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A CONSTITUIÇÃO DA INFÂNCIA: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS DE UMA ESCOLA PÚBLICA CATARINENSE SOBRE A EXPERIÊNCIA DE SER CRIANÇA E DE SER ALUNO

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ROSANA BECKER

A CONSTITUIÇÃO DA INFÂNCIA: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS DE

UMA ESCOLA PÚBLICA CATARINENSE SOBRE A EXPERIÊNCIA

DE SER CRIANÇA E DE SER ALUNO

FLORIANÓPOLIS/SC

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MESTRADO EM EDUCAÇÃO E CULTURA

ROSANA BECKER

A CONSTITUIÇÃO DA INFÂNCIA: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS DE

UMA ESCOLA PÚBLICA CATARINENSE SOBRE A EXPERIÊNCIA

DE SER CRIANÇA E DE SER ALUNO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Educação e Cultura da Universidade do Estado de Santa Catarina como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre em Educação.

Orientadora: Professora Dra. Ione Ribeiro Valle.

FLORIANÓPOLIS/SC

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AGRADECIMENTOS

À professora Doutora Ione, orientadora, incentivadora e amiga, com quem aprendi que orientar é, inclusive, ajudar a orientanda a crer em si mesma e no seu trabalho.

Às professoras Doutoras Eloísa Acires Candal Rocha e Gláucia de Oliveira Assis, pelas valiosas contribuições dadas a esta pesquisa quando da realização do exame de qualificação.

Às crianças da escola, que emprestaram seus testemunhos, sem os quais o presente trabalho não teria sido realizado.

Às profissionais da escola onde foi realizada a pesquisa, em particular, à Marilane, pela acolhida.

À minha mãe e ao meu pai, cujos sacrifícios de amor possibilitaram-me estar aqui.

Às minhas irmãs, irmão, sobrinhos, sobrinhas, cunhada e cunhados que, em silêncio sempre torceram por mim.

A algumas crianças em particular: Letícia, Júlia, Eduarda e Caio, por me darem tantas razões para ser feliz.

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À Lúcia, não só pelos socorros na informática, mas pelo nobre exemplo de companheirismo.

À Maria Tereza, amiga, que compartilhou comigo das viagens, das angústias, das dificuldades e alegrias do mestrado.

Ao Vital, Brigitte e Raquel, pela amizade e contribuição.

(7)

“A infância é uma dimensão – impensada e imprevisível – da experiência humana”.

(8)

RESUMO

Buscando compreender como constitui-se a infância na relação entre ser criança e ser aluno, é que optamos por este tipo de investigação. Para tanto, realizamos pesquisa de campo numa escola pública do município de Joinville, no Estado de Santa Catarina, elegendo as crianças como as principais informantes e protagonistas. A aproximação com a realidade dessa escola possibilitou-nos conhecer e interpretar o “ponto de vista” das crianças sobre a sua experiência de ser criança e ser aluno, que é vivida conforme a autorização dos adultos. Tratamos de compreender tanto o que as crianças falam sobre essa experiência, como a forma que a vivenciam. Para a consecução desse objetivo, nos valemos de observações, registros e análises de desenhos das crianças, bem como de conversas informais e fotografias. Ao reconhecer a criança como um ator social, sujeito histórico de direitos, que se apropria e produz cultura, buscaram-se os interlocutores que tratam da infância para construir o caminho trilhado teórica e metodologicamente. Neste processo, encontramos nas crianças as possíveis “pistas” que indicam como elas vivenciam essa experiência do “entre-lugar” a que estão submetidas como produto da concepção hegemônica de infância, nas instituições educativas, construída pela modernidade.

(9)

ABSTRACT

The aim for having undergone such inquiry happened due to the fact of trying to understand better the relationship between being a child and a pupil. For that reason, a public school in the town of Joinville situated in Santa Catarina state was chosen as the object of the survey in which children were the source and the protagonists as a whole. Being familiarized with the real situation of the mentioned institution, that indeed contributed significantly on finding out and interpreting the children’s point of view about their involvement in terms of being a child and a pupil, is outlined in accordance to adult’s approval. Not only the way children live contributed on the understanding but also the way they talk about their experiences. Therefore to get as far as our objective, children observation, their records and their drawing analysis was taken into account, as well as informal talks, and their pictures taken. It was also dealt with authors who have written about childhood as an alternative to a theoretical and methodological path with the purpose of recognizing a child as a social character, a historical element with rights, someone who is able to get hold and produce culture. Through this process, in the context they are revealed, children showed us they are the evidence which support the relationship between being a child and a pupil and its implications in the dominant setting they are exposed to as a conceptional product in the educational institution, introduced by modern society.

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LISTA DE FIGURAS

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LISTA DE DESENHOS

Desenho 1 - Júlia... 149

Desenho 2 – Bruna... 150

Desenho 3 - Ester... 153

Desenho 4 - Yuri... 155

Desenho 5 - Diego... 157

Desenho 6 - Marcelo... 158

Desenho 7 - Marcos... 158

Desenho 8 - Cauê... 160

Desenho 9 - Augusto... 161

Desenho 10 - Ariane... 164

Desenho 11 - Gabriel... 165

Desenho 12 - Patrícia... 166

Desenho 13 - Bruna... 167

Desenho 14 - Otávio... 172

Desenho 15 - Joyce... 177

Desenho 16 - Elana... 178

Desenho 17 - Gustavo... 179

Desenho 18 - Pâmela... 184

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Desenho 20 - Ariel... 185

Desenho 21 - Rafaela... 187

Desenho 22 - Bruna... 190

Desenho 23 - Kamila... 191

Desenho 24 - Fernanda... 191

Desenho 25 – Bruna... 193

Desenho 26 - Andresa... 197

Desenho 27 - Isabela... 198

Desenho 28 - Cauê... 200

Desenho 29 - Lucas... 200

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LISTA DE FOTOGRAFIAS

Foto 1 – Vista aérea parcial da cidade de Joinville... 40

Foto 2 – Vista aérea do entorno da instituição educativa locus da pesquisa. ... 43

Foto 3 – Vista lateral do muro que separa a escola estudada de um centro de educação infantil... 44

Foto 4 – Vista aérea do centro de educação infantil lócus da investigação... 45

Foto 5 – Vista aérea do centro de educação infantil... 46

Foto 6 ... 123

Foto 7 ... 124

Foto 8 ... 125

Foto 9 ... 126

Foto 10 ... 127

Foto 11 ... 128

Foto 12 ... 129

Foto 13 ... 130

Foto 14 ... 131

Foto 15 ... 132

Foto 16 ... 133

Foto 17 ... 134

Foto 18 ... 135

Foto 19 ... 136

(14)

Foto 21... 138

Foto 22... 139

Foto23... 140

Foto 24... 141

Foto 25... ... 142

Foto 26... 143

Foto 27... 144

Foto 28. ... 145

Foto 29... 146

Foto 30 ... 147

Foto 31 – Responsável pela vigilância observa o recreio das crianças ... 169

Foto 32 – Momentos que evidenciam os mecanismos de resistência entre as crianças... 174

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SUMÁRIO

1 UMA HISTÓRIA INTRODUTÓRIA...17

1.1 RECUPERANDO RASTROS ... (RE)PERCORRENDO OS CAMINHOS ...17

1.2 CONTEXTUALIZANDO A PROBLEMÁTICA ...27

2 O CAMINHO INVESTIGATIVO E METODOLÓGICO...32

2.1 CARACTERIZANDO O “CORPUS” DA PESQUISA ...34

2.2 DESCRIÇÃO DOS PROCEDIMENTOS...37

2.3 INSERÇÃO NO CAMPO: LOCUS DA INVESTIGAÇÃO ...39

2.3.1 Coleta de dados ...47

2.3.2 Descrição das Técnicas Utilizadas ...48

2.3.3 Análise e interpretação dos dados ...49

2.4 PASSAGENS DA IMAGEM: O RETRATO QUE ME FAÇO TRAÇO-A-TRAÇO .52 2.4.1 Os desenhos falam: captando as manifestações expressivas das crianças ....52

