• Nenhum resultado encontrado

Ética, Cultura e Educação: Quais Identidades Estão em Construção?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "Ética, Cultura e Educação: Quais Identidades Estão em Construção?"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

José Licínio Backes2 Ruth Pavan3 Benício Backes4 RESUMO: O processo de construção deste artigo se deu por meio do encontro de três pes-quisadores que tiveram como tema de suas pesquisas de mestrado e doutorado a política, a exclusão social e a cultura. Esses temas estão perpassados pela questão ética, o que originou a discussão relatada neste artigo. Observamos, pelas pesquisas efetuadas, que o que se confi gura nas expressões de alunos e professores como ética articula-se fortemente com o individualismo e a meritocracia, apostando no esforço e vontade individual para a solução dos problemas, sejam esses individuais, educacionais ou sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Práticas pedagógicas. Ética.

ETHICS, CULTURE AND EDUCATION: WHICH IDENTITIES ARE UNDER CONSTRUCTION? ABSTRACT: This article was constructed through an encounter of three researchers whose masters’ and doctoral dissertations had dealt with the topics of politics, social exclusion and culture. These topics are pervaded by ethical issues, which gave rise to the discussion described in this article. Our investigations showed that what students and teachers view as ethics is strongly linked with individualism and meritocracy, with a

1 Versão revisada do trabalho apresentado oralmente no IX Seminário Internacional de Educação, FEEVALE,

2006.

2 Dr. em Educação. Prof. do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado - UCDB. End.: Rua das Paineiras,

1000, apto. 32, Bairro Gomes. Campo Grande – MS. CEP: 79022-110. E-mail: backes@ucdb.br

3 Dra. em Educação. Profa. do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado – UCDB. End.: Rua das

Paineiras, 1000, apto. 32, Bairro Gomes. Campo Grande – MS. CEP: 79022-110. E-mail: ruth@ucdb.br.

4 Ms. em Educação. Prof. da FEEVALE. End.: Av. Maurício Cardoso, 510. Bairro Hamburgo Velho. Novo Hamburgo

(2)

reliance on individual effort and will for the solution of problems, be they of individual, educational or social nature.

KEY WORDS: Culture. Teaching. Ethics.

O

te x t o é f r u t o d o e n c o n t r o e n t r e o s t r ê s a u t o r e s , q u e d i s c u t i r a m o s r e s u l t a d o s d e s u a s t e s e s e d i s s e r t a ç õ e s . A l é m d e u m e n c o n t r o presencial, realizaram-se vários encontros virtuais. Embora nenhum dos autores seja em suas pesquisas de mestrado ou doutorado, tenha se dedicado especifi camente a pesquisar a ética, ela acabou fazendo parte da discussão, se entendermos que a ética se articula com a cultura e aos processos de exclusão das sociedades contemporâneas. Lembramos com Silva (2000) que não há nenhum critério transcendental, a partir do qual se pode estabelecer uma hierarquia de modos de se comportar. Cada qual tem um sentido no interior de sua cultura e muitas vezes torna-se abjeto aos olhos de outra cultura. Salientamos que: “A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2003, p. 44). A cultura é um processo de atribuição de sentido às coisas e aos sujeitos. É pela cultura que determinadas condutas são consideradas éticas e outras anti-éticas. Segundo Hall: “Os seres humanos são seres interpretativos, insti-tuidores de sentido” (p. 16). As interpretações e os sentidos são produzidos culturalmente. A cultura, está pois diretamente ligada a “constituição da subjetividade, da própria identidade e da pessoa como um ator social” (HALL, 1997, p. 24). A cultura está ligada à construção de um sujeito ético.

Antes de apresentar a discussão mais diretamente vinculada as nossas pesquisas e aprofun-darmos as relações entre ética e cultura, pensamos que seja pertinente trazermos algumas re-fl exões sobre o que historicamente tem pautado a discussão sobre a ética e sua articulação com a educação. Esta relação tem se dado tradicionalmente no sentido de orientar o agir humano para a prática do bem. Este sentido está presente, por exemplo, no pensamento educacional grego e, mais tarde, no pensamento educacional cristão como, também, no projeto educacio-nal moderno que pensa a educação como uma ética aplicada com aspiração à universalidade. Nestas perspectivas (a grega, a cristã e a moderna), a ética se estabelece como a necessidade de orientar o agir humano nas mais diferentes relações: consigo, com os outros, com o mundo, as coisas e no caso da ética cristã, também com Deus. Assim, a questão da ética impunha-se como a necessidade de refl exão sobre as escolhas/ações humanas e sobre os seus fundamen-tos, procurando justifi cativas racionais que as normatizassem, ou no caso da ética cristã, de argumentos vinculados à fé.

