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Perspectives and contributions from the black woman organizations and black feminists against racism and sexism in the Brazilian society

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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 1080-1099. Ângela Figueredo

DOI: 10.1590/2179-8966/2018/33942| ISSN: 2179-8966

Perspectivas e contribuições das organizações de mulheres negras e

feministas negras contra o racismo e o sexismo na sociedade

brasileira

Perspectives and contributions from the black woman organizations and black feminists

against racism and sexism in the Brazilian society

Ângela Figueiredo

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Cachoeira, Bahia, Brasil. E-mail: angelaf39@gmail.com

Artigo recebido em 26/04/2018 e aceito em 30/04/2018.

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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 1080-1099. Ângela Figueredo

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Resumo

O texto aborda algumas das importantes contribuições políticas e sociais do movimento de mulheres negras, destacando o seu surgimento como organização autônoma em 1988, com a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN), ocorrido em Valença-RJ, até a significativa presença de organizações femininas negras no 13o Fórum Social Mundial 2018, realizado em Salvador-BA. Particular ênfase é atribuída à Marcha das Mulheres Negras, realizada em 18 de novembro de 2015, em que participaram cerca de 35 mil mulheres. As demandas contidas na “Carta das Mulheres Negras” denunciam a falência do projeto civilizador levado a cabo pelo Estado brasileiro, que exclui significativa parcela da população brasileira, e exigem um novo pacto civilizatório.

Palavras-chave: Movimento de mulheres; Feminismo negro; Racismo; Desigualdades.

Abstract

The text addresses some of the important political and social contributions of the black women's

movement, highlighting its emergence as an autonomous organization in 1988, with the First

National Meeting of Black Women (ENMN), held in Valença-RJ, until the presence of black women's

organizations at the 13th World Social Forum 2018, take place in Salvador, Bahia. Particular emphasis

is attributed to the March of the Black Women, held on November 18, 2015, attended by about 35

thousand women. The demands contained in the "Black Women's March " denounce the bankruptcy

of the civilizing project carried out by the Brazilian State which excludes a significant portion of the

Brazilian population and requires a new civilizing pact.

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Introdução

No dia 14 de março de 2018 fomos surpreendid@s com a notícia do assassinato da vereadora Marielle Franco – do PSOL do Rio de Janeiro – e de seu motorista, Anderson Gomes. O crime ocorreu exatamente após uma reunião entre Marielle e um grupo de mulheres negras, enquanto estávamos participando do 13o Fórum Social Mundial, em Salvador. Lembro-me de que ficamos tod@s abatid@s, literalmente desnortead@s.

No dia anterior, estávamos participando de uma atividade promovida pela Rede de Mulheres Negras, cujo objetivo principal era promover um julgamento, colocando o Estado Brasileiro no banco dos réus, para condena-lo pelos inúmeros crimes cometidos contra a população negra. Neste mesmo dia, outra ação promovida pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB, com o apoio do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, promoveu o Fórum Permanente de Mulheres Negras: Avaliação dos 30 anos do Encontro Nacional de Mulheres Negras.

Na quinta-feira, dia 15, suspendemos todas as atividades para nos solidarizarmos com as famílias e protestarmos contra o assassinato de Marielle Franco. Durante a tarde, saímos em marcha mais uma vez, e com palavras de ordem, denunciávamos o genocídio contra a população negra e os alarmantes números de mulheres assassinadas, vítimas do feminicídio.

Marielle morreu porque foi vítima do racismo? Do Feminicídio? Por que era ativista dos direitos das populações negras, ou porque defendia a garantia dos direitos humanos? Certamente, a execução dela não se enquadra em nenhum desses motivos isoladamente, mas no conjunto ou na intersecção formada por eles. O crime contra Marielle tem como objetivo político enviar uma mensagem com vistas a silenciar o atuante e combativo movimento de mulheres negras em todo o país, isso porque “quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade”1, exatamente porque, estando na base, o movimento das mulheres negras desestrutura/desestabiliza as rígidas e consolidadas relações desiguais de poder do sistema capitalista. O assassinato de Marielle Franco é uma tentativa de matar a luta e a esperança em cada uma de nós, e de reinstaurar as relações rígidas e desiguais de poder na sociedade brasileira.

