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A regulação do patrimônio comum da humanidade: bens públicos globais, direito administrativo global e o desenvolvimento internacional

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FGV DIREITO SP

CAROLINA FONTOLAN CARDILLI

A REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE – BENS PÚBLICOS GLOBAIS, DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E O

DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL

São Paulo, 2016

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CAROLINA FONTOLAN CARDILLI

A REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE – BENS PÚBLICOS GLOBAIS, DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E O

DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL

Monografia apresentada à FGV Direito SP como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Salem Hikmat Nasser.

São Paulo 2016

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Cardilli, Carolina Fontolan.

A regulação do patrimônio comum da humanidade – bens públicos globais, direito administrativo global e o desenvolvimento internacional / Carolina Fontolan Cardilli -2016.

Orientador: Salem Hikmat Nasser

Monografia (bacharelado) – FGV Direito SP. Introdução. 1. Conceitos e Contextos. 2. A regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica da ação administrativa global. 3. Ação administrativa global e sua relação com a emergência do Direito Administrativo Global. 4. Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global no contexto do desenvolvimento da sociedade internacional. Considerações finais. Referências bibliográficas.

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CAROLINA FONTOLAN CARDILLI

A REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE – BENS PÚBLICOS GLOBAIS, DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E O

DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL

Monografia apresentada à FGV Direito SP como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito.

Campo de conhecimento: Direito Internacional. Orientador: Prof. Dr. Salem Hikmat Nasser.

Data de aprovação: ____/____/____ Banca Examinadora:

____________________________________ Prof. Dr. Salem Hikmat Nasser (Orientador) – FGV Direito SP

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Aos meus pais, pelas oportunidades e, sobretudo, pela paciência e amor incondicionais.

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Agradecimentos

Esta contribuição ao debate acadêmico, apesar de pequena em relevância, marca o fim de um ciclo intenso e muito proveitoso: a graduação em direito. Foram cinco anos de muitas leituras, apresentações, artigos, debates e provas que me mostraram que o mundo jurídico é muito mais complexo e multifacetado do que o imaginário de uma jovem de dezoito anos poderia conceber.

Sem o apoio institucional da FGV Direito SP eu não poderia ter explorado este mundo plural com a profundidade que explorei. As oportunidades de intercâmbio conferidas pela faculdade foram fundamentais para que este trabalho fosse realizado, principalmente as estadias na Yale Law School e no Sciences Po Paris uma vez que nestas instituições pude ter contato com discussões avançadas de governança global, bens públicos globais e patrimônio comum da humanidade.

Por ter desde o primeiro ano de faculdade se disponibilizado a discutir as minhas dúvidas acadêmicas e profissionais sobre o Direito Internacional sou especialmente grata ao meu orientador Salem Hikmat Nasser. Sem sua orientação tanto no projeto de iniciação científica e as muitas conversas sobre o sistema normativo e regulatório global a realização deste trabalho não seria possível.

Ao Professor Diogo Moreira e à Luciana Marin Ribas sou grata pelos comentários e sugestões feitos na banca de qualificação, estes foram ao mesmo tempo reconfortantes e sinalizadores de que este trabalho estava no caminho certo.

Aos colegas Luiza Martinez e Lucas Padilha que compartilharam todas as alegrias e angústias ao longo da graduação, eu não teria chegado até aqui sem seu apoio. Por fim, nada disso seria possível sem meus pais e seu constante investimento em capital cultural e social na minha criação. Aprendi desde cedo que a educação tem poder transformador e que sempre deveria tirar o máximo proveito das oportunidades oferecidas. Espero que eu tenha feito jus a estes ensinamentos.

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Resumo: A esfera regulatória global vem passando por mudanças impactantes. O sistema regulatório do patrimônio comum da humanidade torna-se cada vez mais complexo devido à sua caracterização com um bem público global. A regulação baseada apenas em Direito Internacional começa a perder espaço na medida que percebemos indícios de uma ação administrativa global. A partir da análise dos mecanismos de controle desta ação percebemos que estes possuem uma série de fragilidades que impactam o espaço regulatório do patrimônio comum da humanidade. Este estudo resulta na compreensão da regulação do patrimônio comum da humanidade no contexto do desenvolvimento internacional, observando como a transformação impacta a construção de um rule of law internacional.

Palavras-chave: patrimônio comum da humanidade – ação administrativa global – direito administrativo global– bens públicos globais– desenvolvimento internacional.

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Abstract: The global regulatory sphere has undergone striking changes. The world heritage’s regulatory system becomes increasingly complex due to its characterization as a global public good. The regulation previously based primarily on International Law begins to lose space, as we perceive signs of global administrative action. From the analysis of such action’s control mechanisms we realize they have many fragilities that impact the world heritage’s regulatory space. This study results in an understanding of world heritage’s regulation in the perspective of international development, highlighting how the transformation impacts the creation of an international rule of law.

Key words: world heritage – global administrative action – global administrative law – global public goods – international development.

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Sumário

Introdução ...11

I – Conceitos e Contextos ...13

a. Patrimônio Comum da Humanidade ...13

b. Bens Públicos Globais ...15

c. Direito Administrativo Global e seu lugar na nova dinâmica do Direito Global ....17

d. Ação Administrativa Global ...21

II - A regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica do ação administrativa global ...22

a. Regulação e direito internacional ...22

b. O exercício da ação administrativa global ...26

III – A ação administrativa global e sua relação com a emergência do Direito Administrativo Global ...31

a. Controle da ação administrativa global: questões de accountability, transparência e enforcement ...31

b. Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global: conexão necessária no caso do patrimônio comum da humanidade? ...37

IV – Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global no contexto do desenvolvimento da sociedade internacional ...39

a. Os paradigmas da cooperação e do multilateralismo...40

b. A transformação da esfera regulatória global, o desenvolvimento e a formação do rule of law internacional ...45

Considerações finais ...50

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Certes, on a toujours l’impression de vivre un moment de rupture. Celle qui accompagne le nouveau millénaire peut sembler illusoire, peut-être exagérée par un effet de calendrier. Si nous ne vivons probablement pas la fin de l’Histoire, notre ordre international contemporain présente bien cependant les symptômes de la fin de plusieurs histoires : celle de la bipolarité la plus classique, celle de la concurrence internationale de idéologies, celle deux puissances militaires rivales, mais aussi celle d’un monde qui pouvait se résumer à la juxtaposition concurrentielle d’États-nations territoriaux.

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Introdução

A patrimônio comum da humanidade é uma fonte inesgotável de conhecimento sobre as diversas identidades culturais e naturais do planeta. Tal patrimônio não é apenas global em sua escala, mas também possui o caráter global inerente a sua essência uma vez que carrega consigo a ideia de intensificação de uma consciência coletiva que

enxerga o mundo como um todo1, e não como um conjunto de fragmentos.

A regulação do patrimônio comum da humanidade tem como um de seus pontos centrais a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Tal espaço de regulação é ministrado por uma instituição internacional – a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO) – em conjunto com seus Estados partes. Existe extensa literatura sobre a Convenção, os critérios utilizados para determinar o que se enquadra na lista de bens a serem protegidos, possíveis sanções aos Estados que não protegem tais bens, etc.

