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PONDERAÇÕES SOBRE A (IN)EXISTÊNCIA DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO E AS FINALIDADES DO PROCESSO PENAL

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PONDERAÇÕES SOBRE A (IN)EXISTÊNCIA

DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO

E AS FINALIDADES DO PROCESSO PENAL

NAIRA BLANCO MACHADO

Especialista em Ciências Criminais pela UFBA. Mestranda em Direito Público pela UFBA. Juíza substituta do TJSP.

ÁREA DO DIREITO:Processual; Fundamentos do Direito

RESUMO:O presente estudo objetiva discutir a suposta viabilidade de aplicação de

uma teoria geral ou unitária do processo, demonstrando alguns aspectos, valores e institutos inerentes ao processo penal responsáveis por lhe conferir uma dinâmica própria e especial. A identificação das finalidades a que se destina o processo penal e da lógica que o permeia são elementos que terminam por colocar em xeque esta noção tão sedimentada de uma teoria geral do processo, denunciando suas mazelas e desnudando a sua verdadeira essência: o de uma teoria voltada para as necessidades do processo civil.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria geral do processo - Autonomia do processo penal - Instrumentalidade - Escopos processuais.

ABSTRACT: This study aims to discuss the alleged possibility of applying a general

theory or unit time, demonstrating some ways, values and institutions inherent in the criminal procedure responsible for giving it its own dynamic and special character. The identification of the purposes for which this is criminal procedure and the logic that permeates are elements that end up putting into question the notion of a deep-seated theory of the process, denouncing its ills and highlight its true essence: that of a theory focused on the needs of civil procedure.

KEYWORDS:General theory of legal process - Autonomy of the criminal proceedings

- Instrumentality - Procedural scopes.

Sumário: 1. Introdução - 2. As finalidades do processo penal e a instrumentalidade processual - 3. Institutos e valores processuais penais e a incongruência de uma teoria geral do processo: 3.1 A jurisdição penal e a questão da substitutividade da atuação jurisdicional; 3.2 Lide, pretensão e o processo penal; 3.3 As condições da ação e o processo penal; 3.4 A coisa julgada no processo penal; 3.5 O princípio da presunção de inocência - 4. Considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

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suposta tese de que o processo penal não tem e nem poderia ter uma

independência em relação aos demais “ramos” do processo (ou a teria de forma

relativizada), sendo-lhe aplicáveis irrestritamente conceitos atinentes (e, por isso mesmo, mais adequados) ao processo civil. Segundo os ensinamentos de Cláudia Marlise da Silva Alberton Ebling a doutrina majoritária autodenominada de Carneluttiana entende o direito processual como fundamentalmente único, um único tronco que se bifurca em dado momento, dando origem aos sub-ramos processo civil e processo penal que se diferenciam por uma exigência pragmática de atendimento das normas jurídico-substanciais respectivas e não porque repousem sobre raízes distintas.1 Sem ter a pretensão de esgotar a matéria que, por certo, em razão da densidade da temática, mereceria uma via mais extensa, o presente estudo destina-se à indicação e ao reconhecimento de determinados elementos próprios e individualizantes do processo penal, fazendo uma comparação entre estes e categorias ínsitas ao processo civil, as quais foram transpostas para uma teoria geral do processo, como forma de demonstrar as patentes incompatibilidades entre os dois ramos processuais e a impossibilidade de manutenção de uma teoria unitária em face das especificidades e da lógica toda peculiar do processo penal.

O estudo do processo penal, por muitos anos, nunca gozou de uma autonomia teórica e dogmática necessárias e justas à sua importância como disciplina

jurídica, tendo “tomado emprestado” de maneira indevida e equivocada

conceitos e institutos que, por sua própria conformação, são ajustados ao âmbito

processual civil. De outro lado, o processo civil, diferente do seu “primo pobre”,

ganhou corpo, desenvolveu-se profundamente do ponto de vista teórico, e arrastou para seus estudos inúmeros doutrinadores cujas escolas e doutrinas ganharam o mundo, arrebanhando seguidores apaixonados pelas suas lições complexas, bem elaboradas e sistematizadas do fenômeno processual. Sobre esta questão, interessante as palavras de Cláudia Marlise da Silva Alberton Ebling, retomando reflexões de Carnelutti:

“Carnelutti já chamava o processo penal como a 'cenicienta' das irmãs do

processo, levando em conta que, no fundo, a verdade é que o ambiente do processo civil dá aos estudiosos uma impressão de superioridade, trazendo consigo a imagem de pessoas sofisticadas, discutindo tranquilamente sobre as

questões, normatizadas de forma cuidadosa e objetiva”.2

E continua a autora afirmando que o “processo penal, por sua vez, desponta

o que há de pior no homem, que é o pensar sobre a sua própria violência, traz consigo o inquieto, belicoso, o turbulento. Resume, ainda, em um forte termo: o reino dos esfarrapados”.

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nunca galgou a autonomia indispensável ao seu pleno desenvolvimento como ramo do direito, razão pela qual sempre precisou se apoiar em estudos e bases teóricas que foram concebidas e desenvolvidas para o processo civil, cujas noções sempre pareceram não lhe cair muito bem.