Na última visita de Angela Davis à Bahia, na ocasião da conferência proferida em 25 de julho de 2017, Angela afirmou que “quando a vida das mulheres negras importar, teremos a certeza de que todas as vidas importam”2. Esta citação revela o modo como as mulheres negras, estando na base da pirâmide social, vivenciam o descaso do poder público com as populações negras e pobres,

1 Discurso de Angela Davis durante a conferência de abertura da Escola de Pensamento Feminista Negro, em 17 de julho de

2017, na cidade de Cachoeira-BA. 2

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que vão desde o acesso à água, saúde, moradia, educação e trabalho, ao tempo em que aponta para a permanência de um sistema estruturado em bases patriarcais, no qual a socialização de gênero ainda atribui às mulheres a responsabilidade pela manutenção da família e o cuidado com a prole. A sobrecarga de responsabilidades associada ao racismo e às representações estereotipadas sobre o corpo feminino negro tem causado inúmeros prejuízos às mulheres negras, que têm buscado estratégias coletivas como um modo de enfrentamento às desigualdades.

As estratégias utilizadas pelos grupos negros mudam ao longo do tempo, por isso alguns autores e autoras têm estabelecido uma distinção entre as diferentes formas de organizações coletivas negras. Domingues (2007) define o movimento negro a partir da sua articulação mais contemporânea, através da

[...] luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, social e cultural. Para o movimento negro, a “raça”,e, por conseguinte, a identidade de racial, é utilizada não só como elemento de mobilização, mas também de mediação das reivindicações políticas. Em outras palavras, para o movimento negro, a “raça” é o fator determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de ação. (DOMINGUES, 2007, p. 102).

E critica o que considera uma divisão demasiadamente ampla, oferecida por Joel Rufino: [...] todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e cultural do negro), fundadas e promovidas por pretos e negros [...]. Entidades religiosas (como terreiros de candomblé, por exemplo), assistenciais (como as confrarias coloniais), recreativas (como “clubes de negros”), artísticas (como os inúmeros grupos de dança, capoeira, teatro, poesia), culturais (como os diversos “centros de pesquisa”) e políticas (como o Movimento Negro Unificado); e ações de mobilização política, de protesto antidiscriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro. (RUFINO, apud DOMINGUES, ibid., p. 102).

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1945-Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 1080-1099. Ângela Figueredo

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1964, é marcado pela criação da União dos Homens de Cor (UHC), em Porto Alegre, e em 1944, o Teatro experimental do Negro (TEN) – de acordo com o depoimento coletado pelo autor, era significativa a presença das mulheres negras no TEN. Um terceiro momento, que vai de 1978-2000, tem destaque a criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Do ponto de vista do contexto político, o MNU foi influenciado tanto pela luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, quanto pelos movimentos de libertação dos países africanos. Muitos dos ativistas negros que contribuíram para a formação do MNU foram influenciados pela crítica marxista ao capitalismo, destacando o modo como o racismo serve a este sistema.

Resumidamente, diríamos que as principais contribuições do MNU foram: a desmistificação da mestiçagem, considerada como uma ideologia alienadora e, consequentemente, a crítica à democracia racial brasileira, como ideologia e como conceito interpretativo sobre o Brasil; A substituição do dia de 13 de Maio pelo dia 20 de Novembro, como o dia Nacional da Consciência Negra; O combate aos estereótipos raciais; A demanda pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares; A assunção de religiões de matrizes africanas; A ressignificação do termo negro para autoclassificação da cor no Brasil – a popularização do termo está intimamente relacionada às questões de afirmação da identidade negra; E a criação de uma área específica de direito e relações raciais. (DOMINGUES, 2007; CARNEIRO, 2003).

Entre os anos 1970 e 1980 havia uma divisão entre as organizações negras. Aquelas que se organizam mais em função da cultura e que veem estas práticas como uma forma de resistência eram identificadas como organizações culturais em oposição as organizações políticas, aquelas que tinham como eixo o combate a discriminação e do racismo existente em vários setores da sociedade. Felizmente a compreensão hoje é muito mais ampla, pois entendemos que cultura, estética e política é parte integrante da luta contra a discriminação e desigualdades de gênero e racial.

Vale destacar a fundação do bloco afro Ilê Ayê, que surgiu em 1974, em Salvador-Ba. A importância do Ilê está principalmente relacionada à proposição de uma maior aproximação histórica, estética e política com os países africanos, notadamente, aqueles de língua portuguesa. Além disso, o Ilê propôs uma verdadeira revolução estética, ao transformar os cabelos crespos, antes alisados, em símbolo de afirmação identitária negra.

Santos (2007) observa que

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Além da atuação dos movimentos negros e do aumento e da divulgação de dados de pesquisas sobre o tema, Silvério (2002) acrescenta dois fatores importantes: o surgimento de vários conselhos estaduais e municipais e o reconhecimento da discriminação racial e do racismo, com a implantação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), por meio de decreto.

