no ensino superior era uma atividade menor, ainda que de prestígio, para pessoas que trabalhavam acima de tudo em suas próprias profissões, como advogados, médicos, dentistas ou engenheiros. Excetuando-se algumas escolas de medicina e setores da Universidade de São Paulo, não havia pesquisa nem recursos ou instalações para o trabalho acadêmico de dedicação exclusiva nas universidades.

Mas, no final da década de 1960, começaram a surgir milhares de vagas para professores do ensino superior nas instituições que estavam sendo criadas, de forma a atender à demanda crescente de matrículas por parte da classe média. A iniciativa

26 Sobre Paulo Freire, consulte Moacir Gadotti e Ana Maria Arajo Freire (1996), Vanilda

Pereira Paiva (2000). Sobre a percepção que muitos professores sobre seu papel, João Batista Araújo Oliveira e Simon Schwartzman (2002). Para exemplos do pensamento crítico na educação brasileira, Dermeval Saviani e Durmeval Trigueiro Mendes (1983)

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privada preferia trabalhar primordialmente com professores de meio expediente; no setor público, entretanto, o emprego com dedicação exclusiva passou a ser a regra. Em 2002, pelos dados do Censo do Ensino Superior do INEP, haviam 252 mil funções docentes de ensino superior no país, 94 mil das quais em tempo integral. As instituições públicas federais tinham 51 mil docentes, 84% dos quais em regime de tempo integral; as públicas estaduais, 35 mil docentes, 73% com contratos de tempo integral. Em contraste, no setor privado haviam 150 mil docentes, 55% dos quais contratados como professores horistas, e somente 16% em tempo integral.

Foi uma expansão extremamente rápida, acompanhada de aposentadorias precoces no serviço público, com várias conseqüências importantes. Primeiro, o custo financeiro da educação pública de nível superior disparou, limitando seriamente a capacidade do governo de atender às demandas por mais matrículas, manter os salários acima da inflação e prover as universidades de bibliotecas, laboratórios e infraestrutura. Segundo, somente um pequeno percentual dos contratados tinha a formação e o preparo necessários para um trabalho acadêmico de alto nível. Para aumentar a qualidade, foram baixadas novas leis vinculando promoções e aumentos salariais a professores que obtivessem títulos de mestre e doutor, o que resultou numa expansão inflacionada de cursos de pós-graduação.

Por causa desses desdobramentos, a profissão acadêmica brasileira se encontra agora altamente estratificada. Há um número pequeno, porém significativo, de professores que foram bem treinados em universidades brasileiras e estrangeiras, estão devidamente credenciados para exercer sua profissão e se encontram à frente dos departamentos de pós-graduação e centros de pesquisa das melhores universidades públicas. No outro extremo, existe uma grande quantidade de professores que trabalham como horistas ou em tempo parcial, sobretudo nas instituições particulares, e que são mais identificados com suas profissões do que com a vida acadêmica. No meio, há um considerável grupo de acadêmicos trabalhando em tempo integral em instituições públicas, mas sem condições de trabalhar efetivamente como pesquisadores, e, ao mesmo tempo, com poucos elos com a vida profissional fora das universidades. A situação deste contingente é semelhante à dos professores da educação fundamental e média. Eles se organizam em sindicatos e associações, assumem papéis importantes na vida institucional e política de suas instituições, mas não se identificam plenamente com a profissão acadêmica no mesmo sentido que seus

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colegas de formação científica e técnica mais plena (Balbachevsky e Quinteiro 2002, Schwartzman e Balbachevsky 1996).

