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A DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO PRESENTE NO ROMANCE ESAÚ E JACÓ, DE MACHADO DE ASSIS

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A DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO PRESENTE NO ROMANCE

ESAÚ E JACÓ, DE MACHADO DE ASSIS

THE PUBLIC/PRIVATE DICHOTOMY PRESENT IN THE NOVEL

ESAÚ E JACÓ, BY MACHADO DE ASSIS

WELLINGTON VINICIUS DA CRUZ GODOI

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ, Brasil

RITA DE CÁSSIA LAMINO DE ARAÚJO RODRIGUES

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO, Brasil

RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR

RECEBIDO EM 11/04/2019 ● APROVADO EM 18/03/2020

Abstract

The attempt of translating the European culture and the ideologies to the Brazilian territory is glimpsed by the critics as one of the determinant factors to the social and political changes occurred in Brazil in the end of the XIX century, being the Proclamation of the Republic and the Abolishment of Slavery highlighted as milestones of the development which happened in the country. However, it is pointed that the transposition of these ideologies has being carried out in and incongruent way, because the changes before were more on the appearance than on the essences of the institutions. Since Machado de Assis was skilled at transforming into fiction these aspects of Brazilian daily life, this paper uses as an informational analysis of the novel Esaú e

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represented here by the historical events, and the private sphere, represented by the events on the sphere of intimacy of its characters, within the novel’s plot.

Resumo

A tentativa de transladar a cultura e as ideologias europeias para o território brasileiro é vislumbrada pela crítica como um dos fatores preponderantes para as transformações sociais e políticas ocorridas no Brasil em fins de século XIX, sendo a Proclamação da República e a Abolição da Escravidão destacadas como marcos do desenvolvimento ocorrido no país. Entretanto, assinala-se que a transposição de tais ideologias foi realizada de maneira incongruente, pois as mudanças eram antes na aparência do que na essência das instituições. Visto que Machado de Assis foi hábil em ficcionalizar tais aspectos do dia a dia brasileiro, este trabalho utiliza como corpus de análise o romance Esaú e Jacó (1904), com o objetivo de demonstrar a existência de uma hipertrofia entre a esfera pública, representada aqui pelos acontecimentos históricos, e a esfera privada, representada pelos acontecimentos na esfera de intimidade de suas personagens, dentro da trama deste romance.

Entradas para indexação

KEYWORDS: Machado de Assis. Esaú e Jacó. Dichotomy. Public. Private.

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis. Esaú e Jacó. Dicotomia. Público. Privado.Texto integral

1. Introdução

A obra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) pode ser considerada um grande testemunho crítico do convívio social brasileiro no século XIX. Através de seus contos e romances, o escritor demonstrou alguns dos efeitos do desenvolvimento público do Brasil na esfera privada da vida dos cidadãos, sem se apegar a pura descrição histórica. Nesse sentido, Roberto Schwarz assinala, em Um mestre na periferia do capitalismo (2012):

A imitação fiel da desfaçatez da classe dominante brasileira; o sentido agudo de seu significado contemporâneo e efeito deletério; a incerteza completa quanto a seu prazo no tempo e — ousadia suprema — quanto à superioridade da civilização que lhe servia de modelo inalcançado: a este conjunto complexo, de alta maturidade, deve-se a saliência especificamente moderna da forma machadiana, tão nítida e desnorteante. (SCHWARZ, 2012b, p. 242)

O crítico ainda assinala que “Machado elaborava um procedimento literário cuja constituição objetiva punha a vida do espírito em coordenadas compatíveis com a realidade nacional, independentemente de convicções a respeito desta ou daquela doutrina” (SCHWARZ, 2012b, p. 57). Já Alfredo Bosi, no ensaio “Uma figura machadiana” (2007), expõe que, na sua fase jovem, Machado fora adepto das

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convenções do romantismo urbanizado da segunda metade do século XIX. Nesse período, haviam em suas obras as personagens interessadas (em tirar vantagem econômica) e as beneficiadoras (as personagens detentoras de capital) nas questões de patrimônio e matrimônio; era necessário ao noivo ou noiva vestir uma máscara e conquistar um cônjuge do qual tirará vantagem. Após terminada essa busca, a máscara do interessado tende a cair e o beneficiador experimentará a ingratidão ou mesmo a traição. Em sua segunda fase, pode-se notar a necessidade da máscara não apenas para o antagonista, mas também para as demais personagens do enredo e ainda para a própria tessitura da trama. No fundo, o que se buscava é demonstrar como funcionava o baile da autoconservação (BOSI, 2007).

Assim, este trabalho objetiva-se a interpretar o romance Esaú e Jacó (1904), penúltimo publicado por Machado de Assis, em vista de uma correlação com o horizonte histórico-social brasileiro da época em que a trama é construída (segunda metade do século XIX). Para tanto, busca-se efetivar a noção de que o Brasil transladava da Europa seus costumes e ideologias, acarretando em uma oposição entre aparência e essência, público e privado.

2. Da Europa para o Brasil: a dicotomia público/privado e o homem cordial As relações de poder e interpessoais do Brasil de fins de século XIX estiveram marcadas pela dicotomia público/privado. Nesse período de transformação, em que se ampliaram os horizontes para um futuro industrializado, não escravocrata e, na teoria, igualitário, a presente dicotomia pode ser um indício da estranheza do modo como sucedeu o processo de expansão capitalista brasileiro. Processo esse que ocorreu com a reposição de ideais europeus de desenvolvimento no território brasileiro.