Eu acrescento uma quarta fase, iniciada em 2002 até os dias atuais, 30 anos após a constituição de 1988. O ano de 2002 é quando duas universidades públicas estaduais, a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), implementam ações afirmativas, através da reserva de vagas para alunos negros, oriundos de camadas populares, o que possibilitou a ampliação do número de estudantes negros nas universidades e, consequentemente, uma maior e melhor oportunidade para inserção no mercado de trabalho. Além disso, o debate sobre as desigualdades raciais foi ampliado para diferentes setores da sociedade, deixando de estar presente somente no discurso de ativistas, ainda que não tenha sido assumido por nenhum partido político que atue especificamente em prol da população negra. Eu diria que o próprio conceito de ativismo foi ampliando. Assim como constatamos, de forma crescente, o alargamento do debate sobre o feminismo negro e sobre o empoderamento feminino em suas dimensões políticas e estéticas.

Dependo da definição de organizações políticas negras adotada, podemos considerar as irmandades religiosas negras como as primeiras formas de organização política negra, uma vez que muitas estavam baseadas em mecanismos de ajuda mútua, através da compra de alforria e da capacitação profissional de pessoas negras para a realização de um ofício. O mecanismo de solidariedade presente nas irmandades estava voltado para a emancipação d@s irm@s negr@s. A centenária irmandade feminina negra, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira, é um exemplo da continuidade histórica dessas organizações que encontram outras formas de solidariedade e sentido político/coletivo atribuídos a sua atuação em tempos modernos. Como destacado anteriormente, dentre os modelos de organizações negras mais contemporâneas são particularmente destacados a Frente Negra Brasileira (criada em 1931), e em 1944, o Teatro experimental do Negro (TEN).

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A inciativa pela criação de uma organização própria que refletisse os interesses das mulheres negras foi vista com desconfiança, tanto pelo movimento feminista, como pelas organizações negras, já que se configurava como uma espécie de traição aos princípios de ação e solidariedade entre os dois grupos. Como destacado por Angela Davis:

O feminismo negro emergiu como um esforço teórico e prático de demonstrar que raça, gênero e classe são inseparáveis nos contextos sociais em que vivemos. Na época do seu surgimento, com frequência pedia-se às mulheres negras que escolhessem o que era mais importante, o movimento negro ou o movimento de mulheres. A resposta era que a questão estava errada. O mais adequado seria como compreender as intersecções e as interconexões entre os dois movimentos. (DAVIS, 2018, p. 21).

Ribeiro (2008) observa o processo de organização da III Conferência Mundial das Mulheres em Nairobi, em 1985, que estimulou o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo a solicitar de Sueli Carneiro e Thereza Santos um diagnóstico sobre a situação das mulheres, destacando particularmente as condições de vida das mulheres negras.

Ribeiro (ib) constata que a organização do movimento de mulheres negras contemporâneo teve como ponto de partida a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN), ocorrido em 1988, em Valença-RJ, sendo que as questões centrais do evento tratavam dos aspectos relativos à própria organização do movimento de mulheres, assim como o tema da legalização do aborto. A autora destaca alguns importantes eventos que contribuíram com a formação do referido movimento a partir de 1985: os Encontros Nacionais Feministas (ENF) – sendo os últimos ocorridos em Garanhus-PE (1987), Bertioga-SP (1989) e Caldas Novas-GO (1991) – bem como os Encontros Feministas Latino Americanos e do Caribe, a partir do terceiro de um total de seis encontros – Bertioga, em 1985, no Brasil; Taxco, em 1987, no México; San Bernardo, 1990, no Chile; e Costa del Sol, no El Salvador, 1993.

No período entre 1988-1991 ocorreu um aumento significativo de organizações femininas negras em todo o Brasil, e em 1993 foi realizado o I Seminário Nacional das Mulheres Negras em Atibaia-SP e em 1994, o segundo encontro, com o objetivo de refletir sobre os aspectos relacionados às desigualdades de gênero e de raça, o direito à terra, à habitação e as políticas públicas voltadas para a saúde.

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trabalho. O GELEDES – Instituto da Mulher Negra, em 1988 – tendo como fundadoras as integrantes Solimar Carneiro, Edna Roland, Sueli Carneiro, Ana Lucia Xavier Teixeira e Maria Lucia da Silva, que se reuniram na casa de uma das integrantes e fundaram uma organização política de mulheres negras que tem como objetivo lutar contra o racismo e o sexismo na sociedade brasileira3. A organização carioca, CRIOLA fundada em 1992, cuja atuação está voltada para a defesa e promoção dos direitos das mulheres negras4.

Em 2010 foi criado o ODARA: Instituto da Mulher Negra, uma organização negra feminista de combate ao racismo, sexismo, a lesbofobia. O Instituto surgiu para se opor ao racismo e ao sexismo , através do empoderamento das mulheres, tanto no sentido econômico, quanto social e político.

