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O papel das relações sociais na consolidação de políticas públicas / The role of social relations in the consolidation of public policies

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Academic year: 2020

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71635-71652 sep. 2020. ISSN 2525-8761

O papel das relações sociais na consolidação de políticas públicas

The role of social relations in the consolidation of public policies

DOI:10.34117/bjdv6n9-564

Recebimento dos originais: 01/09/2020 Aceitação para publicação: 24/09/2020

Raíssa Lorenna Nascimento Costa

Advogada, Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri (URCA), Especializando em Direito Administrativo e Gestão Pública pela UAB/URCA.

E-mail: raissa.lorenna007@gmail.com

RESUMO

As relações sociais são produtos da vida em sociedade e caracterizam-se, essencialmente, pela interação que há entre seus componentes considerando territórios, culturas, identidade e ideias. Contudo, é da natureza dessa dinâmica social que alguns grupos sociais se sobressaiam sobre os demais e imponham seus interesses pessoais acima dos interesses públicos, prejudicando, assim, a concretização de interesses gerais. Dessa maneira, com o intuito de explicar como essas relações de poder e de domínio influenciam na concretização de políticas públicas, este trabalho se propôs analisar de maneira breve como ocorre a formação do “Policy Cicle” e qual o protagonismo que os agentes sociais têm nessa fase. Ademais, como exemplo prático dessa discussão acadêmica, analisou-se a maneira pela qual a elite governante brasileira busca conciliar seus interesses com a efetivação de políticas públicas habitacionais.

Palavras-chave: Relações sociais, Consolidação de políticas públicas. ABSTRACT

Social relations are products of life in society and are characterized, essentially, by the interaction that exists between its components considering territories, cultures, identity and ideas. However, it is in the nature of this social dynamic that some social groups stand out from the rest and impose their personal interests above public interests, thus harming the realization of general interests. Thus, in order to explain how these relations of power and dominance influence the implementation of public policies, this work aims to briefly analyze how the formation of the “PolicyCicle” occurs and what role social agents have in this phase. Furthermore, as a practical example of this academic discussion, we analyzed the way in which the Brazilian ruling elite seeks to reconcile its interests with the implementation of public housing policies.

Keywords: Social relations, Consolidation of public policies.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As relações sociais têm início com a vida em sociedade que, ao mesmo tempo em que traz benefícios para o ser humano, restringe e limita suas vontades. Embora essa relação pareça ser, em um primeiro momento, paradoxal, nos dias atuais predomina o entendimento de que a sociedade é fruto de uma necessidade inata do ser humano e está organizada com base em sua consciência, vontade e similitude de interesses.

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Com o intuito de explicar por que o homem vive em sociedade, duas correntes teóricas antagônicas surgiram, são elas: o naturalismo e o contratualismo. Conforme ensina Dallari (2013, p. 23), os naturalistas advogam que o homem possuiria uma vontade inata de associar-se com outros seres humanos, porque essa é a condição da vida e só assim ele poderia satisfazer suas necessidades e, dessa maneira, conservar a si próprio. Em sentido diametralmente oposto, defendem os contratualistas que a sociedade não é outra coisa senão fruto exclusivo de um acordo de vontades.

Digressões à parte, fato é que hoje prevalece o entendimento de que o meio social é fruto das ideias naturalistas e contratualistas que, juntas, dão maior coesão ao àquilo que denominamos de sociedade. Ainda sob essa perspectiva, Dallari (2013, p 31.) afirma que, uma vez formadas, as sociedades possuem elementos característicos são eles: a finalidade social, as manifestações em conjunto ordenadas e o poder social.

Explica, ainda, o autor que tais elementos simbolizam que viver em sociedade é buscar a consecução de um bem comum, de condições que possibilitem e favoreçam o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. Entretanto, para que o bem comum seja alcançado, as ações humanas devem ser ordenadas, orientadas de maneira tal que os indivíduos ajam de forma harmônica, preservando, assim, a sua liberdade individual.

Nesse sentido, o poder seria o responsável pelo controle das ações humanas no meio social, já que ele representa a imposição da vontade de um grupo dominante sobre o grupo dominado, em que os primeiros impõem determinados comportamentos a esses últimos com o fito de conservar a sua posição de dominadores, utilizando-se, para tanto, de vários meios como a coerção, dinheiro, influência social, poder da palavra, etc.

Dessa maneira, é possível inferir que as sociedades se originam a partir de agrupamentos humanos organizados visando a consecução de objetivos comuns que, a fim de atingir tais objetivos, promovem manifestações ordenadas submetidas a um poder. Tais formações sociais surgem a partir de um processo de integração em que grupos sociais de organização simples e homogênea evoluem e se tornam mais complexos, dando início a um processo de diferenciação em que grupos com tendências e aptidões semelhantes se reúnem, construindo um grupo à parte.

Dessa dinâmica social em que um grupo precisa do outro para sobreviver, surge a solidariedade social cujo objetivo é construir um sistema harmônico onde todos os envolvidos sejam beneficiados. A esse processo dá-se o nome de movimento de coordenação. E é desse ciclo de integração-diferenciação-cooperação que a sociedade se constitui, evolui e se adequa às novas demandas sociais representado, dessa maneira, o modo de pensar daquela sociedade em um tempo determinado.

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2 POLÍTICAS PÚBLICAS: BREVES EXPLICAÇÕES

As políticas públicas, de forma sucinta, podem ser conceituadas como um conjunto de ações estratégicas meticulosamente selecionadas a fim de implementar, de modo pacífico, decisões políticas que visam preservar a vida em sociedade.