As implicações desses desdobramentos são paradoxais. Com o retardo de um século ou mais, o Brasil agora tem um contingente apreciável de professores do ensino médio e superior, o que poderia ter bastante peso na construção de instituições de ensino bem estruturadas e competentes em todos os níveis. Mas este novo ator social se sente frustrado e alienado. A experiência internacional mostra que, sem o envolvimento das comunidades profissionais próprias do mundo da educação, é muito difícil desenvolver sistemas educacionais de qualidade. Por outro lado, caberia perguntar se ainda é possível, neste século e nas condições brasileiras, tentar reconstruir as antigas profissões acadêmicas e docentes que serviram tão bem ao desenvolvimento da educação nos Estados Nacionais da Europa.

Políticas recentes

Entre 1995 e 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o Mnistério da Educação permaneceu sob comando de uma equipe técnica, liderada por Paulo Renato de Souza, economista e ex-reitor da Universidade de Campinas. Algumas das principais inovações nesse período foram a reabilitação do antigo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) como uma agência de pesequisas estatísticas e avaliação do ensino, e a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), para reduzir as diferenças regionais e estabelecer um piso para os gastos estaduais e municipais com o ensino fundamental.

O Inep ficou responsável pela reorganização das estatísticas da educação no Brasil e pela implementação de três grandes sistemas de avaliação do ensino: o Saeb, sistema de avaliação para o ensino básico; o Enem, exame nacional para estudantes que concluem o ensino médio; e os exames nacionais para os programas de graduação, conhecidos como “Provão”. Um importante sub-produto destes desenvolvimentos foi o surgimento de uma nova geração de especialistas em educação no país, formados em estatística e psicometria, que estão dando aos educadores e políticos brasileiros novos e melhores instrumentos e informações para a formulação de suas políticas, baseados nas informações oriundas do Inep.

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A Constituição Brasileira de 1988 determina que o governo federal gaste 18% de seus recursos com educação, e os governos estadual e local, 25%. O Fundef foi formado para garantir que esse dinheiro seja de fato gasto com educação e para estabelecer um piso, através de compensações, para os gastos públicos por aluno e por professor para todo o país. Um dos efeitos do Fundef foi estimular o envolvimento das prefeituras com a educação fundamental, reduzindo o tamanho e a burocracia das administrações estaduais do ensino (Castro 1998, Kolslinski 2000). O governo de Luis Inácio Lula da Silva pretende ampliar este fundo, criando o Fundeb, que atenderia toda a educação básica, incluindo a educação pré-escolar e a educação média.

Há outras políticas oriundas desse período, dentre as quais a formulação de novas diretrizes curriculares para o ensino fundamental e médio e vários programas para prover as escolas de recursos gerenciais, pedagógicos e materiais que melhorem seu desempenho — livros didáticos, merenda escolar e dinheiro. O período também presenciou um grande expansão do ensino médio, causada pelo menos em parte pelos esforços sistemáticos de várias secretarias estaduais de educação, notadamente a de São Paulo, de reduzir drasticamente a repetência escolar no nível fundamental. Para os segmentos mais pobres, o governo criou um grande programa através do qual se paga às famílias para mandarem e manterem seus filhos na escola, o bolsa-família, que foi retomado e ampliado pelo governo de Luis Inácio Lula da Silva. No fim da década, o governo pode anunciar que, pela primeira vez, praticamente toda criança no Brasil tinha uma vaga e estava matriculada no ensino fundamental.

As conquistas no ensino superior foram menos significativas, exceto pela retomada do crescimento das matrículas, após a estagnação da década de 1980. O governo federal é responsável agora por uma dispendiosa rede de 39 universidades e 18 outras instituições de ensino superior, que matriculam cerca de 20% da população estudantil. Também há universidades públicas que pertencem a governos estaduais, o que eleva o total de matrículas no setor público para 35% do corpo discente. Os custos elevados das instituições públicas se devem, acima de tudo, aos salários, aos custos previdenciários e de aposentadoria do pessoal acadêmico e administrativo, e aos custos de manutenção dos hospitais universitários, que na prática funcionam

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preenchendo as lacunas deixadas pela carência de hospitais públicos adequados em muitos lugares.27