De fato, os conceitos processuais trazidos por esta teoria do processo foram sendo aplicados indistintamente no processo penal e, quando muito, submeteram-se a leves adaptações, insuficientes, todavia, para preencher as lacunas que a atrofia processual penal deixou. Sobre este transplante de conceitos, ensina Lauria Tucci:

“Esse aliás foi um dos (poucos, raros) aspectos negativos da grandiosa obra

de José Frederico Marques, ao transplantar (sem, ou, às vezes, com modestos, avaros, retoques) institutos de processo civil para o processo penal, numa nítida adaptação dos elementos de direito processual penal às instituições de direito processual civil (este, induvidosamente, seu mais importante e acurado lavor magisterial). E o pecado tornou-se maior, também inequivocamente, em razão de, dada a reconhecida autoridade do saudoso mestre, muitos processualistas (alguns até mesmo processualistas penais) terem-no seguido, descuidada ou cegamente, incorporando-se numa prolixa e confusa concepção, que poderia ser denominada teoria civil do processo (...)”.3

2. AS FINALIDADES DO PROCESSO PENAL E A INSTRUMENTALIDADE PROCESSUAL

Em outras palavras, o processo penal sofreu e continua a sofrer com a ausência de uma teoria própria que lhe forneça os instrumentos cabíveis e adequados a realizar os seus fins (não obstante os louváveis esforços teóricos de renomados processualistas penais que encontram uma resistência ímpar no meio jurídico). Sim, porque não se pode afirmar que o processo penal disponha dos mesmos fins almejados pelo processo civil.

Inquestionável, contudo, é o fato de que como uma das facetas do fenômeno processual, o direito processual penal vai gozar de determinados princípios que são comuns a todo e qualquer ramo do processo. Entende-se, todavia, que tal não é suficiente para produzir a existência de uma Teoria Geral do Processo. Os ramos e disciplinas do direito, sejam elas materiais ou processuais, mantêm entre si similitudes, há sempre um intercâmbio, uma troca de noções, de conceitos, o que não determina uma aplicação indistinta de todos eles a todas as disciplinas jurídicas. Aliás, é forçoso rememorar que o próprio direito processual nasceu do direito material, mantendo com este uma ligação umbilical.4 Somente mais tarde, o direito processual foi ganhando contornos próprios e pôde alçar voos maiores, até alcançar a independência almejada e necessária ao seu desenvolvimento enquanto ciência jurídica. Assim, o fato de manter com o processo civil valores semelhantes não autoriza o mero transporte de conceitos pensados para esta disciplina diretamente para o seio do processo penal.

Sobre o assunto, atente-se para as considerações de Fauzi Hassan Choukr, que alerta para questões relevantes:

“No entanto, malgrado à primeira vista se pudesse ter afirmado em edições

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novo alento surgiu para o estudo processual penal, mesmo porque não se poderia pensar numa teoria geral fora dos princípios constitucionalmente aplicáveis a todos os ramos processuais, a continuidade das investigações científicas demonstrou que esta teoria geral do processo é desprovida de método próprio, de objeto cientificamente identificável e inserida num contexto ideológico da sociedade brasileira que vivia um estado de exceção às premissas do Estado de Direito. Assim, longe de ser a panaceia para os males dogmáticos do processo penal, acabou por aumentá-los numa sucessiva aproximação a conceitos típicos do processo civil e na imposição de conceitos próprios do âmbito privado ao processo penal, descurando da essência deste e mesmo da natureza da norma de direito material que ele necessariamente instrumentaliza, como demonstraram, ao longo dos últimos anos inúmeros estudos, sobretudo os de Miranda Coutinho

(1998)”.5

Naturalmente, o processo penal, assim como processo civil e o processo administrativo, o eleitoral e o trabalhista, envolvem o encadeamento de atos procedimentais, nutrem-se de garantias como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, têm um caráter abstrato e autônomo em relação ao direito material e, especialmente, como já mencionado, não perdem sua natureza instrumental. Sim, o processo, qualquer que seja ele, apesar da sua condição de abstrato e autônomo, é instrumental em relação ao direito objetivo, material. O interessante é que reside exatamente neste fato um dos fundamentos para a constatação de que o processo penal não tem e nem pode dispor de uma base teórica do direito processual civil. Os fins a que se propõe realizar o processo penal não se confundem com as finalidades a que se direciona o processo civil, mesmo hodiernamente, em que este último ramo vem sofrendo questionamentos e transformações advindas das reflexões em torno às tutelas de bens indisponíveis e coletivos. Observa-se hoje um fenômeno em que a construção positivada do direito processual civil tem-se mostrado insuficiente e inadequada à resolução de conflitos envolvendo a tutela de direitos coletivos.6 Tanto é assim que já se pensa (e já existem propostas na seara jurídica neste sentido) em se estabelecer um regramento próprio e ajustado a estas novas necessidades jurídicas (ou não tão novas), já que os microssistemas que as albergam e a aplicação do Código de Processo Civil vigente não têm sido aptos à concretização destes interesses de natureza supraindividual. Sendo assim, diante destas novas implicações, desta renovação de conceitos, deste fenômeno de complexão das relações e dos direitos, clamando por novas regulações, por novéis sistematizações que sejam capazes de efetivar seus elementos e valores, como manter a ideia de um processo penal alimentado por institutos próprios de um processo civil de índole privatista, individualista, patrimonialista, se esta perspectiva processualista restrita não é sequer capaz de atender os anseios destes novos parâmetros jurídicos que, a priori, são concebidos dentro de seu próprio seio?

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“Talvez a noção mais importante do direito processual moderno seja a de

instrumentalidade, no sentido de que o processo constitui instrumento para a tutela do direito substancial. Está a serviço deste, para garantir a sua efetividade. A consequência dessa premissa é a necessidade de adequação e adaptação do instrumento ao seu objeto. O processo é um instrumento, e, como tal, deve adequar-se ao objeto com que opera. Suas regras técnicas devem ser aptas a servir ao fim a que se destinam, motivo pelo qual se pode afirmar ser

relativa à autonomia do direito processual”.7

Não há como se pensar em um direito penal garantidor caminhando junto a um processo que ignore solenemente estas garantias, um processo que desconheça os limites que o direito penal material impôs ao arbítrio estatal no exercício do jus puniendi. A intima conexão entre o direito penal e o direito processual penal é lembrada por Ferrajoli que assim estabelece:

“O conjunto de garantias penais examinadas no capítulo precedente seria

totalmente insatisfatório se não fosse acompanhado do conjunto correlato e, por assim dizer, subsidiário das garantias processuais (...). É por isso que as garantias processuais, e em geral as normas que disciplinam a jurisdição são ditas também instrumentais no que tange às garantias e às normas penais, estas chamadas, por sua vez, 'substanciais'. (...) Esquemas e culturas penais e processuais penais, como tenho dito muitas vezes, são sempre conexos entre si. E a conexão é histórica muito mais do que teórica, dado que os acontecimentos do direito penal substancial e da doutrina do delito sempre tiveram por modelo as experiências das instituições judiciárias, e vice-versa”.8

Dentro desta perspectiva de conectividade está inserta a ideia de que as regras de processo penal e de penal devem funcionar mutuamente como garantia de efetividade, isto é, elas valem ao mesmo tempo por si mesmas e por serem assecuratórias umas das outras, de maneira recíproca.9

Um direito processual penal que não é capaz de concretizar, de efetivar as garantias proporcionadas pelo direito objetivo albergado pelo ordenamento jurídico é um direito processual vazio, inútil, incongruente, equivocado, desprovido de funcionalidade. Na mesma medida, um direito processual civil que não é capaz de assegurar os direitos, os valores que amparam as pretensões levadas a seu juízo, sejam elas de cunho privatista ou até mesmo público, revela-se um mecanismo inapto à conrevela-secução de revela-seus propósitos.10

Como bem afirma Aury Lopes,11 retomando explicações de Carnelutti, o processo civil é um processo que se radica na relação do “ter”, dos sujeitos que

“têm” ou aspiram “ter”, em outras palavras, envolvem no mais das vezes

discussões de ordem patrimonialista, pecuniária. O processo penal, por sua vez, envolve a noção de liberdade, dentro de uma perspectiva inerente ao ser, à pessoa como ser humano, à dignidade deste indivíduo, aos pressupostos de uma existência e de uma formação dignas da pessoa humana. Como enfatiza Cláudia

Marlise da Silva Alberton Ebling, “a profunda distinção encontrada entre os dois processos, civil e penal, revelou-se afinal: no civil, se discute a cerca do haver e

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Mesmo para os adeptos de uma Teoria Geral do Processo - e não são poucos os que assim se posicionam - não há como fugir a uma necessidade premente de estabelecer diferenças precisas entre os diversos institutos que permeiam o processo penal e o processo civil. Ainda que se acredite serem as semelhanças existentes entre o processo civil e o processo penal bastantes a moldar uma teoria unitária, não há como olvidar a questão de que seus conceitos não podem ser aplicados indistintamente aos dois sub-ramos processuais, sob pena de haver uma confusão teórica incomparável, com deletérias consequências práticas. Torna-se forçoso admitir que o processo penal, pela natureza do bem envolvido - status libertatis do indivíduo - e das finalidades as que se volta, não pode se orientar por princípios civilistas.

Saliente-se, ainda, que a construção de teorias gerais é sempre possível. A possibilidade de encontrar denominadores comuns entre os diversos ramos do saber está a todo tempo presente. Classificações amplas que sejam capazes de albergar diferentes objetos é um processo quase que natural do ser humano e decorre da própria construção e desenvolvimento da linguagem. Como afirmam Ricardo A. Guibourg e outros, a necessidade de estabelecer sistemas de classificação surge exatamente da impossibilidade de nomear cada objeto ou coisa de forma individual, isto é, com um nome próprio, dada a infinitude de objetos em nossa realidade. Assim se manifesta o autor:

“Para evitar este insoportable engorro, agrupamos los objetos individuales

em conjuntos ou clases, y establecemos que um objeto pertencerá a uma clase determinada tales ou cúales condiciones: así, cualquier mueble destinado a que nos sentemos sobre será um sillón si tiene brazos, y uma silla si no los tiene. Com esto no solo hemos creado (o aceptado) los conceptos a que esas palabras se refieren: es decir, las particulares divisiones del universo que hemos decidido nombrar (em este caso, sustantivos comunes). Así, em distintos idiomas, las palabras 'silla', 'chaise', 'sella' o 'chair' desiganm aproximadamente um mismo concepto; y este concepto agrupa idealmente uma multitud de objetos, reales o imaginários, pasados, presentes o futuros, de madera, de bronce ou de cualquier material o forma, siempre que respondam a ciertos requisitos implícitos em el

proprio concepto”.13

Mais adiante, afirma o autor que a classificação é fato cultural, e eventualmente, meramente individual, não havendo, por assim dizer, classificações verdadeiras nem falsas. Esclarece: “Hay clasificaciones aceptadas o

poco conocidas, útiles o inútiles (para algún fin determinado), fructíferas o estériles (em alguna dirección determinada). Cada clasificacións tiene su propria utilidad, dentro de determinadas circunstancias o para ciertas personas o

funciones (...)”.14

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ideia de uma teoria geral a qual, por necessitar abstrair tanto os conceitos de modo a permitir que as diversas categorias pretendidas possam efetivamente se amoldar ao seu delineamento, acaba por perder o sentido de existir, tornando-se sobremaneira artificial. De fato, qual o propósito de se manter uma teoria geral se não é possível reconhecer nos seus elementos caracterizadores as próprias categorias que pretende albergar como subsistemas? Outro risco que se corre é o de submeter um destes sub-ramos a uma homogeneização, uma pasteurização descaracterizadora de suas especificidades responsável por obstar qualquer possibilidade de desenvolvimento próprio de uma conceituação mais adequada às suas reais necessidades.

