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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
LIVRO I
1
Adm ite-se geralm ente que toda arte e toda investigação, assim com o toda ação e toda escolha, têm em m ira um bem qualquer; e por isso foi dito, com m uito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem . Mas observa-se entre os fins certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades que os e produzem . Onde existem fins distintos das ações, são eles por natureza m ais excelentes do que estes.
Ora, com o são m uitas as ações, artes e ciências, m uitos são tam bém os seus fins: o fim da arte m édica é a saúde, o da construção naval é um navio, o da estratégia é a vitória e o da econom ia é a riqueza. Mas quando tais artes se subordinam a um a única faculdade — assim com o a selaria e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da equitação, e esta, j untam ente com todas as ações m ilitares, na estratégia, há outras artes que tam bém se incluem em terceiras —, em todas elas os fins das artes fundam entais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque estes últim os são procurados a bem dos prim eiros. Não faz diferença que os fins das ações sej am as próprias atividades ou algo distinto destas, com o ocorre com as ciências que acabam os de m encionar.
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Se, pois, para as coisas que fazem os existe um fim que desej am os por ele m esm o e tudo o m ais é desej ado no interesse desse fim ; e se é verdade que nem toda coisa desej am os com vistas em outra, porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desej ar, evidentem ente tal fim será o bem , ou antes, o sum o bem .
Mas não terá o seu conhecim ento, porventura, grande influência sobre a essa vida? Sem elhantes a arqueiros que têm um alvo certo para a sua pontaria, não alcançarem os m ais facilm ente aquilo que nos cum pre alcançar? Se assim é, esforcem o-nos por determ inar, ainda que em linhas gerais apenas, o que sej a ele e de qual das ciências ou faculdades constitui o obj eto. Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte m ais prestigiosa e que m ais verdadeiram ente se pode cham ar a arte m estra. Ora, a política m ostra ser dessa natureza, pois é ela que determ ina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são
as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vem os que até as faculdades tidas em m aior apreço, com o a estratégia, a econom ia e a retórica, estão suj eitas a ela. Ora, com o a política utiliza as dem ais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devem os e o que não devem os fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de m odo que essa finalidade será o bem hum ano. Com efeito, ainda que tal fim sej a o m esm o tanto para o indivíduo com o para o Estado, o deste últim o parece ser algo m aior e m ais com pleto, quer a atingir, quer a preservar. Em bora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é m ais belo e m ais divino alcançá-lo para um a nação ou para as cidades-estados. Tais são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciência política num a das acepções do term o.
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Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto com porta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por igual, assim com o não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes m ecânicas. Ora, as ações belas e j ustas, que a ciência política investiga, adm item grande variedade e flutuações de opinião, de form a que se pode considerá-las com o existindo por convenção apenas, e não por natureza. E em torno dos bens há um a flutuação sem elhante, pelo fato de serem prej udiciais a m uitos: houve, por exem plo, quem perecesse devido à sua riqueza, e outros por causa da sua coragem . Ao tratar, pois, de tais assuntos, e partindo de tais prem issas, devem os contentar-nos em indicar a verdade aproxim adam ente e em linhas gerais; e ao falar de coisas que são verdadeiras apenas em sua m aior parte e com base em prem issas da m esm a espécie, só poderem os tirar conclusões da m esm a natureza. E é dentro do m esm o espírito que cada proposição deverá ser recebida, pois é próprio do hom em culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na m edida em que a adm ite a natureza do assunto. Evidentem ente, não seria m enos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um m atem ático do que exigir provas científicas de um retórico.
Ora, cada qual j ulga bem as coisas que conhece, e dessas coisas é ele bom j uiz. Assim , o hom em que foi instruído a respeito de um assunto é bom j uiz nesse assunto, e o hom em que recebeu instrução sobre todas as coisas é bom j uiz em geral. Por isso, um j ovem não é bom ouvinte de preleções sobre a ciência política. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em torno destes que giram as nossas discussões; além disso, com o tende a seguir as suas paixões, tal estudo lhe será vão e im profícuo, pois o fim que se tem em vista não
é o conhecim ento, m as a ação. E não faz diferença que sej a j ovem em anos ou no caráter; o defeito não depende da idade, m as do m odo de viver e de seguir um após outro cada obj etivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, com o aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum ; m as aos que desej am e agem de acordo com um princípio racional o conhecim ento desses assuntos fará grande vantagem .
Sirvam , pois, de prefácio estas observações sobre o estudante, a espécie de tratam ento a ser esperado e o propósito da investigação.
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Retom em os a nossa investigação e procurem os determ inar, à luz deste fato de que todo conhecim ento e todo trabalho visa a algum bem , quais afirm am os ser os obj etivos da ciência política e qual é o m ais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação. Verbalm ente, quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo com o os hom ens de cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o bem agir com o o ser feliz. Diferem , porém , quanto ao que sej a a felicidade, e o vulgo não o concebe do m esm o m odo que os sábios. Os prim eiros pensam que sej a algum a coisa sim ples e óbvia, com o o prazer, a riqueza ou as honras, m uito em bora discordem entre si; e não raro o m esm o hom em a identifica com diferentes coisas, com a saúde quando está doente, e com a riqueza quando é pobre. Cônscios da sua própria ignorância, não obstante, adm iram aqueles que proclam am algum grande ideal inacessível à sua com preensão. Ora, alguns têm pensado que, à parte esses num erosos bens, existe outro que ê auto subsistente e tam bém é causa da bondade de todos os dem ais. Seria talvez infrutífero exam inar todas as opiniões que têm sido sustentadas a esse respeito; basta considerar as m ais difundidas ou aquelas que parecem ser defensáveis.
Não percam os de vista, porém , que há um a diferença entre os argum entos que procedem dos prim eiros princípios e os que se voltam para eles. O próprio Platão havia levantado esta questão, perguntando, com o costum ava fazer: "Nosso cam inho parte dos prim eiros princípios ou se dirige para eles?" Há aí um a diferença, com o há, num estádio, entre a reta que vai dos j uízes ao ponto de retorno e o cam inho de volta. Com efeito, em bora devam os com eçar pelo que é conhecido, os obj etos de conhecim ento o são em dois sentidos diferentes: alguns para nós, outros na acepção absoluta da palavra. É de presum ir, pois, que devam os com eçar pelas coisas que nos são conhecidas, a nós. Eis aí por que, a fim de ouvir inteligentem ente as preleções sobre o que é nobre e j usto, e em
geral sobre tem as de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. Porquanto o fato é o ponto de partida, e se for suficientem ente claro para o ouvinte, não haverá necessidade de explicar por que é assim ; e o hom em que foi bem educado j á possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade. Quanto àquele que nem os possui, nem é capaz de adquiri-los, que ouça as palavras de Hesíodo:
Ótimo é aquele que de si mesmo conhece todas as coisas; Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos. Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia, Esse é, em verdade, uma criatura inútil.
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Voltem os, porém , ao ponto em que havia com eçado esta digressão. A j ulgar pela vida que os hom ens levam em geral, a m aioria deles, e os hom ens de tipo m ais vulgar, parecem (não sem certo fundam ento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso am am a vida dos gozos. Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que acabam os de m encionar, a vida política e a contem plativa. A grande m aioria dos hom ens se m ostram em tudo iguais a escravos, preferindo um a vida bestial, m as encontram certa j ustificação para pensar assim no fato de m uitas pessoas altam ente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo.
A consideração dos tipos principais de vida m ostra que as pessoas de grande refinam ento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em sum a, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se dem asiado superficial para ser aquela que buscam os, visto que depende m ais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um hom em e que dificilm ente lhe poderia ser arrebatado.