Este quadro não estaria completo sem referência às conquistas no ensino de pós-graduação e às muitas escolas profissionais de qualidade, particularmente dentro de algumas das principais universidades federais e estaduais. O ensino de pós-graduação se desenvolveu no Brasil após a adoção do modelo americano na década de 1960 e a implantação de fontes independentes de apoio e controle de qualidade para a pesquisa e o ensino de pós-graduação nos anos subseqüentes. Em 2001, havia cerca de sessenta mil estudantes em programas de mestrado e 32 mil em programas de doutorado; cerca de dez mil estudantes recebem diplomas de pós-graduação todo ano. Mesmo descontando algum nível de inflação de diplomas, devido aos requisitos para a promoção nas universidades públicas, trata-se de uma conquista impressionante, sem igual em outros países da região. A persistência e a melhoria do ensino profissional de boa qualidade em muitas instituições públicas podem ser explicadas pela política de seleção competitiva de estudantes, através dos exames vestibulares, muito diferente da política de acesso ilimitado que caracterizou as universidades públicas em países como a Argentina, o Uruguai e o México.

Os bons resultados que certamente existem no ensino básico e médio são mais difíceis de identificar, por causa do tamanho e da complexidade desses setores. Existe uma correlação forte e previsível entre boas escolas e a disponibilidade de recursos, e entre as condições socioeconômicas dos alunos e seu progresso escolar. Com poucas exceções, o ensino privado é melhor do que o ensino público. Os melhores segmentos do ensino público se encontram provavelmente em São Paulo e nos estados do Sul — Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul —, que combinam níveis razoáveis de desenvolvimento socioeconômico com tradições administrativas e pedagógicas também razoável. Em outro extremo, o pior segmento da educação fundamental no

27 Os custos se elevam ainda mais pela falta de critérios ou incentivos para reduzir os gastos

por aluno e a relação aluno/professor nas universidades, que varia de uma instituição para outra conforme um fator equivalente a cinco ou mais. Por causa disso e das escalas salariais e planos de carreira uniformes em todo o país, os custos do governo são altos, mas os salários pagos aos profissionais de melhor qualificação estão muito abaixo das expectativas, gerando frustração e insatisfação em ambos os lados.

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Brasil está composto provavelmente pelas cem mil ou mais escolas rurais mantidas por prefeituras que somam 5,5 milhões de matrículas, de um total de 35 milhões no ensino básico. São, quando muito, escolas de uma turma só e apenas uma professora, com pouquíssimos recursos.28

A existência de segmentos saudáveis na educação no Brasil não contradizem o fato de que o sistema como um todo esteja sob forte tensão, tanto financeira quanto institucionalmente, e precisa se modificar e se ajustar para aumentar em qualidade, eficiência, relevância e equidade social. O lado bom é que o montante de recursos já comprometidos com a educação é substancial; sabemos muito mais hoje sobre educação do que sabíamos antigamente; a sociedade está cada vez mais ciosa da importância da educação; e há segmentos importantes dos professores do ensino fundamental e superior e que podem se envolver, com competência, nos processos de reforma e transformação que se fazem necessários

Novas Políticas

Da vasta gama de problemas e questões que se podem levantar, alguns ganharam mais notoriedade nos últimos anos, o que não significa necessariamente que abordem as questões mais fundamentais.

Um tema que se repete é o da falta de recursos. Segundo a experiência de qualificados administradores estatais, é impossível começar a fornecer um ensino de qualidade no Brasil por menos de mil reais por aluno ao ano — o equivalente a cerca de trezentos dólares no início do ano de 2003.29 No entanto, há o fato de o último piso estabelecido pelo governo brasileiro para gastos com o ensino básico, utilizando-se o Fundo Nacional para a Educação (Fundef), ter sido de 446 reais por aluno para os quatro primeiros anos do ensino fundamental e 468,3 para os quatro anos seguintes (O Estado de São Paulo 2003).