Com a emergência do conceito de Direito Administrativo Global (em seu nome original, em inglês, Global Administrative Law - GAL), é possível pensar este espaço de regulação de uma forma diferente. O aspecto substantivo desta regulação relaciona-se com o interesse global de preservação de certos bens e, a fim de atingir este objetivo, a regulação acaba por influenciar o processo de tomada de decisão doméstico, ou seja, influencia como os Estados lidam com as decisões que eventualmente irão impactar os bens públicos globais. A ideia do trabalho de curso seria observar se no espaço regulatório do patrimônio comum da humanidade podem ser constatados indícios do exercício daquilo que é denominado ação administrativa global, assim como mecanismos de controle de tal ação que corroborem com a emergência do Direito Administrativo Global.

Este tópico, apesar de contar com literatura de base, ainda não á amplamente discutido no espaço acadêmico estrangeiro e no âmbito nacional. No ambiente acadêmico internacional, o Direito Administrativo Global vem sendo discutido com intensidade nos últimos anos, tem como uma de suas principais referências de estudos o Global Administrative Law Project baseado no Institute for International Law and Justice da New York University School of Law. Os acadêmicos que fazem parte deste projeto publicam ativamente sobre o assunto, produzindo uma série de working papers e

1

ROBERTSON apud TURTINEN, Jan. Globalising Heritage – On UNESCO and the Transnational Construction of a World Heritage. In: SCORE – Stockholm Center for Organizational Research, 2000.

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casebooks sobre suas mais recentes descobertas. Além disso, a literatura estrangeira avançou para além de discussões teóricas sobre o conceito e definição de Direito Administrativo Global e já procura identificar e realizar estudos de caso sobre possíveis exemplos2.

Na literatura nacional também observamos o início de uma produção acadêmica sobre o Direito Administrativo Global. Tal produção é em sua maior parte formada por indagações teóricas ou aplicações práticas em áreas do Direito Internacional

Econômico3. A produção acadêmica sobre o Direito Administrativo Global é importante

pois aborda a relação de interesses, tanto internacionais e domésticos, sob a ótica de sua regulação em um espaço internacional cada vez mais globalizado e, consequentemente, complexo. Desse modo, a expansão dos temas abordados faz-se necessária. O tema patrimônio comum da humanidade é especialmente interessante pois possui grande perspectiva de discussão acadêmica devido a sua relação com a teoria dos bens públicos globais. Apesar de existir um início de discussão sobre o patrimônio comum da humanidade sob a ótica do Direito Administrativo Global, ainda não existe literatura consolidada sobre tal especulação acadêmica. Uma pista relevante sobre a importância do assunto está no fato do Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition citar a Convenção do Patrimônio da Humanidade e a regulação capitaneada pela

UNESCO como um exemplo de um forma complexa de governança4, ou seja, um dos

fatores englobados pela teoria da administração global.

Aqui o objeto de análise será a relação entre a regulação do patrimônio comum da humanidade através de organizações internacionais e domésticas e sua possível relação com a noção de Direito Administrativo Global. A complexificação da regulação da sociedade internacional aponta alteração tanto na abordagem da regulação deste bem complexo assim como acarreta novos empecilhos na administração do mesmo.

2 Os mais proeminentes estudos de casos referem-se a Organização Mundial do Comércio, organismo internacional

que foi um do vetores que despertaram e incentivaram os estudos sobre Direito Administrativo Global.

3 Neste aspecto é possível citar os seguintes trabalhos: POSTIGA, Andre. Emergence of Global Administrative Law

as a Means of Transnational Regulation of Foreign Direct Investment. In: Brazilian Journal of International Law, vol. 10, issue 1, 2013; FROTA, Hidemberg . Direito Admnistrativo Global: Padrões Substantivos. In: Revista Digital

de Direito Administrativo; vol. 2, n. 1, 2015; RATTON, Michelle; STEWART, Richard. The World trade

Organizatuon: Multiple dimensions of Global Administrative Law. In: International Journal of Constitutional Law, vol. 9, Issue 3-4, 2011. P. 556-586; PETERSMANN, Ernst-Ulrich. International Economic Law in the 21st Century –

Constitutional Pluralism and Multilevel Governance of Interdependent Public Goods. Oxford: Hart Publishing, 2012.

4 CASSESE, Sabino; CAROTTI, Bruno; CASINI, Lorenzo; CAVALIERI, Eleonora; MACDONALD, Euan

(Editores). Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition. Institute for International Law and Justice – NYU School of Law, 2012, Kindle Edition, Location 2405.

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A pergunta-problema que deu origem a esta pesquisa é a seguinte: a regulação do patrimônio comum da humanidade, um bem público global complexo, pode ser concebida sob a ótica do arcabouço teórico do Direito Administrativo Global?

A partir da pergunta problema é possível perceber sua forte conexão com discussões sobre o desenvolvimento internacional, uma vez que o arcabouço teórico emergente do Direito Administrativo Global e a sua relação com a governança global está conectada com a especialização do Direito Internacional, um dos fenômenos que geram fortes discussões no âmbito internacional das instituições de direito e impactam o desenvolvimento do mesmo. Além disso, podemos identificar duas facetas do desenvolvimento fortemente ligadas à premissa deste trabalho de conclusão de curso: o desenvolvimento social e econômico dos povos que são impactados pelas decisões das instituições de direito do âmbito internacional e o desenvolvimento de um rule of law internacional, no sentido de conceber um sistema de mensuração da qualidade jurídica da sociedade internacional. Aqui será fundamentada e elucidada a percepção inicial da forte conexão supracitada a partir da análise crítica das discussões realizadas. Desse modo, o presente trabalho busca compreender as mudanças na regulação internacional do patrimônio comum da humanidade a partir da discussão de seus impactos nas instituições de direito. A bibliografia utilizada esta baseada tanto em artigos acadêmicos e livros publicados referentes ao assunto, como em documentos oficiais das organizacionais internacionais que são afetadas pelo fenômeno.

No primeiro capítulo iremos identificar conceitos e contextos chave para este trabalho – patrimônio comum da humanidade, bens públicos globais, Direito Administrativo Global e seu lugar na nova dinâmica no Direito Global e, ação administrativa global; no segundo capítulo será observada a regulação do patrimônio comum da humanidade, sua relação com o Direito Internacional e indícios de existência de ação administrativa global em seus contexto; no terceiro capítulo iremos explorar a relação entre a ação administrativa global e a emergência do Direito Administrativo Global; no quarto capítulo ilustraremos as discussões trazidas pelo presente trabalho no contexto do desenvolvimento da sociedade internacional.

I – Conceitos e contextos

(14)

O patrimônio comum da humanidade é o conjunto de bens e locais, culturais e naturais, materiais e imateriais, que pertencem aos povos do mundo, independente de

sua localização geográfica. Podemos entendê-lo como uma solução comunitarista5 para

a preservação e conservação de bens especiais. Os bens e locais que integram o patrimônio comum da humanidade diferem daqueles considerados patrimônio local pelo seu extraordinário valor universal. A UNESCO encoraja a identificação, proteção e preservação deste patrimônio, tendo como base um tratado internacional criado em

1972 – Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural6.