Dir-se-ia, além disso, que os hom ens buscam a honra para convencerem -se a si m esm os de que são bons. Com o quer que sej a, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda m ais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao m enos, a virtude é m ais excelente. Poder-se-ia m esm o supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas tam bém ela parece ser de certo m odo incom pleta, porque pode acontecer que sej a virtuoso quem está dorm indo, quem
leva um a vida inteira de inatividade, e, m ais ainda, é ela com patível com os m aiores sofrim entos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém j am ais considerará feliz um hom em que vive de tal m aneira. Quanto a isto, basta, pois o assunto tem sido suficientem ente tratado m esm o nas discussões correntes. A terceira vida é a contem plativa, que exam inarem os m ais tarde.
Quanto à vida consagrada ao ganho, é um a vida forçada, e a riqueza não é evidentem ente o bem que procuram os: é algo de útil, nada m ais, e am bicionado no interesse de outra coisa. E assim , antes deveriam ser incluídos entre os fins os que m encionam os acim a, porquanto são am ados por si m esm os. Mas é evidente que nem m esm o esses são fins; e contudo, m uitos argum entos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixam os, pois, este assunto.
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Seria m elhor, talvez, considerar o bem universal e discutir a fundo o que se entende por isso, em bora tal investigação nos sej a dificultada pela am izade que nos une àqueles que introduziram as Form as. No entanto, os m ais aj uizados dirão que é preferível e que é m esm o nosso dever destruir o que m ais de perto nos toca a fim de salvaguardar a verdade, especialm ente por serm os filósofos ou am antes da sabedoria; porque, em bora am bos nos sej am caros, a piedade exige que honrem os a verdade acim a de nossos am igos.
Os defensores dessa doutrina não postularam Form as de classes dentro das quais reconhecessem prioridade e posterioridade (e por essa razão não sustentaram a existência de um a Form a a abranger todos os núm eros). Ora, o term o "bem " é usado tanto na categoria de substância com o na de qualidade e na de relação, e o que existe por si m esm o, isto é, a substância, é anterior por natureza ao relativo (este, de fato, é com o um a derivação e um acidente do ser); de m odo que não pode haver um a ideia com um por cim a de todos esses bens.
Além disso, com o a palavra "bem " tem tantos sentidos quantos "ser" (visto que é predicada tanto na categoria de substância, com o de Deus e da razão, quanto na de qualidade, isto é, das virtudes; na de quantidade, isto é, daquilo que é m oderado; na de relação, isto é, do útil; na de tem po, isto é, da oportunidade apropriada; na de espaço, isto é, do lugar apropriado, etc.), está claro que o bem não pode ser algo único e universalm ente presente, pois se assim fosse não poderia ser predicado em todas as categorias, m as som ente num a.
Ainda m ais: com o das coisas que correspondem a um a ideia a ciência é um a só, haveria um a única ciência de todos os bens. Mas o fato é que as ciências são m uitas, m esm o das coisas que se incluem num a só categoria: da oportunidade, por exem plo, pois que a oportunidade na guerra é estudada pela estratégia e na saúde pela m edicina, enquanto a m oderação nos alim entos é estudada por esta últim a, e nos exercícios pela ciência da ginástica. E alguém poderia fazer esta pergunta: que entendem eles, afinal, por esse "em de cada coisa, j á que para o "hom em em si" e para um hom em particular a definição do hom em é a m esm a? Porque, na m edida em que forem "hom em ", não diferirão em coisa algum a. E, assim sendo, tam pouco diferirão o "bem em si" e os bens particulares na m edida em que forem "bem ". E, por outro lado, o "bem em si" não será m ais "bem " pelo fato de ser eterno, assim com o aquilo que dura m uito tem po não é m ais branco do que aquilo que perece no espaço de um dia.
Os pitagóricos parecem fazer um a concepção m ais plausível do bem quando colocam o "um " na coluna dos bens; e esta opinião, se não nos enganam os, foi adotada por Espeusipo.
Mas deixem os esses assuntos para serem discutidos noutra ocasião. Poder-se-á obj etar ao que acabam os de dizer apontando que (os platônicos) não falam de todos os bens, e que os bens buscados e am ados por si m esm os são cham ados bons em referência a um a Form a única, enquanto os que de certo m odo tendem a produzir ou a preservar estes, ou a afastar os seus opostos, são cham ados bons em referência a estes e num sentido subsidiário. É evidente, pois, que falam os dos bens em dois sentidos: uns devem ser bens em si m esm os, e os outros, em relação aos prim eiros.
Separem os, pois, as coisas boas em si m esm as das coisas úteis, e vej am os se as prim eiras são cham adas boas em referência a um a Ideia única. Que espécie de bens cham aríam os bens em si m esm os? Serão aqueles que buscam os m esm o quando isolados dos outros, com o a inteligência, a visão e certos prazeres e honras? Estes, em bora tam bém possam os procurá-los tendo em vista outra coisa, seriam colocados entre os bens em si m esm os.
Ou não haverá nada de bom em si m esm o senão a Ideia do bem ? Nesse caso, a Form a se esvaziará de todo sentido. Mas, se as coisas que indicam os tam bém são boas em si m esm as, o conceito do bem terá de ser idêntico em todas elas, assim com o o da brancura é idêntico na neve e no alvaiade. Mas quanto à honra, à sabedoria e ao prazer, no que se refere à sua bondade, os conceitos são diversos e distintos. O bem , por conseguinte, não é um a espécie de elem ento com um que corresponda a um a só ideia.
Mas que entendem os, então, pelo bem ? Não será, por certo, com o um a dessas coisas que só por casualidade têm o m esm o nom e. Serão os bens um a só coisa por derivarem de um só bem , ou para ele contribuírem , ou antes serão um só por analogia? Inegavelm ente, o que a visão é para o corpo a razão é para a alm a, e da m esm a form a em outros casos. Mas talvez sej a preferível, por ora, deixarm os de lado esses assuntos, visto que a precisão perfeita no tocante a eles com pete m ais propriam ente a outro ram o da filosofia.
O m esm o se poderia dizer no que se refere à Ideia: m esm o ainda que exista algum bem único que sej a universalm ente predicável dos bens ou capaz de existência separada e independente, é claro que ele não poderia ser realizado nem alcançado pelo hom em ; m as o que nós buscam os aqui é algo de atingível. Alguém , no entanto, poderá pensar que sej a vantaj oso reconhecê-lo com a m ira nos bens que são atingíveis e realizáveis; porquanto, dispondo dele com o de um a espécie de padrão, conhecerem os m elhor os bens que realm ente nos aproveitam ; e, conhecendo-os, estarem os em condições de alcançá-los. Este argum ento tem certo ar de plausibilidade, m as parece entrar em choque com o procedim ento adotado nas ciências; porque todas elas, em bora visem a algum bem e procurem suprir a sua falta, deixam de lado o conhecim ento do bem . Entretanto, não é provável que todos os expoentes das artes ignorem e nem sequer desej em conhecer auxílio tão valioso. Não se com preende, por outro lado, a vantagem que possa trazer a um tecelão ou a um carpinteiro esse conhecim ento do "bem em si" no que toca à sua arte, ou que o hom em que tenha considerado a Ideia em si venha a ser, por isso m esm o, m elhor m édico ou general. Porque o m édico nem sequer parece estudar a saúde desse ponto de vista, m as sim a saúde do hom em , ou talvez sej a m ais exato dizer a saúde de um indivíduo particular, pois é aos indivíduos que ele cura. Mas quanto a isso, basta.