3. INSTITUTOS E VALORES PROCESSUAIS PENAIS E A INCONGRUÊNCIA DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO

Nas próximas linhas deste breve artigo procurar-se-á fornecer uma abordagem de determinadas questões e aspectos teóricos do processo penal como forma de demonstrar a inviabilidade de uma teoria unitária do processo. Como dito alhures, dada a estreiteza da via, a pretensão desta autora não é esgotar a matéria relativa ao estudo desta suposta teoria geral, mas tão somente pincelar algumas questões relevantes para o entendimento da ideia proposta, até porque cada um dos tópicos adiante desenvolvidos pode ser objeto de uma monografia de maior profundidade na abordagem. Também não se pretende afirmar aqui que as prováveis incongruências desta teoria unitária estariam resumidas aos pontos ora tratados. Na verdade, elegeram-se algumas questões específicas por se entender tratar-se de questões fulcrais para o entendimento da lógica que permeia o processo penal e que o afastam da dinâmica conferida ao desenrolar do processo civil.

3.1 A jurisdição penal e a questão da substitutividade da atuação jurisdicional

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os sujeitos que com estes interajam não se oponham ao seu exercício. Na seara cível (ou extrapenal), a tutela jurisdicional é invocada, na maioria dos casos, quando falham as formas prévias de concretização do direito material, isto é, quando o sujeito vê frustrada a satisfação de seu interesse, do seu direito; neste momento o Estado é chamado a exercer, de forma substitutiva e secundária, a jurisdição como mecanismo de declaração, satisfação e assecuração do direito subjetivo material do seu titular. Como se observa, a lógica pensada para o processo civil é sobremaneira distinta daquela que move o processo penal.

3.2 Lide, pretensão e o processo penal

A teoria do processo é sempre calcada nos conceitos de pretensão e lide fornecidos por Carnelutti. Resta perguntar a respeito da viabilidade de aplicação destes conceitos ao âmbito do processo penal.

Lauria Tucci afirma ser de todo inadequada e inaceitável a transposição do conceito civilístico de pretensão para o processo penal.16

A pretensão é, na formulação proposta por Carnelutti, a exigência de subordinação do interesse de outrem ao próprio. Partindo desta noção, Tucci vem esclarecer que a pretensão somente é verificável concretamente, ocorrente entre duas ou mais pessoas, com efetiva atuação de uma das partes e negação da outra. A pretensão seria elemento caracterizador da lide, a qual se materializada pelo conceito de conflitos de interesses qualificado por uma pretensão resistida. A noção de pretensão foi indevidamente transportada por Carnelutti do processo civil para o processo penal - equívoco que foi posteriormente reconhecido pelo próprio estudioso - tomando o nome de pretensão penal ou pretensão punitiva, a

qual passou a ser definida como a “exigência de sujeição de alguém a uma pena”. O próprio Carnelutti veio posteriormente corrigir o seu erro, afirmando

que no processo penal esta “exigência só se coloca face a outrem que a deva

satisfazer, enquanto o Ministério Público, que está investido no magistério punitivo, não tem motivo nem possibilidade de exigir o seu exercício, de alguma

outra pessoa, e menos ainda do imputado”.17

Tucci complementa este raciocínio, afirmando exatamente a irrelevância do conceito de lide para a existência do processo penal o qual requer tão somente a ocorrência, ainda que suposta, de infração, por um indivíduo, a norma penal

material. Explica: “O autor da ação penal condenatória não efetiva nenhuma

exigência, em face de quem quer que seja (nem antes, nem quando da propositura e no desenrolar do respectivo processo), mas apenas requer a imposição de sanção penal ao processado; por certo que os conceitos de pretensão punitiva, ou ainda, de pretensão executória, não se adequam [sic] ao processo penal, sendo-lhe de todo estranhas”.18

O processo penal vai se caracterizar exatamente pela necessidade, inevitabilidade e obrigatoriedade de sua instauração. Sobre o assunto, manifesta-se Calamandrei:

“O processo penal não tem, de fato, o escopo de remover um desacordo

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amigavelmente composto entre os dois 'litigantes'; mas tem lugar porque, em nosso ordenamento jurídico, a punição do culpado só pode ocorrer mediante pronunciamento jurisdicional. O processo penal tem, portanto, em qualquer caso, para atingir o efeito jurídico da punição do réu, aquele mesmo caráter de necessidade (nulla poena sine judicio), que, no campo civil, para obter efeitos jurídicos que as partes não podem conseguir através de contrato, é próprio do

processo de tipo inquisitório”.19

Malgrado a irrelevância do conceito de lide conducente à descaracterização de uma contenciosidade no processo penal, este não pode dispor de uma necessária contraditoriedade. Com efeito, o processo penal não pode se contentar com a mera possibilidade de contraditório, como ocorre no processo extrapenal; muito ao contrário, deve a todo tempo estar marcado pela existência de um efetivo contraditório, real e indeclinável, dada precipuamente a indisponibilidade dos interesses em conflito e a necessidade de se resguardar ao máximo o status libertatis do indivíduo, expressão da dignidade da pessoa humana e base para a construção de uma sociedade democrática.

3.3 As condições da ação e o processo penal

As condições da ação, nos dizeres de Alexandre Freitas Câmara, são requisitos para que o processo seja levado a um provimento final, cuja ausência leva à prolação de sentença terminativa, isto é, de sentença que não contém uma resolução de mérito da causa levada a juízo.20 Trata-se, em verdade, de requisitos de admissibilidade cuja presença deve ser atestada pelo juiz, sumariamente, para dar prosseguimento ao processo e permitir a avaliação do meritum causae.

Tradicionalmente, entende-se que ao processo, de modo geral, devem ser aplicadas as seguintes condições da ação penal: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam. Estas categorias são, para os adeptos da Teoria Geral do Processo, aplicáveis de forma uniforme a todos os ramos processuais, incluindo aí o processo penal. Alguns acrescentam a esta lista a chamada justa causa (para o processo penal) que constitui a necessidade de comprovação da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria.

Jacinto Coutinho21 e outros, todavia, em razão da especificidade do processo penal, propõem a aplicação de condições específicas ao seu âmbito, deduzidas a partir do art. 43 do CPP.22 Seriam elas: tipicidade aparente, punibilidade concreta, legitimidade de parte e justa causa.