28 Dados do censo escolar de 2002. Há alguns anos que essas escolas vinham recebendo apoio

substancial de um projeto apoiado pelo Banco Mundial, o Fundo Escola, cujos resultados ainda não são claros. O governo de Luis Ignácio da Silva não inclui o Fundescola entre seus programas prioritários na área da educação.

29

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Esta discrepância tem mais a ver com a má distribuição dos recursos do que com uma carência efetiva. O Brasil já gasta mais de 5% do PIB com educação, o que o coloca no mesmo nível da Espanha, Itália e Japão, e acima do Chile e da Argentina. Entretanto, esse gasto está enviesado para o ensino superior. A estimativa, feita pelo Inep para 1996, foi que o custo por aluno do ensino superior era 12,8 vezes maior do que para um aluno do ensino básico e 9,9 vezes maior do que para o do ensino médio. Para mudar essa situação sem reduzir os gastos com o ensino superior seria necessário um aumento substancial dos gastos públicos, trazendo-os para o patamar de 7%, semelhante ao de países como Canadá e Estados Unidos. Poderia ser uma meta digna, mas improvável de ser levada a cabo num futuro próximo, dados o aperto orçamentário do país e a insolvência não resolvida do sistema previdenciário, dentre outros fatores. Entrementes, é necessário usar melhor os recursos existentes, ajustando o tamanho do sistema à necessidade atual, mudando a prioriade entre os diferentes níveis, e introduzindo melhores práticas gerenciais.

O outro recurso importante é o envolvimento das pessoas – professores, alunos, dirigentes escolares, famílias – com a educação. Não pode haver melhoria significativa no ensino em qualquer nível sem a participação ativa dos professores e dirigentes, das famílias e das comunidades locais. A interação cotidiana entre professor e aluno continua sendo essencial, não obstante os avanços recentes da educação através da informática, do ensino à distância e assemelhados. Uma pesquisa feita recentemente entre especialistas em educação na América Latina mostrou que, pensando no futuro, eles não estão otimistas quanto às chances de obterem mais recursos para a educação, mas esperam que a situação possa melhorar através de um envolvimento cada vez maior que as comunidades locais e as organizações sociais vêm assumindo com a educação (Schwartzman 2001a).

Parece haver três condições necessárias para que se dê esse comprometimento. A primeira é que professores e acadêmicos devem receber salários dignos e trabalhar com recursos adequados, dentro de um sistema apropriado de incentivos e recompensas. A segunda é que eles percebam que as autoridades educacionais e os governos estão trabalhando em favor deles e não contra. A terceira é que eles sejam competentes e comprometidos com suas tarefas acadêmicas e intelectuais. Além disto, as instituições de ensino, das escolas locais às universidades, precisam ter autonomia de decisão, e funcionar dentro de um sistema de incentivos que valorize e recompense

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as boas práticas. Poucas destas condições, infelizmente, existem no Brasil. Os salários não têm se mantido dentro das expectativas e, mesmo aonde são melhores, são poucos os sistemas de recompensas por mérito e desempenho, e o relacionamento entre os governos e os sindicatos e associações tende a ser hostil.30

Sem fortes identidades e e envolvimento profissional por parte de segmentos importantes dos docentes, existe uma tendência de que as questões políticas e sindicais assumam primazia sobre as científicas, pedagógicas e acadêmicas, levando as autoridades educacionais, muitas vezes, a tentar aumentar o controle e a supervisão, sem deixar que os professores dos diversos níveis do ensino participem do gerenciamento de suas instituições — o que gera ainda mais conflitos e alienação. A solução não parece ser simplesmente transferir poder aos sindicatos ou desistir da necessidade de engajar os professores em seu trabalho. Este problema não é uma peculiaridade do Brasil, mas isso não o torna menos relevante.