Ou seja, são ações escolhidas dentre um conjunto de alternativas possíveis cuja seleção observará alguns critérios ou preferências, a exemplo da hierarquia dos atores envolvidos. Esse é o entendimento de Rua (2009, p. 11-33), para quem as políticas públicas devem ser analisadas sob um aspecto mais amplo, que perpassa pelo entendimento dos processos de diferenciação existentes entre os atores sociais dos quais a interação resultará em confrontos que serão resolvidos mediante decisões políticas ou através de medidas coercitivas.

Nesse sentido, cabe considerar que o processo de diferenciação social decorre da vida em sociedade e envolve múltiplas possibilidades de ação por parte dos atores sociais, cujas origens relacionam-se com a satisfação de necessidades materiais e ideais. Em vista disso, é que os membros, grupos, organizações e coletividades que compõem uma determinada sociedade podem direcionar seus esforços para a concretização de ações em prol do bem comum (cooperação) ou se empenham para ganhar a disputa por bens escassos (competição), observando, nesse caso, regras sociais estipuladas pelas partes envolvidas no processo. Há, ainda, um terceiro tipo de interação social que pode desenvolver-se, que é o conflito. Nesses casos, ocorre um choque, confronto, para que os bens escassos, geralmente associados ao poder e prestígio, sejam monopólio de um fragmento da sociedade.

Dessa maneira, é cabível pontuar que eles, conforme o entendimento da autora, são os responsáveis pelos avanços sociais, desde que ocorram dentro de padrões administráveis. Isso se dá porque a administração de um conflito pode ocorrer tanto pela via política quanto pela coerção. Enquanto esta consiste na repressão mediante uso da força, aquela, é um conjunto de procedimentos formais e informais que expressam as relações de poder, e que se destinam à resolução pacífica dos conflitos nos quais os bens públicos estejam envolvidos.

Sob essa perspectiva, a política se apresenta como sendo a alternativa mais benéfica para a solução dos conflitos sociais, haja vista que ela representa as atividades políticas desenvolvidas que se destinam a alcançar ou produzir uma solução pacífica de conflitos relacionados às decisões públicas. Contudo, antes da tomada de decisões, é necessário que as ideias sejam amadurecidas até que se chegue a um acordo que atenda as reivindicações sociais, sem gerar conflito com outros atores sociais.

Sob esse aspecto, é que a política (do inglês “politics”) difere das “policy”, já que estas são compreendidas como sendo a formulação de propostas, as tomadas de decisões e a implementação

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por órgãos públicos de temas que afetam a coletividade. Em outras palavras, são as políticas públicas que se originam a partir de decisões políticas.

Assim, embora uma política pública implique decisão política, nem toda decisão política será uma política pública, isso porque as políticas públicas são fruto do poder extroverso do Estado (poder regulatório estatal ultrapassa seus limites organizacionais e se estende a toda a coletividade), visando alcançar o interesse público. Sob essa ótica ela não se confunde com as atividades coletivas, muito menos as atividades privadas de interesse público, haja vista que a primeira representa um direito exclusivo que um grupo social específico possui sobre o desfrute de um bem privado, enquanto a segunda simboliza organizações sociais que, sujeitas a normas e regulamentos próprios, agem visando o bem comum, a exemplo de campanhas solidárias empreendidas por igrejas, sindicatos, empresas privadas, dentre outros.

À vista disso, para que as políticas públicas representem uma atividade estatal de interesse público visando a conservação da sociedade através da resolução pacífica de conflitos, o governo organiza uma lista de prioridades para as quais deve dispensar atenções e entre as quais os atores lutam arduamente para incluir questões e assuntos de seu interesse. Esse método de organização, na seara sociológica, denomina-se de agenda de políticas públicas e não se confunde com as diversas agendas que coexistem socialmente, tais como a agenda governamental que trata dos problemas específicos de um governo; a agenda de decisão cuja incumbência é elencar os problemas a serem resolvidos a curto e médio prazo pelo sistema político, dentre outras.

Em virtude da diversidade de temas que cada agenda aborda, percebe-se que elas são fruto de um processo extremamente competitivo, pouco sistemático, em que os atores sociais buscam chamar a atenção do governo para aqueles temas que eles consideram relevantes. Logo, múltiplos são os tipos de atores que afetam fortemente a formação da agenda, são eles: os atores governamentais, os atores não governamentais, os atores visíveis e os atores invisíveis.

Em contrapartida à ação desses atores sociais, há a evidencialização dos temas. Segundo Rua (2009, p. 11-33), três são os elementos que contribuem para dar notabilidades aos temas que serão inclusos na agenda de políticas, são eles: o reconhecimento do problema, a proposição de políticas e o fluxo das políticas.

O primeiro elemento se manifesta a partir de eventos momentâneos, em que informações a respeito de um evento (estatísticas, pesquisas, indicadores, etc) são expostos e as demandas sociais começam a se manifestar. Depois disso, há a proposição de políticas formuladas e influenciadas pela ação de atores visíveis, invisíveis e de comunidades políticas, pois, frequentemente, entre eles já costumam existir propostas que viabilizam a solução de determinados problemas. Por fim, ocorre o fluxo da política, que envolve o sentimentalismo popular em relação aos governos e aos temas

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públicos, bem como a articulação das forças políticas organizadas e as disputas interpartidárias e eleitorais.

Associados a esses elementos de notabilização de políticas públicas, estão as demandas populares. Ou, em outras palavras, “as bases de dados” que provocam ou desencadeiam o movimento do sistema político. Essas demandas, tais quais os atores sociais e os elementos de evidenciação, também se subdividem e se classificam de acordo com os estágios em que os problemas/temas sociais se encontram.

Dessa forma, tem-se as demandas novas que refletem o surgimento de novos atores políticos ou de novos problemas e, geralmente, resultam de alguma mudança social ou tecnológica, ou ambas. Sob essa ótica, Rua (2009, p. 11-33) explica que os novos atores já existiam no subsistema político, mas não de maneira organizada. Somente quando organizados é que eles passam a pressionar o sistema político, tornando-se, assim, novos atores políticos. Enquanto os novos problemas seriam aqueles que poderiam ou não existir antes, ou cuja existência seria um “estado de coisas”, pois não chegavam a pressionar o subsistema político e a se apresentar como um problema que exigia uma solução.

Já as demandas recorrentes expressam problemas mal resolvidos e que sempre retornam ao debate político e à agenda governamental, a exemplo da reforma agrária. Enquanto as reprimidas são aquelas demandas que correspondem a um “estado de coisas” marcado pela não tomada de decisões. Ou seja, elas representam uma situação que se prolonga por um tempo considerável, incomodando parte da população e gerando insatisfações sem, contudo, conseguir mobilizar as autoridades governamentais.

Entretanto, essas demandas (novas, recorrentes ou reprimidas) podem acumular-se e, assim, sobrecarregar o subsistema político. Nesses casos, a duração e a gravidade da sobrecarga pode ocasionar a ruptura institucional, além de contribuir para que uma crise de governabilidade ocorra, isso, pois, através do surgimento de novas demandas (mais complexas e, por vezes, contraditórias) e da redução do apoio político.

Nesse contexto, cabe acrescentar que algumas situações permanecem como “estados de coisas” por um período indeterminado, sem serem incluídas na agenda governamental, graças à existência de barreiras institucionais e culturais. Em vista disso, ocorre o fenômeno da “não-decisão”, termo cunhado por Bachrach e Baratz, conforme as explicações de Rua (2009, p. 11-33). Igualmente, pontua a autora que para o “estado de coisas” se tornar um problema de cunho político e passar a integrar o rol de itens da agenda governamental, faz-se necessário que ele apresente algumas características não cumuláveis como a mobilização da ação política, a constituição de uma situação de crise e de oportunidade.

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Assim, haverá mobilização política quando haja uma ação de grupos, estejam eles alocados estrategicamente na sociedade, estejam eles divididos entre pequenas porções dotadas de fortes recursos de poder.

O segundo item, por sua vez, manifesta-se quando situações calamitosas ou catastróficas ocorrem, razão pela qual recai sobre o governo o ônus de dar uma resposta ao problema, em vez de, simplesmente, ignorá-lo. Por fim, há a situação de oportunidade quando algum ator relevante percebe vantagens oriundas a partir da solução daquele problema.

Vê-se, portanto, que a inclusão de um “estado de coisas” na pauta da agenda governamental não significa que o mesmo se transformará em um problema político e, consequentemente, obterá uma política pública capaz de o sanar. Obviamente, se essa questão coincidir com as demandas favoráveis dentro de um subsistema político, as chances de que se torne uma política pública aumentam consideravelmente.

Sob essa perspectiva, é pertinente considerar que a elaboração de uma agenda política envolve a mobilização de diversos atores sociais que lhes forem mais favoráveis. Dessa lógica, é possível inferir que, em sociedade, cada um dos indivíduos que dela participa possui necessidades e aspirações que, a depender das condições as quais estão submetidas, transformam-se em demandas. Estas, a seu turno, necessitam de soluções cuja formulação dá origem a diversas expectativas. Sob esse ponto de vista, as expectativas se apresentam como suposições formuladas pelos atores sociais acerca das consequências que cada proposta à solução dos problemas pode ter e, consequentemente, o modo pelo qual essas alternativas podem impactar seus interesses.

Em decorrência dessas expectativas é que há a mobilização dos atores sociais com o intuito de defender interesses próprios, que se manifestam sob a forma de preferências. Ou seja, se manifestam como uma alternativa para a solução dos problemas que mais beneficiam determinado ator social, após análise do custo e benefício (perdas e ganhos) oferecidos por ela.

As preferências, por sua vez, são organizadas conforme as questões, questionamentos ou

issues, que representam aspectos das decisões que afetam interesses plurais. Todavia, o governo ao

selecionar quais soluções serão ou não adotadas em relação a uma determinada medida, privilegia alguns indivíduos em detrimento de outros e, assim, a configuração política muda. Segundo Rua (2009, p. 11-33)

As preferências geralmente não são restritas, elas costumam se apresentar como um leque, sendo ordenadas em uma sequência: eu prefiro a alternativa “A”, mas se “A” não for possível, então eu gostaria que fosse adotada a alternativa “C”. Mas se nem “A” nem “C” forem possíveis, eu prefiro que seja adotada a alternativa “D”. […] As preferências se formam em relação aos issues, ou questões. Issue é um item ou aspecto de uma decisão, que afeta os interesses de vários atores. Por esse motivo os issues mobilizam as expectativas dos atores quanto aos resultados da política e catalisam o conflito entre eles.

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Assim, os atores sociais com o intento de realizar as suas preferências quanto às soluções que poderão ser adotadas por cauda um dos issues de uma política, procuram adentrar nas estruturas de oportunidades, ou seja, entram em contextos onde as regras do jogo (conjunto de normas formais e informais que regem o processo de interação entre os atores) são ditas por quem detém os recursos de poder – aqui entendidos como elementos materiais ou imateriais, efetivos ou potenciais dos quais um ator social pode se valer a fim de concretizar suas preferências.

Ocorre que, da junção de preferências (expectativas) quanto aos resultados delas para a solução de um problema e da estrutura de oportunidades, formam-se as denominadas arenas políticas que representam as alianças formadas entre os diversos atores sociais.

Ainda segundo a autora, as arenas políticas se apresentam como sendo um contexto sistêmico, interativo, caracterizado pela ação dinâmica de atores sociais, capaz de definir as suas alianças e mobilizar o conflito entre eles através dos issues, das preferências, das expectativas e da estrutura de oportunidades oferecidas pela sociedade.

3 O PROTAGONISMO DAS RELAÇÕES SOCIAIS NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

As sociedades, conforme trabalhado em linhas anteriores, originam-se de agrupamentos humanos organizados que compartilham objetivos comuns cuja consecução depende de manifestações ordenadas submetidas a um poder. Assim, tais formações sociais acarretam um processo de integração em que grupos sociais de organização simples e homogênea evoluem e se tornam mais complexos, o que Bourdieu (1983, pp 46 - 81) chama de espaço social, iniciando um processo de diferenciação em que pessoas com tendências e aptidões semelhantes, habitus, se reúnem, construindo um grupo à parte, campo.

Entretanto, esses grupos diferentes precisam dos demais para a sua sobrevivência, circunstância esta que requer das partes envolvidas solidariedade de modo que constituam um sistema harmônico onde todos os envolvidos sejam beneficiados. A esse processo dá-se o nome de movimento de coordenação e é justamente esse ciclo de integração-diferenciação-cooperação que constitui a sociedade, fazendo-a evoluir e se adequar às novas demandas sociais, refletindo, assim, o modo de pensar daquela sociedade em um tempo determinado.

Dessas relações, surgem os fatos sociais que são fruto de um processo coeso em que valores, hábitos e costumes são assimilados pela população local e integram suas maneiras de pensar, sentir e agir, caracterizando e representando os grupos sociais aos quais pertençam, construindo, assim, as regras de conduta predominantes naquele local.

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a feição de obrigações externas à consciência dos indivíduos, geralmente incorporados de modo inconsciente através da educação. Dessa maneira, à medida em que o processo educacional se desenvolve, há a transmissão de valores e crenças semelhantes entre si próprias de um tempo determinado, e esse fenômeno acontece porque em cada sociedade, considerada em um momento delimitado do seu processo de evolução, existe um sistema de sentimentos e ideias coletivas que se insurge sobre os indivíduos, vencendo-os. Assim, a socialização dos indivíduos é um processo diretamente relacionado à educação.

Sob essa perspectiva, Dahl (1997, pp 160-175), ao falar sobre a socialização, diz que ela ocorre primeiramente em instituições como a escola e a família, para depois se manifestar em outras entidades, a exemplo de instituições ligadas ao trabalho. Ocorre que esses tipos de socialização acontecem em fases diferentes da vida do indivíduo, o que pode resultar no abandono de crenças antigas e na incorporação de novas e, nesse processo, os valores, crenças e concepções políticas adquirem mais respaldo em virtude do prestígio de quem as transmite. Dessa forma, quanto maior for a posição ocupada pelo transmissor, maior será a facilidade com que a informação repassada será assimilada pelos cidadãos médios, o que torna as elites personagens importantes nas fases de elaboração e difusão de políticas públicas governamentais.

Por esse ângulo, os valores e crenças que as elites possuem, importam mais que os do restante da população, pois são elas quem estão no poder. Assim, influenciarão os padrões comportamentais do restante da população, de forma racional e consciente, em três vertentes distintas, quais sejam elas: a cognitiva, a afetiva e a avaliativa.

Segundo Gimenes (2014, p. 119-151), a ideia de sistema político deve ser entendida como um todo, com suas estruturas de encaminhamento e satisfação de demandas, além da visão que cada um dos indivíduos possui acerca da sua própria atuação como ator político relevante ou não, ou seja, sua eficácia política subjetiva.

Nesse sentido, o autor afirma que para alguns autores clássicos como Almond e Verba, o sucesso de um sistema político depende “da existência de um grau significativo de congruência entre as instituições concretas e os valores, crenças e atitudes políticas partilhadas pelos cidadãos”. Assim, faz-se necessário que os indivíduos sejam adeptos do plano normativo vigente, isso, pois, sob o risco de o governo não funcionar adequadamente.

Ainda conforme as explanações de Gimenes (2014, p. 119-151), autores clássicos como Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels, entendiam que a dinâmica social se resume a uma elite que influencia pessoas que se deixam influenciar.

Para Mosca, nas sociedades sempre existiram classes distintas entre os indivíduos, quais sejam, os governantes (responsáveis pela condução da sociedade, razão pela qual eram conhecidos

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como classe dirigente ou política) e os governados (conhecidos como conduzidos ou “massa”). De acordo com essa organização, a classe dirigente seria uma minoria organizada cujos recursos de poder eram utilizados para controlar as funções políticas e, consequentemente, a tomada de decisões, sendo eles os responsáveis pela condução da história. Enquanto a massa seria composta por indivíduos desorganizados que não usufruiriam do aparato governamental.

Segundo esse pensamento, explica Gimenes (2014, p. 119-151), que o domínio das classes políticas variaria de acordo com os recursos socialmente valorizados, tais como o poderio militar, o acúmulo de riquezas (plutocracia), a influência sacerdotal e pelos recursos de saber (intelecto). Além do mais, observou que os grupos dominantes tenderiam à inercia, ou seja, lutariam pela manutenção de seu status, à medida em que, inevitavelmente, substituiriam os seus valores com o passar do tempo. Oscilando, assim, entre momentos estáveis e instáveis.

Por fim, esclarece o autor que, para cada classe política dirigente que cair, haverá a ascensão de um outra classe ao poder que, através da consolidação de seu domínio, instaurará um novo período de estabilidade social. Assim, o poder seria um movimento oscilatório entre estabilidade e instabilidade, em que o segundo momento implicaria na substituição da classe política dirigente.

Vilfredo Pareto, a seu turno, considerava que a heterogeneidade social era fruto das diferenças físicas, morais e intelectuais existentes entre os indivíduos, o que originaria as desigualdades sociais. Em vista disso, a sociedade estaria organizada em estratos, um superior e outro inferior - em que estes seriam os comandados, pois seus membros não exerceriam o poder político, enquanto aqueles seriam a elite cujos membros poderiam exercer o comando político (elite governante) ou influenciá-lo através dos recursos sociais que controlavam.

Conforme a teoria parenteana, a comunicação entre os estratos e a circulação das elites (passagem de um grupo a outro, em que os indivíduos de um estrato inferior seriam aceitos na classe dominante, desde que aceitassem servi-la e abdicassem de suas características, a fim de se comportarem como se fossem da classe superior) seriam as responsáveis pelo equilíbrio da vida em sociedade.

Entretanto, esse modelo, ao se preocupar demasiadamente com o equilíbrio social, produz um conhecimento aistórico e abstrato, “em que não existiriam diferenças entre as sociedades e onde a circulação das elites refletiria apenas num rearranjo dos resíduos necessários ao exercício do poder político”. Continuando suas reflexões sobre Pareto, Gimenes (2014, p. 119-151), pondera que

O autor acreditava que no âmbito da política os resíduos seriam desigualmente distribuídos entre as classes superiores e inferiores e tal discrepância seria a base da desigualdade social. Assim, a classe governante ideal seria formada por indivíduos com distribuição equilibrada entre os resíduos de classes I e II, capazes de governar sem abdicar da persuasão ou da

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força, utilizando cada qual no momento adequado.

Por fim, Gimenes (2014, p. 119-151), explica ainda que Robert Michels acreditava que a consolidação das organizações gerava interesses próprios sobrepostos àqueles dos indivíduos que deveriam ser representadas. Dessa maneira, um grupo reduzido de governantes, também conhecido como oligarquias, governaria a maioria da população quais sejam, os governados ou massa.

Para o autor, esse fenômeno seria explicado pela psicologia das multidões, segundo a qual as massas não apenas estão preparadas para desempenhar papeis de comando, ou talvez não queiram exercê-lo. Assim, a superioridade seria uma caraterística adquirida pelos indivíduos através dos arranjos organizacionais e não um atributo intrínseco desde o nascimento, em vista disso, as oligarquias passaram a ostentar, dentre outras características, uma condição de superioridade intelectual ante as massas.

Nesse sentido, Michels (1982, p. 39) discorreu a aparente indiferença das massas pela política pode estar associada à valores morais; a necessidade de uma chefia entre aqueles não se interessam por assuntos políticos ou renunciam voluntariamente à política e, dessa forma, mantem-se apáticos; pela gratidão política em relação àqueles que espontaneamente os repremantem-sentam no meio social, etc. Assim, ele fala que

Além da indiferença política das massas e da necessidade de serem dirigidas e guiadas, um outro fator, de qualidade moral mais relevante, contribuiu para assegurar a supremacia dos chefes: é o reconhecimento das multidões pelas personalidades que falam e escrevem em seu nome. [...] Esses homens, adquirirão, com frequência, uma espécie de auréola de santidade e de martírio, só pedem, em troca dos serviços prestados, uma única recompensa: o reconhecimento. Essa exigência chega, às vezes, até os anais oficiais do partido. A massa também demonstra sua gratidão com grande intensidade.

Além do mais, Michels observou que os discursos proferidos pelos chefes das oligarquias igualmente influenciam a formação de opinião das massas e, consequentemente, a manutenção dessa classe no poder. Nesse mesmo sentido afirmou que as oligarquias possuíam um ciclo de vida segundo o qual elas se consolidariam para, depois, entrarem em decadência e serem substituídas por outras minorias dominantes, sendo este um processo contínuo e eterno de circulação de elites.

Assim, diante das explanações feitas, é possível constatar que entre os grupos detentores de poder (elites), há a tendência de que eles permaneçam inertes, ou seja, conservem a sua posição de superioridade, situação essa cujos reflexos incidem diretamente na implementação de políticas públicas. Isso porque, as políticas públicas são uma resposta às demandas sociais reclamadas, essencialmente, pela parcela majoritária da população (conhecida como massa), a exemplo dos programas habitacionais como o “Programa Minha Casa, Minha Vida” que visam minimizar os déficits da população brasileira em relação à moradia.

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Entretanto, cumpre considerar que o conjunto de valores, crenças e hábitos das elites diverge, na maioria das vezes, daqueles cultuados pelos massa, dado que os ensinamentos transmitidos nas esferas privadas desses indivíduos relacionam-se, essencialmente, com a conservação e/ou melhoria das condições de vidas deles. No primeiro caso, essa melhoria associa-se com a manutenção e uso dos recursos de poder (intelectual, financeiro, político, dentre outros), enquanto as demandas daqueles dizem respeito à melhoria das condições básicas de vida, tais como moradia, alimentação, educação, saúde. Ou seja, relacionam-se com a garantia e a efetivação de direitos fundamentais expressos nos mais diversos dispositivos legais de um país.

Dessa maneira, pode-se afirmar que o processo de implementação das políticas públicas obedece a um processo de integração-diferenciação-cooperação entre as elites e as massas, onde cada um desses grupos buscará defender os seus interesses na mesma medida em que os concretizam, dado que a vida em sociedade rege-se pela solidariedade entre seus atores de modo que eles sejam beneficiados na proporção da sua força política e poder de ação.

4 O DÉFICIT HABITACIONAL NOS DIAS ATUAIS E OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE ACESSO À MORADIA

A Fundação João Pinheiro1 (FJP), em levantamento feito no ano de 2018 utilizando os dados referentes à Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios do ano de 2015, estimou que o déficit habitacional, nesse período, era de aproximadamente 6,355 milhões de domicílios, enquanto o número de moradias carentes de pelo menos um tipo de serviço de infraestrutura, totalizavam cerca de 7,225 milhões.

Do total do déficit habitacional no ano de 2015, 87,7% estão localizadas na área urbana. Destas, 39% encontram-se na região Sudeste, seguida pelo Nordeste, com 31% do total. Em relação ao déficit habitacional rural, este predomina nas regiões Norte e Nordeste, que ostentam, respectivamente, o percentual de 21,8% e 26,8%.

Ainda segundo os dados da FJP, em termos absolutos, São Paulo é a unidade da federação que detém o maior déficit habitacional (1,337 milhão de moradias), seguido pelos estados de Minas Gerais (575 mil unidades), Bahia (461 mil moradias), Rio de Janeiro (460 mil domicílios) e Maranhão (392 mil moradias).

Um fator que contrasta esses números, é o montante de domicílios vagos. Conforme os estudos da Fundação João Pinheiro, em 2015 o país possuía 7,906 milhões de imóveis vagos, dos

1 Órgão oficial de pesquisa em políticas públicas, estatísticas e ensino em administração pública do Governo do Estado

de Minas Gerais, cujas atividades abrangem os estudos básicos para conhecimento da realidade econômica e social dos estados, regiões e municípios, elaboração de projetos e estratégias de desenvolvimento setorial e regional, dentre outros.

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quais 80,3% localizavam-se nas cidades e 19,7% em áreas rurais. Desses, 6,893 milhões foram considerados habitáveis, enquanto 1,012 milhão estavam em reforma ou em construção. Diante desses dados, especula-se que a maioria dessas habitações não se adequam ao perfil daqueles que precisam ser atendidos.

A Fundação Getúlio Vargas (2018, p.10), ao analisar as necessidades habitacionais e suas tendências para a pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias – ABRAINC, utilizando os dados mais recentes obtidos durante PNAD 2015 pelo IBGE, constatou, mediante projeções, que o déficit habitacional brasileiro é de aproximadamente 7,77 milhões de moradias.

Embora esses números sejam consideravelmente divergentes, eles são alarmantes e representam um processo em que alguns paradigmas como a heterogeneidade e desigualdade social, além de demandas socialmente recorrentes e complementares, são negligenciados. Fato que termina por prejudicar a compreensão e o entendimento da lógica das políticas públicas desenvolvidas e, consequentemente, a eficácia delas. Isso, porque, tradicionalmente os índices padronizam as necessidades de moradia para todos os extratos de renda, camuflando, dessa maneira, o dinamismo e a complexidade socioeconômica de uma região, pois, como é sabido, problemáticas aparentemente universais, manifestam-se de diferentes maneiras em locais onde a pobreza predomina, conforme explica a FJP (2018, p.15) em seu estudo anual sobre o setor habitacional no país e a evolução de seus indicadores. Senão vejamos:

Em uma sociedade profundamente hierarquizada e extremamente desigual como a brasileira, não se devem padronizar as necessidades de moradia para todos os estratos de renda. Trabalhar com índices sociais numa realidade como essa significa enfrentar um grande desafio. Certamente seria mais cômodo e simples para o analista fazer tábula rasa dessa complexidade social – seja do ponto de vista técnico ou do de justificativa política – e, dessa forma, utilizar parâmetros idênticos para tratar a questão habitacional. No entanto, esse posicionamento implica problemas substantivos: os índices assim levantados possuem menor serventia para a tomadas de decisão pelo poder público. (BRANDÃO, 1984, p. 103). Dessa forma, as demandas habitacionais são diversas nos diferentes segmentos sociais e, além disso, variam e se transformam como a própria dinâmica da sociedade.

Assim, é imprescindível que a discussão acerca das políticas habitacionais ocorra em conjunto com questões complementares ou recorrentes. Ou seja, torna-se necessário que aspectos referentes à morada sejam discutidos à luz de outras políticas públicas como transporte, saneamento básico, abastecimento de água, etc., sob o risco de os programas habitacionais tornarem-se inócuos. Sob essa ótica, o problema habitacional no Brasil estrutura-se em torno de dois problemas centrais, quais sejam eles: o déficit por reposição de estoque e o déficit por incremento de estoque. O primeiro caso refere-se àqueles domicílios rústicos, em que o imóvel é atingindo por um processo de depreciação, vindo a tornar-se insalubre; proporcionando, dessa maneira, desconforto e o risco de contaminação por doenças. Na hipótese, o problema social é específico, detectado em um certo

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 9, p. 71635-71652 sep. 2020. ISSN 2525-8761 momento, e sua solução ocorrerá mediante a construção de novas moradias.

Já o segundo correlaciona-se às especificidades internas das moradias, como as casas construídas com madeira e/ou outro material precário, a coabitação familiar e o ônus excessivo com o aluguel. Ou seja, aos seus aspectos estruturais cuja existência implica o delineamento de políticas públicas complementares voltadas para a melhoria dos domicílios, tais como esgotamento sanitário, coleta de lixo, instalação e ampliação da rede de energia elétrica, ampliação das rotas de transporte público, dentre outras.

Importante esclarecer que são denominadas de precárias aquelas habitações rústicas, construídas sem parede de alvenaria ou madeira aparelhada, o que reduz a vida útil do imóvel. Incluindo-se aqui, também, os domicílios improvisados que englobam os locais e imóveis sem fins residenciais, mas que são utilizados com essa finalidade, a exemplo de pontes e viadutos, imóveis comerciais, prédios abandonados, cavernas, etc., demonstrando, assim, a carência de domicílios.

Já a coabitação familiar, é um fenômeno “tradicional” e compreende as famílias secundárias, compostas por, no mínimo, de duas pessoas ligadas por laços de parentesco, normas de convivência e dependência doméstica que residem com a família principal, no mesmo domicílio, bem como das que vivem em um cômodo. Conforme o levantamento da FJP, aproximadamente 40% das famílias que vivem nessa situação não têm interesse em constituir um novo domicílio, razão pela qual deveriam ser consideradas como “demandas reprimidas”, dado que apresentam potencial para, posteriormente, transformarem-se em aspirantes a um domicílio exclusivo.

Enquanto o ônus excessivo com aluguel corresponde aos gastos superiores à 30% da renda familiar que as famílias urbanas têm com a locação de um imóvel (casa ou apartamento). Para essa classe, o aluguel não é uma opção, diferentemente do que ocorre com famílias que apresentam melhor renda familiar.

Além destes itens, outros elementos que contribuem para a inadequação dos domicílios são o adensamento excessivo (número médio de moradores é superior a três por dormitório), a inadequação fundiária (ocorre quando pelo menos um dos moradores do domicílio é proprietário da moradia, mas não a do terreno ou da fração ideal de terreno onde ele se localiza), a cobertura inadequada (domicílios que, embora possuam paredes de alvenaria, são cobertos com madeira aproveitada, zinco, lata, etc.), a inexistência de banheiro exclusivo (domicílio não dispõe de banheiro/sanitário para uso exclusivo).

Desse modo, evidencia-se que o déficit habitacional, no caso do Brasil, é um somatório de fatores quantitativos e qualitativos. Logo, políticas públicas criadas com o intuito de mitigar essa deficiência devem buscar equilibrar tanto os aspectos quantitativos, quanto os qualitativos. Pois, se assim não for, grande é a probabilidade de que essas medidas sejam ineficientes quando da

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consolidação dos seus propósitos. Como exemplo, temos o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) que, criado em meados 2009, tornou-se um mecanismo na redução do déficit habitacional do país mediante a construção de moradias. Ou seja, observando, essencialmente, aspectos quantitativos.

Ademais, o programa, ao financiar a construção de moradias sem estabelecer parâmetros sobre os locais onde os imóveis devem ser construídos, facilita a edificação em locais ermos, de difícil acesso e onde os investimentos em políticas públicas como educação, saúde, transporte, dentre outros, são parcos. Isso, pois, como uma forma de baratear os custos da construção e aumentar os lucros auferidos pelas empresas.

Segundo o levantamento feito por Dias e Castelo (2013, p. 04-07) para a Fundação Getúlio Vargas, o PMCMV é responsável por 92% dos negócios das empresas de todo o país que atuam no programa. E, dentre as dificuldades enfrentadas pelas firmas estão a escassez de terrenos aptos para a construção de moradia populares a um preço compatível com os custos da empreitada, além do processo burocrático para a regularização do programa de financiamento junto ao Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal; para a concessão de licenças ambientais por parte dos governos municipais e, consequente, aprovação e liberação da obra para que esta seja registrada em cartório.

Além desses empecilhos, as empresas listam outros problemas que influem diretamente no retardamento do fluxo do produto e financeiro, quais sejam eles: a escassez de mão de obra qualificada, dificuldades em investir em novos processos e tecnologias (custos elevados, alta incidência tributária, escala de empreendimentos, dentre outros). Em decorrência desses entraves, quem perde são os beneficiários do PMCMV. Sobretudo, porque, os produtos finais entregue frequentemente são construídos com materiais de acabamento de baixa qualidade e estão localizados nos arredores dos centros urbanos, onde serviços básicos como saúde, educação e transporte públicos são insuficientes para atender a demanda populacional daquela região.