Juarez Cirino dos Santos assim define essas condições: “Nesse conceito, a

tipicidade aparente designa o tipo de injusto, excluindo ações atípicas e justificadas; a legitimidade de parte tem por objeto a divisão entre ações públicas e privadas; a punibilidade concreta exclui as hipóteses de extinção da punibilidade; e a justa causa tem por fundamento a prova da materialidade do fato e indícios suficientes de autoria”.23

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com a concepção tradicional das condições da ação, e tem o mérito de

reconhecer a especificidade do processo penal, “em que não existe liberdade de

partes (o Ministério Público é vinculado pelo princípio da legalidade e o acusado não pode subtrair-se, por ato de vontade, ao processo penal) e não existe igualdade entre as partes (o Ministério Público representa o poder punitivo do Estado em face do impotente acusado, submetido ao poder do Estado, queira ou

não queira)”.24

3.4 A coisa julgada no processo penal

O conceito de coisa julgada, no processo penal, apresenta uma concepção altamente divergente daquela com a qual o processo civil está habituado a lidar. No processo penal, a coisa julgada toma uma nova dimensão e seu caráter absoluto só é encontrado quando o Estado-juiz emite uma decisão de cunho absolutório ou extintivo da punibilidade; nestas circunstâncias, até em respeito ao primado da proibição do bis in idem e da revisão pro societate, não será possível a prolação de uma nova sentença com conteúdo modificado. Por outro lado, prolatada uma decisão condenatória, a coisa julgada perde a sua abrangência e importância, relativizando-se, sendo permitido exigir do Estado uma nova prestação jurisdicional e, com um importante detalhe, a qualquer tempo, através da chamada revisão criminal, a qual, diferentemente da ação rescisória do juízo cível, não tem prazo e só é admitida, frise-se, em benefício do

réu. Como bem acentua Rogério Lauria Tucci, “essa diversificação - ínsita tão somente ao processo penal - consubstancia-se, por certo, numa peculiaridade tal, que conota e distingue a coisa julgada como bivalente, e, consequentemente, incomparável com a formada em qualquer outra espécie procedimental extrapenal; vale dizer, sui generis, própria da jurisdição penal”.25

Tomando em consideração o quanto referido, em especial as palavras do autor, pode-se afirmar que a tão só existência de uma coisa julgada peculiar ao processo penal já faz refletir sobre as razões que levaram a esta diferenciação de um instituto tão relevante dentro dos estudos processualistas: certamente, não se pode olvidar que os bens e interesses em jogo dentro do processo penal têm, sem sombra de dúvida, uma atuação destacada neste fenômeno, imprimindo uma necessidade de se pensar categorias processuais aptas a atender a seus fins e razões. Em outras palavras, a coisa julgada, a par de outros institutos processuais que tomam uma feição diferente no âmbito do processo penal, assim é tomada em razão das finalidades que o processo penal de índole democrática deve buscar.

3.5 O princípio da presunção de inocência

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distribuição de forças dentro do processo, transformando-o em um fenômeno singular no Direito.

Como já referido, o status libertatis foi erigido à condição de direito fundamental do indivíduo. Assim, uma sociedade que se queira construir de modo salutar deve estabelecer-se sempre com o respeito à liberdade do indivíduo, pois é esta garantia que propiciará a construção de uma sociedade justa, igual e voltada às bases democráticas.

A presunção de inocência ou de não culpabilidade (também chamada status de inocência ou ainda direito de ser tratado como inocente como preferem alguns autores) é, de fato, um princípio de suma relevância e tem poder decisivo na definição das regras do jogo processual. Trata-se de um princípio reconhecido pelas mais importantes declarações relativas aos direitos humanos,26 inclusive pelo Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Americana sobre os Direitos Humanos) do qual o Brasil é signatário. Na Constituição brasileira, ele está

representado pela seguinte máxima: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito final da sentença penal condenatória”.

Assim, na seara do processo penal, dizer que uma pessoa é inocente significa dizer que, como indivíduo que guarda um status de liberdade na sociedade, a ela não podem ser impostas consequências penais - salvo algumas restrições advindas da aplicação de medidas cautelares - sem que haja sido provada, por meio de um devido processo penal, a efetiva prática de um fato previsto em lei como delituoso e o seu envolvimento na realização deste injusto penal. Desta forma, o que se observa é que o princípio de inocência - ou de não culpabilidade, como

insistem alguns mais resistentes à expressão “inocência”27 - visa guarnecer em primeira mão a condição de liberdade que deve gozar todo ser humano inserido numa sociedade lastreada em vínculos democráticos. A liberdade, por certo, é condição sine qua non para o desenvolvimento dos debates e espaços democráticos. E o princípio de inocência é um de seus mais relevantes instrumentos de concretização, pois constitui uma séria limitação ao poder e ao arbítrio do Estado nas relações com os particulares, quando aquele se vê empenhado na atividade de persecução penal.

Todavia, para que o princípio da inocência seja capaz de exercer a esfera de proteção necessária para garantir os valores democráticos erigidos por uma dada sociedade e, por conseguinte, os direitos individuais mais elementares dos cidadãos, é imperioso que detenha uma ampla abrangência. Simone Schreiber relata a influência da presunção de inocência no aspecto pertinente à atividade probatória do processo e, ainda, como indeclinável regra de tratamento ao acusado. Sobre o assunto, assim se manifesta, refletindo sobre as repercussões da presunção de inocência nas ordinárias regras de distribuição do ônus da prova:

“Enquanto no direito processual civil, o juiz, ao decidir, se limita a distribuir

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sempre dirimida a favor do réu, independentemente das regras ordinárias de

distribuição do ônus da prova”.28

Sem negar a possibilidade de outros efeitos e influências advindas da aplicação do princípio da presunção de inocência, conclui a autora seu pensamento:

“Nesse diapasão, foi possível demonstrar que o referido enunciado

constitucional tem múltiplas repercussões na prática jurídica, das quais são exemplos: o ônus da prova durante o processo penal e seu consectário lógico traduzido na máxima in dubio pro reo; a obrigação de que o Estado trate o acusado, no curso do processo (ou mesmo antes, durante a investigação), com a menor restrição possível a seus direitos fundamentais, preservando-lhe a dignidade e intimidade; a exigência de que a restrição da liberdade do réu seja fundamentada, em cada caso concreto, a partir da demonstração de dados fáticos que comprovem a necessidade da segregação cautelar; e, ainda, cria para os demais particulares a obrigação de dispensar tratamento compatível com o status de inocente presumido (ou seja, de acusado, mas não de condenado; de suspeito, mas não de culpado), sob pena de indevida agressão à privacidade, à imagem e à honra do indivíduo que está submetido a inquérito ou processo

penal”.