2.4.2 Entre a essência e o visível: o olho que fotografa ...60

3 ESPELHO TEÓRICO ...65

3.1 UM SOBREVÔO PELA HISTORIOGRAFIA DA INFÂNCIA ...65

3.1.1 Criança e infância na sociedade ...68

3.1.2 Entre crianças, curumins e erês: as trilhas da infância no Brasil...72

3. 1.3 Um olhar sobre as “Infâncias” ...78

3.1.3.1 Institucionalização de espaços para o atendimento da criança no Brasil...83

3.1.4 Centro de Educação Infantil: a criação de um espaço possível para viver o tempo da infância ...90

3.1.5 O contexto educativo e o processo de socialização da infância: uma perspectiva sociológica ...94

3.2 OFÍCIOS: UMA VISÃO SOCIOHISTÓRICA...100

3.2.1. Ofício de criança ...105

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4 CADA UM SABE A DOR E A DELÍCIA DE SER O QUE É...115

4.1 O DESENHO COMO EXPRESSÃO DAS CRIANÇAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DE SER CRIANÇA E DE SER ALUNO ...115

4.1.1 Representações infantis: as crianças falam sobre a experiência de ser criança e de ser aluno...121

4.1.2 Infância como realidade cultural: criança e brinquedo ...122

4.1.3 A criança como ator social: a escola e os processos de socialização...163

4.1.4 Aluno como invenção institucional: conformação pedagógica ...182

5 À GUISA DE CONCLUSÃO ...205

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UMA HISTÓRIA INTRODUTÓRIA

A Jovem Professora (1736-1937)

Jean-Baptiste-Siméon Chardin

Óleo sobre tela, 62 x 66 cm.

National Gallery, Londres

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1 UMA HISTÓRIA INTRODUTÓRIA

1.1 RECUPERANDO RASTROS ... (RE)PERCORRENDO OS CAMINHOS

“Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo.”

WALTER BENJAMIN (*1892 + 1940)

Começo escavando e recordando os caminhos que me levaram a construir-me professora1 e pesquisadora.

Fui menina nos anos 60! E como a maioria das meninas, gostava muito de brincar de escola, assumindo sempre o papel da professora, mais especificadamente da minha primeira professora, Carmen (in memoriam); eu queria me parecer com ela.

1

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A esse respeito Arroyo (2000, p. 124) sugere que o processo de identificação profissional vai se dando desde cedo, quando “as lembranças dos mestres que tivemos podem ter sido nosso primeiro aprendizado como professor”.

Tanto tempo faz... caberia questionar: teria eu internalizado, nas brincadeiras de imitação que vivenciei na infância, a imagem de ser professora?

Fui crescendo e, por incentivo de meus pais, ingressei no magistério. Eles tinham apenas uma escolarização mínima. Ele saiu muito moço da casa paterna e dedicou-se à sua profissão de caminhoneiro. Desta forma, sua vida era muito solitária, pois passava a maior parte do tempo de um lugar para outro, viajando sozinho, longe da mulher e dos sete filhos, seis meninas e um menino. Mamãe dedicou-se às tarefas domésticas. Eu, nascida no início de 1960, era a mais velha de toda a prole. Foi com meus irmãos que partilhei meu tempo de criança e também de maternagem, pois dividia com minha mãe a responsabilidade pelo cuidado dos menores.

Meus pais fizeram muito sacrifício para que seus filhos estudassem e tivessem um futuro diferente do deles. Um futuro que se traduzia em oportunidade de estudo. Essa história nada tem de original, pois é semelhante à de tantas outras famílias das classes populares que depositam a perspectiva de futuro ou mobilidade social na educação dos filhos.

A reflexão de Bourdieu (1999, p. 41) parece-nos pertinente para esclarecer essa questão:

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Aos dezesseis anos, consegui o meu primeiro trabalho oficial, foi como auxiliar de educadora2 de educação infantil no Jardim de Infância da Igreja Luterana (da qual minha família fazia parte), situada na cidade de Corupá, interior catarinense, onde nasci.

Com os estudos do magistério concluídos, sentindo-me adaptada ao trabalho com as crianças, estimulada pela amiga também professora Salma, prestei o vestibular para pedagogia na cidade de Joinville. Após a aprovação, os primeiros obstáculos apareceram: Onde morar? Com quem? Onde trabalhar? Como pagar a faculdade? Mesmo diante dessas dificuldades, meus pais consideravam importante assegurar o acesso da primeira filha na faculdade. Segundo Bourdieu (1999, p. 44),

A presença no círculo familiar de pelo menos um parente que tenha feito ou esteja fazendo o curso superior testemunha que essas famílias apresentam uma situação cultural original, quer tenham sido afetadas por uma mobilidade descendente ou tenham uma atitude frente à ascensão que as distingue do conjunto das famílias de sua categoria.

Naquele contexto de cidadezinha interiorana, onde o mercado de trabalho, especialmente para as mulheres, era bastante restrito, ter sido aprovada no vestibular de pedagogia e ter o “dom” para ser professora era um privilégio, uma vez que este era o sonho de muitas jovens da época e também de seus pais que, influenciados pela visão das Escolas Normais, consideravam a profissão natural e a mais indicada para as mulheres.

O estudo de Valle (2002, p. 211) sobre a questão da identidade docente assinala que:

marcados desde sua origem por uma formação destinada às mulheres, as Escolas Normais associam a atividade de ensino a uma concepção de dom

2 O termo “educadora” referenciado neste trabalho traz implícito o significado utilizado pelos

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e de vocação tipicamente feminina, e em conseqüência, engendram uma relação fortemente missionária com o magistério.

Teria, então, construído a minha identidade profissional, além da internalização da imagem da professora que imitei e, paralelamente, sido influenciada pelas práticas vivenciadas no curso de magistério oriundo das antigas Escolas Normais? Conservo daquela época a lembrança de que um dos meus maiores desejos era morar numa cidade grande e, se assim desejava, era necessário ousar, enveredar por caminhos até então desconhecidos.

Quando cheguei a Joinville, maior cidade do Estado, localizada no norte catarinense, conhecida também como importante pólo industrial e cultural, em fevereiro de 1979, para incorporar-me à faculdade, fui acolhida nos primeiros meses por uma tia de meu pai (Naíde). Posteriormente, incentivada e apoiada também por ela, minha família decidiu mudar-se para essa cidade, projetando estender a escolarização de toda a prole.

Valle (2002, p. 220) reflete sobre esta questão, afirmando que “a aquisição da cultura escolar exige portanto fortes investimentos pessoais e a aplicação de certas estratégias familiares”.

As coisas tinham mudado muito e uma nova fase da minha vida pessoal e profissional estava delineando-se. Fui contratada em caráter temporário, como educadora num Jardim de Infância, denominação da época, estabelecimento da Rede Pública Estadual, onde mais tarde ingressei como professora efetiva do quadro do magistério.

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Depois de alguns anos, já pedagoga, aceitei um convite para morar no Estado de Mato Grosso. Como conseqüência, afastei-me do convívio direto com as crianças e naquele Estado passei a exercer as funções técnicas para as quais fui habilitada, típicas do curso de pedagogia, criadas após a reforma universitária dos anos de 1970.

Embora não estando diretamente ligada às crianças, continuei sentindo-me atraída pelas questões inerentes a elas, procurando, desta forma, manter-me atualizada e próxima do universo infantil, por meio de leituras, estudos, capacitações e visitas às instituições educativas.

Talvez não fosse necessário relatar, mas não posso perder a oportunidade de registrar também aquela experiência vivida em outro Estado, com base econômica agrária latifundiária, formado por várias descendências, portanto possuidor de repertórios culturais variados, a qual muito contribuiu para acentuar as angústias e inquietações no que concerne ao descaso com a educação, a escola e a infância brasileira.

Mas, como a vida é um constante processo de ir e vir, anos mais tarde retornei à cidade de Joinville e fui reconduzida profissionalmente à mesma instituição educativa, como já citado anteriormente.

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Diante disso, afloram forte algumas questões: Qual a concepção de infância que permeava aquele contexto? Quem eram aquelas crianças? O que sabíamos sobre elas? Como lidávamos com elas? O que era ser criança?

Com a cabeça fervilhando, inquieta pelas questões acima mencionadas, outro desafio colocou-se diante de mim: um convite para assumir a função de diretora adjunta de uma escola pública. Estremeci, pois, esse desafio era diferente dos demais e, nesse sentido, também distinto era o meu entusiasmo, primeiro porque se tratava de uma escola considerada de grande porte e, segundo, porque apesar da minha trajetória profissional, não me sentia experiente o suficiente para tal função. Mas, por outro lado, eu sabia que enfrentar situações daquele tipo era necessário para ampliar o referencial sobre educação, escola e infância.