7
Voltem os novam ente ao bem que estam os procurando e indaguem os o que é ele, pois não se afigura igual nas distintas ações e artes; é diferente na m edicina, na estratégia, e em todas às dem ais artes do m esm o m odo. Que é, pois, o bem de cada um a delas? Evidentem ente, aquilo em cuj o interesse se fazem todas as outras coisas. Na m edicina é a saúde, na estratégia a vitória, na arquitetura um a casa, em qualquer outra esfera um a coisa diferente, e em todas as ações e propósitos é ele a finalidade; pois é tendo-o em vista que os hom ens realizam o resto. Por conseguinte, se existe um a finalidade para tudo que fazem os, essa será o bem realizável m ediante a ação; e, se há m ais de um a, serão os bens
realizáveis através dela.
Vem os agora que o argum ento, tornando por um atalho diferente, chegou ao m esm o ponto. Mas procurem os expressar isto com m ais clareza ainda. Já que, evidentem ente, os fins são vários e nós escolhem os alguns dentre eles (com o a riqueza, as flautas e os instrum entos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; m as o sum o bem é claram ente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estam os procurando; e, se existe m ais de um , o m ais absoluto de todos será o que buscam os.
Ora, nós cham am os aquilo que m erece ser buscado por si m esm o m ais absoluto do que aquilo que m erece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desej ável no interesse de outra coisa m ais absoluto do que as coisas desej áveis tanto em si m esm as com o no interesse de um a terceira; por isso cham am os de absoluto e incondicional aquilo que é sem pre desej ável em si m esm o e nunca no interesse de outra coisa.
Ora, esse é o conceito que preem inentem ente fazem os da felicidade. É ela procurada sem pre por si m esm a e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhem os por si m esm os (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríam os a escolher cada um deles); m as tam bém os escolhem os no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem , em geral, qualquer coisa que não sej a ela própria. Considerado sob o ângulo da autossuficiência, o raciocínio parece chegar ao m esm o resultado, porque o bem absoluto é considerado com o autossuficiente. Ora, por autossuficiente não entendem os aquilo que é suficiente para um hom em só, para aquele que leva um a vida solitária, m as tam bém para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os am igos e concidadãos, visto que o hom em nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um lim ite, porque, se estenderm os os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos am igos dos am igos, terem os um a série infinita.
Exam inarem os esta questão, porém , em outro lugar; por ora definim os a autossuficiência com o sendo aquilo que, em si m esm o, torna a vida desej ável e carente de nada. E com o tal entendem os a felicidade, considerando-a, além disso, a m ais desej ável de todas as coisas, sem contá-la com o um bem entre outros. Se assim fizéssem os, é evidente que ela se tornaria m ais desej ável pela adição do m enor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sem pre o m aior o m ais desej ável. A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente, sendo tam bém a finalidade da ação.
Mas dizer que a felicidade é o sum o bem talvez pareça um a banalidade, e falta ainda explicar m ais claram ente o que ela sej a. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssem os determ inar prim eiro a função do hom em . Pois, assim com o para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm um a função ou atividade, considera-se que o bem e o "bem feito" residem na função, o m esm o ocorreria com o hom em se ele tivesse um a função.
Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o hom em não tenha nenhum a? Terá ele nascido sem função? Ou, assim com o o olho, a m ão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentem ente um a função própria, poderem os assentar que o hom em , do m esm o m odo, tem um a função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela? A vida parece ser com um até às próprias plantas, m as agora estam os procurando o que é peculiar ao hom em . Excluam os, portanto, a vida de nutrição e crescim ento. A seguir há um a vida de percepção, m as essa tam bém parece ser com um ao cavalo, ao boi e a todos os anim ais. Resta, pois, a vida ativa do elem ento que tem um princípio racional; desta, um a parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensam ento. E, com o a “vida do elem ento racional" tam bém tem dois significados, devem os esclarecer aqui que nos referim os a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção m ais própria do term o.
Ora, se a função do hom em é um a atividade da alm a que segue ou que im plica um princípio racional, e se dizem os que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal" têm um a função que é a m esm a em espécie (por exem plo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem m aiores discrim inações, sendo acrescentada ao nom e da função a em inência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem ); se realm ente assim é [e afirm am os ser a função do hom em um a certa espécie de vida, e esta vida um a atividade ou ações da alm a que im plicam um princípio racional; e acrescentam os que a função de um bom hom em é um a boa e nobre realização das m esm as; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realm ente assim é], o bem do hom em nos aparece com o um a atividade da alm a em consonância com a virtude, e, se há m ais de um a virtude, com a m elhor e m ais com pleta. Mas é preciso aj untar "num a vida com pleto". Porquanto um a andorinha não faz verão, nem um dia tam pouco; e da m esm a form a um dia, ou um breve espaço de tem po, não faz um hom em feliz e venturoso.
Que isto sirva com o um delineam ento geral do bem , pois presum ivelm ente é necessário esboçá-lo prim eiro de m aneira tosca, para m ais tarde precisar os detalhes. Mas, a bem dizer, qualquer um é capaz de preencher e articular o que em princípio foi bem delineado; e tam bém o tem po parece ser um bom descobridor e colaborador nessa espécie de trabalho. A tal fato se devem os progressos das artes, pois qualquer um pode acrescentar o que falta. Devem os igualm ente recordar o que se disse antes e não buscar a precisão em todas as coisas por igual, m as, em cada classe de coisas, apenas a precisão que o assunto com portar e que for apropriada à investigação. Porque um carpinteiro e um geôm etra investigam de diferentes m odos o ângulo reto. O prim eiro o faz na m edida em que o ângulo reto é útil ao seu trabalho, enquanto o segundo indaga o que ou que espécie de coisa ele é; pois o geôm etra é com o que um espectador da verdade. Nós outros devem os proceder do m esm o m odo em todos os outros assuntos, para que a nossa tarefa principal não fique subordinada a questões de m enor m onta. E tam pouco devem os reclam ar a causa em todos os assuntos por igual. Em alguns casos basta que o fato estej a bem estabelecido, com o sucede com os prim eiros princípios: o fato é a coisa prim ária ou prim eiro princípio. Ora, dos prim eiros princípios descobrim os alguns pela indução, outros pela percepção, outros com o que por hábito, e outros ainda de diferentes m aneiras. Mas a cada conj unto de princípios devem os investigar da m aneira natural e esforçar-nos para expressá-los com precisão, pois que eles têm grande influência sobre o que se segue. Diz-se, com efeito, que o com eço é m ais que m etade do todo, e m uitas das questões que form ulam os são aclaradas por ele.
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Devem os considerá-lo, no entanto, não só à luz da nossa conclusão e das nossas prem issas, m as tam bém do que a seu respeito se costum a dizer; pois com um a opinião verdadeira todos os dados se harm onizam , m as com um a opinião falsa os fatos não tardam a entrar em conflito.
Ora, os bens têm sido divididos em três classes, e alguns foram descritos com o exteriores, outros com o relativos à alm a ou ao corpo. Nós outros consideram os com o m ais propriam ente e verdadeiram ente bens os que se relacionam com a alm a, e com o tais classificam os as ações e atividades psíquicas. Logo, o nosso ponto de vista deve ser correto, pelo m enos de acordo com esta antiga opinião, com a qual concordam m uitos filósofos. É tam bém correto pelo fato de identificarm os o fim com certas ações e atividades, pois desse m odo ele vem
incluir-se entre os bens da alm a, e não entre os bens exteriores.