(3)

Frente à pluralidade de relações possíveis entre os seres humanos e entre esses e o mundo e as coisas, mostrava-se imperiosa a necessidade de orientar o agir sempre em direção à prática

do bem5.

Dentro dessa forma de compreensão, destacamos Aristóteles como uma espécie de síntese entre ética e educação: uma possibilidade de perfeição que é obtida no fi nal do processo edu-cativo mediante a aquisição da virtude, do hábito e da disposição permanente em agir orientado pela razão (HERMANN, 2001). Segundo Aristóteles: “Não será pequena a diferença, então, se formarmos os hábitos de uma maneira ou de outra desde nossa infância; ao contrário, ela será muito grande, ou melhor, ela será decisiva”. (ARISTÓTELES, 1999, p. 53). A idéia de um agir orientado a um bem universal que se sobreponha às possíveis diferenças e singularidades, fruto das diferentes formas e ações que se constroem em sociedade também caracteriza esta ética. O pensamento educacional cristão não se distancia muito dessa concepção ética. A dife-rença entre as duas concepções situa-se na forma de se chegar ao fi m último a que tende o processo educativo. Segundo os gregos, chega-se ao fi m último – “a plena e perfeita realiza-ção humana” – mediante a razão. Já de acordo com o pensamento cristão, fundamento da ética medieval, só se pode conquistar a perfeição, mediante a fé seguindo os ensinamentos de Jesus Cristo.

O projeto educacional moderno, fortemente infl uenciado por Kant, continua marcado pela idéia de que há pontos de chegada, ideais que é preciso e desejável atingir. O que muda é a fundamentação do agir que deixa de lado o fundamento religioso ao propor um “fundamen-to secularizado, em que a razão pode e deve conduzir o homem para o melhor dos mundos” (HERMANN, 2001, p. 37) e, com ela, os meios, as estratégias e ações que permitam chegar ao fi m desejado. Assim, de acordo com Kant, “não se devem educar as crianças segundo o pre-sente estado de espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da sua inteira destinação” (1996, p. 22-23). Neste dizer de Kant, evidencia-se uma relação entre ética e educação marcada por um dever ser em direção a um futuro que se atualiza ao se alcançar o fi m último: “o bem geral e a perfeição a que está destinada a humanidade e para a qual ela tem as disposições” (p. 23). Nesses termos, a ética se estabelece como uma necessidade de orientação do agir em sociedade, fundamentada na relação entre razão e ação correta e, na sua relação com

5 Os estudos multiculturais vêm demonstrando que esta prática do bem, embora se pretendesse universal, era defi nida

(4)

a educação, possibilitando um progressivo aperfeiçoamento moral da humanidade6, livre e

emancipada.

Uma das críticas mais radicais em relação a essa compreensão de ética como orientação do agir humano, fundamentado em princípios universais, segundo Hermann (2001), é feita por Nietzsche colocando “sob suspeição as expectativas de construção do sujeito soberano e toda a tradição do humanismo, revolvendo as convenções que o produzem, mostrando o avesso de uma fi losofi a que já não dá conta da vida, porque sucumbe à pura abstração” (p. 75). Desta forma, “cancela ou, pelo menos, suspende o sentido da educação voltada para o bem e o aper-feiçoamento moral”. (p. 75)