Para Alberto Binder, o alcance da expressão “presunção de inocência” está

intimamente ligado à noção de “julgamento prévio”. Ele entende estas

expressões como as duas faces de uma mesma moeda,29 em que o julgamento prévio seria mais amplo e compreenderia todo o desenvolvimento do processo. O âmbito de proteção destes princípios ou destas facetas, ainda conforme o julgamento de Binder, abarcaria as seguintes garantias ao jurisdicionado: que somente a sentença tem a faculdade de declarar que alguém é culpado; no momento da sentença só existiriam duas únicas possibilidades, ou a declaração de que o sujeito é culpado ou de que é inocente; a culpabilidade deveria ser juridicamente provada; a construção desta culpabilidade implicaria a aquisição de um grau de certeza; o acusado não teria que provar a sua inocência nem

poderia ser tratado como um culpado; e por fim, não poderia haver “mitos de culpa”, isto é, partes da culpa que não necessitassem ser provadas.

Aury Lopes bem observa que: “A presunção de inocência, enquanto princípio

reitor do processo penal, deve ser maximizada em todas as suas nuances, mas especialmente no que se refere à carga da prova (regla del juicio), e às regras de tratamento do imputado (limites à publicidade abusiva [estigmatização do imputado] e a limitação do (ab)uso das prisões cautelares”.30

Como se vê, a proibição da existência dos “mitos de culpa” como decorrência

da presunção de inocência proposta por Binder, relaciona-se intrinsecamente ao

que Aury trata como “carga da prova”. Nada mais é do que a tese da necessidade de o Ministério Público (órgão acusador de regra), como titular da ação penal, exercer a sua pretensão acusatória da maneira mais completa e responsável possível, fazendo comprovar e demonstrar, cabalmente, todos os aspectos atinentes à culpabilidade do suposto agente, retirando, desta forma, do réu o ônus de ter que comprovar sua própria inocência. Como assegura Aury em outra

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inocente, não lhe incube provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nesta desconstrução (direito de silêncio - nemo tenetur se detegere)”.31

Entendendo-se como juízo prévio ou como princípio da inocência, não há duvida de que as supracitadas garantias ou limites elaborados por tais doutrinadores, estabelecem uma razoável esfera de proteção ao status libertatis do indivíduo devendo ser observadas pelo Estado-juiz ao longo de todo o desenrolar do processo penal. Na verdade, para compreender a dimensão do princípio da inocência ou não culpabilidade, é preciso, de fato, estar aberto às suas diversas repercussões ou facetas, não devendo sua análise se limitar à reprodução da literalidade do texto constitucional.

Quando se estuda a presunção de inocência e suas implicações, é preciso ter em mente que a culpabilidade é um juízo que se constrói ao longo do processo e deve vir, necessariamente, reconhecido numa sentença penal final para poder fazer, legitimamente, surtirem os efeitos do jus puniendi do Estado sobre o acusado. Em outras palavras, isso significa que para condenar a uma pena, será necessária a aquisição, pelo órgão julgador, de uma certeza sobre a existência de um fato delituoso e de que tenha sido este crime praticado, efetivamente, pelo réu. Assim, mais uma vez reproduzindo as lições de Alberto Binder, conclui-se

que, “se a culpabilidade não for construída como certeza, surge a situação

basilar de liberdade”.32

Aury Lopes, reproduzindo as lições de Ferrajoli, assinala que “a presunção de

inocência é decorrência do princípio da jurisdicionalidade, pois, se a jurisdição é a atividade necessária para obtenção da prova de que alguém cometeu um delito, até que essa prova não se produza, mediante um processo regular, nenhum delito pode considerar-se cometido e ninguém pode ser considerado culpado nem

submetido a uma pena”.33

O princípio do favor rei - também conhecido como in dubio pro reu - é decorrência lógica da presunção de inocência. Reza tal vetor principiológico que, no processo penal, se remanescem relevantes dúvidas quanto ao fato imputado ao réu, deve esta dúvida conduzir, inexoravelmente, à absolvição do acusado, já que não foi alcançada a certeza suficiente e necessária a desconstituir ou destruir o estado de inocência do indivíduo cuja relevância prática e social é, como visto, a manutenção da sua condição de liberdade. Trata-se, como se pode constatar, de uma das repercussões ou facetas da presunção de inocência a ser obrigatoriamente observada no processo penal.