Passado algum tempo, surgiu uma outra oportunidade para exercer um cargo técnico. Fui trabalhar, então, num órgão regional ligado à Secretaria de Educação, com a responsabilidade de implementar políticas, práticas, orientações e informações inerentes à educação.

A essa altura, com o espírito já provocado, aproveitei a experiência para me aproximar e conhecer melhor a dinâmica das instituições educacionais, bem como os seus sujeitos-adultos, adolescentes e crianças.

No âmbito dessa função, também foi possível integrar-me no grupo multidisciplinar da Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina3, ora como docente de educação infantil, ora como estudiosa dos assuntos ligados à área do conhecimento.

3

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Ao longo dessas trajetórias foi crescendo a minha convicção de que era necessário aprofundar as questões sobre infância, que ainda me inquietavam.

Assim, ingressei como aluna especial no Mestrado/UFSC, na disciplina de educação infantil4.

Tempos depois, outra trajetória alia-se às demais: o trabalho na Universidade5, minha atuação como professora na disciplina de 4 a 6 anos e estágio supervisionado no curso de pedagogia, habilitação em Educação Infantil e Séries Iniciais, sendo, estes, fios importantes que foram se entrecruzando e ampliando a necessidade de buscar respostas.

O espaço universitário apontava novas possibilidades, fui construindo vivências, aprofundando o conhecimento de outras obras e autores.

Perspectivando então a qualificação, em dezembro de 2001 inscrevi-me para seleção de mestrado, ingressei como aluna regular no Programa de Mestrado em Educação e Cultura da UDESC, no mês de março de 2002. Pela minha história profissional e pessoal, optei em desenvolver o anteprojeto pela via da linha de pesquisa Estado, Políticas Públicas e Movimentos Sociais, pois inicialmente as experiências administrativas motivavam-me a discutir a questão da Gestão, em especial sobre os Gestores que atuavam no cotidiano das crianças pequenas.

Após a aprovação e, por entender a importância desse momento em minha vida, debrucei-me sobre algumas leituras. Assim procedendo, deparei-me com o artigo “Emergência de uma sociologia da infância: Educação do objeto e do olhar”, de Régine Sirota.

4 A referida disciplina foi ministrada pelas Professoras Dra. Ana Beatriz Cerizara e Dra.

Heloisa Acires Candal Rocha, no ano de 1999.

(25)

Influenciada pelo artigo citado, optei por cursar uma das disciplinas do primeiro semestre, intitulada: “A Sociologia da Educação: entre ilusão pedagógica e fatalismo sociológico”. 6

Foi no decorrer das discussões que as inquietudes se intensificaram, sentia necessidade de ampliar meus conhecimentos sobre sociologia, o que me impulsionou a buscar e rebuscar outras leituras na área, pois estava convencida de que meu objeto de pesquisa apontava para uma perspectiva sociológica, na medida em que eu percebia a criança como um ator social, como um “povo com traços específicos”7 e também por desejar discutir sobre os atores que agiam na construção social da infância e, ainda, por ter clareza de que era preciso produzir conhecimentos e desenvolver pesquisas que revelassem a criança e não mais simplesmente o aluno na educação infantil.

Essa cinesia levou-me a definir novos rumos de pesquisa, de estudo e trabalho. As incertezas dessa nova escolha foram marcadas por momentos de angústia e impotência, pois não percebia o quanto era amplo e pouco estudado o tema que me fascinava. A cada momento ele se apresentava mais nebuloso e mais distante. Poucos meses depois, em fevereiro de 2003, em face de novas vicissitudes, uma inesperada experiência se justapõe: a direção de outra escola pública. Foi esse atalho que me possibilitou cruzar o limiar da educação infantil e, ampliando o olhar, tecer os fios da infância com os fios da escola e, conseqüentemente, definir meu objeto de pesquisa, o qual sempre me acompanhou,

6

O programa da referida disciplina, ministrada pela Professora Doutora Ione Ribeiro Valle, tratava de: trajetórias da sociologia, fundadores da sociologia, história e desenvolvimento da sociologia da educação, modernidade: uma tradição sociológica, campo sociológico francês: um importante campo teórico e de pesquisa, dominação e reprodução: nova abordagem teórica-metodológica, teses reprodutivistas e sistemas de ensino, novos olhares sociológicos: novos campos para a sociologia da educação, influência da sociologia européia da educação sobre a pesquisa educacional brasileira, emergência de uma sociologia brasileira de educação.

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mas que minha visão engessada, circunscrita à criança de 0 a 6 anos, não me permitia ver.

Na escola, comecei a me aproximar mais efetivamente da criança que estava no aluno. Tentando compreender “seus mundos”, estabeleci com elas uma relação de afeto (talvez influenciada pela prática na educação infantil, que apesar de obedecer ainda a uma lógica institucionalizada no padrão escolar, possibilita às crianças exercer a sua infância através do toque, das brincadeiras, gritos e correrias), o que, aos olhos dos professores da escola, causava estranhamento.

Esse estranhamento aumentou meu desassossego e, com profunda tristeza, percebi que as crianças eram “forçadas” a despedirem-se todos os dias da sua infância, no portão da escola, onde deviam entrar sem correr, nem gritar, uniformizadas, mochilas cheias, tarefas feitas, colocar-se em fila, aguardar a professora e, finalmente, serem confinadas em uma sala de aula, geralmente, pintada de cinza, coberta por alfabeto, numerais, cartaz de aniversariantes quase sempre decorado com motivos da Walt Disney (na maioria confeccionado pela professora) onde permaneciam sentadas, de preferência por ordem de tamanho, uma atrás da outra, realizando as atividades determinadas pela professora durante as quatro horas do dia, o que Foucault (2002, p. 123) denomina de “princípio do quadriculamento e a fabricação dos corpos submissos e dóceis”. Ou seja, a máquina escola com sua rotina rígida, uniforme e homogeneizadora parece dificultar à criança a possibilidade de vivenciar, com um mínimo de dignidade, a sua infância.

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ser lugares privilegiados de escuta sobre os desejos e críticas das crianças. Isto levou-me a refletir: como contaminar as colegas professoras, para que pudessem percebê-las em sua complexidade.

Esta relação custou-me momentos de embates e dissabores junto aos “adultos” da escola, provocando a ira de alguns que me acusavam, entre outras coisas, de ser muito “mãezona” e passar a mão na cabeça das crianças. Essas atitudes reforçavam a compreensão que a maioria dos professores tem das crianças como seres a-históricos, despossuídos de expectativas, desejos e capacidades. Este posicionamento revela a forma “adultocêntrica”8 de olhar as crianças que impedem os adultos de enxergá-las na complexidade das relações que se intercruzam nas suas diferentes constituições, vistas como alguém que precisa ser “domado”, disciplinado, tornado gente, adulto, mas nunca cidadão responsável, ator de direitos e deveres.

Esse panorama de confrontos e de profundo desconhecimento das professoras, até certo ponto involuntário sobre a infância9, afetou diretamente a minha escolha (o afastamento da função) e me levou a pensar mais criticamente sobre a infância e a criança que está no aluno da escola pública. Quem são as crianças que freqüentam a escola pública e como essas crianças interpretam e compreendem o fato de ser ou estar aluno(a)? Quais os mecanismos usados pelas crianças para garantir a sua infância naquele espaço?

Com estas questões e com as recordações, memórias e vozes que constituíram meu percurso, bem como a minha essência, estabeleço o lugar de onde

8

De acordo com GOBBI (1997, p. 26), na visão adultocêntrica o modelo é o adulto e tudo passa a ser visto e sentido segundo a sua ótica, ele é o centro.

9 A esse respeito vale a pena conferir a dissertação de mestrado de FLOR, Nelzi. O lugar da

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falo, e onde situo minha pesquisa em torno da infância, e da criança que está no aluno da escola pública catarinense, em particular, ciente das dificuldades desse percurso em face do escasso material para suporte teórico, pois as pesquisas ainda são incipientes.

