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A responsabilidade do estado por imposição de sacrifício

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outubro de 2013

Patrícia Marlene Pinto Alves

A Responsabilidade do Estado por

Imposição de Sacrifício

Universidade do Minho

Escola de Direito

P

atrícia Marlene Pint

o Alv es A R esponsabilidade do Es tado por Imposição de Sacrifício UMinho|20 13

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Trabalho realizado sob a orientação da

Professora Doutora Isabel Celeste Monteiro

Fonseca

outubro de 2013

Patrícia Marlene Pinto Alves

Universidade do Minho

Escola de Direito

Dissertação de Mestrado

Mestrado em Direito Administrativo

A Responsabilidade do Estado por

Imposição de Sacrifício

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AGRADECIMENTOS

A presente Dissertação é dedicada a todas as pessoas que contribuíram para a minha formação, em especial à minha orientadora de Mestrado, a Sra. Professora Doutora Isabel Celeste Monteiro Fonseca que foi uma pessoa essencial para o apoio na elaboração da presente tese, demonstrando-se sempre disponível e incansável para me orientar, e à minha família mais próxima, nomeadamente à minha mãe, ao meu pai e ao meu irmão. A todas estas pessoas fico sincera e humildemente grata. Aproveito desde já também para agradecer a todo o corpo docente da Escola de Direito da Universidade do Minho, pólo de Gualtar, Braga, pelos conhecimentos que me transmitiram quer ao longo da Licenciatura em Direito, quer ao longo da parte letiva da Pós-graduação em Direito Administrativo. Aproveito para agradecer à Professora Fernanda Paula Oliveira, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pela ajuda que ela me deu em relação à bibliografia em sede de Direito do Urbanismo, mais propriamente no que respeita ao regime das expropriações. Aproveito a oportunidade também para agradecer o contributo da Professora de Direito Carla Amado Gomes que através da rede social facebook me ajudou com indicações bibliográficas.

Após muito esforço quer inteletual, quer financeiro e após muita dedicação, espero que a presente Dissertação seja um meio inovador no desenvolvimento e conhecimento mais aprofundado do Direito Administrativo e da responsabilidade do Estado por imposição de sacrifício. Aguardo também que venha a ser uma ajuda para o futuro estudo das pessoas que se venham a revelar ter interesse pelo Direito Público, nomeadamente pela área do Direito Administrativo. Como tema interessante que é, espero não desiludir quem venha a estudar e a ler a presente tese de mestrado em Direito Administrativo. Esta dissertação de mestrado tem uma grande relevância na minha vida, dado que o ano de 2013 revelou-se um ano complicado para mim, cheio de desgostos emocionais. Quero agradecer o apoio da Andreia Carvalho e da Clara Moreira. Esta tese foi o meu refúgio, uma das poucas alegrias que tive durante o ano de 2013, além da passagem à fase de formação complementar de estágio da Ordem dos Advogados Portuguesa. Aprendi que a vida é feita de altos e baixos e que o estudo da área de que se gosta ajuda muito a ultrapassar os obstáculos e a evoluirmos positivamente na aquisição de novos conhecimentos. Por muito que se estude, passa-se a vida toda a aprender.

«A juventude mostra o Homem tal como a manhã mostra o dia». JOHN MILTON

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A Responsabilidade do Estado por Imposição de Sacrifício

RESUMO

O artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo regime

de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas dispõe sobre Indemnização pelo sacrifício, sendo de realçar o perímetro de aplicação da indemnização pelo sacrifício. Esta abrange os denominados danos especiais e anormais que decorrem do exercício da função administrativa, designadamente os provenientes de atos administrativos lícitos e ações praticadas em estado de necessidade administrativa, a que se referiam os números 1 e 2 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

A lei supra mencionada foi alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Junho do RRCEE, e tal aparecimento, tinha de entre as suas finalidades, a de traduzir os modelos de efetivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado na sua tripla veste de legislador, administrador e juiz, por violação do Direito Comunitário.

Trata-se de um tema inovador, quer a nível nacional, quer a nível do Direito Comunitário, dado que, na atualidade é um tema muito pouco explorado a nível de escrita.

Iremos, ainda, mencionar a importância do Código das Expropriações no que respeita às figuras da expropriação e da requisição por utilidade pública.

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The Civil Extracontractual Responsability of the State to the Imposition of the Sacrifice

ABSTRACT

The article 16. º of the law 67/2007, of 31 December, approved the new position of the civil extracontractual responsibility of the state and public entities. The Indemnisation of the sacrifice contains the specials and anormals wrongs that derived of the exercise to the administrative fonction, of the licites acts and the actions that were exercised on necessity state.

That law was suffering a change by the law 31/2008, of 17th June RRCEE. The Community Law is important for the theme of this master thesis, because implanted the importance of the legislator, administrator and judge in this matter.

So, the Expropriations Code explains the regime of the expropriations and requisition for public utility. It is a very important theme to be study for the people that have interest of the Portuguese public law, in special, for the Portuguese and European administrative law.

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v ÍNDICE AGRADECIMENTOS………ii RESUMO………iii ABSTRACT………....iv ÍNDICE………v ABREVIATURAS………...………1 INTRODUÇÃO………....2

PARTE I - ENQUADRAMENTO SOBRE O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CAPÍTULO I. Da perspetiva histórica da responsabilidade civil ao Decreto – Lei n.º 48 051 e a reforma de 2002 1. A perspetiva histórica de Direito Comparado e a evolução histórica da responsabilidade civil administrativa………4

1.1.Da Constituição para a Lei………...9

2. A responsabilidade civil administrativa, sua noção e aspetos gerais……….16

3. O regime de responsabilidade objetiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da função administrativa………16

3.1. A razão do tema……….16

3.2. Base legislativa ou base diretamente constitucional para a responsabilidade por fato de regulamento? A responsabilidade por facto de regulamento entre a responsabilidade por ato legislativo e a responsabilidade por ato administrativo………..……..18

4. O âmbito de incidência objetiva do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051………..………..…22

4.1. A gestão pública como critério material da extensão do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967………..22

5. A interpretação do n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967 à luz de elementos de ordem literal e teleológica………..24

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6. O contexto intertextual do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro, em

1967………...31

7. O contexto intertextual do antigo Decreto-Lei n.º 48 051……..………...32

8. A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa………36

PARTE II – QUADRO LEGAL VIGENTE CAPÍTULO II. Da lei vigente do regime da responsabilidade civil 1.A lei 67/2007, de 31 de Dezembro………..41

1.1. Unificação da competência contenciosa dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Administração: unidade de jurisdição vs dualidade de regime substantivo………..41

1.2. Âmbito da aplicação………..42

1.3. Função jurisdicional………..47

1.4. Função (político-) legislativa………...47

1.5. Obrigação de indemnizar………...50

1.5.1.Função administrativa………..50

1.5.2. Função jurisdicional………...52

1.5.3. Função político-legislativa………...54

1.5.4. Culpa do lesado por não utilização da via processual adequada……...54

1.5.5. Obrigatoriedade do exercício do direito de regresso………..…....56

1.5.6. Responsabilidade por facto ilícito – âmbito normativo da ilicitude: ilegalidade substantiva vs ilegalidade formal………..….…...58