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dito princípio, não se pode pensar em uma distribuição de onus probandi entre as partes integrantes da relação processual. Ao órgão acusador compete a carga da prova, a obrigação de comprovar a existência de um delito, através da demonstração de todas as suas categorias dogmáticas, já que o crime, para o conceito analítico, é fato típico, ilícito e culpável, retirando do acusado o ônus de provar a própria inocência.34 Disso decorre o fato de ser inconcebível a tomada de presunções em desfavor do réu no processo penal (diferente do que ocorre no processo civil em que o réu pode sofrer com os efeitos da revelia e da ausência de comprovação dos fatos extintivos, modificativos e impeditivos do direito do autor).35 É também o dito princípio um dos indícios e fundamentos de que o processo penal brasileiro pensado pelo constituinte de 1988 lastreia-se em um sistema de índole acusatória, concepção teórica fundamental para se compreender, inclusive, o papel reservado ao juiz penal no tocante à colheita de provas, já que para Jacinto Coutinho, é o entendimento do que vem a ser gestão da prova e do sujeito da relação processual dela detentor, o núcleo informador do sistema processual que um dado ordenamento adota.36

Não se deve olvidar ainda de que aplicação da presunção de inocência também se reflete na possibilidade (ou na necessidade) de adoção de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial. A regra no processo civil é de que tais recursos não possuem efeito suspensivo, mas tão só o devolutivo, permitindo, desta feita, a execução imediata da sentença. No processo penal, ainda que presente um dispositivo no Código de Processo Penal reproduzindo tal conteúdo normativo, esta regra não pode vingar, já que esbarra exatamente no princípio da presunção de inocência, de matriz constitucional.37

Como se constata, não há como ignorar o fato de que a adoção da presunção de inocência acarreta para o processo penal uma transformação de valores e perspectivas tal, que é impossível a este manter-se nos mesmos moldes que caminha o processo civil, em virtude da feição especial que acaba tomando para si. Jaime Vegas Torres, ao tratar sobre o assunto, traz uma concepção de Carrara e afirma que este a vê como “un principio estructurador que extiende su eficacia sobre el proceso penal en su conjunto. Todo el proceso penal se pone al servicio

de la presunción de inocência”.

Continua o autor: “(...) el 'postulado fundamental del cual parte la ciencia penal' en sus estúdios acerca del procedimiento, el principio del que han de derivarse todos los limites que las formas procesales imponen a la actividade punitiva estatal, no es otro que la presunción de inocência. Esta presunción 'se toma de la ciencia penal, que de ella ha hecho su bandera, para opornela al acusador y al investigador, no con el fin de detener sus actividades en su legítimo curso, sino con el objeto de restringir su acción, encadenándola a una serie de preceptos que sirvan de freno al arbitrio, de obstáculo al error, y, por consiguiente, de protección a aquel individuo' (...) Así, en Carrara, el contenido de la presunción de inocencia alcanza su máxima amplitud: todos y cada uno de los momentos des proceso penal, todas y cada una de las reglas que lo disciplinan, encuentran su fundamento en la protección de la inocencia, de tal forma que la infracción de cualquiera de esas reglas se convierte en un ataque

dirigido, en último término, contra la propia presunción de inocencia”.38

(15)

A avaliação de todas estas questões ora tratadas, se não serve a demonstrar de vez a inaplicabilidade de uma teoria unitária do processo, serve ao menos para que se possa refletir sobre a natureza desta teoria geral que vem sendo ensinada e aplicada diuturnamente nas searas jurídicas brasileiras.

As categorias processuais ora abordadas, como se vê pelas polêmicas discussões teóricas envolvidas, e os valores e princípios informadores do processo penal, conduzem a uma verdade inexorável: o fato de que o processo penal não se sustenta sobre as mesmas bases de um processo civil e, portanto, não tem e não pode ter as mesmas finalidades, até pela diferença dos bens jurídicos atingidos em um e outro caso. As regras do jogo, desta forma - ainda que pese o fato de se dizer que o fenômeno processual seja o mesmo e deva tutelar, na forma em que se manifestar, as garantias constitucionais, a exemplo do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório -, não são as mesmas porque o processo penal, nos moldes democráticos como deve ser pensado, visa tutelar, sobretudo, uma das situações em que o ser humano se encontra em um estado de mais alta fragilidade frente à probabilidade de estarem prestes a lhe serem tomados pelo Estado, através do exercício de seu poder de punir, bens que lhe são os mais caros e indispensáveis à sua digna existência. Tal poder se justifica por outros interesses não menos razoáveis, é claro, mas nem por isso se despe do seu caráter violento e castrador, razão pela qual deve ser exercido nos estritos limites impostos pelas garantias constitucionais. Em outras palavras, a situação do réu penal frente à máquina estatal que exerce o jus puniendi é sempre de vulnerabilidade, até pelos aparatos que o Estado detém para realizar tal ministério. E por esta razão, sua situação como parte na relação processual penal deve ser vista de forma cuidadosa, de maneira a viabilizar o mais concretamente possível a máxima da presunção de inocência e assegurar sua condição como cidadão e como pessoa humana.

Como se observa, ainda que se pretenda manter uma teoria unitária do processo, é preciso que esta esteja bastante atenta às peculiaridades - que não são poucas, nem tampouco secundárias -, do processo penal e que terminam por alterar substancialmente conceitos bastante arraigados numa doutrina tradicional processualista. A pergunta que fica é: como manter a coesão de uma teoria geral, quando as disciplinas por elas pretensamente albergadas pautam-se por valores, construções teóricas, princípios e escopos tão diferentes e singulares?

1 . EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Teoria geral do processo: uma crítica

à teoria unitária do processo através da abordagem da questão da sumarização e do tempo no/do processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 34-36.

2 . Idem, p. 34.

3 . TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e

processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 54.

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desprestígio para o estudo do processo como categoria autônoma e independente.

5 . CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 16.

6 . Corroborando este entendimento, Jose Roberto dos Santos Bedaque: “O Código de Processo Civil brasileiro, não obstante exemplo de aprimoramento técnico, constitui diploma distante das necessidades da sociedade moderna, voltada precipuamente para uma categoria de interesses, cujas características e peculiaridades foram praticamente ignoradas pelas regras instrumentais. As normas codificadas têm em vista tão somente os conflitos envolvendo direitos individuais. Não são adequadas, pois, à regulamentação de processos cujo

objeto sejam interesses coletivos ou difusos” (BEDAQUE, José Roberto do

Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 15).

7 . Idem, p. 23.

8 . FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed.

RT, 2002. p. 432.

9 . Idem, ibidem.

10. Mais uma vez, recorre-se às palavras de Bedaque: “À luz da natureza instrumental das normas processuais, conclui-se não terem elas um fim em si mesmas. Estão, pois, a serviço das regras substanciais, sendo esta a única razão de ser do direito processual. Se assim é, não se pode aceitar um sistema processual não sintonizado com seu objeto” (BEDAQUE, José Roberto do Santos.

Op. cit., p. 22).

11. LOPES JR., Aury. Direito processual e sua conformidade constitucional. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2007. vol. 1, p. 35.

12. EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., p. 35.

13. GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro; GUARINONI, Ricardo V. Introduccion al conocimiento cientifico. Buenos Aires: Universitaria de Buenos Aires, 1996. p. 38-39.

14. Idem, p. 39-40.

15. LOPES JR., Aury. Op. cit., 2007, p. 24.

16. TUCCI, Rogério Lauria. Op. cit., p. 35.

(17)

18. TUCCI, Rogério Lauria. Op. cit., p. 36.

19. CALAMANDREI, Piero. Il concetto de lite nel pensiero di Francesco Carnelutti. Opere Giuridiche, vol. 1, p. 212. Apud TUCCI, Rogério Lauria. Op. cit., p. 34.

20. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2002. vol. 1, p. 107.

21. O dito autor assim se manifesta: “O tratamento das condições da ação, no Brasil, recebeu grande influência dos estudos de Enrico Tullio Liebman e da inadequada concepção que preza por uma teoria geral ou unitária do processo. Sem embargo do equívoco nela estampado, é preciso notar que decorrem as condições da ação, no processo penal brasileiro, da interpretação do art. 43 [revogado pela Lei 11.719/2008], combinado com o art. 18, ambos do CPP, aquele estabelecendo as hipóteses nas quais deve o juiz rejeitar a denúncia ou queixa, e este o completando em razão da regra do art. 43, III,

2.ª parte” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Da diferença entre ação e

processo: nulidade do processo decorrente de denúncia em caso de parcelamento do crédito nos crimes contra a ordem tributária. RBCCrim 73/326, São Paulo: Ed. RT, jul.-ago. 2008).

22. O art. 43 do CPP referido no texto foi revogado pela Lei 11.719/2008. O seu conteúdo, todavia, pode ser encontrado no atual art. 395 do mesmo diploma legal, para onde remetemos o leitor.

23. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC,

Lumen Juris, 2007. p. 663.

24. SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., 2007, p. 663.

25. TUCCI, Rogério Lauria. Op. cit., p. 40.

26. BINDER, Alberto M. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando

Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 85.

27. Para alguns estudiosos, o ordenamento brasileiro não teria adotado a máxima da presunção de inocência, mas o princípio da desconsideração prévia da culpabilidade, de âmbito mais restrito. Em razão da estreiteza desta via, não se torna oportuna uma discussão mais aprofundada sobre este tema, o qual merecerá a atenção e o tratamento devido, em momento posterior. Fica, no entanto, registrado o posicionamento desta autora no que sentido de que, a presunção de inocência foi, sim, abarcada pela Constituição de 1988 em seu sentido mais amplo, em razão da própria natureza democrática desta Constituição e dos valores humanos que esta pretendeu albergar, ultrapassando as interpretações literais e mesquinhas que alguns intencionam dar a alguns dispositivos constitucionais. Sobre o assunto, ver: SCHREIBER,

Simone. O princípio da presunção de inocência. Jus Navigandi, n. 790, ano 9,

Teresina, 01.09.2005. Disponível em:

[http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7198]. Acesso em: 21.12.2009.

(18)

29. BINDER, Alberto M. Op. cit., p. 87.

30. LOPES JR., Aury. Op. cit., 2007, p. 191.

31. Idem, p. 519.

32. BINDER, Alberto M. Op. cit., p. 88.

33. LOPES JR., Aury. Op. cit., 2007, p. 188.

34. Como afirma Aury Lopes: “É importante observar que, no processo penal, a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência. Infelizmente, diuturnamente nos deparamos com sentenças e acórdãos fazendo uma absurda distribuição de cargas no processo penal, tratando a questão da mesma forma que no processo civil. Não raras são as sentenças condenatórias fundamentadas na 'falta de provas da tese defensiva', como se o réu tivesse que provar sua versão de negativa de autoria ou da presença de

uma excludente” (LOPES JR., Aury. (Re)descobrindo as teorias acerca da

natureza jurídica do processo (penal). RBCCrim 75/112, São Paulo: Ed. RT, nov.-dez. 2008).

35. Ratificando o entendimento ora exposto, as palavras de Juarez Cirino dos

Santos: “A orientação ainda dominante na jurisprudência e literatura

brasileiras, pela qual a prova da tipicidade ainda incumbe à acusação, enquanto as provas das excludentes de antijuridicidade e culpabilidade incumbem à defesa, é uma consequência desastrosa da indevida extensão ao processo penal dos princípios do processo civil, em que a prova do fato constitutivo (do direito) incumbe ao autor, enquanto a prova de fato

impeditivo, modificativo ou extintivo (do direito) incumbe ao réu” (SANTOS,

Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 662).

36. Sobre o assunto, afirma o mencionado autor: “Ora, hoje ninguém mais com algum conhecimento duvida que um sistema processual se define pela gestão da prova e a quem ela cabe (v. arts. 156 e 502 do CPP) [o art. 502 do CPP foi revogado pela Lei 11.719/2008], embora não se descarte ser importante ao sumiço do actus trium personarum (Bulgaro) o fato de terem consumido a separação entre acusador-julgador, o que se deu em 1215 (...)” (COUTINHO,

Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCrim 175/2, ano 15, São Paulo, jun. 2007).

(19)

FILHO, Fernando da Costa. Prática de processo penal. 31. ed. rev., atual. e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 808).

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