O governo de Luiz Inácio da Silva, em seus dois primeiros anos, colocou como primeira prioridade as políticas de inclusão social na educação, através de programas de alfabetização, da ampliação do programa de bolsa-escola para famílias carentes com crianças em idade escolar, e políticas de cotas para o acesso aos cursos superiores. Independente de seu mérito, estas políticas têm em comum que elas não tocam diretamente nos problemas institucionais e de conteúdo da educação, que não deixam de estar na agenda governamental, mas que, talvez por sua maior complexidade, terminam por ficar em segundo plano.

Os problemas de eqüidade merecem atenção especial. O Brasil é conhecido por ter um dos mais elevados níveis de desigualdade no mundo e isso está intimamente ligado à educação (Ferreira e Barros 2000), quando a desigualdade é grande, tampouco existe equidade no acesso aos recursos e benefícios da educação. O Brasil também é uma sociedade multirracial, na qual há fortes correlações entre origens étnicas, renda, oportunidades de educação e desempenho na escola. Em 2003,

30 Ao contrário do que se costuma acreditar, os salários dos professores do ensino básico nos

estados, assim como dos professores e acadêmicos nas universidades públicas, não estão abaixo da renda média das pessoas com níveis semelhantes de formação. As expectativas, no entanto, são mais importantes do que meros números.

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a população branca de vinte anos e mais tinha 7.49 anos de escolaridade, a população negra, 5,49, e a população parda, 5,37; enquanto isto, a população de origem oriental, formada sobretudo de descendentes de japoneses, tinha 9.25 anos de escolaridade.31 Atualmente, para a geração mais jovem, as chances de brancos e não brancos entrarem na escola são praticamente as mesmas, mas isso não quer dizer que deixem de existir as diferenças étnicas. Pretos e pardos são mais pobres, moram em bairros e regiões com menos recursos e são filhos de pais com menor nível de escolaridade; e por isto ficam menos tempo na escola, e aprendem menos.

31

A classificação étnica ou racial no Brasil é obtida, nos censos e nas pesquisas nacionais por domicílio do IBGE, pedindo-se às pessoas que se classifiquem conforme as categorias “branco”, “preto”, “pardo”, “indígena” e “amarela”, ou oriental. Na PNAD de 2003, 52,1% dos entrevistados se definiram como brancos, 5,9% como pretos, 41,4% como pardos, 0,4% como amarelos, e 0,2% como indígenas. Como a PNAD não inclui a zona rural dos estados da Região Norte, a população endógena está sub-represesentada, e, além disto, está sujeita a erros amostrais pelo tamanho reduzido. Por isto não é incluída nas tabulações. Para uma discussão dessa classificação, consulte Simon Schwartzman (1999), Edward E Telles (1998)

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Figura 7

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2003, tabulação própria

A Figura 7 mostra a variação de anos de escolaridade conforme a cor e a renda familiar média, para a população de 20 a 25 anos de idade. Comparados com a população adulta total, os jovens têm mais escolaridade, mas as diferenças relacionadas à cor, da ordem de dois anos entre brancos e pretos ou pardos, se mantém, indicando que estas diferenças não têm se reduzido ao longo do tempo. A figura permite ver também os efeitos separados da cor ou raça e da renda. Em geral, as diferenças de renda produzem uma diferença de 5.1 anos de escolaridade entre os 25% mais pobres, que tinham uma renda familiar per capita média de 67,30 reais, e os 25% mais ricos, que tinham uma renda familiar média de 1.011,91 reais. Dentro de cada nível de renda existem diferenças importantes de escolaridade conforme a cor ou raça, que vão aumentando nos níveis de renda mais altos. A situação dos orientais é muito significativa, com níveis educacionais consistentemente mais altos do que todos os outros grupos, em todas as faixas de renda, e sobretudo no grupo de renda inferior. Estes dados confirmam que, além das diferenças de renda, que estão fortemente associadas à cor ou raça, existem diferenças importantes que estão

Referências

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