1.5.7. Critério de aferição da culpa: presunção de culpa leve para a prática de atos jurídicos ilícitos e incumprimento de deveres de vigilância…………..………..59

1.5.8. Responsabilidade pelo risco………..………...63

1.5.9. A indemnização pelo sacrifício………..………..…..64

1.6 A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário..……66

2.Classificações da responsabilidade civil administrativa………...……86

3. Responsabilidade civil por ato de gestão pública: responsabilidade extracontratual delitual………...88

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vii

4. A responsabilidade civil extracontratual pelo risco………108

5.A responsabilidade extracontratual por facto lícito……….…...112

PARTE III - A RESPONSABILIDADE POR IMPOSIÇÃO DE SACRIFÍCIO CAPÍTULO III. A responsabilidade do Estado por imposição de sacrifício: base legal, abrangência e o Código das Expropriações no Direito do Urbanismo 1. A responsabilidade por imposição de sacrifício………116

2. A abrangência da responsabilidade por imposição de sacrifício e as indemnizações compensatórias pelo sacrifício de atuações administrativas lícitas ou em estado de necessidade………..125

3. As causas de exclusão da ilicitude e a compensação pelo sacrifício …………...139

4. A indemnização pelo sacrifício pode também constituir uma das formas de responsabilidade civil da função administrativa………....145

5. O regime das expropriações em sede de Direito do Urbanismo…………147

6. A relevância jurisprudencial do Tribunal Constitucional……….159

CONCLUSÕES………...162

BIBLIOGRAFIA………..169

JURISPRUDÊNCIA………179

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1 ABREVIATURAS

Ac./ Acs. – Acórdão (s); Art./ art. – Artigo/ artigo;

CA - Código Administrativo Português; CC - Código Civil;

CCP - Código dos Contratos Públicos; CE – Código das Expropriações;

Cedipre - Centro de Estudos de Direito Público e Regulação; Cfr. - Conforme;

CJA - Cadernos de Justiça Administrativa; CRP - Constituição da República Portuguesa; Coord. - Coordenação;

DL - Decreto-Lei;

EDFAAP - Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Pública; EMFAR - Estatuto dos Militares das Forças Armadas;

LBPOTU – Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território; LOSTA - nova Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo; LRCAP - Lei de responsabilidade civil da Administração Pública; LPTA - Lei de Processo nos Tribunais Administrativos;

P. ou página./ pp. ou páginas. – Página/ Páginas;

RJIGT – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial; RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação;

RLJ - Revista de Legislação e de Jurisprudência;

RRCEC ou RRCEE - Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas;

ROA - Revista da Ordem dos Advogados; Polic. – Policopiadas;

Segs./ segs. – Seguintes;

STA - Supremo Tribunal Administrativo; TAF – Tribunal Administrativo e Fiscal; TC - Tribunal Constitucional;

TCAN – Tribunal Central Administrativo Norte; TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia.

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INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil administrativa é o conjunto de circunstâncias da qual

emerge, para a administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes, a obrigação de indemnização dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade administrativa.

O artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas dispõe sobre Indemnização pelo sacrifício (que é o tema fulcral a ser retratato na presente dissertação).

Ora, debruçando-nos sobre o perímetro de aplicação da indemnização pelo sacrifício, esta abrange, desde logo, os danos especiais e anormais decorrentes do exercício da função administrativa, designadamente os derivados de atos administrativos lícitos e ações praticadas em estado de necessidade administrativa, a que se referiam os n.ºs 1 e 2 do art. 9.º do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967. Porém, a localização sistemática da indemnização pelo sacrifício no Capítulo V do RRCEE, separada da responsabilidade associada às funções administrativa, jurisdicional e legislativa, a não imputação da indemnização pelo sacrifício a nenhuma específica função estadual, assim como o estabelecimento pelo art. 16.º do RRCEE como requisito da indemnização pelo sacrifício de razões de interesse público, sem qualquer outra especificação em relação à natureza da atividade desenvolvida, conduzem à conclusão de que aquela não engloba somente os danos especiais e anormais que decorrem da função administrativa, incluindo, também, os danos especiais e anormais que resultam do exercício das funções legislativa e política.

Destarte, o aparecimento da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei 31/2008, de 17 de Junho (RRCEE), de há muito esperado, tinha, de entre os seus objetivos, o de traduzir os modelos de efetivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado na sua tripla veste de legislador, administrador e juiz, por violação do Direito Comunitário. Nas palavras de Carla AMADO GOMES: «A jurisprudência comunitária vem expressamente afirmando a responsabilidade do Estado desde 1991/1993, datas dos Acórdãos Francovich e Brasserie du Pêcheur, respectivamente, e cumpria acolher devidamente essa lição no ordenamento jurídico português». Como alerta Carla AMADO GOMES: «O arcaísmo do DL n.º 48 051 fazia-se também aí fazia-sentir, e a sua inadequação à doutrina do Tribunal da Justiça das

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Comunidades Europeia (TJCE) foi mesmo passível de censura formal em sede de acção por incumprimento».

De referir que na indemnização pelo sacrifício, enquanto modalidade de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, vão incluídos também danos especiais e anormais de conteúdo patrimonial provenientes de atos lícitos integrados na função administrativa, rejeitando-se, deste modo, a tese que reduz o âmbito de aplicação do art. 16.º do RRCEE «à responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais (designadamente a vida, a integridade física, a saúde e a qualidade de vida, bem como os direitos de personalidade referidos no art. 26.º, n.º 1, da CRP) e por danos causados em estado de necessidade» e defende «a subordinação a um regime comum das pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de todo e qualquer direito patrimonial privado, situado à margem da lógica do art. 16.º do RRCEE», encontrando no art. 62.º, n.º 2, da CRP, concernente à indemnização por expropriação e por requisição por utilidade pública, e no Código das Expropriações a disciplina da indemnização de todos e quaisquer danos especiais e anormais de caráter patrimonial decorrentes de atos lícitos da função administrativa.

De salientar que a nível das expropriações, o desdobramento que a noção de expropriação tem sofrido nas últimas décadas coloca especiais problemas ao intérprete que busca o Tatbestand da norma ínsita do RRCEE. A nossa conclusão vai no sentido de que o legislador nacional deve reservar a indemnização pelo sacrifício para os casos típicos (expropriação e requisição) e estendê-lo só a intervenções que, pela magnitude de amputação de faculdades associadas à propriedade e ao uso standard que dela é feito, devam merecer tratamento semelhante, destacando estas hipóteses do RRCEE e submetendo-as ao Código das Expropriações. O artigo 16.º do RRCEE funciona como um regime geral de compensação pelo sacrifício, que deverá ser utilizado em face de ingerências lícitas – administrativas, no plano que nos ocupa – especiais e anormais na esfera jurídica de particulares, sendo desnecessária a remissão para o seu dispositivo. Tal artigo encontra-se filiado num princípio de justa repartição dos encargos públicos, que emana dos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP. Porém, consoante a posição jurídica privada concretamente sacrificada pela ingerência administrativa, poderão estar também em causa os artigos 26.º, n.º 1 ou 62.º, n.º 1 da CRP, isto é, perante danos de natureza não patrimonial ou patrimonial, de forma respetiva.

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Capítulo I

Da perspetiva histórica da responsabilidade civil ao Decreto – Lei n.º 48 051 e a reforma de 2002

1. A perspetiva histórica de Direito comparado e a evolução histórica da responsabilidade civil administrativa

No Estado absoluto, o poder público era considerado irresponsável pelos prejuízos que provocasse aos particulares («the king can do no wrong»); a reparação de tais prejuízos apenas ocorreria por uma graça do monarca. Para tal compreensão contribuíram diversos fatores: a herança da noção romana de potestas, a fundamentação divina do poder, as conceções bodiniana («la souverainité n`est limitée, ni en puissance,

ni en charge») e hobbesiana ( «princeps legibus solutus») da soberania, bem como a

imunidade de jurisdição da coroa ( no direito britânico: teoria da non suability) (1). É ainda de referir que no período do Estado de polícia, aceitava-se, todavia, a responsabilidade do Estado no âmbito das relações de caráter patrimonial que mantivesse com os particulares, justificada com a teoria do Fisco.

As preocupações essenciais com a subtração da administração aos esquemas igualitários do direito privado e com a afirmação da sua supremacia perante os particulares, assim como a circunstância de a administração ter passado a ser vista como atividade puramente executiva da legislação, por sua vez considerada como resultado infalível da expressão da vontade geral, levaram a que, tal como aconteceu com outros aspetos do absolutismo, o princípio da irresponsabilidade do Estado tivesse passado para o direito administrativo do liberalismo oitocentista. Naquela época fez escola a ideia segundo a qual «é próprio da soberania impor-se a todos sem compensações» (E. Laferrière) (2).

Numa linha de continuidade com a fase final do Estado absoluto, era aceite a responsabilidade do Estado no âmbito das relações de caráter patrimonial e não soberano estabelecidas com os cidadãos. No restante, pelos danos causados a particulares responderiam, quando muito, os funcionários administrativos, a título estritamente pessoal; mas mesmo a responsabilidade pessoal dos funcionários era

(1) Neste sentido ver Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa,

Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., (reimpressão da 1.ª edição: Julho de 2010), Lisboa, Dom Quixote, 2008, página 12.

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fortemente limitada nas ordens jurídicas europeias continentais, que durante muito tempo exigiram uma autorização superior para que ela pudesse ter lugar (sistema da garantia administrativa, vigente na Alemanha até 1879, em França até 1873 e em Espanha até 1869).

A afirmação de uma responsabilidade civil do Estado e das demais pessoas coletivas administrativas por atos de autoridade foi uma conquista do século XX e, em particular, do Estado social de direito. Na Alemanha, a responsabilidade civil administrativa foi consagrada pelo artigo 131.º da Constituição de Weimar e, posteriormente, pelo artigo 34.º do GG; somente em 1981 foi aprovada uma lei federal geral da responsabilidade civil administrativa que, todavia, viria a ser declarada inconstitucional pelo BVerfG, mantendo-se até hoje um vazio da legislação federal nesta matéria. Em Espanha, o artigo 41.º da Constituição republicana de 1931 afirmou a responsabilidade civil da administração, embora só a título subsidiário em relação à dos seus titulares de órgãos, funcionários e agentes; à consagração, a partir de 1935, de um princípio geral de responsabilidade civil da administração municipal, sucedeu-se o estabelecimento, em geral, da responsabilidade civil da administração na Lei da Expropriação Forçada de 1954, que passaria para a Lei do Regime Jurídico da Administração do Estado (1957) e para a Lei do Regime Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum (1992).

Nos Estados Unidos da América, foi preciso esperar até ao Federal Torts Claims Act (1946) para que fosse consagrada a responsabilidade civil do Estado.

Em Inglaterra, a responsabilidade civil da Coroa foi consagrada pelo Crown

Proceedings Act de 1947 que, na tradição anglo-saxónica, manda aplicar-lhe o regime

da responsabilidade civil de direito comum (a responsabilidade civil da Coroa por atos de polícia só foi, no entanto, instituída em 1964). Em França, a responsabilidade civil administrativa tinha, por via da jurisprudência do Conselho de Estado, começado a autonomizar-se da responsabilidade civil geral com o arrêt Blanco (1873), que afirmou a competência jurisdicional dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil administrativa, e com o arrêt Pelletier (1873), que iniciou uma tendência para a desvalorização da responsabilidade pessoal dos funcionários (3); o primeiro de uma série de resultados significativos daquela evolução deu-se com o arrêt

Anguet (1911), no qual se admitiu pela primeira vez a responsabilidade simultânea da

administração e dos seus titulares de órgãos, funcionários e agentes em caso de factos

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ilícitos e culposos (fautes) funcionais. O sistema francês de responsabilidade civil é, ainda hoje, fundamentalmente de origem jurisprudencial

Em Portugal, o Código Civil de 1867, em consonância com o espírito do seu tempo, estabeleceu a irresponsabilidade do Estado pelos prejuízos causados no exercício da sua atividade de execução da lei (artigo 2399.º); pelos danos resultantes de atividades ilegais eram responsáveis os funcionários administrativos, a título exclusivamente pessoal (artigo 2400.º).

A garantia administrativa deixou de vigorar para a responsabilidade civil precisamente em 1867 (embora tenha subsistido intermitentemente até ao Decreto-Lei n.º 74/75, de 21 de Fevereiro, para a responsabilidade criminal em geral e aflore ainda, embora em termos muito mitigados, no regime da detenção de militares fora de flagrante delito: art. 24.º, n.º 1 do EMFAR). Na ausência de previsão legal específica, a doutrina e a jurisprudência aceitavam a responsabilidade civil do Estado pelos prejuízos provocados por atividades de gestão privada, como tal reguladas pelo direito privado. Importa ainda salientar que a responsabilidade civil das entidades públicas suscitou o interesse da doutrina civilista e administrativista da I República. A consagração legal da responsabilidade civil administrativa extracontratual por atos ilícitos de gestão pública datava dos anos trinta do século XX (portanto, antes do seu surgimento na Alemanha, em Espanha, Estados Unidos e Inglaterra e, paradoxalmente, num período de autoritarismo político): em 1930, o art. 2399.º CC foi revisto no sentido de acrescentar à responsabilidade dos agentes estaduais a responsabilidade solidária do próprio Estado; em 1936, o CA passou a estabelecer a responsabilidade civil das autarquias locais pelos prejuízos resultantes de atos ilegais de gestão pública compreendidos nas suas atribuições e competência (art. 366.º CA), embora mantendo a regra da responsabilidade estritamente pessoal quanto aos prejuízos provocados por atos de gestão pública viciados de incompetência, excesso de poder ou falta de formalidades fundamentais (art. 367.º do CA). A responsabilidade civil administrativa pelo risco e por ato lícito não foram objeto de previsão genérica, pelo que se entendia apenas existirem nos casos expressamente previstos na lei (embora Marcello Caetano tenha sustentado um princípio geral de responsabilidade por facto lícito a partir de 1950). A responsabilidade civil administrativa por atos de gestão privada continuou a reger-se pelo disposto no regime da responsabilidade civil de direito privado estabelecido no CC. O atual CC (em vigor desde 1967) consagrou pela primeira vez disposições especificamente aplicáveis à responsabilidade civil administrativa extracontratual por

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atos de gestão privada (arts. 500.º - 501.º CC), deixando para lei especial o regime da responsabilidade civil administrativa extracontratual por ato de gestão pública. Aquela disciplina viria a constar da LRCAP (entrada em vigor em 1967), que incluía disposições sobre responsabilidade civil delitual, pelo risco e por facto lícito mas não sobre responsabilidade civil administrativa contratual por ato de gestão pública. A Constituição de 1976 consagrou o princípio da responsabilidade civil solidária da administração e dos seus titulares de órgãos, funcionários e agentes pelos prejuízos provocados no exercício das suas funções (art. 22.º da CRP, do qual decorre um direito fundamental dos particulares à reparação dos danos, análogo aos direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da CRP (art. 17.º da CRP) e proibiu a garantia administrativa (art. 271.º, n.º 1 da CRP, parte final).

A mudança de regime ocorrida em 1974, as novidades trazidas na matéria em causa pela CRP, bem como o emergir de novos problemas, práticos e teóricos, no domínio da responsabilidade civil, geral e administrativa, contribuíram para a insuficiência do regime legal vigente desde 1967 e para a premência da sua revisão. Em 2001 foi apresentada à Assembleia da República uma proposta de lei que visava substituir a LRCAP, na qual se intentava o aperfeiçoamento do regime vigente e se regulava a responsabilidade civil por atos das funções legislativa e jurisdicional; a proposta não chegou a ser votada, em virtude da demissão do XIV Governo constitucional, e não foi retomada nas legislaturas seguintes (4).

Torna-se, porém, relevante mencionar que em 2006 voltou a ser apresentada uma proposta de lei de teor muito próximo, da qual veio a resultar, após um complexo processo legislativo que inclui um veto político presidencial, o novo Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, que entrou em vigor em 30 de Janeiro de 2008. Se bem que, no plano da responsabilidade civil administrativa, este não tenha introduzido alterações tão revolucionárias como na responsabilidade civil do Estado por atos das funções jurisdicional (arts. 12.º -14.º RRCEC) e político-legislativa (art. 15.º do RRCEC), ainda assim trouxe algumas inovações, como a introdução de um regime da indemnização (arts. 3.º e 5.º do RRCEC), com destaque para a regra da reintegração específica de danos (art. 3.º, n.º 1 do RRCEC), a definição do conceito de funcionamento anormal do serviço (art. 7.º, n.ºs 3 e 4 do RRCEC), o estabelecimento da obrigatoriedade do exercício do regresso contra os responsáveis concretos pelo dano (art. 6.º do RRCEC) e de duas presunções de culpa

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leve na responsabilidade delitual (art. 10.º, n.ºs 2 e 3 do RRCEC), bem como o alargamento do âmbito da responsabilidade pelo risco (art. 11.º, n.º 1 do RRCEC, que passou a referir-se a atividades, serviços ou coisas «especialmente» e já não «excecionalmente» perigosos).

Tal como dizem Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «O CCP, que entrou em vigor quase simultaneamente com o RRCEC, regulou, pela primeira vez no direito português, a responsabilidade civil administrativa contratual» (5).

O artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas dispõe sobre Indemnização pelo sacrifício (que é o tema fulcral a ser retratato na presente dissertação). Nas palavras de Carla AMADO GOMES: «tal disposição legal vem suceder ao artigo 9.º do DL 48.051, de 21 de Novembro de 1967, previsão similar mas não idêntica – não só porque, em razão da natureza do diploma, o seu âmbito se restringia à responsabilidade por actos da função administrativa, mas também porque autonomizava os actos praticados em estado de necessidade dentro da categoria de actos lícitos» (6). Nascido sob a égide da Constituição de 1933, este dispositivo convivia com a expropriação por utilidade pública, prevista no artigo 8.º, n.º 15 da Lei Fundamental, confirmando a existência de direitos à compensação por danos para além da afetação do direito de propriedade.

Importa explorar qual o fundamento e âmbito do artigo 16.º do RRCEE, tentando, desta forma, destacar as situações cobertas pelos institutos da expropriação e requisição por utilidade pública (e seus derivativos) – já muito escalpelizadas pela doutrina administrativista, sobretudo pelos estudiosos do Direito do Urbanismo (7) - das hipóteses de aplicação do instituto da compensação pelo sacrifício.

(5) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 16. (6) Neste sentido ver Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de

jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público»: n.º 129, Janeiro: Março, 2012, p. 9.

(7) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e

notas de Jurisprudência in: Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. IV, (Direito Administrativo e Justiça Administrativa), Coimbra Editora, FDUL, 2012, pp. 151-152, nota 1: «A associação, muitas vezes sancionada pelo legislador, entre expropriação de título e expropriação de direito (faculdades do direito), material ou, na terminologia de Fernando ALVES

CORREIA, de sacrifício, com remissão do cálculo da compensação para o regime do Código das Expropriações, introduziu desdobramentos na base constitucional, destacando do regime do artigo 16.º do RRCEE algumas situações que, prima facie, aí se acolheriam. Sobre estes desdobramentos, numa perspetiva ainda ligada ao conceito clássico de expropriação, vejam-se Bernardo AZEVEDO, Servidão de direito público. Contributo para o seu estudo, Coimbra, 2005, pp. 29 e segs, e Fernando ALVES CORREIA, A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance, in: «RLJ», n.º 3966, 2011, pp. 143 e segs., 155-161. Numa outra perspetiva, à qual está subjacente uma lógica ampla de expropriação, veja-se Miguel NOGUEIRA DE BRITO, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pp. 1009-1016, introduzindo o conceito de «determinação do conteúdo envolvendo um dever de compensação»., de Carla AMADO GOMES.

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1.1. Da Constituição para a Lei

Como sublinha Carla AMADO GOMES: “Em 1789, o artigo XVII da

Déclaration des Droits de l`Homme et du Citoyen estabelecia que, constituindo a

propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado salvo em caso de necessidade pública devidamente atestada e devendo ser prévia e justamente indemnizado” (8).

Ora, o artigo II da Déclaration já havia, de resto, identificado a propriedade como um direito natural e imprescritível, a par da liberdade, da segurança e da resistência à opressão. Descartando agora toda a discussão político-filosófica que estas inscrições possam gerar (nomeadamente, se devem ser entendidas num sentido de extensão do direito de propriedade como condição de igualdade e de dignidade de todas as pessoas, ou se hão-de ser lidas como uma garantia dos privilégios dos (nobres) proprietários pré-revolucionários e uma perpetuação do reconhecimento da cidadania em função do capital), «resulta destas normas uma associação da propriedade a uma característica de intrínseca humanidade, de realização da pessoa através do ter e do conservar o adquirido, para si e no continuum da identidade familiar» (9), isto nas palavras de Rui MEDEIROS.

Importa salientar que nas Constituições portuguesas, o direito de propriedade foi desde logo objeto de garantia na Constituição de 1822, cujos artigos 1.º a 6.º seguem de muito perto os preceitos citados da Déclaration. Idêntico quadro apresentavam a Carta Constitucional de 1826 (no art. 145.º/ 12.º), a Constituição de 1838 (no art. 23.º), e a Constituição de 1911 (nos arts. 3.º e 25.º). Ora, a Constituição de 1933, na senda da Constituição de Weimar de 1914 (10), desdobrava o valor da propriedade em duas vertentes: sendo estas a vertente objetiva (art. 35.º), sublinhando a dimensão social da propriedade (11), e a vertente subjetiva (arts. 8.º/15 e 49.º, Iº), na tradição liberal. Tal desdobramento insere-se na lógica da Constituição de 1933 como primeira Lei Fundamental nacional a adotar o modelo de Estado Social, desígnio desde logo bem patente no art. 6.º, onde se incumbia o Estado de «zelar pela melhoria de condições das

(8) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 10.

(9) Nas palavras de Rui MEDEIROS, a Constituição protege a propriedade privada porque «a encara como um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projetos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas» – cfr. Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª ed., Coimbra, 2010, pp. 1239 segs, 1246 (a anotação é de Rui MEDEIROS).

(10) Cfr. Os artigos 153.º e 155.º.

(11) Na elucidativa expressão da Constituição de Weimar (art. 153.º): «A propriedade obriga. A sua utilização deve servir simultaneamente o interesse do proprietário e o bem comum».

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classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que aqueles desçam abaixo do mínimo de existência minimamente suficiente».

No entanto, importa referir que com a Constituição de 1976, a proteção da propriedade aparece no Capítulo I (Direitos e deveres económicos) do Título III, dedicado aos direitos económicos, sociais e culturais. A sua garantia insere-se na linha de continuidade liberal e social, admitindo, porém, pontuais exceções decorrentes da previsão de instauração de um modelo económico coletivista (12). Estas exceções desapareceram com as revisões constitucionais, de 1982 e de 1989, respetivamente. Na atualidade, a garantia da intangibilidade da propriedade privada, salvo prevalência de interesse superior coletivo que determine, em geral, restrições e, em especial, a expropriação ou a requisição por utilidade pública e mediante justa indemnização, mantém-se no art. 62.º e decorre bem assim, por força da receção formal operada pelo art. 16.º, n.º 2 da CRP, do art. 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (13). Contudo, a associação da lesão do direito de propriedade por parte das entidades públicas ao art. 62.º, n.º 2 da CRP e não, como os demais títulos de responsabilização dessas entidades, ao artigo 22.º da CRP, decorre primacialmente da tradição liberal de respeito pela propriedade privada. Cumpre, aliás, destacar que o direito à compensação por fato de expropriação cedo foi reconhecido em Portugal no Direito Constitucional (14), no Direito Civil (15) e, sequencialmente, no Direito Administrativo, isto é, bem antes da consagração do direito à indemnização por atos ilícitos ( e pelo risco), que o princípio da irresponsabilidade dos poderes públicos vetou até 1930.

É verdade que o Tribunal Constitucional começou por não excluir que no art. 22.º da CRP pudessem caber outras «responsabilidades» – dentro da extracontratual – que não apenas a aquiliana. Admitiu-o, sem o afirmar claramente, no acórdão 153/90 (16) - por referência à posição doutrinal de GOMES CANOTILHO, a quem não repugna colocar o dever de indemnizar por atos ilícitos a par da responsabilidade pelo risco e do dever de compensar por atos lícitos (17). Contudo, mais recentemente, os juízes do

(12) Cfr. Os arts. 82.º, n.º 2 e 87.º, n.º 2, que derrogavam a garantia de justa indemnização sediada no art. 62.º, n.º 2.

(13) Sobre o art. 62.º da CRP, vejam-se Rui MEDEIROS, Anotação ao artigo 62.º, in: Constituição…,cit.,pp.1239 e segs, e José Joaquim GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, pp. 798 e segs. Sobre o conceito constitucional de propriedade, Miguel NOGUEIRA DE BRITO, A justificação…, cit., pp. 903 e segs. Particularmente sobre o conceito de justa indemnização, Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, II, Coimbra, 2010, pp. 209 e segs.

(14) Cfr. as normas supra citadas das Constituições históricas portuguesas. (15) Cfr. o art. 2397.º do Código Civil de 1867.

(16) Todos os acórdãos do Tribunal Constitucional mencionados no texto foram consultados no sítio do Tribunal: http:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.

(17) José Joaquim GOMES CANOTILHO, na 7.ª edição do seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, afirma «não ser tal conclusão líquida mas propender para que o artigo 22.º é sustentáculo da responsabilidade por factos lícitos» (p. 508). Neste sentido, cfr. o Acórdão do STA de 22 de Janeiro de 2002 (Processo n.º 044308), onde se afirma que: «De acordo com os

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Palácio Raton (TC) parecem propender a encontrar no princípio do Estado de Direito democrático ínsito no art. 2.º da CRP (e reforçado logo na alínea b) do art. 9.º da CRP) o tronco de sustentação de um direito geral à reparação de danos, que teria concretizações especiais nos arts. 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1 e 62.º, n.º 2 da CRP (18). No contexto do art. 62.º, n.º 2 da nossa Lei Fundamental, o TC tem uma vasta jurisprudência acerca da questão da garantia da propriedade e compensação da sua afetação, em especial, a propósito das indemnizações (muito tardiamente) atribuídas na sequência das nacionalizações surgidas no período pós-25 de Abril de 1974 e, em geral, sobre normas do Código de Expropriações que se revelarem incompatíveis com os requisitos de restrição estabelecidos no art. 62.º, n.º 2 da CRP. Parece-nos importante realçar a nível da jurisprudência constitucional, que: do art. 62.º, n.º 2 da CRP resulta explicitamente que a compensação atribuída ao lesado constitui um pressuposto de legitimidade do ato expropriativo ou, noutros dizeres, trata-se de «um elemento integrante do próprio ato de expropriação» (19); a aferição do quantum em que se traduz a compensação não decorre de critérios rigidamente estabelecidos na CRP; porém, tais critérios deverão espelhar valores acarinhados pela Lei Fundamental como a igualdade e a proporcionalidade, não podendo conduzir a compensações irrisórias ou manifestamente desproporcionadas face à perda do concreto bem requisitado ou expropriado (20); a fixação da justa indemnização deve obedecer a um princípio de equivalência de valores, ou seja, não deverá ficar aquém do mínimo razoavelmente expetável nem ir demasiado além do máximo concretamente realizável através da transação do bem. Nas palavras dos juízes do Palácio Ratton: «Tal indemnização tem como medida o prejuízo que para o expropriado resulta da expropriação. E, se esta indemnização não pode estar sujeita ou condicionada por fatores especulativos, por estes serem, muitas vezes, artificialmente criados, sempre deverá representar e traduzir uma adequada restauração da perda patrimonial sofrida pelo expropriado» (21) (22); a Justiça da compensação afere-se a partir do quantum mas também do tempo que o montante leva a ingressar na esfera patrimonial do expropriado, tempo esse que deve ser

artigos 2.º e 22.º, ambos da CRP, a indemnização, seja ela baseada em ato ilícito ou lícito como a dos autos, deve ter em conta todas as circunstâncias de fato relativas ao valor dos bens sacrificados, respeitando os princípios da igualdade e da proporcionalidade». (18) Cfr. o Acórdão 444/2008.

(19) Cfr. o Acórdão do TC 210/93. (20) Cfr. o Acórdão do TC 210/93.

(21) No Acórdão 314/95, o TC acrescentou que, para a aferição do justo valor do bem, deverá «atender-se (…) ao preço que o bem deterá num mercado normal, onde não entrem em consideração fatores especulativos ou anómalos que, as mais das vezes, se encontram no mercado real e concreto».