Mesmo que muitos dos processos educativos na atualidade, ainda sejam entendidos na perspectiva iluminista, ou seja, como processos de socialização, humanização e emancipação, voltados à construção de sujeitos críticos e autônomos, tais entendimentos estão sendo des-contruídos, sobretudo pelas perspectivas multiculturalistas. Estas perspectivas questionam as aspirações de uma ética universal, reconhecendo a importância de relacionar a ética com a cultura, admitindo uma pluralidade ética como legítima. Elas buscam o reconhecimento e a afi rmação do ethos das diferentes formações identitárias, pois “a partir de determinado ethos, o mundo faz-se habitável, porque ali a cultura inscreve costumes, normas, interditos e valores, tornando possível a vida humana” (HERMANN, 2001, p. 16). Isto implica compreender a ética como disputa de valores e, como tal, traz a exigência de entender as diferentes perspectivas de cada um como possibilidades e de aceitar o outro na sua diferença sem a intenção de submetê-lo. (HERMANN, 2001)

Assim, ao invés de ser uma “orientação do agir humano”, elaborada abstrata e racionalmente (ou fundamentada na fé), a ética passa a ser vista como “mediação do agir humano”, produzi-da culturalmente. As éticas são vistas como o resultado produzi-das diferentes formações identitárias e culturais. As “escolhas” éticas não são fruto de escolhas individuais, elas se dão sempre no interior da cultura. É o que Hall (1997) denomina de governo da cultura: “Em meio a toda con-versa de ‘desregulamentação’, tem ocorrido um processo de sofi sticação e intensifi cação dos meios de regulação e vigilância” (p. 23). Desta forma torna-se impossível escrever sobre ética e educação, sem enfatizarmos a cultura como constitutiva da vida social (portanto, também da ética), como enfatizamos no início deste texto.

6 Os mesmos estudos multiculturalistas vêm demonstrando que o conceito de humanidade da modernidade só incluía

plenamente os europeus (masculinos, cristãos, “cultos”). Os seres humanos das demais culturas eram vistos como inferiores ou não civilizadas.

(5)

Assim, quando queremos refl etir sobre a ética da sociedade contemporânea e suas relações com a educação, convém perguntar sobre qual é a característica principal da cultura. Apesar dos esforços empreendidos para entender a legitimidade da pluralidade ética vinculando-a com as respectivas culturas, não se pode deixar de reconhecer, que num mundo globalizado, existem também forças que tendem a padronização e universalização7. Neste sentido compartilhamos

das idéias de Hall (1997; 2000; 2003), Bauman (1998a; 1998b; 1999a; 1999b; 2001; 2003) e outros, de que no contexto da sociedade e da cultura pós-colonial (para Bauman, sociedade líquida) está se construindo uma espécie de “igualdade de mérito”. Esta igualdade de mérito é utilizada para perpetuar injustiças, desigualdades, exclusões sociais, como se estas, fossem culpa dos próprios indivíduos que se encontram em condições desfavoráveis. Neste sentido Hall (2003, p. 88) é enfático ao afi rmar que: “A escolha individual [...] não pode fornecer os elos de reconhecimento, reciprocidade e conexão que dão signifi cado a nossas vidas enquanto seres sociais”. Os sentidos são produzidos socialmente, através das relações de poder e neste sentido mesmo que o indivíduo acredite que esteja fazendo suas escolhas de modo individual, ele está fazendo escolhas sociais. Trata-se sempre de uma escolha sobredeterminada. O indivíduo não é o centro das escolhas. As escolhas são defi nidas socialmente, pelas relações de poder.

Destacamos ainda que, mesmo que não seja o indivíduo o centro da escolha, entendemos com Hall (2003) que é importante que sejam articuladas estratégias para que o indivíduo não seja asfi xiado pela cultura, buscando ampliar seus direitos “ao dissenso, ao abandono ou, se necessário, à oposição a suas comunidades de origem”. (p. 88)

Mesmo que a rigor o indivíduo não seja o centro da escolha ele se vê como fosse, pois a cultura o fabrica com essa subjetividade. Com isso, no contexto atual se produz uma ética individualista, legitimada pela cultura meritocrática, levando a uma crescente insensibilidade para com os excluídos. Esta ética, embora produzida num contexto cultural e social mais amplo, circula no ambiente escolar, produzindo efeitos nos sujeitos que acabam criando identidades que, entre outras coisas, tornam-se insensíveis aos processos de exclusão tão característicos das sociedades neoliberais. Para Bauman (2001), atualmente, todos têm a mesma tarefa: construir sua identidade. Porém, a construção se dá em condições totalmente desiguais. Poucos são os que têm efetivamente as