1.2 CONTEXTUALIZANDO A PROBLEMÁTICA

Os avanços no campo dos estudos sobre a criança apontam, no caráter macrossociológico, para a sociologia da educação, e no caráter microssociológico, para o pensar em uma sociologia da infância, que foca o ofício da criança. De acordo com Sirota (2001), a emergência de uma sociologia da infância pode ser sinalizada a partir da aparição da noção de ofício de criança, ou seja, o desafio de levar a sério a criança, rompendo com a sociologia clássica. Montandon (2001), fazendo um balanço dos trabalhos sobre a infância publicados em língua inglesa, aponta a emergência de um novo campo de estudos: a sociologia da infância. Parte da perspectiva da infância como uma construção social específica, com uma cultura própria e que, portanto, merece ser considerada nos seus traços específicos. No seu estudo, a autora assinala que, embora o interesse pelos estudos das crianças existe há muito tempo10 , a partir de 1980 é que os pesquisadores da área vêm sentindo a emergência da discussão desses estudos. As pesquisas sobre as crianças a partir do ponto de vista delas próprias e não do ponto de vista das famílias e dos professores, ainda são poucas, embora o interesse dos sociólogos e outros

10 Segundo a autora, os primeiros trabalhos sociológicos sobre crianças ocorreram nos EUA

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pesquisadores sobre o tema tenha se intensificado a partir das últimas décadas. A autora referenciada anteriormente ainda afirma que nos estudos sobre o tema as relações entre as crianças foram os que mais contribuíram para uma tomada de consciência do interesse por uma sociologia da infância e da inadequação dos paradigmas existentes. Aponta a realização de várias pesquisas que dão voz às crianças buscando saber mais sobre as interações, significações, argumentações que elas produzem.

Nesse estudo tomamos a palavra criança para significar uma classe especial de “atores sociais”11 cuja idade varia entre 0 e 12 anos (ECA, 1990). Delgado e Müller (2000, p. 176) destacam que “as crianças são atores sociais porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem aos adultos e desenvolvem estratégias de luta para participar do mundo social”. Esta questão emerge inspirando a formulação do problema. Como é possível uma criança, apesar da vida vivida na escola, preservar-se criança? A partir dessa indagação, configura-se o problema sobre o qual estrutura-se a investigação. Analisar as crianças para quê? Com inspiração em Graue e Walsh (2003)12 propomo-nos a estudar “para descobrir mais, descobrir sempre mais, porque, se não o fizermos, alguém acabará por inventar”.

Em se tratando de infância, especificamente, de sua educação, o que se coloca num primeiro plano é a demarcação de seus limites e de suas fronteiras para consolidar um estudo particularizado nesta área, com a intenção de enfrentar a seguinte questão: Como constitui-se a infância na relação entre ser criança e ser aluno numa escola pública catarinense?

11

A palavra ator é própria da sociologia de matriz Tourraineana – em que o indivíduo manifesta interesses que estruturam o desejo social. O termo atores sociais é freqüentemente utilizado na sociologia da educação para designar os participantes do processo educativo. Nesse trabalho será utilizado porque sugere movimento e participação ativa das crianças.

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Para tanto, o propósito dessa pesquisa é conhecer e interpretar o “ponto de vista” das crianças em relação à experiência13de ser criança e de ser aluno, tendo como referência uma escola pública. Ressaltamos que, sob esse ponto de vista, a tentativa é procurar entender a criança em si mesma14 e não em função do adulto, entretanto, em relação com este, pois ambos não estão em universos estanques, mas em inter-relação15. Os objetivos específicos dessa pesquisa são:

- Apreender, através da voz das crianças, das suas produções artísticas e culturais, como também da interlocução entre os teóricos, o ofício de ser criança e de ser aluno numa escola pública;

- Interpretar, com apoio nos desenhos das crianças, como se constroem as representações do ofício de ser criança e de ser aluno;

- Conhecer como se dá o processo de construção da conformação pedagógica na escola, locus da pesquisa.

Como uma das questões principais, elege-se a necessidade de verificar se há efetivamente uma dualidade de ofícios nas crianças, na etapa inicial do processo de escolarização, especificamente nas séries iniciais do Ensino Fundamental. E, também, verificar se esta dualidade já vem sendo constituída no âmbito das instituições de educação infantil.

Ainda, de caráter secundário, apontam-se como possíveis nortes as seguintes interrogações:

13 Experiência e vivência são expressões cujo emprego inspira-se nos conceitos de Benjamin

(1989), ver bibliografia.

14 Ver livro composto de vários artigos escritos a partir de teses e dissertações, onde os

autores enfocam as questões metodológicas na abordagem com crianças. Em: FARIA; DEMARTINI; PRADO; (orgs.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores Associados, 2002.

15 “[..] não significa a aceitação de que a criança habita um mundo autônomo, apartado do

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- Se um mesmo ser exerce dois ofícios: o ofício de aluno e o ofício de criança, porque é capaz de distinguir os papéis e funções deles decorrentes, como também, as relações envolvidas nesse processo.

- Se existem diferenças entre ser criança e ser aluno do ponto de vista das crianças, então seria possível sugerir que a escola redimensione sua postura frente à infância, reconhecendo a criança como sujeito histórico de direitos, que se apropria e produz cultura.

Cabe, então, ressaltar a relevância da investigação como contribuição àqueles que têm manifestado preocupação e interesse pela infância.

Também, pelas características do objeto de estudo, fica em evidência sua originalidade, o que acentua os esforços desta construção.

Com relação à organização do estudo, após a nota introdutória, apresenta-se no segundo capítulo o caminho investigativo, onde caracterizamos a pesquisa, descrevemos os procedimentos, a inserção do campo locus da investigação, os instrumentos e as técnicas de coleta de dados, bem como a forma utilizada para a análise e interpretação dos dados em face da natureza da pesquisa.

Para compor o terceiro capítulo, buscaram-se os interlocutores que tratam da infância, para a construção do caminho trilhado teoricamente, com a finalidade de discutir questões históricas, sociais, culturais e pedagógicas.

Finalizando, no quarto capítulo nos propomos a analisar o objeto específico desse estudo, que são as percepções e manifestações das crianças sobre a experiência de ser criança e de ser aluno.

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O CAMINHO INVESTIGATIVO E METODOLÓGICO

Roda (1950)

Sílvia de Leon Chalreo

Óleo sobre tela

Coleção da artista

Rio de Janeiro

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2 O CAMINHO INVESTIGATIVO E METODOLÓGICO

“Se os caminhos se fazem andando, também o método não é senão o discurso dos passos andados”.

MARQUES (2001)

Na estruturação do trabalho expõe-se o delineamento do estudo, isto é, o caminho utilizado para o alcance dos objetivos da pesquisa. Para a realização concreta do que se propõe, serão tratadas questões relativas à pesquisa, caracterizada como qualitativa, e à descrição das possíveis etapas a serem percorridas, considerando que a atividade básica da ciência é a pesquisa, e que a pesquisa é a atividade científica pela qual desvela-se a realidade. É importante ressaltar que se entende como pesquisa o permanente diálogo com a realidade, no sentido de produzir conhecimentos que, transcendendo o senso comum, possam contribuir para a compreensão de fatos e fenômenos emergentes da relação homem/mundo.

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Isso ocorre a partir do esforço e do interesse do pesquisador, fruto da sua inquietação e dos desafios que sua prática profissional impõe, além de representar uma ocasião privilegiada para, em continuação ao que já foi elaborado, servir à composição de soluções para a elucidação e resolução de novos problemas.

Nesse sentido, segundo Köche (1997), cada ramo do conhecimento procura definir métodos mais confiáveis, principalmente aqueles que proporcionam melhores condições de crítica desenvolvida pela comunidade científica, com a pretensão de buscar a aproximação sobre a verdade, partindo do pressuposto de que a realidade não se desvela na superfície. “Não é o que aparenta à primeira vista, pois os esquemas explicativos nunca esgotam a realidade, porque esta é mais exuberante que aqueles” (DEMO, 1987, p. 13).

Se a realidade é inesgotável, então o pesquisador, conscientemente, pode optar por uma metodologia centrada na descoberta e no discernimento cuja ênfase requer a compreensão das intenções e dos significados dos atos humanos. Este enfoque metodológico está fundamentado num paradigma de base mais qualitativa. Tendo como ponto de partida o problema formulado, os objetivos e as questões norteadoras, julgou-se ser o mais apropriada, dentre os vários delineamentos desse paradigma, a pesquisa de caráter etnográfico, com enfoque na observação participante. Sarmento (2003) escreve que a etnografia visa apreender a vida, tal como ela é cotidianamente conduzida, simbolizada e interpretada pelos atores sociais.

