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ACORDOS EMPRESARIAIS POR CRUZAMENTOS DE PATENTES E A INADAPTAÇÃO DOS DIREITOS CLÁSSICOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL PARA AS CRIAÇÕES INDUSTRIAIS ABSTRATAS ©

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Academic year: 2019

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PROF. D.SC. MURILLO CRUZ

Resumo:

Este trabalho© busca apresentar uma série de reflexões e implicações importantes para a Administração das Alianças Estratégicas empresariais calcadas em acordos tecnológicos tendo por base direitos de patentes de invenção. Em termos clássicos, no passado, tais "alianças" calcavam-se - obrigatoriamente - em cross licensing (cruzamentos de patentes), e/ou através de acordos de cartéis (legítimos). Hoje, e já desde algumas décadas, a enorme complexidade tecnológica, a cientifização da técnica, somadas ao imenso crescimento das "criações industriais abstratas", têm imposto desafios profundos à continuidade de acordos empresariais tendo por base princípios de confiança mútua e de contratação vantajosa para todas as partes. Este "fenômeno" tem contribuido, também, para uma significativa indeterminação de propriedades (tecnológicas), e uma considerável "desorganização" e falta de planejamento por parte dos grupos empresariais inovadores.

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Os problemas decorrentes de uma possível adaptação do direito de proteção às invenções e às inovações, em consequência da crescente complexidade tecnológica, principalmente dos processos produtivos, foram claramente percebidos já desde o século passado.

Na prática, as características de simultaneidade, justaposição de princípios técnicos, fragmentação elevada, organicidade, imbricação de idéias inventivas simultâneas, crescente complexidade dos processos produtivos, etc., desde o século XIX, criaram uma série de problemas no campo da proteção patentária, cuja solução parcial aportou num dos capítulos mais interessantes da história do sistema de patentes de invenção da modernidade: a quase obrigatoriedade dos cruzamentos de licenças de patentes (ver adiante), e o inevitável e espantoso desenvolvimento dos cartéis e acordos internacionais, acordos estes fundamentados em direitos de patentes. A bibliografia sobre o tema é abundante e bastante esclarecedora.i

O cruzamento de patentes (cross-licensing), em função da progressiva complexidade tecnológica, tornou-se quase que uma obrigatoriedade no funcionamento de diversos setores econômicos, exatamente devido a estas características de justaposições técnicas, atreladas às "normas" de propriedade industrial, e dos direitos decorrentes e obtidos por uma patente de invenção. Homer O. Blair exemplifica, de forma transparente e extremamente didática, estas questões:

"Por exemplo, quando Alexander Graham Bell inventou o telefone, dirigiu-se ao Escritório norte-americano de Patentes (US Patent Office), e recebeu uma patente que dizia, em síntese: "O Senhor A .G. Bell pode impedir qualquer pessoa de fabricar, usar ou vender sua particular invenção, a saber, o telefone como descrito e reivindicado em sua patente, a menos que sob sua permissão."

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outras patentes e a literatura técnica conhecida, e conclui: "Sim, o Senhor D.Ameche fez efetivamente uma invenção. O Sr. aperfeiçoou o telefone; portanto, nós iremos lhe conceder uma patente relativa ao "Dial para telefone". Assim, o Sr. encontra-se apto a impedir qualquer pessoa de fazer, usar ou vender o "dial para telefone" sem sua permissão."

Agora, a questão é: quem pode (em caráter exclusivo) fazer, usar ou vender um "telefone com dial"? A resposta é: ninguém. Ninguém possui o monopólio sobre o "telefone com dial". Graham Bell não pode fazer o dial para telefone porque D. Ameche, o inventor do dial para telefone, tem o direito de excluir Graham Bell e qualquer outra pessoa de fabricar o dial para telefone.

Por outro lado, D. Ameche, o inventor do dial para telefone, não pode fazer um "telefone com dial" porque A. Graham Bell tem o direito de excluir terceiros da fabricação de sua invenção básica, que é o telefone.