7 Não signifi ca que o resultado será um mundo homogêneo, pois os grupos humanos diante da tentativa de

(6)

condições, sobretudo materiais8 de construí-la. Desta forma, “divide as situações humanas e

induz à competição mais ríspida, em vez de unifi car uma condição humana inclinada a gerar co-operação e solidariedade” (p. 106). Isto é, produz uma insensibilidade para com os excluídos. A hipótese, antes levantada de que esta ética individualista, bem como a cultura meritocrá-tica circula no espaço escolar, produzindo identidades insensíveis à exclusão, sustenta-se pelas inúmeras manifestações recolhidas nas pesquisas de campo, seja com alunos ou professores, realizadas pelos autores, entre as quais destacamos a fala da aluna Aparecida (2º ano) que no debate9 realizado disse: “Depende muito da pessoa, do interesse de cada um. Tu tens que olhar

dentro de ti e buscar o que queres. Se tu quiseres, se tu lutares, tu vais conseguir”. Ou ainda Tereza (1º ano) na redação10: “O essencial é sabermos que a ferramenta somos nós”. Da mesma

forma, Zuleica (1o ano) na redação escreve: “É essencial o esforço individual, mas uma pessoa

culta já deve saber disso”. Registramos, ainda, que os alunos que escolheram como tema de redação “O vestibular e a questão de quotas” em nenhum momento questionaram a seleção; pelo contrário, entendem que seja necessária para que os melhores sejam escolhidos: “Estes por sua vez devem passar pelo mesmo processo de seleção” (Loiva, 3º ano). Tatiano, que deu o título para sua redação “O que vale mais: esforço ou raça?”, escreveu: “O vestibular é a forma mais justa de seleção de candidatos”. Assim, as “vitórias” como obter aprovação numa Univer-sidade Federal são atribuídas ao mérito e ao esforço individual empreendido: “Eu sei que, se eu me esforçar, se eu me dedicar, se eu lutar bastante, eu vou conseguir, sabe, ninguém vai fazer isso por mim, eu [em voz mais alta] tenho que me esforçar para chegar onde eu quero” (Jane, 2º ano, na entrevista). A fala de Felício, também no debate realizado na mesma turma aponta o mesmo: “tem o seguinte: cada um faz a sua formação. Se tu queres ser o melhor, tu podes ser o melhor, depende da tua cabeça. Acho que isso conta muito na hora que tu vais

8 Bauman (2001) utiliza a categoria de turistas e vagabundos. Os turistas (minoria) possuem capital, podem consumir e

viajam pelo mundo, sendo bem vindos em qualquer lugar de consumo, podendo fazer as “escolhas” para construírem suas identidades. Mas os vagabundos (a maioria), embora também viajem, não são bem vindos em nenhum lugar e não têm condições de construírem suas identidades como a cultura e a sociedade contemporâneas requerem.

9 Uma das formas utilizadas para compreender as posturas dos estudantes de ensino médio foi organizando um debate

em cada uma das turmas pesquisadas. Trata-se de três turmas de ensino médio de uma escola particular que atende a Grande Porto Alegre.

10 Outra forma utilizada na mesma pesquisa foi solicitar via professores de Língua Portuguesa que os alunos

fi zessem uma redação escolhendo um dos temas: A cultura no contexto atual; As perspectivas da sociedade de hoje; O vestibular e a questão de quotas; Minha vida, meus amigos, meus valores culturais.

(7)

te formar, depende de ti desenvolver as aptidões”. Nesse caso, cabe registrar que os alunos que antes haviam falado em “Nós”, disseram, balançando afi rmativamente a cabeça: “Claro, depende de cada um ser o melhor”. Da mesma forma, outras vozes manifestavam-se, murmuran-do: “Claro”, “Isso é verdade”, “Sim, se você quer, consegue chegar”. Tais atitudes demonstram que mesmo quando os estudantes mencionam uma coletividade (“Nós que somos os bons”; “Nós que temos cultura”; “Nós que nos esforçamos”)11, o “nós” não têm o sentido de um coletivo que

tem interesses comuns e luta em conjunto para alcançá-los, mas apenas o sentido de que devem lutar da mesma forma, isto é, devem lutar contando apenas com as suas forças individuais. O que se deseja na sociedade regida pela ética individualista e pela cultura meritocrática é que tanto os problemas como as soluções sejam vistas como restritos ao indivíduo: “Supõe-se que os problemas sejam sofridos e enfrentados solitariamente e são especialmente inadequados à agregação numa comunidade de interesses à procura de soluções coletivas para problemas individuais”. (BAUMAN, 2003, p. 79)