O Centro do Patrimônio Mundial, inserido no sistema organizacional da UNESCO e responsável pelo patrimônio comum da humanidade, tem como objetivos (i) encorajar países a assinar a Convenção e assegurar a proteção de seu patrimônio cultural e natural; (ii) encorajar os países signatários da Convenção a estabelecer planos de administração e criar sistemas para reportar o estado de conservação de seus bens que fazem parte do patrimônio; (iii) providenciar apoio emergencial aos bens em perigo imediato; (iv) incentivar a participação da população local na preservação de seu patrimônio cultural e natural; (v) incentivar os países signatários a nomear bens/locais em seu território nacional para serem incluídos na lista do patrimônio comum da humanidade; (vi) providenciar apoio técnico e treinamento profissional aos países signatários; (vii) incentivar a cooperação internacional para a conservação do patrimônio comum da humanidade e (viii) incentivar a sensibilização pública quanto à

conservação do patrimônio comum da humanidade7.

O Centro do Patrimônio Mundial elabora listas8 – lista do patrimônio mundial e

lista do patrimônio mundial em perigo – para sistematizar e identificar os bens que estão sujeitos à proteção especial do patrimônio comum da humanidade. Atualmente existem 1052 propriedades inscritas na lista do patrimônio comum da humanidade, caracterizadas como culturais, naturais ou mistas. Como exemplos podemos citar a cidade histórica de Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, Brasil; a cidade de Angkor no Camboja; o santuário de Machu Picchu no Peru; o Lago Baikal na Rússia e o Parque

5 PUREZA, José Manuel. O Património Comum da Humanidade – Rumo a um direito internacional da

solidariedade? Porto: Edições Afrontamento, 1998.

6UNESCO. World Heritage Information Kit. P. 5. Disponível em: http://whc.unesco.org/en/activities/567/ Acesso: 1

ago. 2016.

7 UNESCO. World Heritage. Disponível em: http://whc.unesco.org/en/about/ Acesso: 1 ago. 2016.

8 A sistemática de elaboração da lista do patrimônio comum da humanidade sera explorada posteriormente neste

(15)

Yellowstone nos Estados Unidos. Na lista do patrimônio mundial em perigo encontramos o Vale de Bamiyan no Afeganistão, a cidade de Potosi na Bolívia; a cidade arqueológica de Samarra no Iraque; monumento medievais no Kosovo e as cidades antigas de Aleppo, Bosra e Damasco na Síria. Importante mencionar que além dos critérios elencados acima, os bens que integram a lista do patrimônio mundial em perigo sofrem com os impactos negativos das transformações naturais do ambiente em que estão localizados, assim como estão sujeitos à destruição e danos irreparáveis devido a conflitos armados9.

Também inserido na UNESCO, temos o Centro do Patrimônio Mundial Imaterial, um centro dedicado a proteger tradições e expressões de grande relevância para as diversidades cultural e intercultural do planeta. São tradições orais, artes performáticas, rituais, eventos festivos, práticas sociais e conhecimentos tradicionais que representam comunidades por gerações, possuem valor econômico e social de difícil mensuração dado seu caráter intangível e definem os perfis socioculturais tanto de países desenvolvidos, como não desenvolvidos. Na lista do patrimônio mundial intangível temos a Capoeira e o Frevo, do Brasil; a cultura do café turco, da Turquia; o fado, tradição musical de Portugal; técnicas tradicionais de confecção de tapeçaria do Irã e a caligrafia chinesa10.

b. Bens públicos globais

Quando pensamos no conceito de patrimônio comum da humanidade pensamos em bens cujo valor inestimável é de importância para toda a sociedade global. Este bem consiste em um complexo de características espirituais, materiais, intelectuais e

emocionais que pertencem a uma sociedade ou determinado grupo social11. Estes bens,

sejam eles naturais ou culturais, podem estar localizados geograficamente no território de um determinado Estado soberano ou serem, a princípio, sujeitos a determinado sistema jurídico doméstico. Entretanto, a partir do momento em que eles são considerados patrimônio comum da humanidade, é possível entender que existe um interesse público da sociedade global quanto à sua regulação. Isto ocorre porque a

9 As listas completas do patrimônio mundial e do patrimônio mundial em perigo podem ser encontradas em:

http://whc.unesco.org/en/list/ Acesso: 5 nov. 2016.

10 A lista completa pode ser encontrada em: http://www.unesco.org/culture/ich/en/lists Acesso: 5 nov, 2016.

11 SERAGELDIN, Ismail. Cultural Heritage as a Public Good – economic Analysis Applied to Historic Cities In:

INGE, Kaul; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc (coord). Global Public Goods – International cooperation in the

21st century. Oxford University Press: Nova Iorque, 1991. Publicado para o UNDP –United Nations Development

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globalização, fenômeno que dá origem à governança global, implica na emergência e

desenvolvimento de bens públicos globais 12 . Este tipo de bem possui duas

características essenciais: (i) não impede que um grupo diverso de pessoas o usufruam, caráter não excludente (no original, em inglês, non excludible); (ii) o uso do bem por uma pessoa não impede que outra o utilize ao mesmo tempo, caráter não rival (o

original, em inglês, non rival)13. Bens públicos globais geram externalidades, cujos

benefícios e malefícios atingem todos os países, populações e gerações14. Portanto,

entende-se que é necessário um sistema de governança global para administrar este tipo de bem.

A característica peculiar do patrimônio comum da humanidade como bem público global é que este questiona a utilização do termo global. Entre as características econômicas deste bem público estão o fato de ele não entrar nos mercados dos diferentes países, seus benefícios e valores são na grande maioria das vezes intangíveis uma vez que muitas vezes eles possuem caráter: (i) estético, derivado do uso não extrativo, de difícil aferição; (ii) turístico/recreação, baseado em número de visitantes turísticos e (iii) existencial, valor que deriva do fato que sabemos que tal lugar ou prática cultural existe mesmo que não planejemos visitá-lo ou ter contato com o mesmo. Ao mesmo tempo, sua conservação e proteção é o cerne da discussão, em vez do fornecimento, como geralmente ocorre em debates sobre outros tipos de bens públicos – por exemplo: saúde, educação. Estas características diferenciadas aliadas ao fato de que os bens que compõem o patrimônio comum da humanidade encontram-se localizados em territórios sob jurisdição de um Estado soberano – no caso dos bens tangíveis – ou possuem impacto limitado por se tratar de práticas culturais específicas – no caso dos bens intangíveis – acabam por dar um tom diferenciado ao vocábulo global, conforme a discussão apresentada no início deste parágrafo. Tendo em vista este cenário podemos entender que a caracterização do patrimônio comum da humanidade como um bem público global implica a existência de externalidades que ultrapassam as fronteiras soberanas, ampliando seus benefícios a diferentes países, populações e gerações, logo, é

12 STIGLITZ, Joseph. Global public goods and global finance: Does global governance ensure that the global public

interest is served? In: TOUFFUT, Jean-Philippe. (Org.). Advancing Public Goods. Paris, 2006. P. 152.

13 NAVRUD, Stale; READY, Richard. Valuing Cultural Heritage – Applying Environmental Valuation Techniques

to Historic Buildings, Monuments, Artifacts. Edward Edgar Publishing: UK, 2002.

14 BERTACCHINI, Enrico; SACCONE, Donatella; SANTAGATA, Walter. Loving Diversity, correcting

inequalities: Towards a New Global Governance for the UNESCO World Heritage. In: International Journal Of

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possível inferir que um bem como este necessita de um sistema global de governança

para amparar a sua sustentação15.