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desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos” (1989, p. 20). Assim, fica evidente que, para o autor, a pesquisa etnográfica é caracterizada não apenas pelas técnicas ou pelos processos que possamos utilizar, mas fundamentalmente, pela interrpretação minuciosa e arriscada que faremos a partir dos dados coletados.

Para Bogdan & Biklen (1994, p. 59), a descrição densa implica em uma apreensão dos significados que os membros de uma cultura têm como adquiridos; no registro dos dados e resultados da investigação, estes novos significados são apresentados às pessoas exteriores à cultura. Esta descrição minuciosa foi possível porque o principal instrumento de recolha de informações foi a pesquisadora, que segundo Ferreira (2004, p. 50) poderá ser uma “intérprete competente, ou não, dos pontos de vista das crianças”. Neste sentido, o termo significado é central nesse estudo, pois estamos interessados no modo como as pessoas, nesse caso, as crianças, interpretam e dão sentido às suas experiências ou estruturam o mundo social no qual vivem (BOGDAN & BIKLEN 1994, p. 50).

2.1 CARACTERIZANDO O “CORPUS” DA PESQUISA

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- o ambiente, como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento-chave;

- a descrição, cujo foco é a percepção de um fenômeno, um contexto (sua origem, relações, mudanças, conseqüências);

- a preocupação com o processo, na tentativa de identificar as forças decisivas e responsáveis pelo seu desenvolvimento;

- o significado que é essencial, bem como suas raízes, causas e relações.

Para Minayo (1996), a pesquisa qualitativa compreende o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que não podem ser reduzidos a simples operacionalização de variáveis. Demo (1987) alerta para um dos grandes problemas da metodologia aplicada às pesquisas qualitativas, à sua estruturação, quando ressalta a importância de se considerar, em um plano do estudo, que a realidade social é dinâmica.

Na abordagem qualitativa, conforme Lincoln e Guba (apud Merriam 1988), o foco e o “design” não podem ser definidos “a priori”, pois eles emergem, por um processo de indução, do conhecimento do contexto, das múltiplas dimensões da realidade e da influência dos seus atores. Entretanto, Marshall e Rossman (1989) e Milles e Huberman (1984) argumentam que quando um pesquisador escolhe determinado “campo”, já o faz com objetivos e questões em mente, pressupondo o ambiente como sua fonte direta de dados, o contato direto com o contexto e a situação que está sendo investigada.

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propósito da investigação, a identificação de situações onde os fenômenos ocorreram para que se pudesse entendê-los e estudá-los, como, também, o contexto e as circunstâncias particulares em que determinado objeto, pessoas, gestos e palavras encontravam-se inseridos.

Desse modo, além da atenção para captar detalhes, possíveis elementos da situação estudada, para dar suporte às descobertas do estudo, o registro foi de fundamental importância.

O cotidiano das crianças, a interação nas atividades propostas e desenvolvidas, suas expressões e manifestações, dificilmente poderão ser mensuráveis, mas ricamente descritos.

O significado que as crianças dão aos seus ofícios será foco de reflexão, especialmente as experiências e vivências decorrentes desse fazer.

Esse tipo de pesquisa representa, também, uma tentativa de capturar a “experiência vivida, sentida ou padecida”, que vem à tona e é explicitada em face da mediação da percepção do investigador, atento à acuidade de suas percepções. Segundo Rayou (2005, p 472), “as metodologias qualitativas parecem ser as mais adequadas para se tentar penetrar nas construções infantis”. Justifica-se assim a opção pela abordagem qualitativa porque vislumbra-se, desta forma, a possibilidade de desvelar a natureza e a experiência dos ofícios de criança e de aluno, na perspectiva da sociologia da infância.

Dentre os delineamentos do paradigma qualitativo, anunciado anteriormente, o mais pertinente ao propósito desta investigação é a observação participante. De acordo com Azanha (1992, p. 92):

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experiência direta do observador com a vida cotidiana do outro, seja ele indivívuo ou grupo, é capaz de revelar, na sua significação mais profunda, ações, atitudes, episódios, etc.; que, de um ponto de vista exterior, poderiam permanecer obscurecidas ou até mesmo opacas.

Como justificativa adicional ressalta-se a implicação do sujeito pesquisador no processo e a sua experiência como educadora de crianças, engajada no processo de profissionalização de educadores, também de crianças.

2.2 DESCRIÇÃO DOS PROCEDIMENTOS

Toda a pesquisa deve passar por uma fase preparatória de planejamento. A própria necessidade de sua realização deve ser obrigatoriamente posta em questão, segundo Castro (1976), porque está intimamente ligada à orientação filosófica, atributos pessoais, experiência, atitudes e valores do pesquisador que quer engajar-se nesengajar-se tipo de estudo e que deengajar-seja construir conhecimentos, cultivando uma atitude típica diante da realidade, que compreende a dúvida e a reflexão, a crítica e a indagação.

Diante das dificuldades decorrentes da própria natureza da pesquisa qualitativa, alguns cuidados foram tomados. Realizou-se uma revisão do referencial teórico, mas especificamente no que concerne ao delineamento, aos procedimentos e critérios para estruturação da coleta e análise dos dados, tendo como fundamentos os paradigmas eleitos para desenvolver o estudo.

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o seu desenvolvimento, como os momentos em que estas fases se interpõem. Embora, na descrição, as ações denotem linearidade e certa seqüência, as etapas integrantes da pesquisa, no seu desenvolvimento, serão muitas vezes concomitantes e justapostas.

Os significados que se buscam são principalmente as perspectivas das crianças, não dos adultos, porque uma das dificuldades que os pesquisadores da área costumam ter é a tendência a se centrar nas ações e na palavra dos adultos, quando se quer analisar o mundo e as relações das crianças. Assim, o que pretendia ser um estudo sobre crianças pode, com o viés, passar a ser o reflexo das interações dos adultos com as crianças. Os adultos fazem parte do contexto, mas esta investigação coloca no centro do processo as crianças, pois assinala Corsaro (1997, p. 95) que as “crianças estão merecendo estudos como crianças”. Para tanto, não serão abrangidas todas as crianças, mas sim um grupo específico de crianças em um contexto particular: de uma escola pública situada no município de Joinville.

Cabe, ainda, ressaltar que a escolha da infância enquanto objeto de pesquisa exigiu da pesquisadora um posicionamento acerca do conceito de infância. Walter Benjamin (1995), alegoricamente, nos apresenta uma visão de criança inserida em sua classe social e capaz de produzir cultura. A criança que tomo neste estudo é sujeito, é ator social, produtora de cultura, e – levando em conta suas especificidades em relação ao adulto, - é cidadã. Olhar a criança como sujeito numa situação de pesquisa requer considerá-la como co-participante do processo, reconhecendo sua voz como expressão da capacidade de compreender sua peculiaridade e de construir um conhecimento sobre ela.

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pesquisador, mas que interage, que dialoga: é um “objeto” vivo, com voz, com valores, com subjetividade. Nunes (1999, p. 240) em seus estudos sugere aos pesquisadores mais espaço e atenção à criança: “que se escute o que ela tem a dizer, que se veja o que ela faz, que se seja sensível ao que ela sente e se acolha o que ela expressa”. Foi desse ponto de vista que concebi meu olhar de pesquisadora, em relaçào à criança, enquanto objeto a ser investigado.

2.3 INSERÇÃO NO CAMPO: LOCUS DA INVESTIGAÇÃO

O processo de investigação desenvolveu-se no período compreendido entre os meses de março de 2004 e março de 2005, totalizando quinze encontros alternados. O locus de pesquisa foi uma Escola de Educação Básica16, integrante do Sistema Estadual Catarinense, situada no coração da cidade de Joinville, município pertencente à Região Nordeste do Estado de Santa Catarina (figura 1 e foto 1).

Figura 1 - Localização do Município de Joinville na Região metropolitana do Norte/nordeste Catarinense.

Fonte: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Joinville (IPPUJ 2001/2002).

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Foto 1 - Vista aérea parcial da cidade de Joinville e localização da escola, locus da pesquisa.

Fonte: Jefferson Luiz Gama da Costa17.

O educandário, fundado em 1890, funcionava no antigo prédio da Prefeitura de Joinville, também no centro da cidade. Mais tarde, em 1911, o governo de Santa Catarina mobilizou uma reorganização do Ensino Fundamental no Estado.

A escola passou a se chamar grupo escolar18, ficando na época sob a responsabilidade de seu idealizador, Orestes Guimarães, 19 a missão de implantar o método de ensino, como inspetor e professor do estabelecimento escolar.

17

Todas as fotografias aéreas utilizadas nesse estudo foram gentilmente feitas por Jefferson Luiz Gama da Costa.

18 Sobre as origens dos Grupos Escolares ver: SOUZA, Rosa de Fátima. Espaço da

educação e da civilização: origens dos grupos escolares no Brasil. In: SOUZA, Rosa de Fátima; VALDEMARINI, Vera Teresa; ALMEIDA, Jane Soares (orgs). O legado educacional do século XIX. Araraquara: UNESP, 1998.

19

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Vale ressaltar que alguns dos primeiros alunos20 desse grupo escolar compreenderam uma plêiade de homens ilustres a quem a escola reverencia. Com o passar dos anos e com o aumento das matrículas, houve a necessidade de um espaço físico maior para atender a demanda. Tendo início em 1935, a construção do novo prédio, inaugurado em 1936. Mais tarde, em outubro de 1974 passou a ser denominado de Escola Básica e entre os anos de 1993 e 1994 sofreu amplas reformas, sendo também parcialmente restaurada em 2001.

Por tratar-se de uma instituição centenária, foi tombada como patrimônio histórico no ano de 2004. Nela estudam atualmente 940 alunos, oriundos das proximidades e também dos diversas bairros circundantes (figura 2), oferecendo o Ensino Fundamental e o Médio.

Em seu entorno, concentram-se algumas residências, edifícios, escolas particulares, shopping center, hospital, clínicas, hotéis, bares, restaurantes e casas comerciais de pequeno, médio e grande porte, como mostra a imagem (foto 2).

Estando localizada no centro da cidade de Joinville, a escola atende famílias pertencentes a diferentes níveis econômicos e sociais. Muitas das crianças que a freqüentam são filhos e filhas de pais e mães que trabalham em empresas, funcionários públicos da saúde, da educação e da segurança, militares, pequenos empresários e autônomos como, por exemplo, vendedores. Constitui-se, dessa forma, uma demanda relativamente heterogênea, de crianças, com predominância das camadas médias da sociedade joinvilense.

portuguesa em Joinville, opondo-se diretamente à Escola Alemã, que desde o início da colonização ensinava só alemão.

20Estes dados foram encontrados nos arquivos da escola pesquisada. Entre os muitos nomes

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Figura 2 - Localização dos bairros em Joinville.

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Foto 2 - Vista aérea do entorno da instituição educativa, locus da pesquisa.

Fonte: Jefferson Luiz Gama da Costa.

A opção por esse espaço social deu-se pelo fato de estar situado no mesmo espaço físico, separado apenas por um muro, de um Centro de Educação Infantil (CEI), também da rede pública estadual. O diálogo entre a pesquisadora, Gabriel21 (6 anos) e Júlia (6 anos), protagonistas dessa investigação e as fotografias a seguir, ilustram a localização/aproximação (fotos 3, 4 e 5):

- Pesquisadora: quantos anos você tem? - Gabriel: 6 anos.

- Pesquisadora: você freqüentou o pré no CEI ? - Gabriel: é, foi.

- Pesquisadora: e onde está localizado o CEI, é longe da escola?

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- Gabriel: não. É ali do lado... grudado. - Pesquisadora: grudado a onde? - Gabriel: com a nossa escola, ora!

- Pesquisadora: e você Júlia, também estudou no CEI ? - Júlia: claro que estudei, né.

- Pesquisadora: e onde fica localizado o CEI? - Júlia: é ali... do lado.

- Pesquisadora: como assim: ali do lado ? Tem alguma coisa que separa a escola do CEI ?

- Júlia: não ... nada.

- Gabriel (interfere): tem sim. Tem o muro.

Foto 3 - Vista lateral do muro que separa a escola estudada de um centro de educação infantil.

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Foto 4 - vista aérea do Centro de Educação Infantil e da escola, locus da investigação.

Fonte: Jefferson Luiz Gama da Costa.

Esse centro de educação infantil foi o primeiro “Jardim de Infância”22 do Estado de Santa Catarina, ligado também ao Sistema Estadual de Ensino, tendo sido inaugurado em 30 de agosto de 1962 pelo então Governador Celso Ramos23. Atualmente a referida instituição matricula em torno de 300 crianças em período parcial.

Como uma instituição, uma comunidade ou um grupo pode ser visto de muitas maneiras, é importante esclarecer que o olhar investigativo busca a interinfluência desses espaços, pois grande parte das crianças, sujeitos desta pesquisa, vêm automaticamente dessa instituição de educação infantil, até para justificar o significado da pesquisa frente aos interesses da pesquisadora.

22 Denominação da época.

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Foto 5 - Vista aérea do Centro de Educação Infantil.

Fonte: Jefferson Luiz Gama da Costa.

Uma fase exploratória antecedeu o desenvolvimento da investigação, que denominamos processo de inserção no campo.

A formalização do início da pesquisa implica uma série de atividades complementares como: os contatos iniciais com a direção, professores, funcionários, crianças, conversas informais com os adultos do contexto, com o intuito de localizar as fontes de dados. Procurou-se nas conversas iniciais explicitar às professoras, as intenções e propostas de investigação, tendo o cuidado de especificar que o foco da pesquisa era o ponto de vista das crianças sobre a experiência de ser criança e de ser aluno na escola e não da sua intervenção como educadoras, que nesse estudo será periférica e relativamente indireta.

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de decisão sobre o processo de investigação, tendo como relevantes as falas das crianças e as suas manifestações.

Pinto e Sarmento (1997, p. 27) lembram com muita pertinência que

relativamente às metodologias seleccionadas para colher e interpretar a voz das crianças, os estudos etnográficos, a observação participante, o levantamento dos artefactos e produções culturais da infância, as análises de conteúdo dos textos reais, as histórias de vida e as entrevistas biográficas, as genealogias, bem como a adaptação de instrumentos tradicionais de recolha de dados, como, por exemplo, os questionários, as linguagens e iconografia das crianças, integram-se entre os métodos e técnicas de mais frutuosa produtividade investigativa.

O insistir na voz das crianças e nas suas manifestações expressivas, focando os seus ofícios na construção das ações sociais, representa o esforço de “ouvir” aquele que fala sobre o seu próprio fazer, de identificar na alteridade deste dizer o que quer realmente comunicar intersubjetivamente.

2.3.1 Coleta de dados

Nessa etapa da investigação propriamente dita, iniciou-se a coleta sistemática de dados sobre os atores e seu cenário de atuação. O registro no diário de campo, registros fotográficos, gravações de conversas informais, desenhos produzidos pelas crianças e a observação foram as técnicas utilizadas em conjunto ou isoladamente, para captar a realidade de forma contextualizada, haja vista a variedade de fontes de informação e a riqueza dos dados.

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que as crianças deram à investigação, além da visão do processo e do significado de como deram sentido ao seu fazer e às experiências decorrentes, que vêm à tona sendo explicitadas pela mediação em face da reflexão e pela percepção do investigador, foram focos de atenção. Por isso, o esforço em desenvolver uma descrição logicamente defensável. Assim, o desenvolvimento deste estudo pode ser comparado a um "funil”, como denomina Lüdke (1986). No princípio os focos de interesse e as questões foram amplos e, à medida que a investigação foi se processando, tornaram-se mais diretos e mais específicos.

2.3.2 Descrição das Técnicas Utilizadas

A conversa espontânea foi a técnica mais utilizada para captar o sentido e o significado das informações na fala dos autores (valores, atitudes e opiniões). Minayo (1996) entende que uma "conversa" pode ser uma fonte de dados objetivos e subjetivos.

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e meia. Ficou também acordado que as “conversas” seriam gravadas para serem posteriormente transcritas.

Yin (2001) destaca a observação participante como oportunidade incomum para a coleta de dados em um estudo de caráter etnográfico, haja vista que o pesquisador não é um observador passivo, mas um membro ativo situado no contexto onde se realiza a investigação. Pela relação face a face com os observados, torna-se possível captar uma variedade de situações ou fenômenos que jamais seriam desvelados com o emprego das outras técnicas.

Para procurar compreender as crianças e as situações observadas, foi necessário propor outras atividades simultâneas, bem como interagir com elas para estimular a sua participação, visando-se a, desta forma, captar a intensidade das suas manifestações, no cotidiano da escola, nas relações dialógicas e nas interações sociais. Assim, foi possível definir as primeiras incursões metodológicas.

2.3.3 Análise e interpretação dos dados

Em estudos qualitativos, como o que está sendo apresentado, deve ser lembrada a simultaneidade de procedimentos. Nesse sentido, roteiros são representações práticas que indicam a execução das diversas fases da pesquisa, bem como dos momentos em que essas fases se interpõem. A partir das referências que nortearam o processo de investigação, escolhido por este estudo, estabeleceu-se a estabeleceu-seguinte rota:

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b) a identificação e caracterização das crianças, o envolvimento, a percepção e vivência no processo;

c) a identificação da base conceitual, princípios que sustentam os processos.

A técnica de análise de conteúdo revelou-se como o procedimento mais adequado ao processo de interpretação dos dados, em face dos resultados produzidos e/ou oriundos das fontes já mencionadas. Barros (1990, p. 69-74) justifica que a técnica de análise de conteúdo é comumente usada para examinar e interpretar material qualitativo pela variedade de campos de aplicação, desde os lingüísticos até as áreas político/econômica e social. A fundamentação teórica, bem como a sistematização do processo, terão como referência Minayo, Triviños, Lüdke, Bardin e Barros, por recorrerem a este procedimento em estudos dessa natureza. Para Valle (2003, p. 272) “esta técnica favorece o tratamento e a interpretação de mensagens veiculadas, tornando possível a compreensão do processo de escolarização”.

Convém salientar uma peculiaridade desta técnica: ela abrange um "conjunto de técnicas" pela forma processual com que os dados são tratados para se efetivar a análise e interpretação dos resultados. Assim, descrevem-se as três etapas seguidas, consideradas básicas na análise de conteúdo.

Na primeira etapa realiza-se a pré-análise, isto é, a análise textual, momento em que os conceitos mais utilizados para definir as unidades de conteúdo (registro e contexto) foram destacados.

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- codificação, mediante a organização de um fichário, reunindo as unidades de sentido, tendo como critério a preponderância da ocorrência;

- classificação, resultante do agrupamento das unidades de sentido, adotando-se os critérios de inclusão e exclusão, o que representa a produção de sínteses coincidentes e/ou divergentes;

- categorização dos dados, de cujo processo, à medida que se efetua a análise, emergem as categorias, bem como os elementos de análise. O critério adotado para a constituição das categorias será o da identificação de conceitos expressos pelas unidades de sentido, o que exigirá do pesquisador o constante retorno ao material coletado, fazendo sucessivas leituras, muitas vezes, do mesmo material.

Na terceira etapa foi feita uma interpretação inferencial, momento em que se deve ultrapassar a mera descrição, na tentativa de desvendar o conteúdo subjacente ao que foi manifesto, mensagens implícitas e ou silenciadas.

Nesse processo, embora se focalizem as partes constitutivas isoladamente, a preocupação é a de não perder de vista a conexão entre as mesmas e a relação entre todos os componentes da investigação. Como observam aqueles que se dedicam a estudos qualitativos, esse tipo de pesquisa pode ser comparado a um trabalho de artesão. À medida que a pesquisa avança, o pesquisador vai reconstruindo o seu próprio caminho, como se fosse tecendo, com o fio dos achados, o resultado do seu trabalho.

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subsidiaram, tendo em vista a dimensão ética e o cuidado do pesquisador, em se tratando de sujeitos crianças.

Cabe, como Esteban (2003, p. 129), referenciar que o percurso metodológico não define o caminho. A investigação se constrói pela relevância dos fenômenos que ampliam a visão do pesquisador e, como tal, se delineia como “prática de errância e de produção também da ignorância”.

Assim, os resultados construídos a partir destas referências farão parte do próximo capítulo, tendo claras, à luz do quadro teórico que dá suporte ao processo investigativo, algumas categorias emergentes: Infância como realidade cultural; criança como ator social; aluno como invenção institucional.

2.4 PASSAGENS DA IMAGEM: O RETRATO QUE ME FAÇO TRAÇO-A-TRAÇO24

“Quando a criança desenha, escreve o mundo à sua maneira”.

ANA ANGÉLICA MOREIRA (1999)

2.4.1 Os desenhos falam: captando as manifestações expressivas das crianças

Para Eduardo, um menino de 8 anos de idade, “desenhar é bom para tirar as idéias da cabeça porque sempre que a gente tem uma idéia, a gente quer ter ela, aí

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a gente desenha ela” (Moreira, 1999, p.15). A colocação de Eduardo parece-nos muito pertinente para afirmar que o desenho é uma linguagem para a criança, é uma forma de estabelecer comunicação com o mundo, de expressar suas idéias, medos, conflitos, descobertas e alegrias. Desenhando, a criança brinca e, brincando, vai imprimindo as suas marcas no papel, nas paredes, nos muros e calçadas, contando, ao seu modo, a sua história.

Entrar em contato com um recorte dessa história significa, como nos ensina Moreira (1999, p. 95), “ser capaz de arriscar, de entrar no jogo e se deixar contagiar pelo prazer da brincadeira com os traços, as formas e as cores. Reaprender a ver, a se espantar com o que vê...”

Na abordagem proposta por Arfouillox (1983, p. 128), percebe-se o desenho como um registro mais intenso do que o próprio brinquedo, pois

ainda mais do que o brinquedo, o desenho da criança fascina. Porque a criança desmancha o seu brinquedo quando o adulto chega, mas o desenho permanece, como as coisas escritas. Ele é um traço, um testemunho.

Em cada desenho produzido por uma criança, sujeito datado histórico e culturalmente, há muito a ser visto e percebido, estão ali transbordando sinais, indícios ou pistas que “os olhos embaçados dos adultos não aprenderam a ver”. E é isso que nos leva a alguns questionamentos:

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talvez antes (de falarmos sobre os desenhos) tenhamos de nos perguntar sobre o que vemos e lemos de um código que não é composto por letras. Fomos exercitados para isso? Como olhamos e lemos um desenho?

Entretanto Leite (2001), em sua tese de doutorado, contrapõe-se à idéia de leitura, ou escritura da imagem como texto. Para ela o desenho não é texto para ser lido. Como linguagem visual, tem signos próprios, elementos básicos de apropriação que lhe são particulares. Ainda segundo a autora, “a sociedade letrada é predominantemente imbuída da supremacia da leitura”. E as escolas muito têm colaborado com essa situação, quando no processo de alfabetização “deslocam todo o poder do conhecimento para letras, palavras e textos”. (ibid., p. 8).

Mas as crianças, por sua vez, subvertem as normas e regras impostas pela escola, encontrando outras formas de se expressar, como desenhar, brincar, cantar e dançar.

Com o objetivo de nos debruçarmos sobre essas outras formas de expressão e/ou representação das crianças e, na ausência de um novo termo, pareceu-nos significativo chamá-las de cartografia25 da infância. Mas por que cartografia? Entendemos por cartografia da infância os desenhos produzidos por meninos e meninas, alunos e alunas de uma escola pública do Ensino Fundamental, por considerarmos que esta concepção abarca a idéia de mapa. É um instrumento de representação, ora silencioso, ora concentrado ou ruidoso, individual ou coletivo, que seguido de comentários, risos, ponderações, troca-trocas, vai lentamente sendo transformado em uma gigantesca mapoteca: que fala, denuncia, exprime desejos, que conta sobre um cotidiano ainda desconhecido pelos adultos. Cotidiano este, considerado por muitos como coisa menor, irrelevante, repetitivo. É também tido

25 A idéia de cartografia é utilizada por GERALDI, FIORENTINI e PEREIRA (1998) no livro

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como um espaço que congrega sujeitos sem importância, como crianças que, lamentavelmente, ainda parecem ser invisíveis à ciência, que tem dado pouca atenção em suas análises ao “drama e à trama da sociabilidade dos simples, aqueles a quem a vida social imprimiu a aparência de insignificantes e que como insignificantes são tratados” (MARTINS, 2000, p. 135).