De modo semelhante a estas manifestações dos alunos, as manifestações dos professores12,

ao serem entrevistados, questionando-os entre outras coisas, sobre os problemas da sociedade atual, suas possíveis soluções, os processos de exclusão também seguem uma ética individualis-ta e uma cultura meritocrática: “Mas eu não saberia te explicar por que eles chegaram a esse ponto. Se foi falta de oportunidades [...] ou não [...] só sei que eles, eles se auto se excluem,

eles mesmos, entendeu? Quando eles chegam aqui eles sentem, eles sentem vergonha de chegar

perto da gente” (Professora Mara, grifo nosso). De modo mais enfático a professora Roberta afi rma: “A exclusão... eu vou dizer pra você, a pior exclusão que pode existir. A sua própria,

você se excluir, não há exclusão da sociedade, mas a pessoa se exclui”. (Grifos nossos).

Questio-nada sobre a sociedade de hoje, a mesma professora destaca: “Todos podem ter as perspectivas desde que busquem, porque é, é uma busca individual, não é uma busca coletiva” (Professora Roberta, grifo nosso). Já a professora Rosa, referindo-se aos seus alunos da Educação de Jovens e adultos afi rma: “Eles estão na sala de aula porque eles esperam, eles têm um objetivo, sabe, eles estão na sala de aula porque tão vendo que eles têm que ser [...] eles têm que procurar

melhorar para serem incluídos” (Professora Rosa). Dentro deste contexto o exemplo de alguém

que conseguiu superar as difi culdades, como já destacamos vistas como pertencentes a

11 Expressões que eram recorrentes nos debates e entrevistas.

(8)

esfera individual, é apresentado como um argumento irrefutável de que “é uma busca in-dividual”:

Como também tive o prazer de ver alunos meus, passaram pelas minhas mãos, principalmente na época da alfabetização, que foi bem no início do, eu comecei a trabalhar, que estão numa faculdade hoje, eu tenho um aluno que, de pais pobres, que ia lá no lixão da CEASA para comer, que hoje é o 1º aluno da academia de [...]. (ROBERTA, Grifo nosso)

Como se pode observar, as professoras tendem a responsabilizar o indivíduo pelo estado de exclusão, assim como a saída deste estado de exclusão também passa pelo indivíduo, enfatizando que não se trata de uma saída coletiva, mas que é preciso procurar em si mesmo as soluções das difi culdades. Neste sentido, destacamos que as manifestações das professoras vêm ao en-contro do que Bauman (2003) vem escrevendo sobre a sociedade de hoje, denominada por ele, conforme já afi rmamos, de sociedade líquida. Segundo ele, a ética individualista e a cultura meritocrática atingem a todos. Mesmo os indivíduos excluídos, desprovidos de condições para lutar, entram num processo de culpabilização: “Compartilhar o estigma e a humilhação pública não faz irmãos os sofredores; antes alimenta o escárnio, o desprezo e o ódio.” (p. 110). Ainda segundo o mesmo autor, os pobres podem até gostar de outros pobres, porém, “algo que pro-vavelmente não acontecerá é que desenvolvam respeito mútuo. [...] ‘Parecer mais com eles’ signifi ca ser mais indigno do que já sou.” (p. 110)

Outro elemento discutido foi o fato de as professoras mencionadas, não utilizarem em ne-nhum momento a palavra injustiça, tampouco expressões que se aproximassem de uma possível indignação diante dos acontecimentos que provocam a exclusão social no país13. Embora as

pro-fessoras demonstrassem conhecer os problemas de seus alunos e alunas, em nenhum momento, a palavra “injustiça” foi usada.