Além das características apresentadas, também é preciso ter em mente que bens públicos globais desafiam as características tradicionais do direito à propriedade, substanciadas pela análise econômica do direito. Na análise econômica do direito, bens privados, que apresentam as características de rivalidade e exclusão, deveriam ser propriedade privada e, bens públicos, que não apresentam tais características, deveriam

ser propriedade pública16. Esta premissa está baseada na alocação eficiente de recursos e

redução de custos de transação. Entretanto, quando falamos de bens públicos globais a linha entre posse pública e privada torna-se tênue, sendo difícil tomar como verdadeira a premissa mencionada acima. Isso ocorre porque temos um fator complicador: o caráter global dos bens. Já é difícil distinguir bens privados e públicos quando nosso espaço de análise é apenas um ente soberano; quando incluímos o espaço global na análise precisamos nos lembrar que além das tensões entre privado e público dentro do espaço soberano, teremos tensões entre privado, público e global nas mais diferentes formas. Não adotamos a análise econômica do direito como marco acadêmico de orientação, entretanto, as tensões ilustradas brevemente aqui são relevantes para compreender as dificuldades do objeto de análise deste trabalho: o patrimônio comum da humanidade e sua relação com o nascente direito administrativo global.

c. Direito Administrativo Global e seu lugar na nova dinâmica do Direito Global

O Direito Internacional17, antes prontamente conectado aos Estados soberanos e

sua capacidade de celebrar tratados entre si, passou por transformações. O fenômeno da fragmentação, foco do relatório da Comissão de Direito Internacional da Organização

das Nações Unidas publicado em 200618, aponta que tal fragmentação se dá no contexto

da crescente expansão e especialização, tanto normativa como institucional, do direito.

15 BERTACCHINI, Enrico; SACCONE, Donatella; SANTAGATA; Walter. Embracing diversity, correcting

inequalities: towards a new global governance for the UNESCO World Heritage. In: International Journal of

Cultural Policy, vol. 17, issue 3, 2011. P. 279.

16 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Porto Alegre: Bookman, 2010. 5a edição. P. 121.

17 Ao longo deste trabalho a expressão “Direito Internacional” será utilizada para se referir ao Direito Internacional

Público.

18 UNITED NATIONS. Fragmentation of International law: Difficulties Arising From Diversification and Expansion

(18)

Este processo está associado à análise da globalização, fenômeno que procura estudar como as sociedades se desenvolvem em um contexto no qual múltiplos atores estabelecem relações entre si. A fragmentação da vida torna-se mais acentuada e a partir da diferenciação funcional, a sociedade é dividida em diversos setores organizados em

torno de interesses, temas e conhecimentos específicos19. Estes “pedaços” podem ser

partes diferenciadas de uma mesma ordem jurídica fragmentada, ou podem constituir novas ordens jurídicas. Tais conjuntos regulatórios tendem a ser denominados regimes jurídicos. Contudo, a fragmentação da vida em sociedade não ocorre apenas no nível doméstico, nacional; tal fenômeno tem reflexos na esfera global, logo, esses regimes

também são internacionais ou transnacionais ou globais20.

Esta pequena explicação sobre as mudanças que ocorrem no Direito Internacional já indica o quão complexa a regulação da sociedade se tornou. A forma de regulação da vida na esfera internacional antes apontada nos livros deixou de ser compatível com a realidade uma vez que mudanças nesta sociedade dotada de dinamicidade transformaram, e continuam transformando, as relações. Esta nova forma de compreender a regulação da sociedade global abala o reinado da concepção do Duo

de Westfália onipresente na academia durante o século XIX21. Não conseguimos mais

apenas categorizar o direito como ou doméstico ou internacional, como fruto de dois grandes tipos de ordem jurídica – a interna e a internacional. Temos formas de direito, como o religioso e o costumeiro, que não encontram lugar na arcabouço teórico do duo. Além disso, temos formas de regulação que não são entendidas como direito ou que

geram discussão sobre ser direito ou não, como o soft law22.

A dinâmica da sociedade global precisa ser analisada a partir de um ponto de vista mais abrangente do que o do Direito Internacional Público, caso visemos compreender de forma eficiente o mundo atual. É preciso adotar o ponto de vista do Direito Global, o qual permite uma melhor compreensão da regulação das relações da vida humana na medida que não se limita a analisar o direito realizado entre Estados e

19 NASSER, Salem. Global Law in Pieces Fragmentation, Regimes and Pluralism . In: FGV Direito SP Research

Paper Series, n. 105, 2014. P. 6.

20 Idem, Ibidem, P.6.

21 A expressão Duo de Westfália é comumente utilizada para fazer referência à teorização ocidental clássica do

direito: distinção entre o direito doméstico, baseado nas ordens jurídicas nacionais, e o direito internacional público, o qual regula as relações entre Estados. Esta concepção foi dominante durante o século XX, fazendo com que os estudos sobre direito ficassem limitados apenas a estas duas vertentes de direito, ignorando formas de direito que não decorrem diretamente de Estados nação. (TWINING, William. General Jurisprudence: Understanding Law from a

Global Perspective. Cambridge University Press: Cambridge, 2008. P. 363-363)

22TWINING, William. Implications of “Globalisation” for Law as a Discipline. HALPHIN, A.; ROEBEN, V.

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para Estados. Este Direito Global possui (i) variadas cadeias de normas, algumas geradas no mercado jurídico interno, outras tantas de origem externa; (ii) uma complexa estrutura de órgãos, estatais e internacionais, produzindo e aplicando Direito e (iii) a mundialização da economia fazendo valer seus interesses: tanto influenciando a reforma dos Estados e criando-lhes uma nova organização, como impondo novas regulações para variados assuntos23.

Quando adotamos o ponto de vista global encontramos a zona cinzenta da noção de governança, noção ampla e de difícil conceituação que entre outros elementos inclui o direito. É preciso indagar-se como esta se relaciona com o direito enquanto forma –

meios e mecanismos – de regular a vida24. O aumento das formas de regulação e

administração transgovernamentais está relacionado à necessidade de lidar com as consequências de uma interdependência globalizada em campos como segurança,

proteção ambiental, telecomunicações, movimentos migratórios, etc.25 Não é possível

lidar com as consequências de forma eficiente apenas com medidas administrativas e regulatórias nacionais isoladas. Para lidar com este contexto vários sistemas transnacionais de regulação e de cooperação regulatória foram estabelecidos por tratados internacionais e até mesmo por redes de cooperação intergovernamentais informais, alterando o local de tomada de decisão regulatória, do nível nacional para o global26.

A formação desses novos espaços regulatórios acarreta a discussão sobre o papel do direito na regulação da vida e nos permite questionar até que ponto esta decorre do direito ou se ela passa emergir de outros meios27. Temos então um cenário onde dois

23 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: sbdp/Malheiros Editores, 2012. P. 188. 24 Idem, Ibidem, P. 18.