Outra crença que se harm oniza com a nossa concepção é a de que o hom em feliz vive bem e age bem ; pois definim os praticam ente a felicidade com o um a espécie de boa vida e boa ação. As características que se costum a buscar na felicidade tam bém parecem pertencer todas à definição que dem os dela. Com efeito, alguns identificam a felicidade com a virtude, outros com a sabedoria prática, outros com um a espécie de sabedoria filosófica, outros com estas, ou um a destas, acom panhadas ou não de prazer; e outros ainda tam bém incluem a prosperidade exterior. Ora, algum as destas opiniões têm tido m uitos e antigos defensores, enquanto outras foram sustentadas por poucas, m as em inentes pessoas. E não é provável que qualquer delas estej a inteiram ente equivocada, m as sim que tenham razão pelo m enos a algum respeito, ou m esm o a quase todos os respeitos.
Tam bém se aj usta à nossa concepção a dos que identificam a felicidade com a virtude em geral ou com algum a virtude particular, pois que à virtude pertence a atividade virtuosa. Mas há, talvez, um a diferença não pequena em colocarm os o sum o bem na posse ou no uso, no estado de ânim o ou no ato. Porque pode existir o estado de ânim o sem produzir nenhum bom resultado, com o no hom em que dorm e ou que perm anece inativo; m as a atividade virtuosa, não: essa deve necessariam ente agir, e agir bem . E, assim com o nos Jogos Olím picos não são os m ais belos e os m ais fortes que conquistam a coroa, m as os que com petem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), tam bém as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retam ente.
Sua própria vida é aprazível por si m esm a. Com efeito, o prazer é um estado da alm a, e para cada hom em é agradável aquilo que ele am a: não só um cavalo ao am igo de cavalos e um espetáculo ao am ador de espetáculos, m as tam bém os atos j ustos ao am ante da j ustiça e, em geral, os atos virtuosos aos am antes da virtude. Ora, na m aioria dos hom ens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, m as os am antes do que é nobre se com prazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses hom ens, m as em si m esm os e por sua própria natureza. Em consequência, a vida deles não necessita do prazer com o um a espécie de encanto adventício, m as possui o prazer em si m esm a. Pois que, além do que j á dissem os, o hom em que não se regozij a com as ações nobres não é sequer bom ; e ninguém cham aria de j usto o que não se com praz em agir com j ustiça, nem liberal o que não experim enta prazer nas ações liberais; e do m esm o m odo em todos os outros casos.
além disso, boas e nobres, e possuem no m ais alto grau cada um destes atributos, porquanto o hom em bom sabe aquilatá-los bem ; sua capacidade de j ulgar é tal com o a descrevem os. A felicidade é, pois, a m elhor, a m ais nobre e a m ais aprazível coisa do m undo, e esses atributos não se acham separados com o na inscrição de Delos:
Das coisas a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde; Mas a mais doce é alcançar o que amamos.
Com efeito, todos eles pertencem às m ais excelentes atividades; e estas, ou então, um a delas — a m elhor —, nós a identificam os com a felicidade.
E no entanto, com o dissem os, ela necessita igualm ente dos bens exteriores; pois é im possível, ou pelo m enos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos m eios. Em m uitas ações utilizam os com o instrum entos os am igos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuj a ausência em pana a felicidade, com o a nobreza de nascim ento, um a boa descendência, a beleza. Com efeito, o hom em de m uito feia aparência, ou m alnascidos, ou solitário e sem filhos, não tem m uitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse m enos ainda se seus filhos ou am igos fossem visceralm ente m aus e se a m orte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons am igos.
Com o dissem os, pois, o hom em feliz parece necessitar tam bém dessa espécie de prosperidade; e por essa razão alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, em bora outros a identifiquem com a virtude.
9
Por este m otivo, tam bém se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem , pelo hábito ou por algum a outra espécie de adestram ento, ou se ela nos é conferida por algum a providência divina, ou ainda pelo acaso. Ora, se algum a dádiva os hom ens recebem dos deuses, é razoável supor que a felicidade sej a um a delas, e, dentre todas as coisas hum anas, a que m ais seguram ente é um a dádiva divina, por ser a m elhor. Esta questão talvez caiba m elhor em outro estudo; no entanto, m esm o que a felicidade não sej a dada pelos deuses, m as, ao contrário, venha com o um resultado da virtude e de algum a espécie de aprendizagem ou adestram ento, ela parece contar-se entre as coisas m ais divinas; pois aquilo que constitui o prêm io e a finalidade da virtude se nos afigura o que de m elhor existe no m undo, algo de divino e abençoado.
Dentro desta concepção, tam bém deve ela ser partilhada por grande núm ero de pessoas, pois quem quer que não estej a m utilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la m ediante certa espécie de estudo e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa m aneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatos sej am assim , um a vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, por natureza, tão bom quanto poderia ser, e do m esm o m odo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialm ente se depende da m elhor de todas as causas. Confiar ao acaso o que há de m elhor e de m ais nobre seria um arranj o m uito im perfeito.
A resposta à pergunta que estam os fazendo é tam bém evidente pela definição da felicidade, por quando dissem os que ela é um a atividade virtuosa da alm a, de certa espécie. Do dem ais bens, alguns devem necessariam ente estar presentes com o condições prévias da felicidade, e outros são naturalm ente cooperantes e úteis com o instrum entos. E isto, com o é de ver concorda com o que dissem os no princípio, isto é, que o obj etivo da vida política é o m elhor dos fins, e essa ciência dedica o m elhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sej am bons e capazes de nobres ações.
É natural, portanto, que não cham em os feliz nem ao boi, nem ao cavalo nem a qualquer outro anim al, visto que nenhum deles pode participar de tal atividade. Pelo m esm o m otivo, um m enino tam pouco é feliz, pois que, devido à sua idade, ainda não é capaz de tais atos; e os m eninos a quem cham am os felizes estão sim plesm ente sendo congratulados por causa das esperanças que neles depositam os. Porque, com o dissem os, há im portante não só de um a virtude com pleta m as tam bém de um a vida com pleta, j á que m uitas m udanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o m ais próspero pode ser vítim a de grandes infortúnios na velhice, com o se conta de Príam o no Ciclo Troiano; e a quem experim entou tais vicissitudes e term inou m iseravelm ente ninguém cham a feliz.
10
Então ninguém deverá ser considerado feliz enquanto viver, e será preciso ver o fim , com o diz Sólon? Mesm o que esposem os essa doutrina, dar-se-á o caso de que um hom em sej a feliz depois de m orto? Ou não será perfeitam ente absurda tal ideia, sobretudo para nós, que dizem os ser a felicidade um a espécie de atividade? Mas, se não consideram os felizes os m ortos e se Sólon não se refere a isso, m as quer apenas dizer que só então se pode com segurança cham ar um hom em de venturoso porque finalm ente não m ais o podem atingir m ales nem
infortúnios, isso tam bém fornece m atéria para discussão. Efetivam ente, acredita-se que para um m orto existem m ales e bens, tanto quanto para os vivos que não têm consciência deles: por exem plo, as honras e desonras, as boas e m ás fortunas dos filhos e dos descendentes em geral.
E isto tam bém levanta um problem a. Com efeito, em bora um hom em tenha vivido feliz até avançada idade e tido um a m orte digna de sua vida, m uitos reveses podem suceder aos seus descendentes. Alguns serão bons e terão a vida que m erecem , ao passo que com outros sucederá o contrário; e tam bém é evidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podem variar indefinidam ente. Seria estranho, pois, se os m ortos devessem participar dessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; m as, por outro lado, tam bém seria estranho se a sorte dos descendentes j am ais produzisse o m enor efeito sobre a felicidade de seus ancestrais.