(22) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 14.

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computado no quantitativo final, sob pena de desproporcionalidade da restrição (23); a plenitude/justiça da compensação deve avaliar-se quer em termos absolutos, quer relativos: por um lado, e como se apontou supra, o lesado deve ser ressarcido do prejuízo correspondente à perda do bem fixado a partir de valores atuais e objetivos; por outro lado, o lesado deve ficar numa posição patrimonial idêntica àquela em que se encontram outros sujeitos potencialmente suscetíveis de sofrer idêntica perda mas que a não sofreram (24).

Importa salientar que pode bem depreender-se destes tópicos de cariz jurisprudencial que a supressão definitiva do direito de propriedade (ou, temporariamente, das faculdades de uso e fruição, no que tange a requisição) (25), se encontra fortemente enleada por dois princípios basilares: de uma banda, a proporcionalidade e, de outra banda, a igualdade.

É ainda de referir que a preocupação do TC é perfeitamente compreensível: sofrendo o lesado uma amputação no seu património, a qual redundará num benefício da coletividade em geral, seria injustificável que sofresse um duplo encargo, sendo estes o da perda e o da não compensação adequada e suficiente desta.

Não se fique com a ideia de que o instituto da compensação por fato lícito é um exclusivo do Direito público. Na realidade, o CC contempla alguns casos em que o exercício lícito de um direito pode causar danos a terceiros, que devem ser compensados. Tal como diz Luís MENEZES LEITÃO, este autor refere: «os exemplos dos artigos 81.º/2, 1322.º, 1349.º, 1367.º, 1554.º, 1560.º/3, 1561.º/1, 1170.º/1 e 1172.º (26), ao que nós aditamos dois outros: por um lado, a situação prevista nos artigos 1101.º/a), 1102.º e 1103.º, que admitem a denúncia, pelo senhorio, de contrato de arrendamento que o arrendatário cumpre escrupulosamente, para habitação própria daquele ou de seus descendentes em primeiro grau, colmatando a perda do direito ao arrendamento através do pagamento de uma compensação de montante equivalente a um ano de renda (art. 1102.º/1)» (27); e, por outro lado, a possibilidade de o dono da obra desistir do contrato de empreitada, sediado no art. 1229.º. Isto, além da clássica

(23) Cfr. o Acórdão do TC 115/88). (24) Cfr. o Acórdão do TC 210/93.

(25) José Joaquim GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição…, cit., p. 807) sublinham a profunda diferença entre expropriação e requisição: o fundamento da primeira deve-se a «razões normais e permanentes de utilidade pública; as razões da requisição são necessidades urgentes de interesse público nacional, caraterizadas pela excecionalidade e anormalidade».

(26) Neste sentido Luís MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, II, Coimbra, 2002, pp. 350 e segs. (27) Sobre esta prerrogativa, Luís MENEZES LEITÃO, Arrendamento urbano, Coimbra, 2005, pp. 109-110.

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previsão da compensação por fato praticado em estado de necessidade, a calcular pelo juiz com base num juízo de equidade, nos termos do art. 339.º/2, 2.ª parte, do CC (28). Contudo, aparentemente, o artigo 62.º, n.º 2 da CRP (complementado pelo art. 83.º da CRP) constitui sustentáculo bastante para pedidos de compensação por sacrifícios patrimoniais em benefício da coletividade, consequentemente o art. 16.º do RRCEE seria um dispensável afloramento de tal dispositivo, antes operacionalizado pelo Código das Expropriações (Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, com última alteração introduzida pela Lei n.º 56/2008, de 4 de Setembro). Dir-se-ia, que o artigo 16.º, se não é uma norma supérflua, constitui uma norma de baixo espetro, restringindo o seu âmbito aos danos morais ou não patrimoniais (29). Tal asserção claudica, porém, uma vez que a garantia constitucional visa expressa e literalmente as restrições à propriedade que se traduzem numa iniciativa administrativa tendente à privação da utilização do bem pelo seu proprietário, temporária (requisição) ou permanente (expropriação), em prol da comunidade em geral, isto é, uma ingerência administrativa conducente à transferência, temporária ou definitiva, do uso e/ou do título de propriedade de um bem privado (ou público) para a esfera de um (outro) ente público (ou privado no exercício de funções materialmente administrativas – em caso de requisição). Esta intervenção tem subjacente uma ponderação de interesses públicos e privados que obedece a um iter específico, a definir por lei oxigenada pelas diretrizes constitucionais, maxime pelos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

Julgamos, assim, e por um lado, que a compensação por sacrifícios provocados pela função legislativa não está abrangida pelo Tatbestand do art. 62.º, n.º 2 da CRP (30) (mas antes pela conjugação entre os artigos 62.º, n.º 1, 13.º e 18.º, n.º 2 e 3 da CRP) (31). Por outro lado, parece igualmente admissível afirmar que a afetação patrimonial que se não consubstancie numa transferência (temporária ou definitiva) do direito de

(28) Cfr., o artigo 339.º/2 do CC não consagra um direito à compensação, antes deixando a ponderação na mão do julgador. «Esta solução é criticada por Luís MENEZES LEITÃO (Direito das Obrigações, II, cit.), por a entender prejudicial à segurança jurídica». (29) Neste sentido, Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa, III, Lisboa, 2008, p. 59.

(30) Apontando exemplos teóricos de compensação pelo sacrifício nesse âmbito, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da

Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, Anotado, 2.ª ed., Coimbra, 2011, p. 367. Note-se

que, no plano do julgamento de uma ação de compensação pelo sacrifício, não será necessário recorrer ao TC (como no âmbito do artigo 15.º do RRCEE) para confirmar a licitude da norma, uma vez que vale a presunção de constitucionalidade. Em contrapartida e como sugere Carlos FERNANDES CADILHA (ob. cit., p. 365), no âmbito da responsabilidade legislativa por atos lícitos, estes hão-de ser, além de anormais, também especiais, prevalecendo, no cálculo do quantum compensatório, o critério de equidade estabelecido no n.º 6 do artigo 15.º do RRCEE. Considerando “muito estranha” a abertura do diploma à compensação por facto legislativo lícito ao artigo I6.º depois dos cuidados revelados no artigo 15.º, Fernando ALVES CORREIA, A indemnização pelo

sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance, in: «RLJ», Ano 140, n.º 3966, 2011, pp. 143 segs, 151.

Paralelamente, e ainda que se trate de casos excecionais, no campo da função jurisdicional podem identificar-se casos de compensação por facto lícito. A alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal constitui um exemplo de compensação por facto lícito decorrente do decretamento de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação injustificada.

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propriedade (ou do seu uso) de um particular para uma entidade que aja em nome de fundamentos de utilidade pública tão pouco cabe na letra do art. 62.º/2 da CRP e no instituto da expropriação por utilidade pública que o concretiza (mas antes na garantia da propriedade ancorada no art. 62.º, n.º 1 da CRP, cujas restrições se hão-de pautar pelo respeito pelos princípios da proporcionalidade e confiança). E, finalmente, impõe-se a revelação de que qualquer outro tipo de ingerência administrativa sobre categorias jussubjetivas não coincidentes com o direito de propriedade (na sua integralidade) também escapará à malha do artigo 62.º, n.º 2 da CRP.