Cristiano Rodrigues (2013) observa que há um reconhecimento em torno de alguns nomes de mulheres negras como participantes fundamentais na formação dos movimentos Negro e Feminista – Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Edna Roland, Jurema Werneck, Nilza Iraci, Matilde Ribeiro, entre outras – que nos anos de 1980-1990 contribuíram intensamente para o debate e a visualização das desigualdades sofridas pelas mulheres negras. A estes nomes eu acrescentaria: Valdeci Nacimento, Lindinalva Barbosa, Lindinalva de Paula e Vilma Reis.

Sueli Carneiro (2003) destaca algumas das conquistas alcançadas pelo movimento negro e feminista negro no Brasil:

(...) A Constituição de 1988, entre outros feitos, destituiu o pátrio poder. Destaca-se, nesse cenário, a criação dos Conselhos da Condição Feminina – órgãos voltados para o desenho de políticas públicas de promoção da igualdade de gênero e combate à discriminação contra as mulheres. A luta contra a violência doméstica e sexual estabeleceu uma mudança de paradigma em relação às questões de público e privado. A violência doméstica tida como algo da dimensão do privado alcança a esfera pública e torna-se objeto de políticas específicas. (ibid., p. 117).

A autora sublinha a incorporação da temática da raça na saúde e dos direitos reprodutivos na agenda da luta antirracista, ao denunciar o extermínio da população negra, por meio de práticas interventivas de controle da natalidade – através da retirada do útero – assumidas pelo governo brasileiro nos anos de 1980. Gostaríamos de destacar ainda a importância da criminalização do racismo e as medidas no combate à violência contra as mulheres e ao feminicídio.

Observando as ações protagonizadas pelas organizações negras, Carneiro considera que: Apesar dos nossos esforços, a questão racial não está na agenda nacional! Ela não tem merecido apoio público de nenhuma força política relevante, só sendo referida

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www.geledes.org.br

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quando se trata de momentos eleitorais. Como, então, um tema ausente da agenda nacional pode se transformar em objeto de políticas públicas?

Por fim, Carneiro indaga: as ações do movimento negro e do movimento feminista negro é uma ação de denuncia ou de transformação social?

Vale ressaltar a conquista de direitos, através da PEC 66/2012, sancionada em 01 de junho de 2013, ainda que a mesma tenha encontrado resistência no cotidiano das relações de trabalho, haja vista o significativo aumento de trabalhadoras domésticas diaristas com relação às trabalhadoras mensalistas5. Como é sabido por tod@s, o trabalho doméstico ainda é a porta de acesso ao mercado de trabalho por parte de mulheres negras com baixa escolaridade, principalmente originárias da região norte e nordeste do país.

A crítica de Carneiro (2003) vai muito mais longe, ao confrontar as conquistas da ação política enquanto movimento social. A autora define como neo-democracia racial a ordem política que,

[...] visa amortizar a crescente tomada de consciência e a capacidade reivindicatória dos afrodescendentes, especialmente o segmento mais jovem, assim impedindo que o conflito racial se explicite com toda a radicalidade necessária para promover a mudança social. O segundo interesse, de ordem econômica, é determinado pela lógica de mercado estabelecida pelo capitalismo globalizado, ávido por novos mercados, o qual antevê, na potencial consolidação de uma classe média negra, a viabilização de um novo mercado consumidor 6. (ibid).

Carneiro questiona “[...] a capacidade de consumo como o limite da ‘cidadania negra’” ... Desse modo, no novo desenho de relações raciais que se delineou às portas de um novo milênio, o status de consumidor foi garantido a alguns afrodescendentes, enquanto, por outro lado,

ampliaram-se os mecanismos de exclusão social da maioria.

A correlação entre consumo e cidadania já foi destacado por outros autores (CANCLINI, 2006). Figueiredo (2012), em uma pesquisa sobre a classe média negra, mostra como a relação entre consumo e cidadania precisa ser problematizada, em se tratando da experiência dos negr@s de classe média, visto que o ato de consumir alguns itens identificados como de “itens de luxo” ou

5 Incluíram-se os seguintes direitos: seguro-desemprego, indenização em caso de demissões sem justa causa,

salário-família, adicional noturno, auxílio-creche e seguro contra acidente de trabalho. O direito à carteira assinada para @s trabalhador@s doméstic@s somente foi possível em 1972, e em 1988 outros direitos e benefícios foram adquiridos, como por exemplo, férias de trinta dias, licença-maternidade, aposentadoria por invalidez e tempo de serviço, férias com mais de um terço do salário e folgas nos dias de feriados. Assim, a conquista do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e, consequentemente, do seguro desemprego, consiste em uma luta ainda travada pela categoria nos dias de hoje. 6 Movimento Negro no Brasil: novos e velhos desafios, por Sueli Carneiro Texto disponível em www.geledes.org.br sem

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associados ao consumo da classe média – objetos, carros, assim como frequentar restaurantes e bares – são frequentemente citados como exemplos nos quais o preconceito racial se manifesta. Dito de outro modo, na maioria das vezes o preconceito e a discriminação racial ocorrem no ato do consumo. O que se conclui é que os negros, mesmo aqueles pertencentes às classes médias, não estão livres do preconceito e da discriminação racial.