Voltem os, porém , à nossa prim eira dificuldade, cuj o exam e m ais atento talvez nos dê a solução do presente problem a. Ora, se é preciso ver o fim para só então declarar um hom em feliz, tem os aí um paradoxo flagrante: quando ele é feliz, os atributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiram ente predicados dele devido às m udanças a que estão suj eitos, porque adm itim os que a felicidade é algo de perm anente e que não m uda com facilidade, ao passo que cada indivíduo pode sofrer m uitas voltas da roda da fortuna. É claro que, para acom panhar o passo de suas vicissitudes, deveríam os cham ar o m esm o hom em ora de feliz, ora de desgraçado, o que faria do hom em feliz um "cam aleão, sem base segura". Ou será um erro esse acom panhar as vicissitudes da fortuna de um hom em ? O sucesso ou o fracasso na vida não depende delas, m as, com o dissem os, a existência hum ana delas necessita com o m eros acréscim os, enquanto o que constitui a felicidade ou o seu contrário são as atividades virtuosas ou viciosas. A questão que acabam os de discutir confirm a a nossa definição, pois nenhum a função hum ana desfruta de tanta perm anência com o as atividades virtuosas, que são consideradas m ais duráveis do que o próprio conhecim ento das ciências. E as m ais valiosas dentre elas são m ais duráveis, porque os hom ens felizes de bom grado e com m uita constância lhes dedicam os dias de sua vida; e esta parece ser a razão pela qual sem pre nos lem bram os deles. O atributo em apreço pertencerá, pois, ao hom em feliz, que o será durante a vida inteira; porque sem pre, ou de preferência a qualquer outra coisa, estará em penhado na ação ou na contem plação virtuosa, e suportará as vicissitudes da vida com a m aior nobreza e decoro, se é "verdadeiram ente bom " e "honesto acim a de toda censura". Ora, m uitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto à im portância. É claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes não pesam
m uito na balança, m as um a m ultidão de grandes acontecim entos, se nos forem favoráveis, tornará nossa vida m ais venturosa (pois não apenas são, em si m esm os, de feitio a aum entar a beleza da vida, m as a própria m aneira com o um hom em os recebe pode ser nobre e boa); e, se se voltarem contra nós, poderão esm agar e m utilar a felicidade, pois que, além de serem acom panhados de dor, im pedem m uitas atividades. Todavia, m esm o nesses a nobreza de um hom em se deixa ver, quando aceita com resignação m uitos grandes infortúnios, não por insensibilidade à dor, m as por nobreza e grandeza de alm a.
Se as atividades são, com o dissem os, o que dá caráter à vida, nenhum hom em feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto j am ais praticará atos odiosos e vis. Com efeito, o hom em verdadeiram ente bom e sábio suporta com dignidade, pensam os nós, todas as contingências da vida, e sem pre tira o m aior proveito das circunstâncias, com o um general que faz o m elhor uso possível do exército sob o seu com ando ou um bom sapateiro faz os m elhores calçados com o couro que lhe dão; e do m esm o m odo com todos os outros artífices. E, se assim é, o hom em feliz nunca pode tornar-se desgraçado, m uito em bora não alcance a beatitude se tiver um a fortuna sem elhante à de Príam o.
E tam pouco será ele versátil e m utável, pois nem se deixará desviar facilm ente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras com uns, m as som ente por m uitas e grandes; nem , se sofreu m uitas e grandes desventuras, recuperará em breve tem po a sua felicidade. Se a recuperar, será num tem po longo e com pleto, em que houver alcançado m uitos e esplêndidos sucessos.
Quando direm os, então, que não é feliz aquele que age conform e à virtude perfeita e está suficientem ente provido de bens exteriores, não durante um período qualquer, m as através de um a vida com pleta? Ou devem os acrescentar: "E que está destinado a viver assim e a m orrer de m odo consentâneo com a sua vida"? Em verdade, o futuro nos é im penetrável, enquanto a felicidade, afirm am os nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim , cham arem os felizes àqueles dentre os seres hum anos vivos em que essas condições se realizem ou estej am destinadas a realizar-se — m as hom ens felizes. Sobre estas questões dissem os o suficiente.
11
Que a sorte dos descendentes e de todos os am igos de um hom em não lhe afete de nenhum m odo a felicidade parece ser um a doutrina cínica e contrária à opinião com um . Mas, visto serem num erosos os acontecim entos que ocorrem , e
adm itirem toda espécie de diferenças, e j á que alguns nos tocam m ais de perto e outros m enos, m ostra-se um a tarefa longa — m ais do que longa, infinita — discutir cada um em detalhe. Talvez possam os contentar-nos com um esboço geral.
Se, pois, alguns infortúnios pessoais de um hom em têm certo peso e influência na vida, enquanto outros são, por assim dizer, m ais leves, tam bém existem diferenças entre os infortúnios de nossos am igos tom ados em conj unto, e não dá no m esm o que os diversos sofrim entos sobrevenham aos vivos ou aos m ortos (com efeito, a diferença aqui é m uito m aior, até, do que entre atos terríveis e iníquos pressupostos num a tragédia ou efetivam ente representados na cena), essa diferença tam bém deve ser levada em conta — ou antes, talvez, o fato de haver dúvida sobre se os m ortos participam de qualquer bem ou m al. Pois parece, de acordo com tudo que acabam os de ponderar, que ainda que algo de bom ou m au chegue até eles, devem ser influências m uito fracas e insignificantes, quer em si m esm as, quer para eles; ou, então, serão tais em grau e em espécie que não possam tornar feliz quem não o é, nem roubar a beatitude aos venturosos. Por conseguinte, a boa ou m á fortuna dos am igos parece ter certos efeitos sobre os m ortos, m as efeitos de tal espécie e grau que não tornam desgraçados os felizes nem produzem qualquer outra alteração sem elhante.
12
Tendo dado um a resposta definida a essas questões, vej am os agora se a felicidade pertence ao núm ero das coisas que são louvadas, ou, antes, das que são estim adas; pois é evidente que não podem os colocá-la entre as potencialidades. Tudo que é louvado parece m erecer louvores por ser de certa espécie e relacionado de um m odo qualquer com algum a outra coisa; porque louvam os o j usto ou o valoroso, e, em geral, tanto o hom em bom com o a própria virtude, devido às ações e funções em j ogo, e louvam os o hom em forte, o bom corredor, etc., porque são de um a determ inada espécie e se relacionam de certo m odo com algo de bom ou im portante. Isso tam bém é evidente quando consideram os os louvores dirigidos aos deuses, pois parece absurdo que os deuses sej am aferidos pelos nossos padrões; no entanto assim se faz, porque o louvor envolve um a referência, com o dissem os, a algum a outra coisa.
Entretanto, se o louvor se aplica a coisas do gênero das que descrevem os, evidentem ente o que se aplica às m elhores coisas não é louvor, m as algo de m elhor e de m aior; porquanto aos deuses e aos m ais divinos dentre os hom ens, o
que fazem os é cham á-los felizes e bem -aventurados. E o m esm o vale para as coisas: ninguém louva a felicidade com o louva a j ustiça, m as antes a cham a de bem -aventurada, com o algo m ais divino e m elhor.
Tam bém parece que Eudoxo estava acertado em seu m étodo de sustentar a suprem acia do prazer. Pensava ele que o fato de não ser louvado o prazer, em bora sej a um bem , está a indicar que ele é m elhor do que as coisas a que prodigalizam os louvores — e tais são Deus e o bem ; pois é em relação a eles que todas as outras coisas são j ulgadas.
O louvor é apropriado à virtude, pois graças a ela os hom ens tendem a praticar ações nobres, m as os encôm ios se dirigem aos atos, quer do corpo, quer da alm a. No entanto, talvez a sutileza nestes assuntos sej a m ais própria dos que fizeram um estudo dos encôm ios; para nós, o que se disse acim a deixa bastante claro que a felicidade pertence ao núm ero das coisas estim adas e perfeitas. E tam bém parece ser assim pelo fato de ser ela um prim eiro princípio; pois é tendo-a em vista que fazem os tudo que fazem os, e o prim eiro princípio e causa dos bens é, afirm am os nós, algo de estim ado e de divino.