Noutros termos, apesar de a inspiração primeira do instituto da compensação pelo sacrifício ser, na tradição liberal, a garantia da propriedade, a Lei Fundamental somente se reportou aos casos-regra, deixando ao legislador a opção de alargar a hipótese normativa a casos paralelos de privação de bens que se não reconduzam ao padrão constitucionalmente identificado – ou seja, aquelas em que o prejuízo opera independentemente de um procedimento expropriatório ou requisitório, podendo redundar na deterioração ou na perda de um bem ou direito.

Contudo, tal opção é apenas quanto ao como, não quanto ao se: tais hipóteses devem igualmente merecer a atenção do legislador ordinário, embora não por força do art. 62.º, n.º 2, mas antes pelos indirizzos emanados dos artigos 13.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, sempre com o princípio do Estado de Direito democrático como pano de fundo (32) - como é realçado, desde logo, a nível jurisprudencial constitucional (33). É de referir que o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos reclama, à

partida, compensação para um cidadão que, a favor da comunidade, lhe vê infligida

uma perda significativa (34); e o princípio da proporcionalidade, determinará, à chegada se, em função do prejuízo concretamente imposto ao cidadão, se justifica a compensação e em que medida.

É de salientar que a propósito da índole deste direito, o TC frisou, no Acórdão 444/2008 (na linha do que já afirmara no Acórdão 153/90), que «o legislador ordinário tem ampla liberdade de conformar mais ou menos limitativamente o direito à reparação dos danos, seja definindo condições para a constituição de uma obrigação de indemnização, seja limitando os danos ressarcíveis. Necessário é que, no

(32) Ancorando nestes dois princípios o instituto da compensação por facto lícito, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da

Responsabilidade civil…, cit., p. 360.

(33) Cfr., também, o Acórdão do TCAN de 8 de Maio de 2008 (Processo n.º 00155/06.0BEPNF) no qual se refere, precisamente, que o instituto da compensação pelo sacrifício encontra o seu fundamento tríplice nos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP.

(34) Acerca deste princípio, veja-se o clássico José Joaquim GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por

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estabelecimento dessas condições e limites, não se venha a tornar desprovido de significado o «núcleo» desse direito, ou seja, que o direito à reparação dos danos, na prática, não venha a ser impossibilitado de operar, ou que dos limites fixados não resulte um ressarcimento dos danos irrisório ou desprezível, devendo essas condições e limites serem justificadas pelos interesses em jogo».

Esta posição é a adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 13 de Janeiro de 2004 (Processo n.º 040581), descartando alegações de inconstitucionalidade dos artigos 8.º e 9.º do DL 48 051, por alegadamente restringirem o direito à indemnização em moldes mais amplos do que no plano da responsabilidade por facto ilícito. Trata-se, observa o Tribunal, «de um imperativo de proporcionalidade estreitamente ligado ao Estado Social, que justifica as baias da especialidade e anormalidade do prejuízo como afetações que o legislador ordinário considerou necessárias para evitar o colapso financeiro, pondo em risco todo o conjunto das tarefas fundamentais do Estado». Já antes, de resto, o STA frisava, em Acórdão de 10 de Outubro de 2002 (Processo n.º 048404) (35), que a «admissibilidade deste tipo de responsabilidade tem naturalmente subjacente o princípio de que não é acertado construir uma sociedade livre e pluralista na base da transferência de todos os riscos da vida social dos indivíduos e das empresas para o Estado».

Por outras palavras, o modelo de compensação pelo sacrifício a desenhar para além da expropriação (e requisição) da propriedade – enquanto privação plena do feixe de faculdades contido no direito de propriedade, de forma provisória ou definitiva – há-de conduzir a resultados balizados entre a proibição há-de irressarcibilidahá-de há-de prejuízo privado intolerável e a aceitação de irrestrita socialização de todo e qualquer prejuízo privado motivado em razões de interesse público (36), numa espécie de equação fortemente enraizada na equidade. O legislador ordinário encontra-se mais solto na construção deste quadro de pressupostos, quer quanto ao universo de danos ressarcíveis, quer quanto aos critérios de cálculo do montante compensatório, quer, enfim, quanto ao tempo – ou seja, a justiça desta indemnização não passa pela literalidade do artigo 62.º, n.º 2 da CRP, mas apenas pela principiologia da igualdade na repartição dos encargos públicos através de restrições a um direito fundamental, de natureza patrimonial ou não

(35) É de referir que todos os acórdãos dos tribunais administrativos foram consultados na base da DGSI: www.dgsi.pt.

(36) No plano do direito privado, e no que tange a responsabilidade-regra, que é aquiliana, a jurisprudência vem chamando a atenção para a irressarcibilidade de prejuízos decorrentes da vivência comunitária num determinado modelo de sociedade, apelando a uma lógica de adequação social - que mais não é do que a aplicação da teoria da concordância prática moldada pelo princípio da proporcionalidade às relações interprivadas – Cfr., o Acórdão do STJ de 20 de Setembro de 2010 (processo 1229/05.0TVLSB.LI.SI).

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patrimonial (ora se ligando ao artigo 62.º, n.º 1, ora ao artigo 26.º, n.º 1, ambos da CRP). Os travões da especialidade e da anormalidade do dano constituem, por isso, pressupostos inelimináveis deste instituto, embora não sejam os únicos.

2. A responsabilidade civil administrativa, sua noção e aspetos gerais

A responsabilidade civil administrativa é o conjunto de circunstâncias da qual

emerge, para a administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes, a obrigação de indemnização dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade administrativa. O qualificativo civil da responsabilidade não remete para o direito privado: trata-se apenas de esclarecer que a responsabilidade em causa não é política, criminal, contra-ordenacional ou disciplinar.

Como explicam Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS: «Todas estas modalidades de responsabilidade têm fins diferentes da responsabilidade civil: esta visa predominantemente a reparação de danos, enquanto a responsabilidade política visa a efectivação do controlo democrático no quadro do funcionamento do sistema de governo e as responsabilidades criminal, contra-ordenacional e disciplinar visam finalidades de prevenção, geral ou especial, e de repressão de condutas antijurídicas» (37) ( 38).

3. O regime de responsabilidade objetiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da função administrativa

3.1. A razão do tema

Relativamente à razão do tema importa denotar que não era considerada líquida, à face do ordenamento jurídico português, a questão do regime jurídico aplicável à relação entre a Administração e um particular lesado por normas emitidas no desempenho da função administrativa. E era assim em particular no que tocava à responsabilidade objetiva, ou seja, quando a conformidade de tais normas com o Direito não merecia ser posta em causa não obstante o seu efeito danoso. A dúvida nasceu da redação do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que, ao fixar o princípio da responsabilidade objetiva da Administração pela prática de

(37) Em geral, fala-se em responsabilidade civil do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público; mas a administração pública em sentido orgânico também compreende pessoas coletivas de direito privado, sujeitas a um regime de direito administrativo no âmbito da sua atividade de gestão pública. Às pessoas coletivas de direito privado integrantes da administração pública aplica-se, na medida em que exerçam a função administrativa, o regime da responsabilidade civil administrativa, sendo neste sentido que deve entender-se a referência da parte final do art. 1.º, n.º 5 do RRCEC; em termos processuais, art. 4.º, n.º 1, alínea i) do CPTA.

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atos lícitos, se referiu somente aos atos administrativos legais e aos atos materiais lícitos. O entendimento literal estrito da primeira destas expressões apartava os atos normativos da Administração e, entre eles, os atos regulamentares. Porém, existiam argumentos de natureza finalística e sistemática para proceder a uma interpretação declarativa lata do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051 de modo a compreender os atos normativos da Administração na expressão atos administrativos tal como usada naquele preceito.

Como alertava Marcello CAETANO, o autor: «nunca assumiu uma posição clara sobre a questão» (39). E algum clima de incerteza continua a pairar na obra do juspublicista, a tantos títulos inovadora, que, em 1974, GOMES CANOTILHO dedicou à responsabilidade do Estado por atos lícitos (40). De então até aos tempos de hoje, nenhum autor português dedicou (que saibamos) atenção a este tema.

Para sermos precisos, impõe-se trazer aqui o texto de José Manuel Sérvulo CORREIA, que diz: «Importa referir que a este vazio na doutrina corresponde a inexistência de decisões do Supremo Tribunal Administrativo em matéria de responsabilidade objetiva por facto de regulamento. Dir-se-ia que se gira em círculo vicioso: a ausência de orientação doutrinária inibe aos particulares de invocar em tribunal esta causa de pedir e, na falta de matéria prima jurisprudencial, a doutrina administrativista, dela sempre tão dependente, retrai-se» (41).

No entanto, apesar da pendência, naquela altura em que estava em discussão, perante a Assembleia da República da Proposta de Lei n.º 95/VIII sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado, que, uma vez entronizada, iria modificar significativamente os dados da questão, não nos pareceu que fosse tarde de mais para tentar reparar aquele vazio, ainda que de forma incipiente. É certo que, caso se viesse a firmar de acordo com os termos da iniciativa governamental, a lei proposta estabelecia uma ampla figura de indemnização pelo sacrifício, objeto de um dever do Estado e das demais pessoas coletivas de direito públicas, sempre que, por razões de interesse público, estes impusessem encargos ou causem danos especiais e anormais (artigo 16.º do atual RRCEE). Tal fórmula cobre, atualmente, sem dúvidas, a responsabilidade objetiva por atos normativos legais da Administração. Mas nem por

(39) Cfr., para mais desenvolvimentos vd., Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª e última edição, Lisboa, Coimbra Editora, 1972, pp. 1215-1217.

(40) Cfr., para mais desenvolvimentos vd., J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos

lícitos, Coimbra, Almedina, 1974, p. 197.

(41) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas

emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p.

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isso perde todo o interesse a averiguação do DL supra mencionado da ordem jurídica nesse domínio. É conveniente mencionar a aplicação do DL n.º 48 051 – que tornou o regime da responsabilidade objetiva por facto regulamentar mais claro quanto ao seu fundamento mas não alterou a sua substância - sempre lucrando, com o melhor entendimento, sendo que constituiu uma nova etapa.

Porém, crê-se pois que se justificou proceder ao exame do fundamento jurídico, no DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, da responsabilidade objetiva por danos causados por normas legalmente emitidas no desempenho da função administrativa.

3.2. Base legislativa ou base diretamente constitucional para a responsabilidade por facto de regulamento? A responsabilidade por facto de regulamento entre a responsabilidade por ato legislativo e a responsabilidade por ato administrativo.

Tal como diz José Manuel Sérvulo CORREIA: «Embora seja sobre a sede da

responsabilidade objectiva por facto regulamentar que nos propomos discorrer, não pode naturalmente esta questão, que tem contornos específicos, desprender-se por completo da das raízes da responsabilidade subjectiva por facto de regulamento» (42). Há algo de comum na situação destas duas categorias: a circunstância de o Decreto-Lei n.º 48 051 só referir as normas regulamentares como parâmetros de licitude dos atos jurídicos (artigo 6.º) e nunca, expressamente, como atos geradores de responsabilidade administrativa. Nas palavras de José Manuel Sérvulo CORREIA: «Podia pois – em face do teor literal do diploma – suscitar-se a questão de saber se o seu escopo relegou para outra instância de regulação, ou para nenhuma, o enquadramento normativo de todos os efeitos danosos decorrentes da actividade regulamentar da Administração» (43).

A verdade, contudo, é que não eram iguais em grau os obstáculos colocados pelo texto quando se pretender reconduzir à estatuição do Decreto-Lei n.º 48 051 as formas de responsabilidade subjetiva e objetiva. Da conjugação entre os artigos 1.º, 2.º e 6.º, resultava que se encontravam submetidos ao regime de responsabilidade subjetiva constante do Decreto-Lei os atos jurídicos culposamente praticados no âmbito da gestão pública que violassem normas legais e regulamentares ou os princípios gerais

(42) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas

emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p.

1317.

(43) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas

emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p.

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aplicáveis. Cabiam indubitavelmente neste conceito os regulamentos que, verificada culpa nos termos dos artigos 487.º e 497.º do Código Civil, contrariassem o disposto por normas, incluindo outras normas regulamentares, que possuíssem eficácia superior. Com efeito, o regulamento representava uma forma típica de ato jurídico da Administração no âmbito da gestão pública.

Porém, no que concernia à responsabilidade objetiva eram maiores as dificuldades visto que o artigo 9.º, n.º 1, apenas referia como seus possíveis causadores os atos administrativos legais e os atos materiais lícitos.

Importa enunciar que a subtração da responsabilidade, incluindo mesmo a responsabilidade subjetiva, por facto de regulamento à incidência do Decreto-Lei n.º 48 051, ou seja, ao regime geral da responsabilidade administrativa extracontratual por ato de gestão pública, só poderia encontrar uma justificação na preferência de a fazer alinhar com o regime de responsabilidade do Estado e das regiões autónomas por ato legislativo. Optar-se-ia dessa forma por juntar toda a responsabilidade por atos normativos, fossem eles legislativos ou regulamentares, separando-a de um outro instituto jurídico circunscrito à responsabilidade da Administração por atos de gestão pública concretos, de natureza jurídica ou material. Valeria aqui, numa perspetiva funcional, a proximidade entre o regulamento e a lei, a pertença do regulamento ao conceito de lei em sentido material. Sublinhar-se-ia dessa forma o caráter de regra abstrata e geral da norma regulamentar, que a separava dos outros atos jurídicos próprios da função executiva.

Em Portugal, e na segunda metade do Século XIX, como sublinha Carlos BLANCO DE MORAIS, nunca se abriu: «espaço para a concretização de uma reserva material de carácter regulamentar, ou mesmo de eixos de concorrência entre regulamentos independentes e «leis formais» em certos domínios, tal como existia na Alemanha na Itália» (44). E, de qualquer forma, sem prejuízo da existência da nossa Ordem Jurídica de órgãos com dupla competência legislativa e regulamentar (o Governo e as assembleias legislativas regionais), a colocação constitucional desses dois modos de normação situava as regras por eles geradas em dois planos distintos. Estes não se materializavam apenas pela diferente força hierárquica (como igualmente sucedia entre norma regulamentar e ato administrativo concreto) mas também por acentuadas diferenças de regime quanto ao procedimento de feitura, quanto ao grau de autonomia conformativa e quanto ao controlo de juridicidade.

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