25 KINGSBURY, Benedict.; KRISCH, Nico.; STEWART, Richard. The Emergence of Global Administrative Law.

Law and Contemporary Problems, v. 68, 2005. P. 16

26 Idem, Ibidem, P. 16.

27 Nesse sentido temos: “Desta distinção entre o que é direito e o que não é direito surge uma importante indagação: a

partir do momento que nos perguntamos se algo é direito estamos nos perguntando se algo faz parte de um sistema jurídico específico . Quando almejamos analisar os regimes jurídicos ou regulatórios da esfera internacional é preciso questionar se suas normas são jurídicas; de onde tais normas surgem – ou seja, quais suas fontes; e se eles constituem um sistema jurídico específico. (...) Existem muitas formas de conceituar o direito. No contexto internacional, muito discute-se sobre a possibilidade de denominar direito algo que não é criado por Estados, que tem problemas de enforcement, que possui controvérsia quanto sua obrigatoriedade, etc. Chamar algo de direito levando em consideração as características acima é um exercício de descrição da realidade que não gera muitos efeitos na prática. Contudo, quando passamos a nos perguntar se algo é direito porque faz parte de um sistema jurídico especifico é preciso adotar a lógica interna do sistema, ou seja, apenas o que o sistema considera como sua parte poderá ser de fato27. Por exemplo, o sistema jurídico internacional regulado pelo direito internacional público reconhece os

costumes internacionais como fonte de direito, logo, podemos afirmar que existe um direito costumeiro pois este se enquadra na lógica interna – mecanismo, standards, procedimento, etc. – do sistema. Característica fundamental de qualquer ordem jurídica e, ainda mais acentuada no esfera global, é a temporalidade. A ordem jurídica se altera, por exemplo: no contexto da ordem jurídica internacional, o que antes eram apenas standards ou guidelines se tornam normas por serem incorporadas por tratados internacionais ou por serem reconhecidas como direito costumeiro. A

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fenômenos se encontram e se relacionam: a diferenciação e especialização do direito e a perda de espaço deste para outras formas de regulação2829. Entre estes novos tipos de regulação está a ação administrativa global, que pode decorrer de quatro grandes tipos: (i) organizações intergovernamentais globais; (ii) organizações híbridas (público-privadas) e privadas que exercem funções de interesse público (iii) redes transnacionais e intergovernamentais de governança e; (iv) formas complexas de governança, como os

regimes regulatórios globais que envolvem atores na esfera internacional e nacional30.

O espaço administrativo global surge do abalo da dicotomia entre o direito doméstico e o internacional no contexto da globalização e da governança global. Este cenário apresenta o campo de ação da administração global, o qual é composto por um grupo de regras e instituições públicas, privadas e híbridas Este campo do direito ainda é incerto devido a sua juventude, contudo, é possível traçar sua conceituação a partir da observação de sua atuação na sociedade: o Direito Administrativo Global é visto como um conjunto de mecanismos, princípios e práticas que promovem ou afetam a accountability dos entes que promovem a ação administração global, principalmente assegurando que as atitudes destes respeitem a critérios de transparência, participação, tomada de decisão racional e legalidade e que haja possiblidade de revisão efetiva das

regras e das decisões criadas e tomadas por estes entes31.

partir do momento em que há a incorporação por um tratado ou reconhecimento como costume aquele standard ou

guideline passa a ser fonte de direito internacional. Ademais, novas fontes de direito podem passar a ser reconhecidas

por uma ordem jurídica. Ao mesmo tempo, formas de regulação, como os regimes jurídicos ou regulatórios, podem conviver paralelamente à lógica daquele sistema jurídico tradicional, interagindo com este e criando um espécie de zona cinzenta onde é difícil distinguir o que é direito e o que não é, o que pode ser entendido como governança e suas consequências. O aspecto político e a necessidade de discussões técnicas profundas sobre os sujeitos e fontes das áreas de regulação transnacional apresentam um grande desafio as teorias tradicionais do direito.” CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global. Iniciação Científica apresentada à Fundação Getúlio Vargas em Julho de 2015. Orientador: Salem Hikmat Nasser. P. 11, 19-20.

28 NASSER, Salem. Global Law in Pieces: Fragmentation, Regimes and Pluralism. P.18.

29 Este cenário plural composto por formas de regulação de direito e não direito é também influenciada pela política e

relaçoes internacionais. Este pluralismo é visto como um modelo integrator e compatibilizador das diferentes formas de regulação. Neste sentido temos: “Expandindo a análise do mundo do direito em direção ao mundo das relações e políticas internacionais, Martti Koskenniemi concebe o pluralismo como uma das possíveis respostas aos problemas do mundo globalizado repleto de regimes e racionalidades distintas: de um lado a necessidade de centralismo e controle e, do outro lado, a necessidade de diversidade e liberdade . Em outras palavras, a tensão entre unidade e fragmentação. Para Koskenniemi esta resposta ainda não foi muito explorada pelos internacionalistas devido às dificuldades do desenvolvimento de uma sociologia do direito internacional. Quando falamos em pluralismo no contexto do direito internacional, pensamos nas discussões sobre globalização, a partir do conflito das racionalidades – decorrentes da diferenciação funcional da sociedade - dos múltiplos regimes. Existem aqueles que defendem que o pluralismo é uma condição comum às diferentes épocas históricas. Esta posição não tem destaque na consciência coletiva devido à visão dominante de que o direito é uno, uniforme e tem seu sistema administrado pela máquina estatal . Nesse sentido, o fenômeno da globalização deu origem a uma nova onde de pluralismo, fortemente conectado à perda da primazia do poder estatal nas relações internacionais e a noção do não-direito”. CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global. P. 14-15.

30 CASSESE, Sabino; CAROTTI, Bruno; CASINI, Lorenzo; CAVALIERI, Eleonora; MACDONALD, Euan.

(Editores). Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition. Kindle Location 2354, 2367, 2379, 2395.

31 KINGSBURY, Benedict.; KRISCH, Nico.; STEWART, Richard. The Emergence of Global Administrative Law.

(21)

A partir de tal concepção, é possível realizar as seguintes constatações: (i) o Direito Administrativo Global presume a existência de formas de administração transnacional e global, (ii) na medida que aponta como seus entes como instituições intergovernamentais regulatórias formais, redes regulatórias intergovernamentais informais, mecanismos de coordenação, instituições regulatórias híbridas (público-privadas) e instituições privadas. Ademais, é possível apontar que atrás da noção de Direito Administrativo Global, e sua ligação com a governança global, está a preocupação com o zelo do interesse público. Presume-se que seja por isso que este emergente campo do direito recebe a alcunha de “administrativo”: assim como o que conhecemos como Direito Administrativo doméstico, o Direito Administrativo Global tem como força motriz a primazia do interesse público.

d. Ação Administrativa Global

A partir do entendimento exposto acima sobre o Direito Administrativo Global, temos que automaticamente propomos que muito da governança global pode ser compreendido e analisado pela ótica da ação administrativa: criação de normas, adjudicação administrativa entre interesses conflitantes e outras formas regulatórias e administrativas de tomada de decisão e gerenciamento. O direito doméstico presume que o conceito da ação administrativa é residual, sendo aquilo que não decorre da ação estatal legislativa ou judicial. Em um contexto além daquele circunscrito pelo Estado soberano, as diferenciações no cenário institucional são mais variadas. Mesmo assim, muitas instituições e regimes internacionais que atuam e compõem aquilo que é entendido como governança global cumprem funções que no contexto doméstico seriam

vistas como ações essencialmente administrativas32. Estas ações são desde decisões

vinculantes de organizações internacionais, decisões não vinculantes de redes intergovernamentais até ações administrativas domésticas no contexto de regimes globais. Exemplos incluem decisões do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre sanções individuais, criação de normas pelo Banco Mundial (BC) para países em desenvolvimento, criação de parâmetros em relação à lavagem de dinheiro pela Financial Action Task Force (FATF) ou decisões

(22)

administrativas domésticas sobre abertura de mercados nacionais a produtos

estrangeiros como parte do regime da Organização Mundial do Comércio (OMC)33.