13
Já que a felicidade é um a atividade da alm a conform e à virtude perfeita, devem os considerar a natureza da virtude: pois talvez possam os com preender m elhor, por esse m eio, a natureza da felicidade.
O hom em verdadeiram ente político tam bém goza a reputação de haver estudado a virtude acim a de todas as coisas, pois que ele desej a fazer com que os seus concidadãos sej am bons e obedientes às leis. Tem os um exem plo disso nos legisladores dos cretenses e dos espartanos, e em quaisquer outros dessa espécie que possa ter havido alhures. E, se esta investigação pertence à ciência política, é evidente que ela estará de acordo com o nosso plano inicial.
Mas a virtude que devem os estudar é, fora de qualquer dúvida, a virtude hum ana; porque hum ano era o bem e hum ana a felicidade que buscávam os. Por virtude hum ana entendem os não a do corpo, m as a da alm a; e tam bém à felicidade cham am os um a atividade de alm a. Mas, assim sendo, é óbvio que o político deve saber de algum m odo o que diz respeito à alm a, exatam ente com o deve conhecer os olhos ou a totalidade do corpo aquele que se propõe a curá-los; e com m aior razão ainda por ser a política m ais estim ada e m elhor do que a m edicina. Mesm o entre os m édicos, os m ais com petentes dão-se grande trabalho para adquirir o conhecim ento do corpo.
O político, pois, deve estudar a alm a tendo em vista os obj etivos que m encionam os e quanto baste para o entendim ento das questões que estam os discutindo, j á que os nossos propósitos não parecem exigir um a investigação m ais precisa, que seria, aliás, m uito trabalhosa.
A seu respeito são feitas algum as afirm ações bastante exatas, m esm o nas discussões estranhas à nossa escola; e delas devem os utilizar-nos agora. Por exem plo: que a alm a tem um a parte racional e outra parte privada de razão. Que elas sej am distintas com o as partes do corpo ou de qualquer coisa divisível, ou distintas por definição m as inseparáveis por natureza, com o o côncavo e o convexo na circunferência de um círculo, não interessa à questão com que nos ocupam os de m om ento.
Do elem ento irracional, um a subdivisão parece estar largam ente difundida e ser de natureza vegetativa. Refiro-m e à que é causa da nutrição e do crescim ento; pois é essa espécie de faculdade da alm a que devem os atribuir a todos os lactantes e aos próprios em briões, e que tam bém está presente nos seres adultos: com efeito, é m ais razoável pensar assim do que atribuir-lhes um a faculdade diferente. Ora, a excelência desta faculdade parece ser com um a todas as espécies, e não especificam ente hum ana. Além disso, tudo está a indicar que ela funciona principalm ente durante o sono, ao passo que é nesse estado que m enos se m anifestam a bondade e a m aldade. Daí vem o aforism o de que os felizes não diferem dos infortunados durante m etade de sua vida; o que é m uito natural, em vista de ser o sono um a inatividade da alm a em relação àquilo que nos leva a cham á-la de boa ou m á; a m enos, talvez, que um a pequena parte do m ovim ento dos sentidos penetre de algum m odo na alm a, tornando os sonhos do hom em bom m elhores que os da gente com um . Mas basta quanto a esse assunto. Deixem os de lado a faculdade nutritiva, um a vez que, por natureza, ela não participa da excelência hum ana.
Parece haver na alm a ainda outro elem ento irracional, m as que, em certo sentido, participa da razão. Com efeito, louvam os o princípio racional do hom em continente e do incontinente, assim com o a parte de sua alm a que possui tal princípio, porquanto ela os im pele na direção certa e para os m elhores obj etivos; m as, ao m esm o tem po, encontra-se neles outro elem ento naturalm ente oposto ao princípio racional, lutando contra este a resistindo-lhe. Porque, exatam ente com o os m em bros paralisados se voltam para a esquerda quando procuram os m ovê-los para a direita, a m esm a coisa sucede na alm a: os im pulsos dos incontinentes m ovem -se em direções contrárias. Com um a diferença, porém : enquanto, no corpo, vem os aquilo que se desvia da direção certa, na alm a não podem os vê-lo.
Apesar disso, devem os adm itir que tam bém na alm a existe qualquer coisa contrária ao princípio racional, qualquer coisa que lhe resiste e se opõe a ele. Em que sentido esse elem ento se distingue dos outros, é um a questão que não nos interessa. Nem sequer parece ele participar de um princípio racional, com o dissem os. Sej a com o for, no hom em continente ele obedece ao referido princípio; e é de presum ir que no tem perante e no bravo sej a m ais obediente ainda, pois em tais hom ens ele fala, a respeito de todas as coisas, com a m esm a voz que o princípio racional.
Por conseguinte, o elem ento irracional tam bém parece ser duplo. Com efeito, o elem ento vegetativo não tem nenhum a participação num princípio racional, m as o apetitivo e, em geral, o elem ento desiderativo participa dele em certo sentido, na m edida em que o escuta e lhe obedece. É nesse sentido que falam os em "atender às razões" do pai e dos am igos, o que é bem diverso de ponderar a razão de um a propriedade m atem ática.
Que, de certo m odo, o elem ento irracional é persuadido pela razão, tam bém estão a indicá-lo os conselhos que se costum a dar, assim com o todas as censuras e exortações. E, se convém afirm ar que tam bém esse elem ento possui um princípio racional, o que possui tal princípio (com o tam bém o que carece dele) será de dupla natureza: um a parte possuindo-o em si m esm a e no sentido rigoroso do term o, e a outra com a tendência de obedecer-lhe com o um filho obedece ao pai.
A virtude tam bém se divide em espécies de acordo com esta diferença, porquanto dizem os que algum as virtudes são intelectuais e outras m orais; entre as prim eiras tem os a sabedoria filosófica, a com preensão, a sabedoria prática; e entre as segundas, por exem plo, a liberalidade e a tem perança. Com efeito, ao falar do caráter de um hom em não dizem os que ele é sábio ou que possui entendim ento, m as que é calm o ou tem perante. No entanto, louvam os tam bém o sábio, referindo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor cham am os virtudes.
LIVRO II
1
Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e m oral, a prim eira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino — por isso requer experiência e tem po; enquanto a virtude m oral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-se form ado o seu nom e por um a pequena m odificação da palavra (hábito). Por tudo isso, evidencia-se tam bém que nenhum a das virtudes m orais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalm ente pode form ar um hábito contrário à sua natureza. Por exem plo, à pedra que por natureza se m ove para baixo não se pode im prim ir o hábito de ir para cim a, ainda que tentem os adestrá-la j ogando-a dez m il vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se com porte de certa m aneira a com portar-se de outra.
Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que som os adaptados por natureza a recebê-las e nos tornam os perfeitos pelo hábito.
Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, prim eiro adquirim os a potência e m ais tarde exteriorizam os os atos. Isso é evidente no caso dos sentidos, pois não foi por ver ou ouvir frequentem ente que adquirim os a visão e a audição, m as, pelo contrário, nós as possuíam os antes de usá-las, e não entram os na posse delas pelo uso. Com as virtudes dá-se exatam ente o oposto: adquirim o-las pelo exercício, com o tam bém sucede com as artes. Com efeito, as coisas que tem os de aprender antes de poder fazê-las, aprendem o-las fazendo; por exem plo, os hom ens tornam -se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo esse instrum ento. Da m esm a form a, tornam o-nos j ustos praticando atos j ustos, e assim com a tem perança, a bravura, etc.