Como afi rma Bauman (2003), a cultura da sociedade atual construiu uma ética na qual não existe injustiça. Segundo ele, a justiça consiste exatamente em cada um ter o que conseguiu única e exclusivamente com as suas “próprias” forças: “Se qualquer coisa além do mérito imputado fosse reconhecida como título legítimo, aquele princípio perderia sua maravilhosa capacidade de conferir dignidade ao privilégio”. (p. 57). Ou seja, injusta para a sociedade atual é a

(9)

proteção social contra o infortúnio individual, ainda que de fato seja produzido pela lógica da sociedade capitalista.

A não-menção da injustiça reinante na sociedade brasileira por parte das professoras tam-bém pode ser compreendida recorrendo a Boron (2000). O autor faz uma importante distinção entre democracia e mercado, destacando o quanto estamos longe da democracia como pro-cesso de participação de todos e o quanto estamos imersos na lógica do mercado. Para Boron, a democracia que não está limitada à estrutura capitalista é “abarcativa e participativa, ten-dencialmente orientada para a criação de uma ordem política fundada na vontade coletiva” (p. 23). Já o mercado segue uma lógica totalmente diferente: “Não existe nele uma dinâmica inclusionista, nem um afã de potenciar a participação de todos. Pelo contrário, a competição, a segmentação e a seletividade são os traços que o defi nem.” (p. 23). Segundo o autor, se a democracia pretende a participação de todos, “conferindo aos membros da sociedade o status de cidadão” (p. 23), o mercado, ao contrário, “opera sobre a base da competição e da ‘sobre-vivência dos mais aptos’” (p. 24).

A diferença entre as pretensões do mercado e as da democracia de certo modo explica a ausência da palavra “injustiça”, pois “se a justiça é o valor orientador de uma democracia, o mercado é – tanto por sua estrutura como pela lógica de seu funcionamento – completamente indiferente diante dela” (BORON, 2000, p. 25). Segundo o mesmo autor, a justiça para a socie-dade atual é uma “distorção econômica” que interfere no lucro. Ou ainda como afi rma Santos: “Uma das grandes diferenças do ponto de vista ético é que a pobreza de agora surge, impõe-se e explica-se como algo natural e inevitável”. (SANTOS, 2004, p. 73)

Tais explicações estão articulados, como sempre enfatizamos com a cultura e a ética, vistas como construções históricas. Nas palavras de Bauman, “a maioria dos hábitos aprendidos para lidar com os afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido” (BAUMAN, 2001, p. 149). Vivemos um momento de “declínio da ética puritana de um lado, e o crescimento de uma ética consumista hedonista, de outro” (HALL, 1997, p. 22). Todo este contexto faz com que os professores entre-vistados, bem como os alunos citados nesta pesquisa, vejam-se liberados “da responsabilidade ética frente ao social [liberando] o Estado da responsabilidade institucional de encarregar-se da realização dos direitos sociais” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 136). Em última instância, como vimos pelas manifestações dos professores e alunos, pode-se dizer que parece que está se legitimando uma ética em que “a pobreza é do pobre; a violência, do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a defi ciência, do defi ciente; e a exclusão, do excluído”. (p. 124)

(10)

Pensamos que não podemos terminar o texto sem voltar à ética multicultural. Afi nal, como vimos, ética e educação sempre estão articuladas. Segundo Hall (1997, p. 42)

os mundos sociais entrariam inevitavelmente em colapso se as práticas sociais fossem inteiramente aleatórias e ‘sem signifi cado’, senão fossem regulamentadas por conceitos, valores e normas comuns a todos – regras e convenções acerca de ‘como fazer as coisas’, de ‘como as coisas são feitas nesta cultura’.

A questão que se coloca então, sobretudo para a educação, é como construir estas normas éticas. Pensamos junto com Oliven, Canen e Franco (2000), que não há razões para buscar princípios éticos universais a priori, como historicamente tem ocorrido, seja através da ética grega, cristã ou de pensadores modernos que buscavam princípios metafísicos dados, inquestio-náveis, portanto absolutos. Precisamos pensar princípios éticos contextualizados, capazes “de não repetir etnocentrismos ou cair no vale-tudo da barbárie e da violência”. (p. 125). Ou seja, precisamos construir uma ética multicultural que reconheça a pluralidade ética como legítima expressão dos diferentes grupos culturais. Uma ética contextualizada, enraizada na cultura local que questione os etnocentrismos, machismos, sexismos, racismos ou qualquer outra forma de discriminação, bem como seja sensível aos processos de exclusão. O Holocausto narrado por Bauman (1998a) talvez seja a história mais visível que explique porque não devemos pretender uma ética abstrata e universal, supondo um mundo perfeito, limpo, previsível, organizado e homogêneo, pois como o Holocausto, isso leva a eliminação ou dominação do outro. Como nos lembra, Silva (1996, p. 197) no processo de transformação não precisamos ter “como referência qualquer utopia distante, qualquer destino histórico abstrato e longínquo, mas as relações de poder e subjugação inscritas na vida cotidiana.”

Ao fi nalizar o artigo, queremos ainda registrar que não tivemos a intenção de fazer um julga-mento de valor das posturas dos alunos e professores. Acreditamos com Hall (2003, p. 330) que numa pesquisa não se trata de seguir “construções teóricas esquemáticas de como [as pessoas]

deveriam se comportar politicamente, num nível ideal e abstrato”, mas “do estudo concreto

(11)

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. In: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de fi losofi a: dos pré-socráticos a Witt-genstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

BACKES, Benício. Professores e professoras: profi ssionais políticos da educação. 1999. Disser-tação (Mestrado) – UNISINOS, São Leopoldo, RS, 1999.

BACKES, José Licínio. A negociação das identidades/diferenças culturais no espaço escolar. 2005. Tese (Doutorado) - UNISINOS, São Leopoldo, RS, 2005.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jor-ge Zahar, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999a.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999b. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b. BORON, Atílio A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo II: que Estado para que democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 07-67.

DUSCHATZKY, Silvia; SKLIAR, Carlos. O nome dos outros: narrando a alteridade na cultura e na educação. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de Babel: políticas e poéti-cas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 119-138.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e dife-rença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 103-133.

HERMANN, Nadja. Pluralidade e ética em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Piracicapa: Unimep, 1996.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

OLIVEN, Renato José, CANEN, Ana; FRANCO, Monique. Ética, multiculturalismo e educação: uma articulação possível? Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 13, p. 113-126, jan/ fev/mar/abr. 2000.

(12)

PAVAN, Ruth. A refl exão dos professores e professoras da educação de jovens e adultos sobre a exclusão social. 2005. Tese (Doutorado) - UNISINOS, São Leopoldo, RS, 2005.

SADER, Emir. Perspectivas (Os porquês da desordem mundial. Mestres explicam a globaliza-ção). Rio de Janeiro: Record, 2005.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2004.

SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 73-102.

SILVA, Tomaz Tadeu. Identidades terminais: as transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

Referências

Documentos relacionados

Deixamos no ar, em terceiro lugar, uma pergunta à qual não damos res- posta: pode ter sentido ajudar a morrer, por um ato de eutanásia, uma pessoa próxima, que assim o

Todos os veículos participantes devem transportar o triângulo vermelho que, em caso de paragem do veículo durante uma Prova Especial, deverá ser colocado por um membro da equipa,

Eles deverão ser repassados para a Instituição de Origem, gestora da proposta e esta deverá aplicá-lo na Instituição de Destino, como parte da execução da

A Câmara Municipal deliberou por unanimidade autorizar a cedência do auditório Rio Lima a METHAMORPHYS - Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Humano, no dia 31

Antes de adquirir uma memória flash USB para usar com este instrumento, visite a seguinte página da Web: http://download.yamaha.com/ OBSERVAÇÃO Outros dispositivos USB, como mouse

2M ZAMMI - UNIDADE - Código: 02.012.0098 Quantidade: 1500 Marcas Preferidas: INFORMAÇÕES DA ÚLTIMA COMPRA.

Vivi a maior parte da minha vida à procura dessa perfeição, a tentar encaixar-me em parâmetros que não eram os meus, e isso só me trouxe sofrimento, depressão, medo e angústia.

O Barroco no Brasil foi um estilo literário que durou do século XVII ao começo do século XVIII, marcado pelo uso de antíteses e paradoxos que expressavam a visão do mudo barroco