Isto gera uma situação empresarial tal cuja solução é o licenciamento mútuo (cross-licensing) entre as duas invenções. D. Ameche deve dar permissão (uma licença) para A. G. Bell fazer o "telefone com dial". E Graham Bell deve dar permissão (uma licença) para D. Ameche usar sua invenção do telefone a fim de poder produzir um telefone com dial completo. Isto significa que os dois inventores devem licenciar-se mutuamente para que cada um possa fazer o telefone com dial, que parece ser (à época) o melhor telefone disponível.

O descrito acima, de maneira relativamente simples, é, entretanto, um dos mais importantes princípios organizadores dos direitos sobre patentes de invenção. O fato de uma pessoa deter uma patente sobre sua invenção não significa que ela possa fazer, usar ou vender o item coberto pela patente. É necessário ainda fazer uma busca de patentes, no território em reivindicação, para ver se alguma outra pessoa tem uma patente que possa cobrir parte de seu produto (ou processo) patenteado. Algum outro inventor (ou, na atualidade, algum outro patentee (titular ou dono da patente), que não obrigatoriamente é o inventor) pode ter uma patente mais básica, como por exemplo a patente do telefone de Graham Bell, ou vários inventores (ou titulares) podem deter patentes de aperfeiçoamentos, tal como a patente do dial para telefone de D. Ameche.

O que torna as observações acima um fato de importância capital é a extrema difículdade, hoje em dia, (e há muito tempo), de encontrarmos um produto, ou processo, com certa sofisticação intrínseca, coberto por somente uma patente."ii

Apenas para um esclarecimento adicional sobre o exemplo citado acima por H. O. Blair, e uma certa correção, é importante assinalarmos que a patente da invenção do "telefone" de A. Graham Bell, foi registrada, como é de conhecimento geral, em 1876. Três anos depois, antes da invenção do dial para telefone, Thomas A. Edison registrou uma patente de um aperfeiçoamento do telefone de Bell: a invenção do bocal separado do telefone. A invenção do "telefone sem operador e sem espera", isto é, do dial para o telefone, se deve a Almon Brown Strowger, que registrou sua patente em 1889: "a central telefônica automática que dispensava o operador humano". A "central" de Strowger permitia ao usuário escolher o número e marcá-lo, carregando uma combinação de três botões. Posteriormente, seus sócios nesta invenção inventaram o disco giratório (o dial propriamente) que produzia impulsos elétricos de acordo com o número chamado. Entretanto, o "telefone com dial" foi comercializado e ficou conhecido como o "telefone de Strowger".

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reflexão de uma possível solução para estas questões é crescente. Sendo crescente e já extremamente vasta, igualmente, a bibliografia sobre este tema.

André Lucas, em seu La Protection des Créations Industrielles Abstraites (1975), apesar de ter o foco de atenção nos debates sobre a proteção (possível) jurídica dos programas de computador, buscou apresentar argumentos bastante interessantes que podem ser generalizáveis para outros setores tecnológicos contemporâneos, argumentos estes que nos ajudam a refletir sobre as razões da possível dissolução do sistema clássico de patentes de invenção nas últimas décadas.

Lucas dirá que a sua expressão "criações industriais abstratas" (créations industrielles abstraites) é, de fato, do ponto de vista conceitual, bastante audaciosa, pois pode parecer paradoxal a qualificação de industrial para uma invenção que é abstrata: "En effet, l'invention industrielle est définie traditionellement par opposition à l'invention abstraite."iii Em quase todas as legislações de propriedade industrial, os "sistemas de caráter abstrato" são excluídos das invenções passíveis de proteção por patentes. Para A. Lucas, entretanto, esta concepção representa uma falha, pois uma criação qualquer (mesmo abstrata) pode ser utilizada na indústria sem, entretanto, atender ao critério e ao rigor do "grau de concretização" das invenções industriais patenteáveis.

A pertinência e a atualidade do problema aqui em proposição é claramente exposta por ele: "Il a toujours existé des créations industrielles abstraites, mais jusqu'a une époque récente, le probléme de leur protection n'avait jamais été soulevé."iv

Diferentemente das concepções puramente teóricas, as criações industriais abstratas podem contribuir com grandes serviços à indústria e às empresas; não são elas simples curiosidades, puras especulações, mas sim "invenções" cujo objetivo é essencialmente utilitário. Se a utilidade das criações industriais abstratas mostra que suas invenções vinculam-se ao mundo industrial e empresarial, não apresentam-se, entretanto, estas "invenções", sob a forma de "objetos tangíveis".

"Ainsi définies, les créations industrielles abstraites doivent être distinguées des inventions industrielles écartées du bénéfice du brevet parce que leur auteur n'en a pas fait une description suffisante."v

Ou o inventor de uma criação industrial abstrata não soube expor uma aplicação prática da sua concepção porque tal aplicação simplesmente não existe (a invenção então, neste caso, não apresenta qualquer interesse para a indústria e para o mundo empresarial); ou bem a invenção possui uma aplicação prática, mas é o inventor que não sabe ou não quer (ou não consegue, de forma plena, objetiva e "única") descrevê-la corretamente; neste caso, então, a invenção em si não poderia ser designada simplesmente de abstrata.

À diferença de um cientista puro ou de um autor de uma invenção industrial patenteável, o inventor de uma criação industrial abstrata vai até o fim do processo inventivo que conduz da idéia ao resultado, passando pela realização, mas este processo não implica qualquer materialização. Resulta - se retomarmos a distinção clássica entre invenções de produtos e invenções de processos - que as criações industriais abstratas pertencem necessariamente à segunda categoria. De fato, a invenção de produto deve se materializar. "Il apparâit donc possible de définir les créations industrielles abstraites comme des procédés qui, destinés, en definitive, à produire des conséquences dans le monde concret, restent tout le même, dans une certaine mesure, du domaine de l'abstraction."vi

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Aqui, produtos são entendidos como na definição clássica: um produto industrial é um corpo (objeto) determinado, tendo uma combinação ou uma estrutura particular, ou apresentando certas qualidades e características que o distingue de outros objetos.

Apesar da expressão direito de propriedade intelectual, deve-se ressaltar que as idéias inventivas (em si) não encontram-se no escopo da proteção jurídica patentária. Muito ao contrário, são excluídas. Este é o princípio que se designa por princípio de exclusão das idéias, uma das regras fundamentais e incontestáveis do direito de propriedade intelectual até os dias atuais, de todos os países.

"Attendu que dans le domaine de la pensée, l'idée demeure éternellement libre et ne peut jamais devenir l'objet d'une protection privative."vii

Uma razão explicativa importante para esta exclusão é que mesmo que o legislador quizesse proteger as idéias (inventivas), uma tal proteção seria quase que impossível de organizar-se no âmbito da técnica jurídica. Primeiro, pela dificuldade de se operar uma distinção entre as idéias passíveis de proteção e as idéias não protegíveis. E, em segundo lugar, se uma distinção clara e incontestável do critério de novidade (absoluta) aplicado para as técnicas industriais correntes já é extremamente difícil, seria então quase que intransponíveis as dificuldades de se operar um julgamento de novidade para as idéias inventivas em si e dos fatos científicos. Como precisarmos um "estado da ciência", para avaliarmos o grau de novidade de uma idéia vis-à-vis este estoque de conhecimentos universais?

"Chaque savant apporte sa contribution au développement scientifique sans qu'il soit toujours possible de déterminer avec précision la part exacte qu'il a prise à ce développement. Malgré la compétence et la bonne volonté des examinateurs, l'appréciation restera trop souvent subjective. Il est plus facile d'apprécier la nouveauté d'un appareil mécanique que celle d'une théorie scientifique."viii

E no campo da propriedade literária (do direito autoral), a originalidade requerida (e não a novidade) é igualmente difícil de ser apreciada, pois aqui há sempre um julgamento de valor.

É interessante notarmos que a proteção especial (por patentes de invenção) dos desenhos e dos modelos representa, neste sentido, uma situação intermediária entre a novidade adotada para as patentes de invenção, e a originalidade adotada pelo direito de propriedade literária, ou autoral.

Como demonstrou M. Desbois, o contraste entre a novidade, noção objetiva (...) e a originalidade, noção subjetiva, tem, a esse respeito, "des arêtes moins vives".

..."la notion d'originalité, telle qu'elle est interprétée traditionnellement, ne peut s'attacher qu'à la forme."ix

A apreciação da novidade, adotada para a concessão das patentes de invenção, implica a existência de uma base de referência a qual não terá qualquer sentido no domínio literário. Não há o "progresso literário", e nem sequer o "estado da literatura", como há, (embora com complexidades e dificuldades crescentes), um "progresso técnico" ou um "estado da técnica", afirma A. Lucas.

Assim, a prova do fato material da contrafação (de idéias) seria extremamente difícil de se obter. E isto para não falarmos mesmo de uma impossibilidade. Como impedir, por exemplo, a "reprodução de uma idéia"?

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De fato, como um autor de uma invenção abstrata poderia organizar minimamente um controle sobre a exploração de sua invenção?

A proteção de uma possível patente de idéia encontraria obstáculos também no campo da razoabilidade. Oerstedt (o cientista) poderia, por exemplo, com uma tal patente hipotética, impedir todo o progresso do setor industrial dependente do eletro-magnetismo.

A recusa da proteção às idéias pelo direito de propriedade intelectual leva a duas consequências: (1) que nenhum monopólio pode nascer diretamente de uma idéia, isto é, que uma criação só pode beneficiar-se de uma proteção privativa se a idéia é concretizada, realizada, materializada; e (2) que a proteção eventualmente conferida não será jamais extendida à idéia-matriz, ao princípio da invenção (da criação).

"Si l'idée n'est pas brevetable et si, au contraire, l'invention industrielle matérialisant cette idée est brevetable, il reste à déterminer à partir de quel stade de matérialization l'idée devient une invention industrielle. (...) "Si la protection conférée par le brevet d'invention ne peut s'étendre au principe de l'invention, il reste à préciser à quels éléments de cette invention la protection est acquise."xi

A necessidade de aplicação industrial, como vimos, é um dos requisitos básicos do sistema de patentes de invenção.

G. Huard afirmava, já no início do século, que a palavra indústria admite várias interpretações e conotaçõesxii: Na sua acepção maior abarca todas as espécies de trabalho, e mesmo os trabalhos intelectuais; frequentemente, entretanto, aplica-se o termo de forma mais restrita, isto é, à atividade humana voltada para a matéria; e podemos encontrar um sentido mais restrito ainda, para designar a fabricação, em oposição a todos os demais trabalhos.

Em geral, os juristas vinculados à área de propriedade industrial, adotam a terceira conotação descrita por G. Huard acima; por exemplo, Roubier e P. Mathely.xiii

Esta compreensão da vinculação da palavra indústria com o processo de fabricação, vem de 1870, quando a Corte de Paris decidiu que o caráter industrial existia apenas nas invenções que se reportassem à criação material de um produto.xiv

Na compreensão de A. Lucas, e concordando com a definição de A. Picard, de 1928, o importante seria a adoção de uma noção mais precisa de resultado industrial, ou de uma vantagem industrial, pois esta concepção englobaria as noções correntes de objeto industrial (tangível), e a de aplicação industrial.

"L'effet industriel est le but matériel ou immatériel à atteindre, le produit industriel étant le but matériel, alors que le résultat industriel est le but immatériel."xv

Neste sentido, um método de gestão, ou de administração, que tenha como resultado importantes vantagens econômicas, não deveria ser excluído do campo da proteção patentária, por não satisfazer o caráter de materialização industrial requerido pelo direito tradicional de patentes. Esta interpretação, entretanto, jamais foi admitida no direito de patentes, e existem boas razões para se suspeitar que jamais será. Para a jurisprudência e para a doutrina, uma invenção deve possuir obrigatoriamente um traço material.

A Inadaptação dos Direitos de Propriedade Intelectual Clássicos para a Proteção das Criações industriais Abstratas. "A Explicação Verdadeira"

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abstratas. Esta inadaptação possui razões tanto de ordem histórica, como também com relação aos limites da "técnica jurídica".

Razões de Ordem Histórica

Além das importantes transformações tecnocientíficas que ocorrem a partir do século passado, o cenário econômico-social típico de meados do XIX é a consolidação da Revolução Industrial, época de grandes invenções que cristalizaram as bases da indústria mecânica moderna. Evidentemente, todos os legisladores de meados do século passado, quando se referiam aos novos meios, pensavam prioritariamente nas invenções do tipo manual e metal-mecânico. Durante muito tempo esta foi a interpretação corrente sobre as patentes de invenção. Explica-se, assim, a afirmação da Corte de Paris, em 1870, segundo a qual o caráter industrial "ne se trouve que dans les applications du travail manuel ou mécanique."xvi

Ainda em 1931, G. Bouthoul, com uma tese sobre as invenções, afirmava e expressava idêntica compreensão: "A notre époque de rapide progrès technique où le sens de la mécanique et l'esprit de perfectionnement sont si répandus, l'invention du type mécanique a primé toutes les autres, à tel point que dans le langage populaire, le terme d'inventeur n'est donné que dans ce cas."xvii

Logo, apesar dos progressos realizados nos setores da química, da eletricidade, da eletrônica e outros correlatos, continuava prevalecendo no direito patentário a correspondência tradicional da proteção especificamente para os objetos mecânicos.

As hesitações dos legisladores atuais ante as criações imateriais e intangíveis, e mesmo complexas e justapostas das novas configurações tecnológicas, não surpreendem. R. Vanderperre expõe de forma clara e quase que definitiva esta questão:

"Alors que nous sommes habitués à être placés en face d'applications où tout est tangible, où tout est nettement délimité et où tout peut s'exprimer dans une langue usuelle, nous nous trouvons soudainement confrontés avec des applications techniques où la complexité et la simultanéité des interconnexions et des interactions est si grande que celles-ci ne peuvent plus être isolées les unes des autres, avec des applications techniques où l'imbrication du matériel et du fonctionnel est si subtile qu'elle impose d'un nouveau langage qui seul permet de dominer parfaitement l'entièreté du problème."xviii

A tendência tradicional de vincular a invenção industrial à invenção mecânica conduziu a jurisprudência e a doutrina à assimilar o caráter industrial ao caráter material.

Uma tal interpretação já era contestável no século XIX, e tornou-se cada vez mais criticável à medida que as invenções de processos tornavam-se cada vez mais complexas, e que a natureza imaterial dos processos de produção era evidenciada. As observações de F. Magnin sobre estas transformações são extremamente pertinentes. Magnin afirmou que, além do meio unitário (moyen unitaire), correspondente ao grande período das invenções mecânicas, apareceu o que poderíamos designar por meio múltiplo (moyen multiple), isto é, o agrupamento de meios justapostos simultaneamente ou sucessivamente com vistas à obtenção de um resultado. Assim, o meio unitário a que F. Magnin se refere, vincula-se à possibilidade clara, unitária e específica, que os objetos mecânicos (materiais) tradicionais possuem e oferecem à análise; contrariamente aos meios múltiplos, que, em nossa nomenclatura, assumem as características das técnicas e das inovações técnicas complexas, justapostas, gestálticas, semi-conservativas.xix

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É de se notar, adicionalmente, que o amplo processo de cruzamentos de patentes, descrito resumidamente no início deste artigo, foi a "primeira" e importante resposta empresarial e econômica ao hiperbólico crescimento da complexidade tecnológica dos principais países industrializados. Muitos estudiosos, hoje e no passado, não estão alertas para o fato incontestável e simples de que os "cartéis" por cruzamentos tecnológicos não só são necessários (tendo em conta as normas do direito patentário de todas as nações), como são "legais" na quase totalidade dos países. E mais, as alianças estratégicas calcadas em direitos patentários (ou similares), seriam as "únicas" que poderiam ter algum grau de validade organizacional saudável e positiva, i.e., que não conduzissem as empresas e Corporações às guerras comerciais-autofágicas por segredos industriais vulneráveis.

As Razões de Técnica Jurídica

Um dos principais obstáculos à adaptação dos direitos tradicionais de propriedade intelectual às criações industriais abstratas refere-se à quase impossibilidade de se constatar a contrafação destas invenções. Temos que admitir, afirma Lucas, que "quanto mais a invenção se distancia do mundo material, mais a evidência e a verificação da contrafação se torna problemática."xxi

Se estivermos considerando principalmente os sistemas de organização, programas de computador, sistemas de gestão, em suma, de técnicas complexas e semi-conservativas (os meios múltiplos, como definiu F. Magnin), a apreciação do exame de anterioridade só poderia ser feito, e ainda assim com alto grau de subjetividade e controvérsia, por especialistas altamente qualificados. Lucas, citando M. Faller, dirá que estas questões poderão se confrontar com "difficultés quasi-insurmontables."xxii

Em outras palavras, as invenções e as criações industriais abstratas possuem uma complexidade tal que é extremamente difícil determinar em que medida elas possuem atividade inventiva ou em que medida baseiam-se em conceitos e idéias já revelados e amplamente conhecidos. No domínio onde as invenções apresentam-se sob um aspecto fortemente intelectual, a apreciação e o exame normalmente possuirá uma forte dose de arbitrariedade.

Por exemplo, pode-se afirmar que apenas c. 5% de todos os programas de computador desenvolvidos constituiriam verdadeiras invenções se fóssemos aplicar os critérios básicos e válidos de novidade e atividade inventiva que são aplicados para as patentes de invenção tradicionais.xxiii E o mesmo poderia ser afirmado, também, para os lay-outs (desenhos) e topografias dos circuitos integrados, e igualmente para inúmeras "novidades" decorrentes das técnicas contemporâneas (a engenharia genética, etc.)

As inovações decorrentes destas técnicas dependem muito mais de um esforço intelectual (e metódico), que acaba gerando uma certa originalidade, do que propriamente da genialidade aguda de um inventor ou descobridor para gerar uma novidade absoluta.xxiv

A decisão do juíz Robert Keeton, do Tribunal de Boston-USA, em 1993, de obrigar a retirada do mercado de um famoso programa de computador alegando contrafação, com base no "look and feel" (o "jeitão" do software), do mesmo relativamente ao do reclamante, representa paradigmaticamente, o ponto de irracionalidade alcançado pelo domínio jurídico sobre a matéria da proteção das técnicas abstratas e complexas da contemporaneidade.

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Com relação ao caso Lotus versus Borland, o que parece mais inusitado e absurdo é o fato de que o juíz tenha considerado como contrafação apenas uma sub-rotina (uma função) chamada keyreader, que é o que permite o Quatro-Pró ler e converter macros 1-2-3. Ora, a conversão de arquivos (a função do keyreader) não somente é uma tarefa comum em softwares, como muitas vezes, indispensável. A própria planilha 1-2-3 permite a conversão de vários tipos de arquivos ("entre eles o famoso dBase, que, por uma grande ironia, pertencia à Borland.") para seu próprio formato.

A confirmação da sentença do Tribunal de Boston acima descrita levaria a uma consequência no mínimo curiosa: a empresa Computer Associates poderia, então, com base no mesmo parecer do juíz R. Keeton, acionar a Lotus Development, pois a Computer Associates detém os "direitos" da Visicalc já há muito tempo; e se o Quatro-Pró é imitação do Lotus 1-2-3, então o 1-2-3 é cópia flagrante da Visicalc. E, em última instância, todas as planilhas serão "cópias" do programa básico de Dan Briklin.

E mais, a justiça terá que dar ganho de causa à Apple, que aciona a Microsoft, segundo a tese de que o Windows é imitação da interface do MAC. Logo depois, a Xerox poderia acionar, então, a própria Apple, considerando que foi em seu centro de pesquisas em Palo Alto, o PARC, que a interface gráfica foi "inventada".

Dan Bricklin, autor do Visicalc, programa em que a Lotus se inspirou para fazer o 1-2-3, afirma: "O problema é que, nesses processos, os advogados tentam encaixar o software, que na verdade não conhecem, num sistema de palavras e procedimentos totalmente inadequados à tecnologia."xxv

Notas

i. Em 1923, o primeiro e um dos mais importantes trabalhos analisando a relação entre os sistemas de patentes e a formação dos cartéis foi publicado, na Alemanha, por Hermann Isay, Die Patentgemeinschaft im dienst des Kartellgedankens. Outros livros e artigos são igualmente importantes, e merecem destaque, a saber: George L.Priest, Cartels and Patent License Arrangements, Jole, EUA, 1977; Gustav Schmoller, Das verhaltnis der Kartelle zum Staat, 1905; George Stocking e M.Watkins, Cartels in Action, NY, 1946; Hugh Cox, Cartels and the Peace, Chicago, 1943; OECD - Relatório - Export-cartels/Report of the Committee of Experts on Restrictive Business Practices, Paris, 1974. Os interessados poderão encontrar informações adicionais no documento "Contratos-cartel, Contratos de know-how: a Negociação de Mercados através de Direitos Expirados©, de minha autoria, broch., 1985; e igualmente de minha tese de doutorado: "A Norma do Novo. Fundamentos do Sistema de Patentes na Modernidade"©, Ed. Indep., 1996;

ii. H.O.Blair, Understanding Patents, Trademarks and other Proprietary Assets and their role

in Technology Transfer and Licensing, 1978, p.1.

iii. André Lucas, La Protection des Créations Industrielles Abstraites, 1975, p.3. iv. Ibid., p.34

v. Ibid., p. 5 vi. Ibid., p.6.

vii. Trib. civ. Seine, 19/12/1928, apud A.Lucas, op.cit., p.33. A razão teórica mais importante

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viii. André Lucas, op.cit., p.39. Sobre as dificuldades de aplicação do critério de novidade, ver

bibliografia cit. nota 20 p.39. Ver também, A.Lucas p.40 nota 24.

ix. A.Lucas, op.cit., p.42.

x. Grenoble 14/08/1833. Ver A.Lucas, op.cit., p.43, nota 32 xi. A.Lucas, op.cit., p.55.

xii. Ver, a este respeito, bibliografia citada A.Lucas, p.298 xiii. Ver A.Lucas, op.cit., p.56 item 96, e p.57 item 97. xiv. Ibid., p.56, nota 10.

xv. A.Picard, Précis de Brevetabilité, Paris, 1928, p. 16, e H.Tourseiller, Des Inventions

Brevetables: thèse, Paris, 1902, p.87; apud A.Lucas, p.61.

xvi. Paris, 5/02/1870, Ann. prop.ind., 1870, p.122 apud A.Lucas, op.cit., p.176.

xvii. G.Bouthoul L'Invention, Thèse Bordeaux, 1931 p.3, apud A.Lucas, op.cit., p.176.

xviii. R.Vanderperre, La propriété industrielle face à l'informatique, in Rev. dr. intellec. L'ing.

cons. 1967, p.211 - Comp. E.Luzzatto, Una Norma di Legge francese da non imitare, in Rivista di diritto industriale, 1968, I, p.297, apud A.Lucas, op.cit., p.176.

xix. Para um detalhamento, ver F.Magnin, Know How et Propriété Industrielle, p.90, apud

A.Lucas, op.cit., p.177.

xx. R.Vanderperre, op.cit. p.211. xxi. Andre Lucas, op.cit., p.178. xxii. Ibid., p.178, nota n.20. xxiii. Ibid., p.180.

xxiv. Utilizamos aqui o termo novidade absoluta numa concepção comum, e não no critério

que é adotado pelo direito patentário.

xxv. Ver R.Rangel e C.Rónai, A Era das Trevas na Informática, in Caderno de Informática,

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