Contudo, no que consiste a noção de ação administrativa global? Como podemos conceituar este tipo de ação? Pode-se apontar que esta consiste na criação de normas, adjudicações e outras decisões que não decorrem simplesmente criação de tratados ou resolução de disputas. São standards, regras de aplicação geral e decisões informais tomadas no contexto da implementação de regimes regulatórios

internacionais34. É a partir da abordagem desta ação administrativa global que podemos

conceber e delinear o Direito Administrativo Global.

II – A regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica da ação administrativa global

a. Regulação e direito internacional

A regulação do patrimônio comum da humanidade tem como um de seus pontos centrais a já referida Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, daqui para frente denominada Convenção, em conjunto com a Lista do Patrimônio Mundial (lista). Este espaço é regulado por um organismo internacional – a UNESCO – em conjunto com seus Estados partes. Existe literatura extensa sobre a Convenção, os critérios utilizados para determinar o que se enquadra na lista de bens a serem protegidos, possíveis sanções aos Estados que não protegem tais bens, etc.

A lista consiste em um conjunto de bens culturais e naturais de valor universal definido pelos parâmetros da Convenção. A composição da lista passa por duas fases diferentes – nomeação e seleção – e pela análise de três atores: Estados partes da Convenção, órgãos consultivos e o Comitê do Patrimônio Mundial (Comitê). O processo de nomeação ocorre por iniciativa dos Estados que propõem que seus bens, naturais ou culturais, sejam avaliados para passar a integrar a lista. A Convenção original data de 1972, entretanto, em 2003 um adendo importante foi realizado: a incorporação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Desde 2003, além do texto protegendo o patrimônio cultural e natural da humanidade, passou a

33 KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico. Introduction: Global Governance and Global Administrative Law in the

International Legal Order. In: European Journal of International Law, Vol. 17, n.1, 2006. P.3.

(23)

compor a Convenção o texto de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial Segundo a UNESCO esta texto de salvaguarda regula o tema do patrimônio cultural imaterial e,

assim, complementa a Convenção de 1972, que cuida dos bens tangíveis35.

Especialistas de três órgãos consultivos – ICOMOS para bens culturais (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, no original, em inglês, International Council on Monuments and Sites); IUCN para bens naturais (União Internacional para a Proteção da Natureza, no original, em inglês, International Union for Conservation of Nature) e ICCROM (Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauração de Bens Culturais, no original, em inglês, International Center for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property) – avaliam os dossiês de nomeação para verificar se estes são complacentes com os parâmetros definidos na Convenção. Visitas de campo são realizadas para verificar a autenticidade, integridade e proteção dos bens em questão. Assim que a avaliação técnica é concluída, o órgão consultivo responsável pela avaliação faz sua recomendação ao Comitê, o qual terá a palavra final na escolha dos bens que irão passar a integrar a lista.

A seleção dos novos integrantes da lista ocorre em sessões anuais do Comitê, o qual consiste em um conjunto de representantes de vinte e um Estados partes da Convenção, eleitos pela Assembleia Geral desta. Os mandatos dos representantes são oficialmente de seis anos, contudo, é prática optar voluntariamente pelo encurtamento do mandato em quatro anos visando abrir espaço para que outros Estados integrem o Comitê e promovam a diversidade.

Para um bem venha integrar a lista é preciso atender pelo menos um dos dez requisitos descritos na Convenção, além de ser autêntico, manter a integridade e

assegurar que mecanismos de conservação próprios sejam estabelecidos36. Os requisitos

englobam tanto características culturais como naturais e podem ser resumidos em: (i) representar uma obra prima da criatividade e engenhosidade humana; (ii) exibir um relevante conjunto de valores humanos, durante um espaço de tempo ou dentro de uma espaço cultural especifico, referente à arquitetura, tecnologia, artes monumentais, planejamento urbano ou paisagismo; (iii) possuir traços únicos de cultura ou civilização tradicionais vivas ou que já desapareceram; (iv) ser um exemplo excepcional de um tipo de construção, conjunto arquitetônico e tecnológico ou panorama que ilustra um estagio

35 UNESCO, Patrimônio Cultural Imaterial. Disponível em:

http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-heritage/ Acesso: 01 out. 2016.

36 BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn; SACCOJE, Donatella. The Politicization of

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significativo da história humana; (v) ser um exemplo excepcional de um assentamento humano ou uso de recursos naturais que sejam representativos de uma cultura ou interação humana com o meio ambiente; (vi) ser diretamente ou tangivelmente associado a eventos, tradições, ideias, valores, crenças, criações artísticas ou literárias; (vii) conter fenômenos naturais superlativos ou áreas de excepcional beleza natural e importância estética; (viii) ser exemplo excepcional da representação de grandes eras da história do planeta, incluindo históricos de vida animal, transformações geológicas ou características geográficas e fisiográficas; (ix) ser exemplo excepcional representativo dos processos ecológicos e biológicos de evolução e desenvolvimento dos mais diversos ecossistemas e comunidades de plantas e animais; (x) conter os mais significativos habitats naturais para a conservação de diversidade biológica, incluindo aqueles que

contem espécies de valor inestimável em perigo de extinção37.

A Convenção tem natureza de tratado internacional, sendo a fonte de Direito International Público que brinda os juristas com uma maior grau de certeza uma vez que

se assemelha às leis do direito interno e geralmente se apresenta sob a forma escrita38.

Desse modo, podemos entender que a Convenção é um exemplo de hard law. Ou seja, é um conjunto de normas pelas quais os Estados partes da Convenção estão vinculados. Sabe-se que no campo do Direito Internacional é difícil promover o enforcement das normas devido a soberania dos Estados. Geralmente, o cumprimento destas normas, em grande parte, decorre das obrigações morais dos membros da comunidade

internacional39. O regime capitaneado pela Convenção é criticado justamente por não

ser suficientemente efetivo e por promover decisões com déficit de accountability. Este regime não garante o cumprimento por parte dos Estados soberanos de suas normas, pois estes sempre acabam por deixar prevalecer a autonomia das autoridades domésticas uma vez que temem deixá-las comprometidas.

Nesse mesmo sentido, é possível apontar que existe uma tensão entre a soberania estatal e o reconhecimento de que certas estruturas, propriedades e áreas não

constituem o patrimônio de um Estado individual, mas sim da humanidade40. Existe

ainda outra tensão: de uma lado temos o interesse da humanidade de preservar o

37 A tradução dos requsitos é nossa. A redação original, em inglês, encontra-se em: http://whc.unesco.org/en/criteria/

Acesso: 01 out. 2016.

38 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e Normas do Direito Internacional – Um Estudo sobre a Soft Law. São Paulo:

Atlas, 2006. 2a Ed. P. 67.

39 FYAL, Alan; LEASK, Anna. Managing World Heritage Sites. Routledge: Nova York, 2011. P. 23.

40 BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention. In:

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patrimônio que impacta o seu desenvolvimento; do outro, temos os Estados soberanos que não querem abrir mão de sua discricionariedade nos processos de tomada de decisão doméstica. Logo, é preciso conceber uma abordagem que permita a representação dos interesses da comunidade global através da intervenção e influência dos processos de tomada de decisão doméstica que impactam os bens públicos globais41.

A dinâmica de afirmação do patrimônio comum da humanidade como princípio jurídico inspirador de regimes internacionais alternativos à apropriação individual desses espaços e recursos pelos Estados encontra no espaço global uma área de

concretização42 . Além das características peculiares do patrimônio comum da

humanidade devido a sua qualidade de bem público global, a percepção de seu potencial econômico e estratégico de valor inestimável no contexto do espaço global nos leva a conceber a regulação deste ambiente de forma distinta e, até mesmo, ambiciosa.

Com o surgimento do conceito de Direito Administrativo Global encontramos subsídio para pensar este espaço de regulação do patrimônio comum da humanidade de forma diferente. O aspecto substantivo desta regulação se relaciona com o interesse global de preservação de certos bens e, a fim de atingir este objetivo, a regulação acaba por influenciar o processo de tomada de decisão doméstico. Alguns entendem que o espaço regulatório do patrimônio comum da humanidade exemplifica um modelo

procedimental de integração legal e institucional43, modelo este que poderia ser

concebido sob o arcabouço teórico do Direito Administrativo Global.

Esta concepção da regulação do patrimônio comum humanidade implica a transformação dos processos de tomada de decisão doméstica, e não a sua

substituição44, grande medo dos Estados soberanos. Ademais, temos que no mundo

globalizado, cada vez mais os impactos da regulação doméstica – principalmente quando discorrem sobre bens públicos globais – afetam os interesses extraterritoriais, fazendo com que os Estados exerçam seu poder público para além de sua fronteiras.

É este exercício do poder público para além das fronteiras – realizado no caso das decisões sobre o patrimônio comum da humanidade – que serve de ponto de conexão ao conceito de Direito Administrativo Global: a existência de bens globais implica a

41 Idem, Ibidem. P.363.

42 PUREZA, José Manuel. O Património Comum da Humanidade – Rumo a um direito internacional da

solidariedade? P. 247

43 BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention.. P.

364.

(26)

concessão de poder para mais de um Estado para regular. A estrutura desta regulação – reconhecimento do poder de regulação e dever do regulador de levar em consideração os interesses afetados – possui lógica similar a do direito administrativo. Aqui, os fundamentos do direito administrativo atuariam como mediadores dos desiquilíbrios entre os Estados reguladores, estendendo a lógica e os propósitos do modelo da

representação de interesses para além das fronteiras nacionais45. Temos que os

mecanismos de accountability46 passariam a ser exercidos para tornar não apenas o

Estado accountable perante a seus cidadãos, mas todos os agentes da regulação accountable aos diversos atores desse sistema. Os desafios estão em identificar a existência de uma ação administrativa global, sua forma de atuação e em organizar como a prestação de contas será realizada de forma transparente e acessível sob a égide de um possível Direito Administrativo Global.

b. O exercício da ação administrativa global

O primeiro passo para explorarmos e identificarmos a ação administrativa global no contexto da regulação do patrimônio comum da humanidade é observar com mais atenção os órgãos consultivos do sistema regulatório capitaneado pela UNESCO. Tais órgãos são mais que meramente consultivos e possuem grande relevância no sistema.

Cada um dos órgãos possui uma diferente estrutura organizacional. O ICOMOS é uma organização não governamental criada em 1965. Possui mais de 11 mil membros individuais (indivíduos engajados na conservação de monumentos da comunidade científica, especialistas, técnicos administrativos, etc.) e 95 comitês nacionais institucionais, formados por membros do ICOMOS em cada país. A IUCN foi fundada em 1948 como uma associação internacional que possui como membros governos e

45 Idem, Ibidem. P. 367-368.

46 Devido a dificuldade de encontrar um termo em português adequado, o termo accountability e seus derivados,

como accountable, serão utilizados no original em inglês ao longo deste trabalho. Entendemos accountability como um processo de avaliação e responsabilização dos agentes públicos (eleitos, nomeados ou de carreira) em razão dos atos praticados em decorrência do uso do poder que lhes é outorgado pela sociedade. Será institucional quando este processo for praticado no âmbito do próprio aparato estatal, ou social quando praticado fora dos limites estatais. Em outras palavras, é saber o que os agentes públicos estão fazendo, como estão fazendo, que consequências resultam das suas ações e como estão sendo responsabilizados. Disso surge um fluxo de informações amplo e aberto, capaz de subsidiar e incentivar a discussão e debate em torno de questões públicas (ROCHA, Arlindo Carvalho. Accountability na Administração Pública: A Atuação dos Tribunais de Contas. Artigo apresentado no XXXIII Encontro da ANPAD, na cidade de São Paulo, entre 19 e 23 de set. 2009. P. 4 Disponível em: http://www.anpad.org.br/admin/pdf/APS716.pdf). Ao longo deste trabalho o conceito de accountability será aplicado ao sistema global e, portanto, não seguirá fielmente a conceituação aqui exposta. Contudo, entendemos que esta breve explicação ajuda a entender o conteúdo central do conceito, seu caráter de prestação de contas, que será explorado ao longo do trabalho.

(27)

organizações não governamentais, constituída de acordo com o Código Civil Suíço. Possui mais de 1.300 membros, incluindo agências governamentais, organizações não governamentais internacionais e nacionais, Estados e afiliados (instituições acadêmicas, científicas e de negócios). Já a ICCROM é uma organização intergovernamental composta apenas por Estados – cerca de 130 atualmente – fundada em 1956 pela

decisão da Nona Assembleia Geral da UNESCO em Nova Déli47.

Estas três organizações são nomeadas pela UNESCO na Convenção como órgãos que devem aconselhar o Comitê em suas deliberações. O IUCN, ICOMOS e ICCROM fazem parte do sistema de regulação do patrimônio comum da humanidade, contudo, são instituições independentes que possuem suas próprias estruturas burocráticas e sistemas internos de governança. O ICCROM possui uma Assembleia Geral composta por seus Estados partes, um Conselho com 25 membros eleitos pela Assembleia Geral e um Secretariado liderado por um diretor geral; o IUCN possui um Conselho composto por um presidente, quatro vice-presidentes, um secretário, os líderes das seis Comissões da IUCN (Comissão para a Educação e Comunicação; Comissão para Políticas Ambientais, Econômicas e Sociais, Comissão Mundial sobre Direito Ambiental; Comissão sobre Gestão Ambiental; Comissão sobre Preservação de Espécies e Comissão Mundial sobre Áreas Protegidas) e 28 conselheiros regionais; o ICOMOS possui um Secretariado, Assembleia Geral, Conselho Científico, Conselho Geral e um Comitê Consultivo.

A breve explicação da estrutura destes órgãos consultivos ilustra como a regulação do patrimônio comum da humanidade tem em seu núcleo a incorporação das mais diferentes formas de governança – nacional, internacional, transnacional, privada, pública, etc. Entretanto, vimos anteriormente que o órgão dotado de poder para incluir bens na lista é o Comitê. Desse modo, faz-se necessário explorar a influência das repartições deliberativas supracitadas no Comitê e até mesmo nas decisões domésticas para podermos encontrar mais indícios de um possível exercício de ação administrativa global no objeto do presente trabalho.

Dos três órgãos apresentados é possível afirmar que de fato dois deles – IUCN e ICOMOS – partilham do poder formalmente conferido ao Comitê para inscrever os retirar bens da lista. Estes órgãos são os responsáveis por fornecer as bases factuais – os

47 CAVALIERI, Eleonora. The Role of Advisory Bodies in the World heritage Convention. In: CASSESE, Sabino;

CAROTTI, Bruno; CASINI, Lorenzo; CAVALIERI, Eleonora; MACDONALD, Euan (Editores). Global

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dossiês finais – sobre os bens indicados. De forma geral, o papel dos órgãos é fornecer assistência técnica necessária para implementação bem sucedida da Convenção. Apesar das decisões do IUCN e ICOMOS (fornecidas através de relatórios que possuem recomendações) não vincularem formalmente o veredicto final proferido pelo Comitê, são estes órgãos que conferem legitimidade ao regime de proteção do patrimônio comum da humanidade uma vez que as decisões do Comitê terão mais chances de serem implementadas sem sanções caso sejam baseadas em conhecimento técnico

dotado de expertise inquestionável48.

Interessante notar que, além do descrito acima, estes órgãos exercem um tipo de função normativa. O IUCN e o ICOMOS não apenas contribuíram na redação da Convenção, mas também foram parte do processo de atualização das Diretrizes Operacionais, um documento fundamental para o regime de proteção do patrimônio comum da humanidade uma vez que este é o responsável pela implementação da

Convenção, a partir do estabelecimento de procedimentos para a sua aplicação49.

Do cenário exposto dois pontos contribuem para identificarmos indícios de um possível exercício de ação administrativa global: (i) o poder normativo dos órgãos deliberativos explanado acima; (ii) a diversidade dos atores que integram os órgãos deliberativos e a extensão de sua influência.

O poder normativo dos órgãos deliberativos consiste na criação de normas procedimentais para implementação da Convenção. Tais normas são acessórias à Convenção e não possuem natureza de fonte de Direito Internacional Público como os tratados internacionais – e a Convenção propriamente dita – uma vez que seu caráter é eminentemente procedimental, podendo até mesmo ser descrito como administrativo uma vez que não possui caráter legislativo ou jurisdicional, não decorre de tratados ou resolução de disputas. Este caráter administrativo decorre do fato destas normas procurarem dirigir, governar, exercer uma função com um objetivo útil, traçar um programa de ação e executá-lo. Nas discussões sobre direito público, alguns autores dão

ao vocábulo administração sentido amplo para abranger a legislação e execução50. Aqui

entendemos este caráter administrativo como conectado à execução, não necessariamente ligado à legislação, uma vez que para concebermos o caráter administrativo como conecto à legislação precisamos entender que as normas das quais

48 Idem, Ibidem, P. 370-371. 49 Idem, Ibidem, P. 371.

(29)

tratamos são jurídicas. Não entendemos que o poder normativo exercido pelos órgãos

deliberativos seja jurídico uma vez que este não pertence a uma ordem jurídica51, mas

surge do exercício de organizações intergovernamentais e não governamentais. Todavia, o fato deste poder normativo não ser jurídico não implica na sua pouca importância para o sistema de regulação do patrimônio comum da humanidade, conforme será exposto ao decorrer do trabalho.

O exercício de criação destas normas através dos órgãos deliberativos do sistema que regula o patrimônio comum da humanidade parece estar alinhado com a descrição de ação administrativa global exposta anteriormente neste trabalho. Mais um indício deste alinhamento reside no fato de que esta suposta ação administrativa afeta diretamente os integrantes da Convenção (os Estados soberanos, per se) e todos aqueles que colaboram para a sua implementação. As diretrizes operacionais estabelecem parâmetros para a implementação da Convenção; as agências governamentais, as organizações não governamentais e organismos transnacionais que fazem parte dos organismos deliberativos acabam por ser influenciadas por tais diretrizes, em alguns momentos até mesmo replicando-as em seus ambientes regulatórios domésticos.

A diversidade dos atores integrantes dos órgãos deliberativos também ressalta um indício do exercício de uma possível ação administrativa global. Conforme já discutido no presente trabalho, a emergência do Direito Administrativo Global e, da noção de ação administrativa global decorrem do surgimento de formas complexas de governança. Um sistema regulatório formado por um conjunto de agentes com as mais distintas naturezas qualifica-se como uma forma complexa de governança.

Ainda procurando identificar o exercício da ação administrativa global, podemos

observar um caso concreto envolvendo o Lago Baikal, na Rússia52, e o sistema de

regulação do patrimônio comum da humanidade. O lago encontra-se ao sul da Sibéria e possui grande relevância para a humanidade devido a sua rica e singular biodiversidade. Em 2005 o Comitê foi informado por organizações de proteção ao meio ambiente que a companhia responsável pela construção de um oleoduto na região da Sibéria tinha começado a desmatar a região para criar uma rota para os encanamentos que passariam a cerca de dois quilômetros de distância do Lago Baikal. O Comitê junto ao IUCN montou uma missão para averiguar a propriedade e a construção, convidando o governo

51 A discussão sobre direito e não direito pode ser retomada na nota de rodapé 27 deste trabalho.

52 Este exemplo foi retirado de artigo escrito por Stefano Battini. A narrativa original do exemplo poder ser econtrada

em: BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention. P.354-356.

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russo para fazer parte desta. A missão ocorreu entre 21 e 31 de outubro de 2005 e seu time foi formado por autoridades federais e locais, organizações não governamentais locais e especialistas no tema. O relatório consolidando os resultados da missão indicava que o oleoduto estava muito próximo do Lago, fazendo com que o riscos de acidentes de vazamentos fossem muito altos.

Como resultado da missão, o Comitê indicou que caso o governo russo aprovasse a continuidade da construção, o Lago Baikal seria incluído na lista do patrimônio mundial em perigo, o que acarretaria a aplicação de uma série de medidas protetivas que poderiam vir a ser implementadas sem a anuência do governo russo.

Mesmo com a recomendação de não seguir com a construção, o Presidente Vladimir Putin pressionou a continuidade da construção, até mesmo alterando a composição da autoridade federal responsável por avaliações de impacto ambiental com a intenção, que se tornou bem sucedida, de alterar as recomendações sobre a construção. A decisão do governo russo de prosseguir com a construção do oleoduto foi recebida com protestos da sociedade civil e noticiada com tom negativo pela imprensa internacional. O Presidente do Comitê entrou em contato com o Presidente Putin expressando o seus descontentamento com a decisão e pedindo para que esta fosse revertida com intuito de preservar o Lago Baikal. Além disso, o Direito Geral da Unesco enviou carta semelhante ao Primeiro Ministro russo e o Secretariado do Comitê enviou notificação ao embaixador da Rússia na Unesco solicitando que este divulgasse a avaliação e decisão oficiais tomadas pela autoridades russas sobre o Lago Baikal.

Em 26 de abril de 2006, o Presidente Putin, em uma reunião amplamente divulgada pela mídia local, determinou que o projeto do oleoduto deveria ser alterado de modo que este não fosse instalado próximo do Lago Baikal.

Em julho de 2006, em sua sessão anual, o Comitê comentou oficialmente o caso, afirmando a importância da decisão russa de proteger o Lago Baikal, um bem tido como patrimônio comum da humanidade devido ao seu relevante valor universal. O Comitê retirou a proposição de incluir o Lago na lista de patrimônio mundial em perigo, mantendo sua inscrição apenas na lista do patrimônio mundial.

No caso descrito acima conseguimos identificar elementos da ação administrativa global no contexto do patrimônio comum da humanidade. Tanto o relatório do Comitê como as ações de seu Secretariado e do Diretor Geral da UNESCO continham um conteúdo não só recomendatório, mas de certa forma, decisório, ainda que informal.

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