Dessa maneira, à proporção em que imóveis são construídos nesses locais, torna-se necessária a implementação de medidas de infraestrutura urbana e de regularização fundiária nessas regiões, isso, pois, como forma de combater a deficiência qualitativa que se impõe frente à redução quantitativa da problemática habitacional. Nesse sentido, Gouveia (2018) explica que

A terra urbana é cara, então colocam as pessoas muito longe. Isso cria problemas de toda ordem porque habitação não é só moradia. É moradia mais acesso ao trabalho, acesso aos equipamentos comunitários. Quando se constrói um conjunto habitacional muito longe e não existem esses equipamentos, cria-se um problema enorme para a população. Isso aconteceu no Brasil inteiro, ao longo destes últimos 100 anos.

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Assim, ante o déficit habitacional, o direito à moradia (além de outros direitos) tem sido reivindicado através de movimentos sociais, destacando-se, dentre eles, o movimento Ocupe Estelita, as jornadas de junho de 2013 e os rolezinhos dos jovens de periferia nos shoppings. Segundo Cafrune (2016, p. 185-206), o primeiro movimento surgiu quando a área onde o Cais José Estelita, localizado na cidade de Recife, estado de Pernambuco, foi destinado para um empreendimento imobiliário grandioso sem que tenha havido nenhuma discussão pública ou participação popular. Além do mais, essa construção ocasionaria impactos ambientais, paisagísticos, históricos e arquitetônicos.

Ainda conforme o autor, as jornadas de junho de 2013, organizaram-se a partir de manifestações juvenis pela consagração de diversos direitos (transporte, saúde, educação, dentre outros), onde expressões como “não é pelos 20 centavos” e “padrão FIFA” consagraram-se e fortes repressões militares e representação coletiva nas entrevistas também marcaram esse período. Os rolezinhos, por sua vez, aconteceram em 2013 e explicitaram as desigualdades existentes entre as classes sociais, isso porque os proprietários dos shoppings centers proibiram as reuniões dos jovens pobres, majoritariamente negros, em seus estabelecimentos, haja vista que esses ambientes, hoje, configuram um nicho de mercado, onde os hábitos de consumo e expressões culturais são próprios de uma determinada classe social.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do contexto trabalhado, é possível afirmar que os movimentos sociais desempenham uma função importante, em que as minorias começam a intervir direta e ativamente no processo de decisão e, consequente, implementação de políticas públicas. Assim, dizemos que tais articulações são fruto da conscientização de um ou mais grupos dos quais esses indivíduos fazem parte e que integram um sistema político composto por estruturas de encaminhamento e satisfação de demandas.

Destaca-se, ademais, que tais articulações assumem uma feição simbólica na medida em que os manifestantes rompem provisoriamente não apenas com a ordem social vigente, mas sim com as suas identidades e papéis sociais desempenhados, reconstruindo-os. Assemelhando-se, nesse ponto, à teoria proposta por Vilfredo Pareto em que a comunicação entre os estratos sociais e a circulação das elites seriam os responsáveis pelo equilíbrio da vida em sociedade.

Nesse sentido, os movimentos sociais, ao defenderem a efetivação de diversos direitos assegurados constitucionalmente (inclusive o direito à moradia), buscam validar as normas éticas, jurídicas e de cunho programático existentes no ordenamento jurídico brasileiro através da implementação de políticas públicas, já que elas são o mecanismo estatal capaz de propiciar a implementação de ações positivas capazes de modificar substancialmente o conjunto social.

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Ademais, há de se ter em mente que o Brasil é um Estado Constitucional Democrático de Direito, o que implica dizer que as metas e programas de interesse sociais e particulares, bem como seus ramos jurídicos, devem ser equilibrados e atuar em conjunto de modo a efetivar a concretização nas normas programáticas cogentes estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, isso porque o ordenamento jurídico brasileiro é um todo composto por partes que se complementam permanentemente a fim de alcançar os interesses públicos e, dessa forma, beneficiar toda a sociedade e não apenas um grupo seleto, geralmente composto pelos detentores de poder.

Dessa maneira, é preciso considerar que as relações sociais são as determinantes do funcionamento da sociedade. Logo, se um aspecto social se mostra falho e opera deficientemente, os outros segmentos trabalharão mais porque precisam a suprir as lacunas existentes naquele setor deficitário, pois, para que o todo (sociedade) funcione em harmonia, as partes (elites e minorias) devem estar sintonizadas.

Entretanto, na vida prática do país, vislumbra-se um desequilíbrio entre o todo e as partes, pois, a exemplo das articulações outrora tecidas, os programas implementados pela elite governante para amenizar os problemas relacionados à moradia não obtiveram êxito em sua concretização e, apesar dos esforços empreendidos para mitigar os efeitos desse evento, ações sociais ações sociais ainda necessitam ser implementadas para que as minorias tenham acesso a condições básicas de infraestrutura tais como transporte, saúde, educação etc, usufruindo, assim, de melhores condições de vida, ao passo em que reestabelecem o equilíbrio social.

Por fim, cumpre acrescentar que a noção equilíbrio social, contexto em que foi exposto, representa a harmonização dos interesses das elites governantes com as carências enfrentadas pela massa, de tal modo estes não sejam visualizados apenas em épocas eleitorais, conforme retratado pela personagem autobiográfica Carolina de Jesus, na obra Quarto de Despejo, mas, espera-se que lhes sejam concedidos voz. Voz para que lhes permitam participar da vida política, alocar recursos, bens e serviços além de influenciar a tomada de decisões e posterior implementação de políticas públicas. Voz para que se imponham e, assim, sejam vistos como pessoas que necessitam de atenção e proteção estatal para além das épocas eleitorais ou circunstanciais.

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