É nesse cotidiano de invisibilidade que a infância na escola é vivida e, em muitos momentos, pode não ser possível traduzi-la na sua totalidade.

De acordo com a antropóloga Gusmão (1999, p. 44),

Não se pode conhecer toda a cultura de um grupo ou povo, senão que aspectos dela e nisto reside o desafio no campo do conhecimento tanto quanto no campo das práticas sociais. Nisto reside o desafio de compreendermos que se faz necessário, não apenas estarmos sensíveis à questão da diferença, mas, também e sobretudo, que não sejamos mais analfabetos nas muitas linguagens do social, de modo a fazer-lhes as leituras expressas por suas múltiplas falas, imagens, movimentos etc.

Por outro lado, Eco, apud Arfouilloux (1983, p. 137), defende que

qualquer tentativa de codificação dos sinais icônicos encontra pela frente a multiplicidade e a complexidade das relações contextuais individuais que não permitem distinguir traços pertinentes constantes de uma representação para outra. A semiologia do desenho da criança deve ainda ser feita, mas não é certo que ela seja suscetível de esgotar toda a sua riqueza de significação, nem mesmo que ela seja possível.

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Em complementação aos autores anteriormente citados, Almeida apud Leite (2001, p. 7) afirma

contemplando ativamente a representação, isto é, observando e tentando compreender as figuras da imaginação do pintor, tornadas visíveis pelo desenho, pela cor, pela disposição em perspectiva no plano bidimensional pelo jogo de relações entre todas as figuras, nesse grande espaço contínuo, podemos entender um pouco [...], didaticamente seu conteúdo estético.

O que a criança desenha também é um fenômeno estético, afirma Gusmão (1996), pois foi construído de vivências das crianças na sua singularidade e na sua experiência social.

Desta forma, os desenhos das crianças, considerados como representações que deixam falar de si e do outro, são mapas que em seus traçados permitem ao observador26 contemplar e dialogar não só com a dimensão estética, mas sobretudo poética da cultura infantil27. Mapa, registro esse que com significação28 própria fica disponível como uma das “cem linguagens” 29 da criança.

Pinto e Sarmento (1997, p. 25) destacam que

o olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente. Assim, interpretar as representações sociais das crianças pode não ser apenas um meio de acesso à infância como categoria social, mas às próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso das crianças.

26 Observador para DERDYK é aquele que olha atentamente, examina, considera, reflete,

guarda, contém, especula.

27 Como se constituem as culturas infantis ver: FERNANDES, F. Folclore e mudança social

na cidade de São Paulo. Petrópolis: Vozes, 1979.

28

Para Francis Jacques apud Charlot (2000, p. 56) “significar é sempre significar algo a respeito do mundo, para alguém ou com alguém”.

29

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Poderíamos ampliar a idéia desses autores no que concerne às diversas formas de expressão das crianças, protagonistas da e na história, quando ao referir-se a elas consideram-nas como

actores sociais de pleno direito, e não como menores ou como componentes acessórios ou meios da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas (ibid., p. 20).

Urge, portanto, a necessidade de educar os adultos no sentido de perceber as crianças como atores sociais e de apreender as suas “cem” maneiras de ser e de estar no mundo, evitando o risco de reduzir a sua capacidade de expressão apenas à fala, o que empobrece significativamente suas múltiplas linguagens. À luz desse entendimento, focaremos (como se explicitará mais adiante), as análises dos desenhos das crianças, com a perspectiva de conhecer o mundo vivido e os ofícios desempenhados por elas. Crianças que são alunos e alunas de uma escola pública do Ensino Fundamental.

Ainda na busca de entender seus desenhos e de manifestar nossa crença30 nas crianças, vistas como desenhistas e falantes31, inspiramo-nos em outros teóricos, cujas concepções sobre desenho parecem pertinentes ao estudo. Destacamos a contribuição de Frange (1995, p. 27), que afirma que

Desenhar é desenhar-se!

É autofundar-se, é transformar-se: é transfundar-se social e pluridimensionalmente.

Desenhar vai além da relação papel - lápis: é além de um nome e de uma denominação.

Desenhar é performance visual, não adestramento.

Desenhar é edificar singularidades, afetar os outros e se deixar afetar.

30

Pesquisadores como: Gobbi (1997), Leite (1998), Mário de Andrade (apud Faria, 1993), Gusmão (1993, 1996), também coparticipam da idéia de que os desenhos das crianças são uma forma de compreender a cultura infantil.

31

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Derdik (2003, p. 24), artista plástica e pesquisadora sobre a produção do desenho infantil, salienta que “o desenho enquanto linguagem, requisita uma postura global. Desenhar não é copiar formas, figuras. Desenhar objetos, pessoas, situações, animais, emoções, idéias são tentativas de aproximação com o mundo. Desenhar é conhecer, é apropriar-se”.

A autora sustenta a concepção de que desenhar e falar são maneiras de interpretar, portanto o desenho está além da “coisa de lápis e papel”, mas é uma necessidade vital da criança para significar o mundo que a cerca. Na continuidade das reflexões, essa autora ressalta que

o desenho manifesta o desejo da representação, mas também o desenho, antes de mais nada, é medo, é opressão, é alegria, é curiosidade, é afirmação, é negação. Ao desenhar, a criança passa por um intenso processo vivencial e existencial. (ibid., p.51).

Leite (1998, p.142), ao inscrever o desenho das crianças como manifestações culturais, considera

indiscutível que cada manifestação artística é um conjunto de linguagens e o desafio de trabalho com a produção cultural infantil está na possibilidade de fazer aflorar sua visão de mundo, não só pelas suas diferenças, pela dimensão crítica, mas também pela dimensão artística do conhecimento.

Ela prossegue afirmando que

é esse percurso de ir, vir, nomear, desenhar, olhar, rabiscar, narrar, colorir, cantar, mexer-se que faz com que o sujeito crie, a todo instante, o significado do mundo em que se insere e não simplesmente o decalque (ibid. p.141).

Em outro estudo sobre o que e como desenham as crianças, a mesma autora (2001, p. 38) enfatiza que os

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jogos ou as histórias que pedem para escutar de novo. Fazem parte, assim também, de seu processo de constituição de identidade.

Esta citação permite perceber o desenho não somente como uma brincadeira, mas também como um registro histórico, social e cultural. Podemos considerá-lo como

narrativas visuais que clamam por uma contemplação ativa, por uma visada diferenciada de nossa parte, a fim de que a narrativa se enlace numa cadeia dialógica. Não são desenhos em desenvolvimento feitos por adultos de amanhã, mas atividades linguageiras de meninos e meninas. Portanto, atividades socioculturais aprendidas na interação com o outro, com o diferente de mim, impregnados de prazer (LEITE, 1998, p. 38).

Assim, inspirados em Leite, consideramos as crianças não como meras receptoras de cultura, mas como sujeitos históricos-contextualizados que, com seu choro, riso, movimento, grito, com sua imaginação, resistência, teimosia, explicitados nos desenhos, acabam criando sua própria cultura, significando seu espaço, inclusive, nos limites da escola.

Ancoramo-nos no trabalho de Gusmão (1997)32 que, ao perguntar o que é desenho? responde: “Antes de mais nada, antes de “ser”, ele “é”, constituindo-se num mecanismo de criação artística, de expressão, de comunicação e estética, que fornece um conjunto de significados cognitivos por meio dos quais as pessoas organizam diferentes culturas, expressam as suas percepções de mundo e de si mesmas como indivíduos e como coletividade.

Para essa autora, os desenhos documentam a realidade vivida pelas crianças e podem ser utilizados por professores e pesquisadores como fonte de reflexão e de transformação da mesma.

32 Estas referências foram obtidas na palestra proferida por essa antropóloga sobre a

Imagem

Figura 1 - Localização do Município de Joinville na Região metropolitana do Norte/nordeste  Catarinense
Foto 1 - Vista aérea parcial da cidade de Joinville e localização da escola, locus da pesquisa
Figura 2 - Localização dos bairros em Joinville.
Foto 2 - Vista aérea do entorno da instituição educativa, locus da pesquisa.
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