Isto é confirm ado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos por m eio de hábitos que lhes incutem . Esse é o propósito de todo legislador, e quem não logra tal desiderato falha no desem penho da sua m issão. Nisso, precisam ente, reside a diferença entre as boas e as m ás constituições. Ainda m ais: é das m esm as causas e pelos m esm os m eios que se gera e se destrói toda virtude, assim com o toda arte: de tocar a lira surgem os bons e os m aus m úsicos. Isso tam bém vale para os arquitetos e todos os dem ais; construindo bem , tornam -se bons arquitetos; construindo m al, m aus. Se não fosse assim não haveria necessidade de m estres, e todos os hom ens teriam nascido bons ou m aus
em seu ofício.
Isso, pois, é o que tam bém ocorre com as virtudes: pelos atos que praticam os em nossas relações com os hom ens nos tornam os j ustos ou inj ustos; pelo que fazem os em presença do perigo e pelo hábito do m edo ou da ousadia, nos tornam os valentes ou covardes. O m esm o se pode dizer dos apetites e da em oção da ira: uns se tornam tem perantes e calm os, outros sem lim ites e irascíveis, portando-se de um m odo ou de outro em igualdade de circunstâncias. Num a palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades sem elhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticam os, porquanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres. E não é coisa de som enos que desde a nossa j uventude nos habituem os desta ou daquela m aneira. Tem , pelo contrário, im ensa im portância, ou m elhor: tudo depende disso.
2
Um a vez que a presente investigação não visa ao conhecim ento teórico com o as outras — porque não investigam os para saber o que é a virtude, m as a fim de nos tornarm os bons, do contrário o nosso estudo seria inútil —, devem os exam inar agora a natureza dos atos, isto é, com o devem os praticá-los; pois que, com o dissem os, eles determ inam a natureza dos estados de caráter que daí surgem . Ora, que devem os agir de acordo com a regra j usta é um princípio com um ente aceito, que nós encam parem os. Mais tarde havem os de nos ocupar dele, exam inando o que sej a a regra j usta e com o se relaciona com as outras virtudes. Um a coisa, porém , deve ser assentada de antem ão, e é que todo esse tratam ento de assuntos de conduta se fará em linhas gerais e não de m aneira precisa. Desde o princípio fizem os ver que as explicações que buscam os devem estar de acordo com os respectivos assuntos. Tal com o se passa no que se refere à saúde, as questões de conduta e do que é bom para nós não têm nenhum a fixidez. Sendo essa a natureza da explicação geral, a dos casos particulares será ainda m ais carente de exatidão, pois não há arte ou preceito que os abranj a a todos, m as as próprias pessoas atuantes devem considerar, em cada caso, o que é m ais apropriado à ocasião, com o tam bém sucede na arte da navegação e na m edicina.
Mas, em bora o nosso tratado sej a desta natureza, devem os prestar tanto serviço quanto for possível. Com ecem os, pois, por frisar que está na natureza dessas coisas o serem destruídas pela falta e pelo excesso, com o se observa no referente à força e à saúde (pois, a fim de obter algum a luz sobre coisas im perceptíveis,
devem os recorrer à evidência das coisas sensíveis). Tanto a deficiência com o o excesso de exercício destroem a força; e, da m esm a form a, o alim ento ou a bebida que ultrapassem determ inados lim ites, tanto para m ais com o para m enos, destroem a saúde ao passo que, sendo tom ados nas devidas proporções, a produzem , aum entam e preservam .
O m esm o acontece com a tem perança, a coragem e as outras virtudes, pois o hom em que a tudo tem e e de tudo foge, não fazendo frente a nada, torna-se um covarde, e o hom em que não tem e absolutam ente nada, m as vai ao encontro de todos os perigos, torna-se tem erário; e, analogam ente, o que se entrega a todos os prazeres e não se abstém de nenhum torna-se sem lim ite, enquanto o que evita todos os prazeres, com o fazem os rústicos, se torna de certo m odo insensível. A tem perança e a coragem , pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, e preservadas pela m ediania. Mas não só as causas e fontes de sua geração e crescim ento são as m esm as que as de seu perecim ento, com o tam bém é a m esm a esfera de sua atualização. Isto tam bém é verdadeiro das coisas m ais evidentes aos sentidos, com o a força, por exem plo: ela é produzida pela ingestão de grande quantidade de alim ento e por um exercício intenso, e quem m ais está em condições de fazer isso é o hom em forte. O m esm o ocorre com as virtudes: tornam o-nos tem perantes abstendo-nos de prazeres, e é depois de nos tornarm os tais que som os m ais capazes dessa abstenção. E igualm ente no que toca à coragem , pois é habituando-nos a desprezar e arrostar coisas terríveis que nos tornam os bravos, e depois de nos tornarm os tais, som os m ais capazes de lhes fazer frente.
3
Devem os tom ar com o sinais indicativos do caráter o prazer ou a dor que acom panham os atos; porque o hom em que se abstém de prazeres corporais e se deleita nessa própria abstenção é tem perante, enquanto o que se aborrece com ela é sem lim ite; e quem arrosta coisas terríveis e sente prazer em fazê-lo, ou, pelo m enos, não sofre com isso, é bravo, enquanto o hom em que sofre é covarde. Com efeito, a excelência m oral, relaciona-se com prazeres e dores; é por causa do prazer que praticam os m ás ações, e por causa da dor que nos abstem os de ações nobres. Por isso deveríam os ser educados de um a determ inada m aneira desde a nossa j uventude, com o diz Platão, a fim de nos deleitarm os e de sofrerm os com as coisas que nos devem causar deleite ou sofrim ento, pois essa é a educação certa.
Por outro lado, se as virtudes dizem respeito a ações e paixões, e cada ação e cada paixão é acom panhada de prazer ou de dor, tam bém por este m otivo a virtude se relacionará com prazeres e dores. Outra coisa que está a indicá-lo é o fato de ser infligido o castigo por esses m eios; ora, o castigo é um a espécie de cura, e é da natureza das curas o efetuarem -se pelos contrários.
Ainda m ais: com o dissem os não faz m uito, todo estado da alm a tem um a natureza relativa e concernente à espécie de coisas que tendem a torná-la m elhor ou pior; m as é em razão dos prazeres e dores que os hom ens se tornam m aus, isto é, buscando-os ou evitando-os — quer prazeres e dores que não devem , na ocasião em que não devem ou da m aneira pela qual não devem buscar ou evitar, quer por errarem num a das outras alternativas sem elhantes que se podem distinguir. Por isso, m uitos chegam a definir as virtudes com o certos estados de inflexibilidade e repouso; não acertadam ente, porém , porque se exprim em de m odo absoluto, sem dizer "com o se deve", "com o não se deve", "quando se deve ou não se deve", e as outras condições que se podem acrescentar. Adm itim os, pois, que essa espécie de excelência tende a fazer o que é m elhor com respeito aos prazeres e às dores, e que o vício faz o contrário.
Os fatos seguintes tam bém nos podem m ostrar que a virtude e o vício se relacionam com essas m esm as coisas. Com o existem três obj etos de escolha e três de rej eição — o nobre, o vantaj oso, o agradável e seus contrários, o vil, o prej udicial e o doloroso —, a respeito de todos eles o hom em bom tende a agir certo e o hom em m au a agir errado, e especialm ente no que toca ao prazer. Com efeito, além de ser com um aos anim ais, este tam bém acom panha todos os obj etos de escolha, pois até o nobre e o vantaj oso se apresentam com o agradáveis.
Acresce que o agradável e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infância, e por isso é difícil conter essas paixões, enraizadas com o estão na nossa vida. E, alguns m ais e outros m enos, m edim os nossas próprias ações pelo estalão do prazer e da dor. Por esse m otivo, toda a nossa inquirição girará em torno deles, j á que, pelo fato de serem legítim os ou ilegítim os, o prazer e a dor que sentim os têm efeito não pequeno sobre as nossas ações.