1. Pesquisas, mudanças de perspectiva teórica e a pesquisa ativista

No que se refere às produções acadêmicas, as análises sobre a participação das mulheres negras na sociedade brasileira têm variado bastante ao longo dos anos. Fazendo um breve recuo da contribuição da bibliografia sobre o tema, poderíamos dizer que, no passado as mulheres negras e mestiças, ainda que vistas como determinantes no processo de miscigenação, eram invisibilizadas, quando não descritas como fáceis e sexualmente permissíveis, o que acabava muitas vezes por justificar os atos de violência sexual e de estupro cometidos pelos senhores contra as mulheres negras e indígenas escravizadas; aliada a esta perspectiva, havia uma ênfase na divisão do trabalho exercido na casa grande, em oposição aqueles da senzala, ou entre as amas de leite e as escravas das lavoras de cana-de-açúcar, divisão que esteve, de certa forma, relacionada às hierarquias e aos fenótipos raciais. As fotos emblemáticas das amas de leite negras, bem vestidas, muitas vezes usando joias e segurando uma criança branca no colo, contrastavam com a realidade das escravas da lavoura e serviam como uma prova contundente da benevolência da escravidão portuguesa. O texto de Rita Segato (2006), Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça, constitui-se numa contribuição ímpar a este respeito.

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negras.

Como consequência dos estudos sobre religiosidade afro-brasileira, o segundo momento foi caracterizado pela ênfase na importância das lideranças religiosas femininas negras e da importância das mulheres na preservação dos valores culturais negros. No livro A cidade das mulheres, Ruth Landes (2002) chama a atenção para a importância das mulheres no candomblé, devido ao exercício da liderança feminina no culto, em um contexto social patriarcal, onde as autoridades políticas e religiosas eram exercidas por homens. Landes também destaca o comportamento social de algumas mulheres negras no período, que não correspondia aos padrões morais e de subordinação atribuídos às mulheres.

O terceiro momento é caracterizado por pesquisas que questionam as narrativas hegemônicas sobre a formação da sociedade brasileira, bem como sobre a hipersexualização do corpo feminino negro (GIACOMINI, 1988). Como destacada em outro texto (Figueiredo, 2016), as análises Lélia Gonzalez (1983) são significativas por demonstrar que os estereótipos construídos sobre as mulheres negras, consolidam-se em três figuras emblemáticas: a ama de leite, a mulata e a empregada doméstica. Sem sombra de dúvidas, este período é, não só contestatório, como propositivo, e se alia ao então recém-criado movimento de mulheres negras.

Nos últimos anos, constatamos o interesse crescente de pesquisas acadêmicas sobre o movimento de mulheres através da elaboração de teses, dissertações e artigos (BISPO, 2011; CARDOSO, 2012), bem como de textos divulgados na internet através de sites, blogs etc. (LOPES, 2017), que não necessariamente têm um caráter acadêmico, mas que divulgam ideias, reflexões e experiências sobre o movimento de mulheres. Esse crescente interesse na articulação política das mulheres, através de organizações políticas ou não, está relacionado ao protagonismo das mulheres negras nos mais diferentes aspectos da vida social.

Do ponto de vista teórico, o conceito de interseccionalidade, tal como formulado pela feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw (2002), tem sido utilizado com bastante entusiasmo para analisar a relação entre as diferentes categorias de opressão. Crenshaw destaca a “forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (ibid., p. 177).

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nos movimentos negros. Hoje, efetivamente há um número crescente de mulheres, sobretudo jovens que se auto definem como feministas negras. Certamente, essa maior aceitação repercute significativas mudanças na sociedade, ao tempo em que contribui para estas mudanças e, principalmente, demonstra uma nova ressignificação do feminismo.

Aunque como concepto el feminismo nace en la primera ola en este contexto como

una propuesta que sintetiza las luchas de las mujeres en un lugar y en un tiempo determinado, si entendemos el feminismo como toda lucha de mujeres que se oponen al patriarcado, tendríamos que construir su genealogía considerando la historia de muchas mujeres en muchos lugares-tiempos. Este es para mí uno de los principales gestos éticos y políticos de descolonización en el feminismo: retomar

distintas historias, poco o casi nunca contadas. (CURIEL, 2009, p. 1).