No livro Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa (2014), o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas elabora uma esmiuçada análise da esfera pública burguesa e da representatividade pública na Europa. Segundo ele, o modelo de esfera pública helenística da cidade grega plenamente formada compartilha uma força normativa peculiar com o Renascimento e com todos os períodos ditos clássicos. Nesse sistema, a vida pública ocorre na praça do mercado (a ágora), mas não se vincula a um local somente, “a esfera pública se constitui no diálogo (léxis)” (HABERMAS, 2014, p. 96). Entretanto, o autor faz um alerta: “O que comprova sua continuidade histórica espiritual ao longo dos séculos não é a formação social que lhe é subjacente, mas o próprio padrão ideológico” (HABERMAS, 2014, p. 97).

Ao longo da Idade Média, a esfera pública foi traduzida como res publica e as categorias de público e privado voltaram a ter uma aplicação com o surgimento do Estado moderno e da esfera da sociedade civil. Isso só ocorreu com o declínio da sociedade aristocrática, representada pela figura do monarca, momento no qual a sociedade civil começou a se apartar do Estado e “as esferas pública e privada se separam em um sentido especificamente moderno” (HABERMAS, 2014, p. 109). A

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partir desse ponto de vista histórico, o sociólogo apresenta sua interpretação das esferas pública e privada:

A linha divisória entre Estado e sociedade, fundamental para nosso contexto, separa a esfera pública do domínio privado. O domínio público limita-se ao poder público, no qual ainda incluímos a corte. No domínio privado está incluída uma esfera pública que lhe é própria, pois ela é uma esfera pública de pessoas privadas. Por isso, no âmbito reservado às pessoas privadas, distinguimos esfera privada e esfera pública. A esfera privada compreende a sociedade civil no sentido estrito, como o domínio de circulação de mercadorias e do trabalho social. Nela está incorporada a família com sua esfera da intimidade. A esfera pública política resulta da esfera pública literária. Por meio da opinião pública, faz a mediação entre o Estado e as necessidades da sociedade. (HABERMAS, 2014, p. 140)

Isto é, na esfera pública burguesa há o domínio público representado pelo poder público, estatal. No domínio privado pode-se distinguir um outro domínio público — o domínio do público de pessoas privadas que discutem mediante razões, responsável pela mediação entre os interesses do Estado e da sociedade —, e o domínio caracterizado pela esfera de intimidade, representada, principalmente, pela família. “A esfera pública burguesa pode ser entendida, antes de mais nada, como a esfera de pessoas privadas que se reúnem em um público” (HABERMAS, 2014, p. 135).

Richard Sennett, no livro O declínio do homem público: as tiranias da intimidade (2014), assinala que a principal mudança ocorrida na França, entre 1770 e 1870, foi a criação de um “sistema de mercadorias feitas à máquina e produzidas em massa” (SENNETT, 2014, p. 205), incorporado consequentemente por outros países europeus, como Inglaterra e Alemanha. Com a instauração das fábricas e lojas particulares, o poder público se alivia da administração do trabalho produtivo e se coloca acima da sociedade privatizada (HABERMAS, 2014).

Dentro de uma atmosfera de competição e trabalho não só produtivo, mas, também, social, o ser humano foi obrigado a sair de dentro de sua esfera privada e interagir com a cidade. “Dessa maneira, ‘público’ veio a significar uma vida que se passa fora da vida da família e dos amigos íntimos; na região pública, grupos sociais complexos e díspares teriam que entrar em contato inelutavelmente” (SENNETT, 2014, p. 35). Como resultado, a região pública deveria assentar-se em bases impessoais e o homem público teve que forjar uma máscara.

No Brasil, o homem público também foi obrigado a forjar uma máscara, porém por motivos diferentes aos europeus. Antes da Abolição (1888), haviam dois estratos sociais principais, um composto pelos fazendeiros e comerciantes brancos, o outro composto pelos escravos. “Esses estratos constituíam as duas principais forças sociais, que pressionavam uma estreita camada, sobretudo urbana, de setores médios: profissionais liberais, burocratas subalternos, empregados dos escritórios

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e pequenos lojistas” (NEEDELL, 1993, p. 19-20) que dependiam, no geral, da política do favor para manterem seus empregos e imagem social.

A questão a ser posta em cheque nesse cenário é o liberalismo, ideal que os governantes brasileiros timbravam em pôr em prática, ou melhor, em transladar da Europa para um país que ainda não havia abandonado seu passado colonial. Enquanto no velho continente a escravidão já não existia e os trabalhadores eram assalariados, — claro que a exploração do trabalho e a falta de igualdade também correspondiam a problemas por lá, mas em sentido diverso ao aqui estudado —, no Brasil predominava “o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão” (BANDEIRA, 1863 apud SCHWARZ, 2012a, p. 11).

Aqui estabelece-se o primeiro indício da existência da dicotomia público/privado na sociedade brasileira: os ideais de igualdade e liberdade individual correspondiam apenas a aparência, pois escondiam uma sociedade em que os ricos proprietários de terras escravizavam e tinham todos os direitos previstos na Constituição Brasileira, enquanto que muitos negros ainda eram comprados, escravizados e maltratados ao bel-prazer do homem branco. E, também, a política geral do favor era transformada em escândalo, segundo a universalidade dos princípios (SCHWARZ, 2012a), porém era o único meio pelo qual os setores médios conseguiam e mantinham seus postos.

Mesmo a Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889), consistiram em tentativas de construir uma boa imagem pública, mostrando para o resto do mundo um país desenvolvido social e politicamente a fim de garantir sucesso econômico e vinda de capital estrangeiro:

A República fora proclamada em meio aos discursos do progresso e da civilização, mas arrastava atrás de si dívidas para com o passado colonial. A não-solução do problema agrário e a dificuldade de incorporação dos ex-escravos ao mercado de trabalho, a problemática realização da cidadania, a persistência da situação colonial de dependência externa na economia, o reduzido mercado interno, a manutenção das relações autoritárias, servis e senhoriais traduzem-se em condições históricas perversas e específicas de realização da modernidade. (PASAVENTO, 2002, p. 160-161)

Nesse sentido, destacam-se três pontos que fazem divergir os processos de evolução capitalista europeu e brasileiro: primeiro, o liberalismo era realidade na Europa enquanto que era ideologia no Brasil, uma vez que o homem dependente do favor era obrigado a esposar os ideais de seu protetor e apenas os proprietários eram verdadeiramente “livres”; segundo, como grande produtor de matéria-prima e acanhado consumidor de bens, o Brasil tinha a mesma importância que as colônias dos países europeus, enquanto que estes eram os responsáveis pela conversão dessa matéria-prima em produtos para venda a varejo; e, terceiro, o trabalho escravo e a consequente dificuldade de inserção destes no mercado de trabalho após a Abolição permaneciam como principais objeções para a entrada do Brasil no rol dos países de primeiro mundo.

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Sérgio Buarque de Holanda assinala, em Raízes do Brasil (2014), que a tentativa de implantação da cultura europeia no território brasileiro é o fato dominante e mais rico em consequências, considerando as condições naturais adversas dos dois lugares (HOLANDA, 2014). Isso se explica pela ilusão de que o Brasil criou e desenvolveu por si próprio sua cultura, sua forma de governo e suas ideologias, quando, na verdade, fez isso em consonância com a moda estrangeira. Em outras palavras, Holanda considera:

Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem. (HOLANDA, 2014, p. 35)

Dessa forma, “Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público” (HOLANDA, 2014, p. 175). Como o poder público estava nas mãos de pessoas que não sabiam diferenciar os interesses particulares dos interesses públicos, as práticas censuráveis de clientelismo, favor, paternalismo e cooptação, tornavam-se normais no dia a dia brasileiro. Isso resultou no surgimento do “homem cordial”.

A figura do “homem cordial” consiste na reunião de algumas características que Holanda (2014) atribui a forma de o brasileiro viver em sociedade, a partir das quais o indivíduo busca proteger-se e vencer no meio público. As características do homem cordial são a afabilidade no trato, a hospitalidade, a generosidade e a polidez, e representam um traço definido do caráter brasileiro. Mas, ao contrário do que se possa pensar, “Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante” (HOLANDA, 2014, p. 176). Essas virtudes correspondem apenas a parte externa, ou seja, pública, do indivíduo, na qual é importante armar-se de uma máscara social para “manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo” (HOLANDA, 2014, p. 177). Desta maneira, o “homem cordial” é aquele que aprendeu a perambular livremente entre as esferas pública e privada, tirando o melhor proveito de um sistema caracterizado pela supremacia das relações pessoais nos meios públicos.

3. Esaú e Jacó: o romance do “homem cordial” conselheiro Aires

O romance Esaú e Jacó (1904) trata da vida dos gêmeos Pedro e Paulo, filhos de Santos e Natividade, que se desentendem durante toda a vida pelos mais variados

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motivos: brigas por doces e frutas quando crianças, pelo amor da bela Flora quando jovens e pela política quando adultos. Todas as peripécias e discórdias dos jovens se unem a vários outros episódios, construindo um terreno repleto de complicações romanescas de grande verossimilhança histórica e social —, tudo isso conduzido de maneira diplomática pelo narrador conselheiro Aires.

A “Advertência” do livro Esaú e Jacó explica que quando Aires faleceu, acharam, na sua secretária, sete cadernos manuscritos, encapados em papelão. Os seis primeiros estavam nomeados pelo seu número de ordem em algarismos romanos, apenas o sétimo trazia o título Último (ASSIS, 2015):

Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. (ASSIS, 2015, p. 1046)

Ao nomear para publicação, foram lembrados vários nomes, vencendo, porém, este que o próprio Aires disse uma vez: Esaú e Jacó. Com essa manobra, Machado de Assis criou um autor ficcional para o seu romance impondo uma “Advertência” que é responsável por uma explicação da origem do seu livro. Assim, pode-se entender a gênese desse romance através da seguinte fórmula: Machado de Assis é o autor real do romance, criador do conselheiro Aires — este, um autor ficcional —, que nos lazeres do ofício de diplomata, escreveu a história dos gêmeos, na qual coloca a si mesmo como personagem.

Apesar de ser, ficcionalmente falando, autor e narrador do romance, quando fazia referência a si próprio no romance, o conselheiro utilizava sempre a terceira pessoa, como no capítulo em que se descreveu: “Esse Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. [...] Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dois, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem” (ASSIS, 2015, p. 1063, grifo nosso). Aires existia em uma relação dupla dentro do romance, utilizando o pronome “eu” quando estava na pele do narrador e o pronome “ele” quando falava da personagem. Nesse sentido, tem-se aí “um narrador onisciente intruso, um eu que tudo segue, tudo sabe e tudo comenta, analisa e critica, sem nenhuma neutralidade” (LEITE, 1997, p. 29).

A primeira cena do romance trata-se de uma visita que Maria Natividade e sua irmã, Perpétua, fizeram escondidas à uma adivinha da época, chamada popularmente de cabocla do Castelo, a respeito do futuro dos filhos de Natividade, que tinham, naquele momento, pouco mais de um ano de idade. Quando chegaram à porta da casa da adivinha, ficaram um pouco paradas pensando que a sorte dos meninos podia não ser boa. “Enquanto cogitavam passou fora um carteiro, que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião” (ASSIS, 2015, p. 1047). Finalmente, entraram na casa; o pai da

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cabocla anunciou que sua filha já vinha e perguntou o nome das damas: “Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que trazia no rosto” (ASSIS, 2015, p. 1048).

Conforme se vê, no trecho, as duas damas tinham pudor de serem descobertas visitando o pobre Morro do Castelo e a famosa adivinha que lá vivia. Porém, a vontade íntima de Natividade era de saber a sorte de seus filhos gêmeos. As atmosferas privadas e públicas das senhoras foram colocadas em oposição, uma vez que não há como realizar a visita à cabocla sem o risco de uma exposição. Como resultado dessa oposição, as senhoras tentaram ser o mais discretas possível colocando roupas mais simples do que de costume e subindo o morro mais depressa para escapar aos olhos dos outros. Além disso, Maria Natividade deu apenas o primeiro nome, Maria, — que consiste em um epiteto mais comum —, quando perguntada de modo a dificultar a sua identificação na consulta. Assim, dar apenas o primeiro nome “Maria” é a forma que ela usou para se esconder, “como um véu mais espesso que o que trazia no rosto”. (ASSIS, 2015, p. 1048).

Durante a consulta, a cabocla perguntou se os gêmeos brigaram antes de nascer, ao que Natividade “respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias...” (ASSIS, 2015, p. 1049). Mas, apesar desse indício de rivalidade, ao fim da consulta a adivinha anunciou apenas:

— Serão grandes, oh! grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, coisas futuras! (ASSIS, 2015, p. 1049)

Na descida do Morro, as irmãs estavam tão felizes que, quando deram com um irmão das almas, — membro de uma sociedade religiosa da época que era responsável por pedir esmolas a fim de custear a missa dos que morriam anonimamente —, Natividade “tirou da bolsa uma nota de dois mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia” (ASSIS, 2015, p. 1050). Segundo Raymundo Faoro (2001), a quantia de dois mil-réis, naquela época, “não era muito, mas era alguma coisa [...] comparada a esmola de dois níqueis de tostão e alguns vinténs antigos, contribuição usual dos devotos” (FAORO, 2001, p. 266).

A felicidade na esfera privada de Natividade desencadeia uma boa ação pública para a sociedade: o irmão das almas não é proprietário nem escravo, e não há indícios de que ele fazia parte do mercado de trabalho no romance, dependendo, assim, da boa ação dos ricos para ganhar a vida e, ainda, colaborar para a sua comunidade religiosa. “O seu acesso aos bens da civilização [...] se efetiva somente através da benevolência eventual e discricionária de indivíduos da classe abonada” (SCHWARZ, 2012b, p. 88). Nesse caso, coube a Natividade, motivada por uma felicidade particular, realizar uma benevolência pública para o irmão das almas.

O capítulo seguinte, intitulado “A esmola da felicidade”, descreve uma longa batalha interna do irmão das almas, que pensou que a nota podia ser falsa, porém, logo desconsiderou a hipótese, ficou a olhá-la e não tinha mais ânimo para pedir,

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posteriormente, a ideia da nota ser falsa voltou ao cérebro e tornou a pedir, conseguindo outras pequenas esmolas se comparadas com aquela. Enfim, “amarrotou a nota e meteu-a na algibeira das calças” (ASSIS, 2015, p. 1051). O fato do irmão das almas ficar muito abalado com a quantia deixada na bacia reforça a ideia de que ele não possuía muitos bens e de que poucas vezes, quiçá nenhuma, vira uma nota tão valiosa quanto aquela.

Nesse caso, novamente a esfera privada sobrepôs à pública, pois a vontade particular do irmão das almas se sobrepôs ao interesse da comunidade da qual faz parte, pois ele deveria repassar à instituição religiosa esse dinheiro ao invés de embolsá-lo. Deste modo, a ambição falou mais alto que sua prática social.

Mais adiante, o irmão das almas volta a aparecer no romance, no capítulo LXXIV, no qual Aires relembra do caso e conta o que mais sabia sobre a vida dele, que “outrora não se chamava nada” (ASSIS, 2015, p. 1143), sendo apenas um corpo da comunidade religiosa, mas que a partir do momento em que se tornou rico, passou a ser considerado um cidadão, que se chamava Nóbrega:

Poucos meses depois, Nóbrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a outros purgatórios, para os quais achou outras opas, outras bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se também o país. Quanto tornou, trazia alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Enfim, alvoreceu a famosa quadra do “encilhamento”. (ASSIS, 2015, p. 1143)

O encilhamento foi um acontecimento público que ocorreu no Brasil no período final da Monarquia e inicial da República (entre 1889 e 1894) causado por uma completa abertura da economia brasileira ao capital estrangeiro e pelo aumento da emissão de papel moeda. Como efeito, muitos dos maiores capitalistas foram arruinados, “propiciando a ascensão de uma nova camada de arrivistas, enriquecidos no jogo especulativo e nas negociatas dos primeiros anos do novo regime” (SEVCENKO, 1998, p. 15).

Algo comum no texto machadiano é contextualizar suas obras por meio de fenômenos históricos de grande conhecimento público. Nesse caso, ele utilizou o encilhamento como meio para transformar a vida do irmão das almas e realocá-lo em outro contexto dentro do romance, no qual ele volta rico para o Rio de Janeiro e chega a pedir a bela moça Flora em casamento, devido ao prestígio que ele então havia conquistado, — o pedido, porém, é negado. Como o encilhamento foi responsável pela abertura do capital, é possível depreender que o dinheiro da esmola que Nóbrega ganhou de Natividade foi empregado em ações e foi dessa maneira que o antigo irmão das almas conseguiu enriquecer. “Antes, apenas um ladrão, agora, um representante da moral e dos costumes. Antes pobre, agora rico. Antes mendigo, agora capitalista” (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2018, p. 111). Afinal, a atitude particular de roubar da comunidade e aplicar esse dinheiro, no contexto público do encilhamento, colaborou para mudar a vida privada de Nóbrega.

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Após a visita à cabocla, Natividade contou ao marido o que a adivinha disse sobre os filhos. Santos, membro de um clube espírita, foi à casa do doutor Plácido para falar sobre o caso e lá encontrou o conselheiro Aires. Nesse ponto, a ironia do texto machadiano é latente, pois, apesar do caráter de narrador que ele impõe ao conselheiro, quando este se descreveu, além de ter utilizado a terceira pessoa, não poupou elogios a si próprio:

Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo. [...] No alto da cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eterna. (ASSIS, 2015, p. 1063-1064, grifo nosso)

E acrescentou: “Era cordato. [...] Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia” (ASSIS, 2015, p. 1064). Em outro momento, quando Aires visitou a casa da família Santos, Perpétua perguntou a ele sua opinião sobre a cabocla do Castelo e, embora não tivesse uma opinião formada, Aires percebeu que os outros tinham e “fez um gesto de dois sexos. Como insistissem, não escolheu nenhuma das duas opiniões, achou outra, média, que contentou a ambos os lados” (ASSIS, 2015, p. 1064). O conselheiro Aires não gostava das controvérsias e, para não entrar nelas, distribuía opiniões médias, sempre acabando por convencer a todos:

Aires opinou com pausa, delicadeza, circunlóquios, limpando o monóculo ao lenço de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ela o parecer. Um dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de acordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda. (ASSIS, 2015, p. 1064)

Agindo dessa forma, ou seja, evitando olhar nos olhos das pessoas, opinando com pausa e com delicadeza, — atitudes de quem pensa antes de tomar alguma decisão —, assim como, fazendo circunlóquios, o que evita que sua opinião seja clara e precisa, ele consegue balizar o assunto tratado, não chega ao foco do problema e evita tomar partido de qualquer lado que seja. Assim, pouco a pouco, ele convencia a todos por meio de uma atuação digna dos atores de teatro.

O conselheiro Aires viveu a maior parte de sua vida na Europa exercendo o ofício de diplomata. Sendo assim, pode-se aceitar a hipótese de que ele adquiriu muitas características do convívio com europeus, junto com suas características próprias de brasileiro. Sennett afirma que, na Europa, “a psique é tratada como se tivesse uma vida interior própria” (SENNETT, 2014, p. 16), sendo ela “tão preciosa e tão delicada que fenecerá se for exposta às duras realidades do mundo social” (SENNETT, 2014, p. 16). Para proteger a psique, o homem passou a isolá-la através de gestos e representações próprias dos atores no teatro. Como um ator, o homem

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podia mudar de comportamento conforme o seu objetivo. Eis o motivo para o conselheiro Aires montar uma imagem de conciliador dentro do romance: “Uma pessoa manipula a sua aparência aos olhos dos outros, de maneira a conseguir a sua aprovação, e assim sentir-se bem consigo mesma” (SENNETT, 2014, p. 175).

Ao mesmo tempo em que tinha um gestual próprio da Europa, não deixava de ter legítimas características do “homem cordial” brasileiro: o “sorriso aprovador”, a “fala branda e cautelosa”, a “expressão adequada”, e opinava com “pausa” e com “delicadeza” (ASSIS, 2015). Essa maneira de se dirigir aos outros reduz o indivíduo à sua parcela social, periférica, sendo esta a que mais importa; e mais, representa o triunfo do espírito sobre a vida, do indivíduo sobre o social (HOLANDA, 2014).

Na casa do doutor Plácido, ao ouvir Santos dizer que dois espíritos podem brigar antes de nascer, Aires replicou que “— Antes de nascer, crianças não brigam” (ASSIS, 2015, p. 1066). Porém, ao sentir que, no lugar onde estava e com as pessoas com quem estava lidando, acreditar na briga dos gêmeos seria uma questão de princípio ponderou que “— Esaú e Jacó brigaram no seio materno, isso é verdade. [...] Quanto a outros, dado que briguem também, tudo está em saber a causa do conflito” (ASSIS, 2015, p. 1066). Na sequência, ele ofereceu as hipóteses de que talvez brigassem por quererem ajoelhar-se ao mesmo tempo para adorar o Criador ou se acotovelavam para melhor se acomodarem. Tais hipóteses tiram o teor negativo da briga e adequam sua fala à expectativa dos interlocutores. A cordialidade do conselheiro impediu que ele permanecesse em discórdia com seus interlocutores.

O conselheiro é muito perspicaz em perceber qual o tipo de opinião deve emitir nas mais diversas situações, utilizando de seu conhecimento diplomático e de seu modo conciliador adquirido em tantas viagens. Com isso, ele percebeu que esboçar sua opinião privada seria um tanto arriscado e deveria, portanto, aceitar a do público em meio ao qual estava inserido. Nesse sentido, é interessante notar que, em público, ele se comportava de maneira a agradar a todos, mas na sua esfera privada utilizava-se de um diário íntimo, que chamava de Memorial, para anotar as suas opiniões que não poderia deixar explícitas, uma vez que poderiam causar certo desconforto para a sua vida social. Como exemplo, veja-se este trecho retirado do seu diário: “‘Natividade e um padre Guedes que lá estava, gordo e maduro, eram as únicas pessoas interessantes da noite. O resto insípido, mas insípido por necessidade, não podendo ser outra coisa mais que insípido [...]’” (ASSIS, 2015, p 1065). Naturalmente, Aires nunca diria tal coisa para alguém, devido ao risco de fazer inimigos e de perder a reputação que tanto lutou para construir. No meio social ao qual estava inserido, ele se esforçava para preservar sua imagem pública intacta, todavia, na esfera privada, representada por seu diário, não temia expressar seus verdadeiros sentimentos e suas opiniões.

No capítulo intitulado “Tudo o que restrinjo”, Aires resumiu toda a infância dos gêmeos por acreditar que tais coisas podiam enfadar o leitor. Todavia, ressaltou o temperamento dos irmãos na medida em que eles cresciam e ficavam jovens: Pedro era mais agressivo e Paulo, mais dissimulado, mas ambos sabiam agredir e também dissimular. Quando brigaram pela primeira vez, a mãe, “em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor

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ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce” (ASSIS, 2015, p. 1071). E, como acharam que os benefícios eram resultado das brigas, cada um encontrava vários motivos para brigar com o outro.

Pedro se tornou monarquista, enquanto Paulo adotou a opinião republicana. Um ponto apenas os une, mas também é para aumentar as intrigas: ambos amavam à Flora. A moça amava aos dois irmãos, mas não era capaz de escolher a nenhum, por isso o conselheiro disse que ela era uma “inexplicável”, dando a obscura explicação de que este “é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. [...] E retocam com tanta paciência que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de desespero” (ASSIS, 2015, p. 1089). Antonio Candido, no célebre ensaio “Esquema Machado de Assis” (1995), assinala que Flora é a terceira personagem-chave do romance:

É a ela, como as outras mulheres da obra de Machado de Assis, que cabe encarnar a decisão ética, o compromisso do ser no ato que não volta atrás, porque uma vez praticado define e obriga o ser de quem o praticou. Os irmãos agem e optam sem parar, porque são as alternativas opostas; mas ela, que deve identificar-se com uma ou com outra, se sentiria reduzida à metade se o fizesse, e só a posse das duas a realizaria; isto é impossível, porque seria suprimir a própria lei do ato, que é a opção. Simbolicamente, Flora morre sem escolher. (CANDIDO, 1995, p. 8-9)

A sociedade prima pela escolha de um único marido e Flora tinha duas opções para escolher, sendo que ambas seriam muito bem aceitas por todos no seu convívio. A moça, porém, não consegue fazê-lo, visto que, conforme exposto por Candido, só se sentiria feliz com a posse das duas. Diante da igual impossibilidade ter os dois irmãos e de escolher a um só, Flora morre. A esfera pública da sociedade, obrigando a sua escolha, opõe-se à sua vontade íntima e disso resulta que a moça torna-se a maior vítima da oposição entre as esferas pública e privada no romance.

Após o enterro, os irmãos fizeram um juramento: “— Ela nos separou — disse Pedro —; agora, que desapareceu, que nos una” (ASSIS, 2015, p. 1181) e depois se abraçaram. Pouco depois, Natividade também morre e pede, no seu leito de morte, que os irmãos sejam amigos argumentando que ela “padecerá no outro mundo, se os não vir amigos neste” (ASSIS, 2015, p. 1192). Nas duas ocasiões, porém, a promessa dura pouco e os irmãos voltam a ser rivais.

No último capítulo do romance, os gêmeos estavam eleitos deputados em partidos opostos, mas fizeram um acordo no qual seriam amigos, — os gêmeos se opõem em público, mas são amigos na esfera privada. Porém, quando o presidente da Câmara os elegeu para uma mesma comissão, ambos pediram que fossem dispensados, demonstrando que a amizade privada havia se extinguido e, sendo assim, fez com que eles não trabalhassem juntos na esfera pública. Trata-se, portanto, de um exemplo de como no Brasil daquela época, também a vida particular interferia na pública. Isso demonstra a falta de independência do poder público em relação à esfera pessoal, acarretando em uma sociedade caminhando em direção contrária à organização política. Refletindo em direção parecida, Holanda (2014)

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assinala que existia, no Brasil, “uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras” (HOLANDA, 2014, p. 71).

Um deputado contou ao amigo Aires sobre a mudança radical dos gêmeos, que tornaram-se amigos para, em determinado momento, voltarem a ser inimigos. Por sua vez, ao remontar os tempos da vida deles, o conselheiro ia “recompondo as lutas, os contrastes, a aversão recíproca, apenas disfarçada, apenas interrompida por algum motivo mais forte, mas persistente no sangue, como necessidade virtual” (ASSIS, 2015, p. 1193) e concluiu, dizendo ao deputado, que eles não mudaram nada. Diante do comentário de Aires, o deputado, então, encontrou outra motivação para as brigas: questões de herança. “Aires sabia que não era a herança, mas não quis repetir que eles eram os mesmos, desde o útero. Preferiu aceitar a hipótese, para evitar debate, e saiu apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna” (ASSIS, 2015, p. 1193).

É dessa forma que o romance se encerra, mais uma vez reafirmando a postura conciliadora do conselheiro. Ele resolve aceitar a hipótese de seu interlocutor e evitar o debate, apesar de ter todos os meios que tinha para comprovar sua opinião, como o seu conhecimento dos gêmeos e de sua família desde há muitos anos. No trecho, também é interessante observar a relação existente entre o ato dele apalpar a botoeira “onde viçava a mesma flor eterna” e as características de sua pessoa. Através do conjunto de características essencialmente diplomáticas do conselheiro e da flor presente desde sua aparição no início do romance, é fácil notar que “a mesma flor eterna” é uma analogia à sua “cordialidade eterna”.

Dentro da tessitura da trama de Esaú e Jacó, Machado de Assis insere os acontecimentos relacionados à Proclamação da República. Ele não conta com detalhes as motivações e batalhas que houveram para conclusão de tal acontecimento. Fixa-se nas vidas privadas de suas personagens, demonstrando o quanto as vidas particulares delas são influenciadas pela mudança pública que ocorria no país naquela época. Dessa maneira, nas palavras do autor ficcional conselheiro Aires, “Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outro que desce” (ASSIS, 2015, p. 1103). Essa é a única interpretação que se faz no romance sobre a subida dos liberais ao poder, pois, logo em seguida, o conselheiro afirma que “o abatimento de Batista [pai de Flora] foi enorme” (ASSIS, 2015, p. 1103) e passa a contar sobre suas ações para se manter no poder.

Batista tinha esperança de uma presidência de província antes da subida dos liberais ao poder, como se considerava um conservador achou que não a conseguiria mais. Então, sua mulher, d. Cláudia, de modo dissimulado, afirmou que ele nunca fora conservador e acrescentou:

— Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha. [...] — Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.

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— Dance com que for, a verdade é que todas as suas ideias iam para os liberais; lembre-se que os dissidentes na província acusavam a você de apoiar os liberais... (ASSIS, 2015, p. 1104)

Mais à frente, Batista confessou ao conselheiro que se “pode muito bem ter o temperamento oposto às suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os programas políticos do mundo, são antes liberais e algumas libérrimas” (ASSIS, 2015, p. 1117) e que por isso foi nomeado presidente de uma província no norte. Isso demonstra que para manter seu poder individual, Batista aceitou a hipótese, antes contestada, de que era e sempre foi liberal. A atitude privada de mudar a visão que tem de si mesmo consiste em uma forma de aliviar a sua consciência para aceitar o poder público que lhe é concedido.

Pouco tempo durou a presidência de Batista, que foi nomeado para uma comissão logo depois, mas que também não durou devido à anulação dos decretos do dia 3 de novembro. Batista e a mulher decidiram então que o marido deveria visitar ao marechal Floriano, porém a visita não foi tão boa quanto a mulher queria: “D. Cláudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe pareceu que fosse má, mas podia ser melhor. Com ela, seria muito melhor” (ASSIS, 2015, p. 1148).

Diante dessas idas e vindas de Batista no poder, pode-se desenvolver duas importantes constatações. A primeira é que apesar da queda dos conservadores e subida dos liberais, e da Proclamação da República, Batista continuou exercendo algum poder como presidente de província e, depois, como membro de uma comissão; isso demonstra a dificuldade que o país teve de realmente mudar o regime político, pois mudava a ideologia sem mudar os governantes. A segunda diz respeito a constatação de D. Cláudia de que com ela a visita ao marechal teria sido muito melhor, marca da importância que a pessoalidade tinha nas mais diversas formas de nomeação e conservação do poder público. Desta maneira, “as instâncias mais evidentes do conflito entre interesses privados e projetos públicos se encontram nas diversas práticas clientelistas” (PLANK, 1996 apud ROCHA, 1998, p. 108-109).

Na família dos gêmeos, a proclamação também teve seus efeitos, pois Natividade ficou preocupada, em casa, na espera do marido e dos filhos. Santos estava na casa de Aires, onde ele lhe falou que não deveria se preocupar com a troca de regime: “Nada se mudaria; o regime, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele” (ASSIS, 2015, p. 1131). Diante das palavras do conselheiro, Santos teve a tranquilidade de dizer à mulher, quando chegou, que “Não havia nada; tudo parecia estar como no dia anterior, as ruas sossegadas, as caras mudas. Não correria sangue, o comércio ia continuar” (ASSIS, 2015, p. 1133). Já os filhos chegaram tarde:

Ao jantar, falaram pouco. Paulo referia os sucessos amorosamente. Conversara com alguns correligionários e soube do que se passara à noite e de manhã, a marcha e a reunião dos batalhões no campo, as palavras de Ouro Preto ao marechal Floriano, a resposta deste, a aclamação da República. A família ouvia e perguntava, não discutia, e esta moderação contrastava com a glória de Paulo. O silêncio de Pedro, principalmente, era como um desafio. Não sabia Paulo que a

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própria mãe é que o pedira ao irmão com muitos beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do coração do rapaz. (ASSIS, 2015, p. 1133)

Naturalmente, foi preciso um grande esforço do monarquista Pedro para não dar nenhuma resposta e, dessa maneira, evitar uma briga com o irmão republicano. Por mais que eles não tivessem nenhum cargo político nessa época, os acontecimentos públicos tiveram uma influência muito grande na vida particular de ambos, pois a mãe Natividade precisou pedir para um dos irmãos que não se opusesse ao outro de modo a evitar desentendimentos entre os irmãos. Desse modo, o ato público da Proclamação da República interfere nas relações dentro do âmbito privado da família Santos.

Ainda relacionado a esse evento, o capítulo “O basto e a espadilha” é, talvez, o maior exemplo do quão profundamente o âmbito público podia influenciar o âmbito privado. Nesse capítulo, Aires estava na casa de Santos e conta que “Ninguém sabia se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato” (ASSIS, 2015, p. 1133). Diante disso, sem saber se a vitória do movimento republicano era uma coisa boa para eles, um amigo propôs que jogassem o voltarete, — popular jogo de cartas da época —, e alguns dos outros aceitaram. Santos, no entanto, disse que não jogava, mas os amigos insistiram dizendo que sem ele faltaria um parceiro.

Dentro do romance, até mesmo as recreações de um pai de família são exemplos da persistência da dicotomia público/privado nas relações interpessoais. Defensor do regime monárquico, Santos ficou indeciso se, no dia em que esse regime caiu, deveria entregar-se às suas recreações cotidianas ou deveria abster-se de tal ato como maneira de demonstrar seu descontentamento. Afinal, Santos aceitou o jogo e na opinião do conselheiro, autor ficcional da trama, “era essa mesma a inclinação íntima” (ASSIS, 2015, p. 1134). Como existia uma mútua influência das esferas pública e privada, a atitude de Santos em aceitar o jogo é uma marca de que a cordialidade das relações sociais estava entremeada nas diversas esferas do Brasil oitocentista: “A cordialidade se desenvolve a partir da hipertrofia do espaço privado, que impõe sua lógica, fortemente afetiva, a um espaço público real, mas cujo raio de ação é bastante limitado” (ROCHA, 1998, p. 172).

Através do exposto, é possível depreender que a dicotomia público/privado aqui abordada está presente nas mais diversas esferas da sociedade, seja na própria esfera política, como visto nas incursões de Batista pelo poder; mas também, e principalmente, dentro da esfera familiar, exemplificada pela conduta da família Santos diante da proclamação da República.

4. Considerações finais

A crítica histórico-social confirma-se como grande elemento da obra de Machado de Assis, sendo feita através de artifícios que estão implícitos na maioria das vezes, mas que perpassam boa parte de sua obra. Especificamente em Esaú e

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Jacó, pode-se verificar a presença de alguns destacados eventos políticos, como a subida dos liberais ao poder, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República. Ao invés de insistir no prisma somente histórico de tais eventos, o escritor foi mais longe ao tomá-los a partir da ótica dos influenciados pelas transformações, ficcionalizando em suas personagens possíveis consequências das mudanças correntes. Estas, porém, nem sempre realmente existiam, e em grande parte das vezes correspondiam apenas à uma mudança aparente — e não real. O que sempre existia eram suas interferências no âmbito privado das famílias, subordinadas e influenciadas, de uma forma ou de outra, pelo poder público. O alcance da dicotomia público/privado dentro de um dos derradeiros romances de Machado de Assis foi abordada pela ótica dos proprietários ou dos dependentes, dos governantes ou dos governados, dentro do meio familiar ou não, mas, em todas as vezes, ela impôs sua lógica e colaborou para a força narrativa de Esaú e Jacó.

Referências

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BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. 4. ed. São Paulo: WMF Martins fontes, 2007.

BRANDÃO, Ruth Silviano; OLIVEIRA, José Marcos Resende. Machado de Assis: o feitiço das crenças e a escrita do bruxo. Uberlândia: EDUFU, 2018.

CANDIDO, Antonio. Esquema Machado de Assis. In: ______. Vários Escritos. 3. ed. Sa o Paulo, SP: Duas Cidades, 1998. p. 01-13.

FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4. ed. São Paulo: Globo, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. Tradução de: Denílson Luís Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). 8. ed. São Paulo: Ática, 1997.

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NEEDELL, Jeffrey D. Rio de Janeiro: capital do século XIX brasileiro. In: ______. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Trad. de Celso Nogueira. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p. 19-73.

PASAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade: Visões literárias do urbano. 2. ed. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRS, 2002.

ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a. ______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012b.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução de: Lygia Araujo Watanabe. Rio de Janeiro: Record, 2014.

SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. 6. Ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998.

Para citar este artigo

GODOI, W. V. da C; RODRIGUES, R. de C. L. de A. A dicotomia público/privado presente no romance Esaú

e Jacó, de Machado de Assis. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 9., n. 2., 2020, p.

134-151.

Os Autores

Wellington Vinicius da Cruz Godoi é graduado em Letras Português/Inglês da Universidade

Estadual do Norte do Paraná (UENP). Desenvolveu os projetos de pesquisa: Estudo sobre o Conselheiro

Aires nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, de Machado de Assis (2016-2017); Homem público

versus homem privado: conflitos existenciais na obra de Machado de Assis (2017-2018); e “O basto e

a espadilha”: a dicotomia público/privado presente no romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis

(2018-2019). Bolsista do programa Residência Pedagógica (CAPES), subprojeto de Língua Portuguesa, de 2018

à 2020.

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Rita de Cássia Lamino de Araújo Rodrigues é graduada em LETRAS pela Universidade Estadual

Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP (2006), Mestre em Literatura e Vida Social pela Universidade

Estadual Paulista - "Júlio de Mesquita Filho" (2010) e doutora em Literatura e Vida Social pela

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (2015). Atua como Professora Colaboradora

na área de Literatura Portuguesa, Teoria Literária e Prática de Ensino de Literatura no Centro de Letras,

Comunicação e Artes na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP - campus de Jacarezinho.

Participa do grupo de pesquisa Literatura e Ensino e Leituras Literárias: Teoria Crítica, Análise e Ensino.

Linha “Estudos Do Romance”.

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