Por outro lado, para usarm os a frase de Heráclito, é m ais difícil lutar contra o prazer do que contra a dor, m as tanto a virtude com o a arte se orientam para o m ais difícil, que até torna m elhores as coisas boas. Essa é tam bém a razão por que tanto a virtude com o a ciência política giram sem pre em torno de prazeres e dores, de vez que o hom em que lhes der bom uso será bom e o que lhes der m au uso será m au.
Dem os por assentado, pois, que a virtude tem que ver com prazeres e dores; que, pelos m esm os atos de que ela se origina, tanto é acrescida com o, se tais atos são praticados de m odo diferente, destruída; e que os atos de onde surgiu a virtude são os m esm os em que ela se atualiza.
4
Alguém poderia perguntar que entendem os nós ao declarar que devem os tornar-nos j ustos praticando atos j ustos e tem perantes praticando atos tem perantes; porque, se um hom em pratica tais atos, é que j á possui essas virtudes, exatam ente com o, se faz coisas concordes com as leis da gram ática e da m úsica, é que j á é gram ático e m úsico.
Ou não será isto verdadeiro nem sequer das artes? Pode-se fazer um a coisa que estej a concorde com as leis da gram ática, quer por acaso, quer por sugestão de outrem . Um hom em , portanto, só é gram ático quando faz algo pertencente à gram ática e o faz gram aticalm ente; e isto significa fazê-lo de acordo com os conhecim entos gram aticais que ele próprio possui.
Sucede, por outro lado, que neste ponto não há sim ilaridade de caso entre as artes e as virtudes, porque os produtos das prim eiras têm a sua bondade própria, bastando que possuam determ inado caráter; m as porque os atos que estão de acordo com as virtudes tenham determ inado caráter, não se segue que sej am praticados de m aneira j usta ou tem perante. Tam bém é im portante que o agente se encontre em determ inada condição ao praticá-los: em prim eiro lugar deve ter conhecim ento do que faz; em segundo, deve escolher os atos, e escolhê-los por eles m esm os; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter firm e e im utável. Estas não são consideradas com o condições para a posse das artes, salvo o sim ples conhecim ento; m as com o condição para a posse das virtudes o conhecim ento pouco ou nenhum peso tem , ao passo que as outras condições — isto é, aquelas m esm as que resultam da prática am iudada de atos j ustos e tem perantes — são, num a palavra, tudo.
Por conseguinte, as ações são cham adas j ustas e tem perantes quando são tais com o as que praticaria o hom em j usto ou tem perante; m as não é tem perante o hom em que as pratica, e sim o que as pratica tal com o o fazem os j ustos e tem perantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos j ustos se gera o hom em j usto, e pela prática de atos tem perantes, o hom em tem perante; sem essa prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom . Mas a m aioria das pessoas não procede assim . Refugiam -se na teoria e pensam
que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa m aneira. Nisto se portam , de certo m odo, com o enferm os que escutassem atentam ente os seus m édicos, m as não fizessem nada do que estes lhes prescrevessem . Assim com o a saúde destes últim os não pode restabelecer-se com tal tratam ento, a alm a dos segundos não se tornará m elhor com sem elhante curso de filosofia.
5
Devem os considerar agora o que é a virtude. Visto que na alm a se encontram três espécies de coisas — paixões, faculdades e disposições de caráter —, a virtude deve pertencer a um a destas.
Por paixões entendo os apetites, a cólera, o m edo, a audácia, á invej a, a alegria, a am izade, o ódio, o desej o, a em ulação, a com paixão, e em geral os sentim entos que são acom panhados de prazer ou dor; por faculdades, as coisas em virtude das quais se diz que som os capazes de sentir tudo isso, ou sej a, de nos irarm os, de m agoar-nos ou com padecer-nos; por disposições de caráter, as coisas em virtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou m á. Por exem plo, com referência à cólera, nossa posição é m á se a sentim os de m odo violento ou dem asiado fraco, e boa se a sentim os m oderadam ente; e da m esm a form a no que se relaciona com as outras paixões.
Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos cham a bons ou m aus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou vícios, e porque não som os louvados nem censurados por causa de nossas paixões (o hom em que sente m edo ou cólera não é louvado, nem é censurado o que sim plesm ente se encoleriza, m as sim o que se encoleriza de certo m odo); m as pelas nossas virtudes e vícios som os efetivam ente louvados e censurados. Por outro lado, sentim os cólera e m edo sem nenhum a escolha de nossa parte, m as as virtudes são m odalidades de escolha, ou envolvem escolha. Além disso, com respeito às paixões se diz que som os m ovidos, m as com respeito às virtudes e aos vícios não se diz que som os m ovidos, e sim que tem os tal ou tal disposição. Por estas m esm as razões, tam bém não são faculdades, porquanto ninguém nos cham a bons ou m aus, nem nos louva ou censura pela sim ples capacidade de sentir as paixões. Acresce que possuím os as faculdades por natureza, m as não nos tornam os bons ou m aus por natureza. Já falam os disto acim a.
Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta um a alternativa: a de que sej am disposições de caráter.
Mostram os, assim , o que é a virtude com respeito ao seu gênero.
6
Não basta, contudo, definir a virtude com o um a disposição de caráter; cum pre dizer que espécie de disposição é ela.
Observem os, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em boa condição a coisa de que é a excelência com o tam bém faz com que a função dessa coisa sej a bem desem penhada. Por exem plo, a excelência do olho torna bons tanto o olho com o a sua função, pois é graças à excelência do olho que vem os bem . Analogam ente, a excelência de um cavalo tanto o torna bom em si m esm o com o bom na corrida, em carregar o seu cavaleiro e em aguardar de pé firm e o ataque do inim igo. Portanto, se isto vale para todos os casos, a virtude do hom em tam bém será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz desem penhar bem a sua função.
Com o isso vem a suceder, j á o explicam os atrás, m as a seguinte consideração da natureza especifica da virtude lançará nova luz sobre o assunto. Em tudo que é contínuo e divisível pode-se tom ar m ais, m enos ou um a quantidade igual, e isso quer em term os da própria coisa, quer relativam ente a nós; e o igual é um m eio-term o entre o excesso e a falta. Por m eio-eio-term o no obj eto entendo aquilo que é equidistante de am bos os extrem os, e que é um só e o m esm o para todos os hom ens; e por m eio-term o relativam ente a nós, o que não é nem dem asiado nem dem asiadam ente pouco — e este não é um só e o m esm o para todos. Por exem plo, se dez é dem ais e dois é pouco, seis é o m eio-term o, considerado em função do obj eto, porque excede e é excedido por um a quantidade igual; esse núm ero é interm ediário de acordo com um a proporção aritm ética. Mas o m eio-term o relativam ente a nós não deve ser considerado assim : se dez libras é dem ais para um a determ inada pessoa com er e duas libras é dem asiadam ente pouco, não se segue daí que o treinador prescreverá seis libras; porque isso tam bém é, talvez, dem asiado para a pessoa que deve com ê-lo, ou dem asiadam ente pouco — dem asiadam ente pouco para Milo e dem asiado para o atleta principiante. O m esm o se aplica à corrida e à luta. Assim , um m estre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando o m eio-term o e escolhendo-o — o m eio-term o não no obj eto, m as relativam ente a nós.
Se é assim , pois, que cada arte realiza bem o seu trabalho — tendo diante dos olhos o m eio-term o e j ulgando suas obras por esse padrão; e por isso dizem os m uitas vezes que às boas obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada,