Muitas vozes: algumas notas
A lc id e s V illa ç a
M u it a s v o z e s
F e r r e ir a G u lla r [ J o s é O ly m p io , 1 9 9 9 , 1 1 8 p .]
I .
Não é dif ícil d istinguir e descrever p roced im ent os da for
ma poética, que q uase sem p re se oferecem à p rim eira vis
ta; nem é m uit o difícil categorizá- los e ordená- los nessa
m esm a ordem da const rução ost ensiva. Sab em os, no en
tanto, que nosso sent im ent o da p oesia não se deix a esp e
lhar nos reconhecim ent os descritivos: im ant ad o p elo p o é
tico, adere à natureza dest e e resist e à ex t eriorização m ais
fácil, num a ex periência silenciosa que é ao m esm o t em p o
recom pensa e inq uiet ação. A crítica nasce desta in q u iet a
ção, porque quer qualificar, segundo seus crit érios, aq uela precisa recom pensa.
Vista de forma p anorâm ica, a m elhor p oesia de Ferreira
Gu llar pode ser reconhecida, desde A lut a corporal, num q u a
dro de p roced im ent os gerais, m uit o m arcad os e m esm o obsessivos: o poeta sem pre se int eressou em surp reender
o m últ ip lo, o sim ult âneo, o diverso e o m ovim ent o sob as
ap arências im p lacáveis do uniform e, do linear, do com p ac
to e do estát ico; ele sem pre buscou traduzir a ex p eriência
vert iginosa e ap rofund ad a que, dent ro do sujeit o, corre
num tem p o outro, reagindo à seqüência m ecanizada dos acont ecim ent os. Nas diferenças de q u alid ad e desses t em
pos - nas diferentes velocid ad es do t em p o - está um a p o
derosa fonte p oét ica de Gullar: há a ação do p assado sobre
o presente, há o seu ser e o do outro, há a presença do lá
dentro do cá, há o variad o pulsar da vida - e as som bras re
p o et a co m o t r ad u ção de um t em p o no outro. Qu est ão
essencial: d et er do inst ant e que passa ou que já passou a
in t en sid ad e que costum a se perder nos m odos da vida
ap ressad a e d esat enta; com a percep ção em p enhad a, sur
preender, em m eio à prosa im pura da vida, a insusp eit ad a
m at éria p oét ica que de repente salt a dela.
Diant e do ab solu t o ob scuro que é a morte, a d iver sid a
de dos t em p os é a garantia do que é vivo, a int ensid ad e de
cada coisa é a evid ência viva da m elhor percepção. "Min ha
p o esia" d isse Gu llar em palest ra recente, "é int eiram ent e
d ep en d en t e da prosa" Entenda- se: da prosa vital que corre no t em p o com um e que carrega, em bruto, a surpresa do
poético.
Hab it u ad o a esses recon hecim ent os gerais, ou m esm o
fam iliarizad o com alguns reit erados recursos de estilo, nem por isso o leit or de Gu llar deixa de sent ir em cada
poem a um novo poder de singularização. É que o leque ne
cessariam ent e finit o dos p ro ced im ent os alim enta- se, nes
ta poesia, da vid a m esm a, t ão farta em aspect os, t ão in t en
sa em cad a um.
2.
O t ít u lo do novo livro de Gu llar - M u i t a s vozes - já soa em si m esm o com o um com p asso súbit o ret om ad o de um a
fala fam iliar, que est eve por longos anos int errom pida.
Est am o s de novo d iant e da m atéria m ú lt ip la e do sujeit o
p rovocad o que a recolhe, su jeit o sem p re sensorial, im
pressivo e reflex ivo - creio que nesta ordem . De cert o m o
do, M u i t a s vozes cont inu a Ba r u l h o s , que co nt in uava Na ver t
i-g em do d i a, que acolhia ecos e rebent ações do Po em a su j o ,
cujo m odo de com p osição se p renunciava no b elíssim o
"Um a fotografia aérea” que, já em D en t r o d a n o it e veloz, or
questrava t ão b elam ent e sim u lt an eid ad es de esp aços e de
tem pos. No entanto...
No ent ant o este novo livro traz consigo as m arcas de um
t em p o que já ex cedem a força inaugural das represent a ções sim b ólicas m ais ansiosas: gravam- se no corpo e no
esp írit o com a dura confiança da p rim eira velhice, que lhes
dá um a nova t onalid ad e, sem cont ud o d esm ent ir o m ovi
m ent o orgânico de um cam in ho t ão pessoal.
Talvez nunca t enham sido t ão fortes as hom enagens de Gu llar à vida, no que ela tem de m ult ip licat ivo, porque
com plex a, e de belo, porque intensa. Não me refiro ex ata
m ent e à força da q u alid ad e estética, já assegurada desde
o livro de estréia; refiro- me à força vivencial que escapa da
m elan colia e da nostalgia, t ão p revisíveis e just ificáveis no
ou t on o alto, e que agora rende com o vid o t rib u t o t ant o ao
acúm ulo das ex p eriências já vivid as com o ao sem p re in t enso d esejo das novas:
Tive um sonho conclusivo:
sonhei que a vida era um sonho
e quando a vida acabava
o sonhador acordava
vivo
|"A August Willem sen"!
Tanto m ais brilha a vida q uant o m ais se esp elha cont ra
o morrer. Assim t am b ém pode ocorrer com as palavras:
aprendem a depurar- se m ais e m ais q uant o m ais ent end em
do silêncio a que se est ão furtando. Est e poeta, a ent rar
nos setenta anos, está esp ecialm en t e incisivo nos p oem as
em que a respost a dos sent id os é aind a m ais forte que o
im pério das lem branças. Se “o silêncio era frio/ no chão de
ladrilhos/ e branco de cal/ nas paredes alt as" "lá fora/ o sol
escald ava" O frio de dent ro e o calor de fora unem- se pela
qualid ad e da luz: "branco" e "sol" ("Evocação de silên cio s” ).
A luz voraz que consom e "nossos mortos/ acim a da cid ade"
está t am b ém "zunind o feito dínam o/ naq uelas m anhãs ve
lozes" ("M an h ã” ).
Silên cio e brancura não são, para Gu 1 lar, as inst âncias
abst ratas da cham ad a p oesia pura: são q u alid ad es senso-
riais da vida. Não parece atraí- lo o álib i ingênuo do "b ran
co da p ágina" nem a rarefação das p alavras cuja perfeição
se inscreve na ordem da celeb ração est ét ica autocontem -
plada. Num dos p oem as inesq u ecíveis do livro, "Fot ografia
de M allar m é” os versos int rod ut órios
é uma foto
premeditada
como um crime
est ão falando ap enas da fotografia posad a do poet a est a
t uár io ou d aq uelas p rem ed it ações m allarm ean as q ue d es
viam a p oesia dos im p act os da vida, inscrevendo versos no
cosm o alt ivo das palavras- m esm as - m und o da beleza p e
t rificad a? A poesia, com o na foto de Mallarm é, estará m e
lhor nesse t ão est ud ad o "arranjo" do "adrede prep arado"
da "m ant a eq uilib rad a" da "canet a d et id a" - ou será p re
ciso buscá- la (e encont rá- la) na ex pressão facial do p oet a
m orto, em cujo olhar o olhar do poeta vivo surpreende
aq uele desejo que nenhum p oem a pode satisfazer? Ho m e
nagem esquiva, t ão com ovid a q uant o d ist anciad a, o p o e
ma "Fot ografia de M allar m é” lem bra a ad m iração d ivid id a
do Gu llar p elo João Cabral que, t ão int enso na realização
de t ant os p oem as vivos, d out rina em out ros a p oesia ao
m odo do cálcu lo e do conceit o, arm ad o e p rem ed it ad o co mo quem se educa com as pedras (veja- se o poem a "Não-
coisa" que, em M u i t as vozes, pode arm ar um sugestivo d iálo
go com a p oesia cab ralina). Num rum o d ist into, a p oesia
de Gu llar quer escavar o que é t am b ém a insuf iciência das
palavras, um pouco aquém da força m esm a da vida, da for
ça d ram át ica cuja ex pressão se alcança, sim, com os n o
mes, m as que não se deix a encerrar int eir am en t e neles:
mas eis que
t eu olhar
encontra o dele
Macarm éi que
ali
do fundo
da morte olha
3.
Por am or à vid a e ao canto de v i t a l i d a d e ab solut a que.
por isso m esm o, nunca se realiza p lenam ent e Gu llar rela-
t i v i z a o a l c a n c e do p oem a e o do próprio corpo. Poem a e
c o r p o aliás quase se c o n f u n d e m , q uando a natureza das
p a l a v r a s é ent end id a e t om ad a com o abrigo p o s s ív e l de
um a ex pansão corporal. Com a p rática dessa relativização,
o p oet a de M u M i s v;:cs m ant ém a c e s o s no horizonte (em
a:ârgam ent o que sublim a e adia a m orte i os crit érios de um d ese;o sem p re insat isfeit o porque insat isfat ória é t o
da e x p e r i ê n c i a em sua singular beleza, t om ad a com o in d í
cio e p rom essa do b elo a b s o l u t o a v a l i z a d o pela morte.
A luz e o calor das p essoas e dos acont ecim ent os sur
gem p a r a G u l l a r num grau de e x c e s s o e de t ransbordam en-
to; c e r t e z as s e n s ív e i s do corpo, a l o n g a m - s e deste e d esa
f i a m a n o m e a ç ã o . A o rés da fala” (t ít u . o sugestivo de uma
n as p a n e s do livro), o p o e t a ap anha do chão. no cem itério,
um p a p e l am arrot ad o o n d e grava em palavras o am or pelo
filho que p a r t i u : o p oem a é só a notícia dessas palavras e
d aq uela flor deix ada no dia de finados sobre o m árm ore do
t ú m u lo mas a p oesia salt a do gesto e convoca um sent id o
m áx im o de paix ão.
O ab surdo da ex ist ência não se dá com o t em a f i l o s ó f i c o
para o poeta m aranhense que. desde m enino extraiu l i ç õ e s
naturais da lum inosid ad e de sua 5 ã o Luís (l i ç õ e s tão f o r t es
que o acom p anharam no l o n g o ex ílio); o ab surd o é o b e l o
m esm o, nas t ant as ep ifanias que duram t ã o pouco e t ant o
p rom etem , e s t i m u l a n d o a cada vez n o s s a fom e d e i a s Ab
surdo é Morrer no Rio de laneiro' em m eio "à festa da vid a" “com o parte que és dessa orquestra regida pelo so l
O im p act o cap richoso ie p o r v e z e s d ram át ico ) da beleza
é reconhecido em p leno cot id iano; m aterializa- se num
Elect r a 11 que. “q uase ao alcance das m ã o s ” surge r a s a r .t e
na rua Pau la Matos. O p r o s a i c o avião da p ont e aérea, que não perturba a ex pectativa de ninguém , perturba o poet a e
d etona um poem a, n ã o porque seja um avião m as porque
troux e c o n s i g o a beleza do i m p r e v i s t o - tal com o um a im a
gem poética. Com o s olhos p o s s u íd o s do esp ant o de um
hom em p rim it ivo um avião é visto com a surpresa da p ri m eira vez :
Foi um susto
vê- lo; vasto
pássaro metálico
(um segundo)
entre
os ramos rente
aos velhos telhados
("Electra M” |
Um sím ile se produz na associação Elect r a 11/ poem a: o
p rosaico de um ruíd o ent re outros, de um a visão entre o u
tras, que integra sem d issonância o quadro urbano, é per cebido p elo p oet a no asp ecto d ist int ivo de uma brevíssim a
ap arição ("um segund o") que, no entant o, perm anecerá
para sem pre. Visão rep ent ina e ruído súbito, ainda assim
quem reparará no avião regular da pont e aérea se não co n
servar, entre as t ant as visões e os t ant os ruídos da cidade,
a p ossib ilid ad e de um esp an t o ? Em m eio aos barulhos, o
est am p id o de um avião, com o a d et onação da poesia, "por
alt o dem ais/ não pode ser ouvid o"
O créd it o aos acon t ecim en t os com o fonte prim ária e
m aterial de p oesia está t am b ém em “Q'el bixo sesguei-
rando assum e ô t em p o" Chegand o a um sanatório, com
"um a horrível/ m aleta/ cor- de- abóbora" e "com m edo de/
m orrer o poet a se dep ara com cant eiros de crista- de- galo
que, num relance, lhe "parecem / de fato cristas/ de galo' -
im p ressão alucinat ória. Sem an as m ais tarde, vend o "um
galo/ no m eio das/ cristas- de- / galo" o p oet a im agina que
co nt in uava em m archa a alu cin ação da analogia entre no
mes e coisas, fazendo confund ir bichos e plantas, "m as aí/
o galo andou e saiu de ent re as plant as". A reversão da m e
táfora está com p let a: a linguagem da p oesia não é "d esvio"
ou "d eslocam en t o" da verd ad e realist a; é a plena recup er a
ção do p rim it ivo olhar, que se surpreendeu com as cor res
p ond ências do m und o natural e as aprox im ou num p ri m eiro batism o, para m uit o d ep ois vir a se surp reend er de
novo, q uand o a m etáfora outra vez se justifica - e se em an
cipa do "d esvio" p asseand o viva entre os canteiros.
