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Algumas notas sobre o interesse filosófico da obra de Almada Negreiros

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ALMADA NEGRE

A

DESCOBERTA COM0 NECESSIDADE

ACTAS

DO COLÓQUIO INTERNACIONAL

Porlo, 12, 13 e 14 de Dezembro de 1996

COORDENAÇÃO

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Conferencia

EDUARDO

ABRANCHES

DE

SOVERAL

Uniuersidnde do Porto

A L G U m S

NOTAS

SOBRE O INTERESSE

FILCPSÓFICO DA

OBRB

DE

AL

A

NEGREIROS

*

L A vida e a obra de Almada Negreiros interpenetram-se pro- fundamente. A obra foi variada e intensa como intensa e variada foi a sua personalidade e a forma como sempre viveu o dia-a-dia.

Não serei original dizendo que prevaleciam, no conjunto i n w l - gar das suas vocações, que lhe eram naturais pelo espírito e pelo corpo, a de desenhador e a de humorista. Foi aliás como desenha- dor, como humorista, e como desenhador-humorista que a sua obra se iniciou.

E

tais talentos a marcaram sempre em maior ou menor grau.

2. O desenho é essencialmente animado por uma exigência irreprimível de clareza e racionalidade concreta. Tudo aquilo que delimita no espaço é, simultaneamente, intuível por visáo directa, e matematizável.

Náo espanta assim a sua convicção pitagórica, progressiva- mente reforçada, de que a realidade é composta por números. Nem a ideia que tinha de que a história da cultura, o subconsciente indi- vidual e até a particular posição que cada um ocupa no tempo e no * O presente texto retoma e desenvolve alguns dos tópicos da coniunieação oral que proferi sobre a mesma epigr.de no "Colóquio Internacional Almada Negreiros: A Descoberta como Necessidade", realizado na Fundaçko Eng. António de Aimeida, por iniciativa da Faculdade de Letras do Porto, em 12, 13 e 14 de Dezembro ile 1996.

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espaço, estão impressos numa básica racionalidade universal. Era ela, pois, que garantia a certeira inclinação do instinto a que Almada tanto obedecia.

Neste ponto, como em muitos outros, é o nosso Autor espanto- samente original: em vez de opor, como sempre se fez, a razão ao instinto, Apoio a Dionísio, atribuiu ao instinto uma capacidade espontânea para ultrapassar a s construções teóricas e colher para além delas, numa como que nova mas douta inocência, a verdade singular que cada um deve ser para si mesmo.

Tal como Nietzsche, de quem confessadamente recebeu inspi- ração, Almada não é um irracionalista. Mas enquanto o alemão se apoiava numa razão uital que, perspectivada em termos evolucio- nistas, anunciava o prolongamento da Biologia n a Cultura e o advento de uma raça de super-homens geniais,

-

Almada seguiu a linha do seu personalismo uitalista, e defendeu, da forma mais ime- diata e democrática, o direito e o dever de cada um ser si mesmo, no tempo histórico que lhe coube em sorte. E neste haveria que pri- vilegiar-se o futuro cuja antevisão profética era, como veremos, pró- pria dos artistas que não tivessem sido esvaziados por uma precoce celebridade e assumissem a missão pedagógica de a transmitirem a nova geração que adiante de si despontasse.

Todavia, no caso particular do nosso País, de h á muito des- compassado do ritmo do tempo, e de todo alheio ao séc.

XX

em que vivia, a tarefa haveria de iniciar-se por uma prévia e implacável modernização.

Por isso o primeiro futurismo de Almada Negreiros não foi um futurismo épico como o de Nietzsche, que anunciava a morte de Deus e o triunfo do Homem. Foi u m futurismo anti-Dantas, que cau- terizava os retardados subprodutos históricos de que ainda se ali- mentava

a

nossa vida cultural, e reivindicava, para os verdadeiros e íntegros artistas, a pedagogia do novo século l.

3. Voltando à realização da singularidade própria, que o ins- tinto impõe e inicialmente orienta, convirá observar que Almada nela marcava uma sequência evolutiva. O primeiro momento era o de uma sinceridade, violenta e polémica, que ia abrindo espaço para a afirmação pessoal, e se esgotava no confronto dos "prós" e dos "antis". Seguira-se-lhe a força da convicção, mais elaborada e siste- mática, que era, como dizia, a fase dos "ismos". Atingia-se por fim a liberdade, quando a singularidade cósmica e biológica ascendia a uma pessoal determinação axiológica.

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INTERESSE F I L O S ~ F I C O DA OBRA DE ALMADA NEGREIROS 37

4. A antropologia de Negreiros não terminava contudo num personalismo anárquico e fechado sobre si. Foi mais além, como veremos a seguir. Mas essa superação não foi fácil e teve u m pri- meiro momento de hesitaçáo, exposta, com enorme argúcia e talento, no romance intitulado Nome de Guerra.

O

problema central que a í põe é o da ligação amorosa entre pessoas livres.

Subscreve a tese radical de que ela está antecipadamente votada ao fracasso por um inevitável conflito de personalidades, que não nasce só do egoísmo, mas se alimenta até dos sacrifícios que se façam em favor da pessoa amada. A paz e a felicidade só serão pos- síveis se um dos parceiros definitivamente abdicar de si e se con- sagrar ao outro. (Não terá sido isso mesmo que se verificou no seu próprio casamento, presumivelmente alicerçado n a inteira dedicação e no voluntário apagamento da pintora Sara Afonso?)

Recordemos, para ilustrar esta interpretação, algumas passa- gens do romance citado. Referindo-se por certo ao egoísmo mal enco- berto pelo amor, diz Negreiros: "A Judite e o Antunes entraram n a intimidade um do outro como ladrões que não sabem bem o que vão r o ~ b a r . " ~ Tendo em vista o bem imposto, embora com a melhor das intenções: "É sempre assim, temos sempre que perder imenso tempo em desfazer o bem que os outros fizeram por nós."3 Quanto à ver- dade do nosso destino: "A condição para ver ao longe é estarmos dentro de nós, se se trata do próprio; ou ter renunciado a si mesmo, se se t r a t a dos outros."* E, finalmente, quanto à essência mesma da relação amorosa: "Moralidade deste romance: não te metas n a vida alheia, se não queres lá ficar."' Não nos parece, pois, que a conhecida equação 1

+

1 = 1 possa ser interpretada de outra forma que não seja a de que o amante tem de fundir-se no amado, con- tribuindo assim para que este atinja a máxima realização exis- tencial.

5. Mas se n a relação intersubjectiva directa só será possível esta forma estranha de aliança vital, que de certo modo inverte a clássica dialéctica que liga o Senhor ao Escravo, pois agora tiido parte da inicial e livre doação do amante, - j á no que respeita aos vínculos existentes entre o individual e o colectivo, a s coisas se pas- sam, segundo Negreiros, de uma forma muito diferente.

O indiuiduo pertence a colectividade e é nela que objectiva- mente se constitui. Mas a pessoa pertence a Humanidade, ou seja,

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circunstâncias, que haverá de definir e realizar aquilo que lhe é sin- gular.

E

para que isso aconteça, terá de imprimir no colectivo a marca da sua autêntica maneira de ser, assim o enriquecendo cul- turalmente.

Apenas u m colectivo culturalmente rico, que, p a r a t a n t o , haverá de ser dirigido pelos melhores (anote-se uma vez mais a semelhança com a "meritocracia" de Nietzsche, mas observe-se, ainda, de passagem, que esta não é incompatível com uma demo- cracia entendida em termos personalistas e liberais), poderá, por sua vez, propiciar um fácil trânsito do indivíduo a pessoa.

6. Como se vê, Almada atribui a pessoa uma importância fun- damental. Diz que é "a única finalidade de quanto acontece n a terra"; que é nela que a Humanidade e o próprio Universo se encon- tram e manifestam.

E como lhe subalterniza o indivíduo, considerando, como disse- mos, que ele é a parte do homem que pertence a colectividade, enquanto que a pessoa é a s u a parte espiritual e universal, poderá parecer que subscrevia u m personalismo naturalista e ético, à seme- lhança de Epicuro e Aristóteles, que valorizava no homem aquilo que lhe é específico e o diferencia dos animais, e u seja, a sua racio- nalidade, entendida, obviamente, em sentido amplo. (E só falo num personalismo naturalista, ainda que espiritual e ético, porque um personalismo aberto a transcendência, quer de cunho religioso quer metafísico, estava fora, a meu ver, das suas perspectivas.) Mas tal hipótese não é efectivamente de aceitar, pois Negreiros entendia que a parte material e a espiritualidade do homem se recobriam "poro a poro", e que a pessoa não podia nem devia emancipar-se do momento e do lugar cósmicos que lhe pertenciam, nem do corpo em que vivia, nem dos colectivos e do tempo histórico em que nascera.

O seu personalismo era portanto um personalismo cósmico, bio- lógico e cultural, de confessada inspiração nietzschiana, como já dis- semos. E essa inspiração mais se acentua quando Almada põe o pro- blema do progresso. Entendia ele - e bem - que a Humanidade (OU seja, a cultura universal objectivada e subjectivável) só podia conhecer o seu passado. O conhecimento do futuro estava-lhe vedado e só se abria a s pessoas excepcionais que não se limitavam a ser actoras (a actuarem nas circunstâncias, com coragem e verdade, con- forme a sua autêntica maneira de ser), mas tinham ainda capaci- dade para serem autoras, criando algo de novo.

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E este talento era próprio dos verdadeiros artistas, e, em espe- cial, dos pintores, o que não deixa de ser inesperado da parte de quem foi, fundamentalmente, um desenhador, como já sublinhámos.

E, porquê os pintores? Porque, para Almada, eles eram os artis- t a s mais independentes das circunstâncias, designadamente do público, e aqueles cuja maturação era mais lenta, impedindo flores- cimentos precoces e superficiais. Poderíamos talvez acrescentar, em abono da sua tese, que a criatividade dos pintores é aberta e cós- mica, enquanto que a dos desenhistas logo se delimita e fixa. Com efeito, a forma cromática, porque é essencialmente qualitativa, pode expressar, discriminadamente, a riqueza óntica da realidade sensí- vel, e originar, num primeiro momento dinâmico, que logo se detém mas fica a vibrar: o embrião de novos mundos possíveis.

7. Como s e vê, o paralelismo com Nietzsche é flagrante. Também para ele o super-homem é o génio criador que, n a sua fácil espontaneidade, transpõe, para o plano da cultura, a eficácia ime- diata do instinto.

Há todavia diferenças muito importantes a assinalar: não só porque Nietzsche, coerentemente aliás, privilegia a música e não a pintura, mas ainda porque - o que conta muito mais - assume uma básica tese evolucionista que Almada ignora. Para este, como já sublinhámos, cada pessoa vale, desde logo, absolutamente, e o tempo histórico é apenas um dos contextos da sua realização.

8. Temos vindo a falar, longamente já, das consequências da sua vocação de desenhador. Chegou a altura de dizermos alguma coisa acerca do seu talento de hiimorista.

Não é fácil definir o humor.

E

mais custa ainda discriminar a gama de todas a s suas modalidades.

Limitar-nos-emos, por isso, a apontar algumas das suas carac- terísticas essenciais, e a tentar determinar o que há de específico no humor de Almada.

O humor é lúcido, libertador e trágico. Apresenta-se como um desdobrar marginal das nossas reflexões que, "de fora", a s comenta e avalia, com uma irreverência implacável e desmitificadora. Faz lembrar o coro, n a s tragédias gregas, que para si reserva a última e verídica palavra acerca do destino. Ou o "bobo da corte" que, n a sua assumida e reconhecida irresponsabilidade, se permitia dizer aos poderosos a s verdades que os reduziam a vulnerável condição comum.

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Lúcido e universal n a crítica, o liumor não poupa presunções próprias ou alheias. Por isso liberta. Porque nos impele a assumir, sem disfarces nem prosápias, a nossa pobre condição humana.

Por isso mesmo o humor é também potencialmente trágico. É u m rir leviano e temerário que pode acabar em lágrimas ... Ou

levar, tal como o "humor negro" dos surrealistas, a busca ácida e masoquista da frustração a que os projectos dos homens estão ante- cipadamente votados, o que daria, no entender destes, à vivéncia estética, a imaginação e ao sonho, a máxima intensidade e a subs- tancialidade possível.

Quer-nos parecer, contudo, que o iiumor de Almada Negreiros não é trágico. Mas - atente-se no quase paradoxo - é u m humor lírico, à portuguesa. A portuguesa, não porque seja do género do nosso humor típico, que não prima pela finura, e que mais não pre- tende do que provocar amplas gargalhadas que os mais expansivos costumam acompanliar com palmadas nas coxas ... Mas porque, não sendo ele próprio um saudosista, é pelo humor que obtém a sereni- dade existencial e a fruição lírica que a maioria dos portugueses atinge mediante a vivência saudosa.

Resumindo, pensamos que o humor de Almada é saudável, aie- gre, compreensivo e optimista e que consegue, quando lhe influen- cia o estilo literário, um lirismo muito pessoal, enxuto de senti- mentalismos ...

9. O que foi exposto já nos permite uma primeira conclusão, sujeita naturalmente a acrescentos e emendas, acerca do perfil men- tal de Almada e do interesse filosófico da sua obra.

A primeira nota a destacar é a da escrupulosa coerência entre pensamento e vida. O Almada exibicionista que passeou, no Chiado, um galo pela trela, e que, ao menor pretexto, saltava para cima das mesas dos cafés, alardeando os seus dotes de bailarino, - não era um histrião gratuito, compulsivamente necessitado de público. Nem o autor do Manifesto Anti-Dantas pretendia só zurzir sadicamente, com u m humor ferino, os bonzos da medíocre vida literária portu- guesa de então. Mesmo nos seus excessos, Almada obedeceu sempre

à ideia metafísica que tinha de si e do mundo. A sua maneira, reno- vou, no séc. X X , o projecto existencial próprio dos filósofos gregos, que viviam de acordo com a sua sabedoria crítica.

Ao contrário do que mais facilmente poderá parecer, o polifa- cetado e imprevisível Almada foi, entre nós, um raro exemplo de vida coerente.

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É certo que a sua antropologia, logo intuída a partir da pri- meira juventude, e a que sempre se manteve fiel, nunca recebeu numa exaustiva fundamentação, nem se integrou numa visão filo- sófica, global e sistemática. Isso lhe diminui, sem dúvida, o valor teórico. Mas não lhe tira penetraçáo nem originalidade.

10. Em síntese, pois, e concluindo: o desenhador e humorista Almada foi, a n t e s de mais, u m pensador profundo e coerente. Aconteceu, porém, que esse seu pendor especulativo nunca foi auto- nomizado, nem antecedeu e deliberadamente inspirou a sua obra artística, mas com ela cresceu geminado, em unitários actos expres- sivos.

E

isso deu a sua arte uma r a r a profundidade.

Ora os textos literários são, por sua natureza, os mais per- meáveis a tal simbiose, como mais facilmente se presta também a incorporar o seu humor.

Por isso Almada foi, mais do que desenhador, e muito mais do que pintor, um admirável artista da palavra.

NOTAS

É certo que Nietzçche também pregava uma pedagogia e uma política

elitiçtaç que impedissem a sobrevivência de todas a s formas de decadência vital. Mas para Almada náo h á variações de vitalidade no instinto. Para ele o pecado

- pedagogicamente corrigivel - era n i o o acolher n a s u a autenticidade, e náo

a seguir.

"'Nome de Guerra", in Obms Completas, V. 11, pág. 186, Lishoa, INCM.

"

Idem, pág. 184.

"dem, pág. 214.

Referências

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