Patrícia Hill Collins, em O que é um nome: Mulherismo, feminismo Negro e além disso, texto recentemente publicado em português (2017), destaca a importância das mulheres negras se auto identificarem como feministas negras.

Usar o termo “feminismo negro” desestabiliza o racismo inerente ao apresentar o feminismo como uma ideologia e um movimento político somente para brancos. Inserindo o adjetivo “negro” desafia a brancura presumida do feminismo e interrompe o falso universal deste termo para mulheres brancas e negras. Uma vez que muitas mulheres brancas pensam que as mulheres negras não têm consciência feminista, o termo “feminista negra” destaca as contradições subjacentes à brancura presumida do feminismo e serve para lembrar às mulheres brancas que elas não são nem as únicas nem a norma “feministas”. (COLLINS, 2017).

Para Jurema Werneck, o movimento de mulheres negras abriga uma identidade política fortemente construída por estas mulheres, a partir da reivindicação do passado histórico de luta em comum. A autora é orientada pela compreensão de que “o enfrentamento ao racismo é fundamental e prioritário”, pois se constitui no “principal fator de produção de desigualdades seja entre mulheres e homens, seja entre mulheres” (WERNECK, 2007). Desigualdades acentuadas pela força do sexismo e do heterossexismo.

Suely Carneiro considera que:

[...] o feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades. (CARNEIRO, 2011, p. 2).

A autora sugere que as mulheres negras precisam estar voltadas para duas ações imediatas, ou levar em conta um duplo movimento: de um lado, enegrecer o feminismo e, de outro, feminilizar o movimento negro:

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demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras. (CARNEIRO, 2011, p. 3).

2. A Marcha das mulheres negras

De outra perspectiva, é importante destacar a Marcha das mulheres Negras ocorrida em 18 de novembro de 2015, que reuniu cerca de 35 mil mulheres. Mas antes da marcha em Brasília, ocorreram duas significativas marchas que questionaram a existência da democracia racial no Brasil, enfatizando as desigualdades existentes entre negros e brancos. A primeira delas foi em 1988, cujo objetivo prioritário foi o de se opor às comemorações do centenário da abolição da escravatura no Brasil. A segunda, a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, conhecida como “Marcha Zumbi + 10”, reuniu em Brasília cerca de 30 mil manifestantes, no dia 20

de novembro de 1995, e foi uma das ações mais importantes, na ocasião, quando a coordenação da

Marcha entregou ao então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Programa de

Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, o qual apresentava uma série de reivindicações

visando à inclusão da população negra nas políticas públicas, com destaque para o mercado de

trabalho, a educação, a cultura e a comunicação, a saúde, o combate à violência, a religião e a terra,

enfocando a desigualdade socioeconômica e o baixo orçamento público destinado à população

negra.

As demandas da Marcha das Mulheres Negras estão contidas na “Carta das Mulheres Negras”. Para os propósitos deste texto, faço o resgate de algumas dessas demandas, tais como: direito à vida e à liberdade; promoção da igualdade racial; direito ao trabalho; direito à educação; direito à justiça; direito à moradia, à terra e à cidade; direito à segurança pública e direito à cultura; e, o que nos parece verdadeiramente mais subversivo, do ponto de vista de um projeto político: em coro, nós, mulheres negras, exigimos um novo projeto civilizatório!

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porque reverenciamos a força de nossas ancestrais. Marchamos na tentativa de interromper o extermínio da juventude negra. Marchamos porque nosso corpo é violentado cotidianamente, nossa alma dilacerada e, por mais que trabalhemos, nos instrumentalizemos, ainda assim, teremos reconhecimento e remuneração menores. Marchamos porque a tentativa de genocídio da população negra não parou em 1888. Marchamos porque as feridas custam a fechar. Marchamos porque temos muitas coisas para contar, netos para embalar, filhos para criar, bocas para beijar, profissões para descobrir e corpos para amar. Marchamos pelo direito ao nosso corpo e à escolha de nossa identidade de gênero, assim como, para quem devemos direcionar o nosso desejo. Marchamos porque ter liberdade de culto não é um favor, é um direito. Marchamos porque terreiros de Umbanda e Candomblé têm sido incendiados, crianças têm sido agredidas e a identidade racial, destruída. Marchamos. Marchamos. Marchamos porque não dá mais para levar a pirâmide nas costas, está pesada, está injusta, está desumana. (MARTINS, 2015).7

De acordo com a carta das mulheres negras e os depoimentos das participantes:

Os motivos da Marcha são a luta diária contra o machismo, o feminicídio negro, a erotização das crianças para preservação da infância, a homofobia, a pedofilia e a cultura do estupro. Somos 49 milhões de mulheres negras no Brasil, maior população negra fora da África, entretanto a cada 1 hora e 50 minutos uma mulher negra morre. Houve um aumento de 54% de assassinatos de mulheres negras. A chance de sermos estupradas é três vezes maior do que mulheres brancas. Sobre a violência doméstica, somos as maiores vítimas, sem falar da violência midiática racista que exclui e invisibiliza a mulher negra, e quando retratadas somos a empregada doméstica, mulher de bandido, prostituta, nunca a advogada, a empresária, modelo, médica, entre tantas outras possibilidades (NUNES)8.