4.
O ap roveit am ent o das ex p eriências vivid as com o fonte
direta da poesia gullariana poderia, em princíp io, sugerir
um a op eração análoga à da p oesia de um Manuel Ban d ei ra - mas é preciso at ent ar para um a diferença profunda,
que se esclarece nessa com p aração e ajuda a singularizar
o m odo p oét ico de Gullar. Para este, o d et alhe sensível e
m aterial é q uase que sist em at icam ent e t ransp ost o para
um a ordem m aior ex plicit ada, para um p lano o st en siva
m ent e alargado, no qual o d et alhe se inscreve em sua p e quenez justam ente para m elhor se am plificar. Assim , os "ru
mores/ de cão/ e gato/ e p assarin h o’ o p oet a os ouve "d ei
tado/ no quarto/ às dez da manhã/ de um novem bro/ no
Br asil" ("Ouvin d o ap en as” ); assim , "um a nesga d 'água"
vista na praia do len ip ap eir o surge com o "fragm ent o t al
vez/ da água prim eira/ água b r asileira" ("Evo cação de silên
cio s” ); assim , em "Pergunt a e respost a" a m ulher am ada,
q u e t em nom e e sob renom e, é "p oet a e m usa do p lanet a
Terra" referida ao sistem a solar, à Via Láct ea, aos "b ilhões
de galáx ias/ que à velocid ad e de 300 mil km por segundo/
voam e ex plodem / na noit e" A id ent ificação do que é m ais
d et erm in ad o se faz no p ressuposto de um t em p o e de um
esp aço que se ab ism am ; o reconhecim ent o do elem ent o
sensível, m ín im o em si m esm o, im p lica o reconhecim ent o
das virt ud es que não estão ap enas nele, mas se irradiam para a órbit a da infinitude. A d ialét ica ob sessiva da poesia
gu llariana encont ra no centro da m atéria m ais im ed iat a e
recortada - p recisam ent e aí - tod a a p ot ência da significa
ção que se abre para o espírito:
Weissm ann
escultor de hoje
a b r e a matéria
e mostra que dentro dela
não há noite mas
espaço
puro espaço
m odalidade transparente
de existência
|“Poema para Franz Weissm ann"]
A d elib erad a d ep en d ência da prosa, num poeta que d e
tém a t écnica de m uit as form as de versos, é um a escolha
t ant o vit al q u ant o p olít ica. Est a últ im a já não tem, em M u i
-tas vozes, a d ireção da d enún cia e a p lat aform a dos co n cei
tos; seu m odo at ivo está na const rução at ent a das relações
do sujeit o com os seres e os ob jet os do m undo. Manifest ar
a posse dessa cond ição inq uiet a de sujeit o; expressá- la no
âm b it o de um a rotina capaz, no ent ant o, de negar- se en
q uant o tal, e súbit o surpreender; em p en har o corpo e as
palavras na m u lt ip licação sensível t om ad a aos próprios fa tos da vida - eis algum as das cont rib uições de Gu llar para
a nossa lírica, deste m odo im p u lsion ad a para além do sen
t im en t alism o m ofino ou da est etização engenhosa. A d is
p osição gráfica dos versos m uit o curtos e cort ados não ocult a o d iscurso prosaico, nem quer disfarçá- lo: torna- se,
na verdade, crit ério de ênfase para a realização oral das p a
lavras, de uma ênfase d escon hecid a nas t ant as inform ações
que se at ropelam na vida m oderna. O d iscurso espacial- m ent e fragm ent ário dos p oem as de Gu llar é a sua forma
de valorizar o t em p o de cada palavra, de cada coisa, de ca
da sensação - t om ad as em si m esm as, prim eiro, e depois
na rearticulação com a vida. Surpreender- se com um novo
ritm o e novas ênfases na m at éria da vid a é um a forma justa de se ouvir o canto de M u i t as vozes.
A lc ide s V illa ç a é p r o f e s s o r d e L i t e r a t u r a B r a s ile ir a d a U n i v e r s i
d a d e d e S ã o P a u lo e p o e t a , a u t o r d e V ia g e m d e t r e m [ D u a s C i d a
d e s , 1 9 8 8 ], e n t r e o u t r o s .
Teresa n?1
1? s e m 2 0 0 0
p p . 2 2 7 a 2 3 2