A marcha denuncia o modo como o capitalismo explora, exclui e sub-emprega a mão de obra da população negra, notadamente, das mulheres negras. Expõe a compreensão de que o racismo e o sexismo, atuando juntos, perpetuam a violência contra a mulher negra. A violência ritual, que é a violência policial praticada pelo Estado e que incide, permanentemente, no controle dos corpos negros. A negação do Estado em garantir o direito à saúde, trabalho, educação e moradia da população racializada e considerada como um “outro”, inferior e subalternizado, desde o período colonial, contribuindo, sobremaneira, para o aumento da população encarcerada (DAVIS, 2003).

Tudo isso levou à constatação da falência de um projeto civilizador perpetrado pelo Estado brasileiro, levado a cabo a partir de um projeto ideológico e político que supervaloriza a mestiçagem, do ponto de vista do discurso, mas que mantém intacta as hierarquias raciais e de gênero desde o período colonial; de um modelo econômico e político baseado na exploração global e nas relações de poder desiguais, oriundas do capitalismo.

7

MARTINS, Renata. Marchamos porque sabemos que as transformações não virão como presentes. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/marchamos-porque-sabemos-que-as-transformacoes-nao-virao-como-presentes/>. Acesso em: 25 fev. 2016.

8 NUNES, Naila. Disponível em:

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Conforme a perspectiva teórica do feminismo negro, consideramos que a posição ocupada pelas mulheres negras na estrutura desigual das relações de poder no sistema capitalista, ou a intersecção das categorias de gênero, raça e classe, faz com que as mulheres negras ocupem um lugar privilegiado, dado à complexa rede de subordinação que experimentamos nas nossas vidas cotidianas – que embora pareça paradoxal – permite que as mulheres negras protagonizem um importante papel político.

Ainda que o capitalismo, como um sistema econômico mundial, apresente evidentes sinais de crise, inclusive atingindo países localizados na Europa, o Brasil registrou um significativo crescimento econômico na ultima década, inclusive, aparentemente superando algumas crises, através da descoberta do consumo interno. Entretanto, manteve quase inalterado os seus altos índices de desigualdade. Mais uma vez, Valdeci é esclarecedora:

Nos últimos anos, tivemos um grande processo de reformulação, de mudanças, de ampliação de direitos, de acesso a políticas e a bens e serviços. No entanto, quando a gente faz um recorte racial e de gênero, identificamos que as mulheres negras, um quarto da população, estão em condição de vulnerabilidade, de fragilidade, sem garantias.

A urgência na reformulação de um novo pacto civilizador só poderia sair da margem, daqueles que vivem na absoluta negação dos seus direitos pelo Estado. De acordo com Aníbal Quijano (2014):

Bien Vivirpara ser una realización histórica efectiva, no puede ser sino un complejo de prácticas sociales orientadas a la producción y a la reproducción democráticas de una sociedad democrática, un otro modo de existencia social, con su propio y específico horizonte histórico de sentido, radicalmente alternativo a la colonialidad global del poder y a la colonialidad/modernidad/eurocentrada. Este patrón de poder es hoy aún mundialmente hegemónico, pero también en su momento de más profunda y raigal crisis desde su constitución hace poco más de quinientos años. En estas condiciones, Bien Vivir, hoy, solo puede tener sentido como una existencia social alternativa, como una des/colonialidad del Poder. (ibid., p. 46).

Como expressão de resistência política, o conceito de “bem viver”, segundo Quijano, é a formulação mais antiga da resistência indígena à colonialidade do poder.

[...] porque la vasta población implicada percibe, con intensidad creciente, que lo que está en juego ahora no es sólo su pobreza, como su sempiterna experiencia, sino, nada menos que su propia sobrevivencia. Tal descubrimiento entraña, necesariamente, que no se puede defender la vida humana en la tierra sin defender, al mismo tiempo, en el mismo movimiento, las condiciones de la vida misma en esta tierra. (ibid., p.52).

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assegura os direitos mínimos, o que torna a tarefa das mulheres negras demasiada, pois, é preciso assegurar a sobrevivência da população negra em sua dimensão cotidiana e, no limite, como espécie humana.

Este compromisso histórico com a sobrevivência coloca as mulheres negras em uma posição importante, no sentido da construção de um novo horizonte histórico, na defesa das condições de suas próprias vidas e da defesa das demais vidas do planeta, por que não queremos subverter a ordem hierárquica, agora nos colocando no topo da hierarquia, ao invés de ocupar a base. Não, certamente não queremos isso, pois queremos muito mais, queremos transformar, subverter e desintegrar a colonialidade global do poder contra toda forma de dominação e exploração da existência social. Como diz Quijano (2014, p. 47): “Es decir, una des/colonialidad del poder como punto de partida, y la autoproducción y reproducción democráticas de la existencia social, como eje continuo de orientación de las prácticas sociales”.

Para finalizar o texto, gostaria de citar Cindinha da Silva,

Para alcançar o “bem viver” proposto pela Marcha, a superação do racismo e da violência dos quais as mulheres negras são alvo, são condições essenciais. Mas, enquanto isso não acontece integralmente, vão sendo estabelecidas conexões entre a natureza, a política, a cultura, a economia e a espiritualidade, das formas possíveis e de maneira holística. Recupera-se assim, o sentido de utopia para a construção de um mundo no qual todas as pessoas possam viver com saúde, alegria e dignidade. (SILVA, 2015).9

Conclusão

Neste texto abordei, ainda que resumidamente, um breve histórico e contribuição do movimento negro e do movimento de mulheres negras. Foram destacadas como contribuição efetiva a desmistificação da mestiçagem e do discurso da democracia racial brasileira que mantiveram intactas as hierarquias raciais e a exposição dos dados sobre as desigualdades de renda e acesso à educação entre negros e brancos. A positivação do termo negro para autoclassificação da cor traz um componente afirmativo identitário, antes não existente. Simbolicamente relevante foi a crítica realizada ao 13 de Maio e a substituição desse pelo 20 de Novembro, como o dia Nacional de Consciência Negra. A obrigatoriedade dos componentes de História e Cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar e, definitivamente, o processo de implementação das ações afirmativas.

No contexto político atual, principalmente considerando os retrocessos dos programas de

9 SILVA, Cidinha. Para onde caminha a Marcha das Mulheres Negras. Disponível em:

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políticas públicas de combate à pobreza implementadas pela administração petista, a exemplo dos programas Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida – que embora não estejam voltados especificamente para a população negra, beneficiaram um contingente expressivo de pessoas negras. Há efetivamente um receio de que a diminuição ou mesmo finalização desses programas afete diretamente às populações negras. Sentimo-nos ameaçados também em relação à continuidade das políticas de cotas que possibilitam o maior acesso de negr@s e indígen@s às universidades públicas, através de um discurso construído como uma espécie de depreciação da importância e função das universidades públicas. Exatamente agora que adentramos ao espaço majoritariamente frequentado pelas classes médias e altas, corremos risco, devido ao mais recente projeto de sucateamento das universidades públicas, a partir da forte redução do valor das verbas alocadas nas instituições para a realização de ensino, pesquisa e extensão.

Além disso, estudos têm demonstrado que, por uma crença nas diferentes responsabilidades atribuídas a homens e mulheres no interior das famílias, em momentos particularmente de crise econômica e de recessão, as empresas optam por demitir as mulheres, por considerar que os homens são os chefes de família. Esta atitude confronta até mesmo os dados que indicam que, em se tratando de famílias negras, como já dito anteriormente, cerca de 41,1% são chefiadas por mulheres negras.

Uma questão que afeta diretamente à população negra, mas que infelizmente tem sido pouco discutida, a partir de uma perspectiva racial, diz respeito ao programa de privatizações das empresas estatais ou empresas de capital misto. O fato é que o emprego público tem sido determinante para o acesso de profissionais negros a níveis de empregos estáveis e melhores remunerados. Como é sabido por todos, o acesso ao emprego público através de concurso minimiza os efeitos do preconceito racial e do racismo, ainda que tenhamos poucos dados sobre a mobilidade ascendente no interior da categoria de servidor público. À medida que as empresas públicas são privatizadas, fecham-se portas de acesso ao emprego público, tão importante para a conformação da classe média negra (FIGUEIREDO, 2002).

Outro assunto importante diz respeito aos crescentes números da violência contra a mulher, notadamente, o significativo aumento do feminicídio entre mulheres negras, além do destaque merecido à violência policial que tem matado, principalmente, jovens homens negros no Brasil.

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Sobre a autora

Ângela Figueiredo

Professora e pesquisadora do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro/UFBA) e do Programa de Pós-Graduação no Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismos/PPGNEIM. Líder do Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Subalternidade – Coletivo Angela Davis. E-mail: angelaf39@gmail.com

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