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A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

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A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Vanessa Marques Borba

Mestranda em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção e em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Centro Universitário Ritter dos Reis

vane.borba@hotmail.com

Germano André Doederlein Schwartz

Reitor do Centro Universitário Ritter dos Reis. Diretor Acadêmico da Faculdade Porto-Alegrense. Pesquisador CNPq – nível 2. Pesquisador Conpedi Índice H=4. Pós-Doutor pela University of Reading, UR, Inglaterra.

Centro Universitário Ritter dos Reis

germano.schwartz@uniritter.edu.br

Raquel Iracema Olinski

Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Católica do Estado do Rio Grande do Sul. Mestranda em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis.

Centro Universitário Ritter dos Reis

raquelolinski@gmail.com

Maria do Carmo Goulart Martins Setenta

Mestranda em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Especialista em Direito Penal e Política Criminal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Centro Universitário Ritter dos Reis

mariadocarmo.gms@outlook.com

Resumo: Este artigo tem como objetivo destacar a importância do desenvolvimento de políticas públicas articuladas, intersetoriais, para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Esse tipo de violência é um problema de grande complexidade, pois ocorre na intimidade, entre pessoas com vínculos afetivos, o que dificulta o próprio processo de revelação da violência e de superação. Trata-se de um problema que impacta a saúde dos envolvidos, a mulher em situação de violência, os filhos e o próprio agressor, constituindo-se em um problema de saúde pública, no qual todos devem ser

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tratados. Portanto, perpassa a esfera penal e demanda do poder público, da família e de toda a sociedade, ações articuladas, capazes de responder as diversas especificidades desse tipo de violência. Porém, a ausência de investimentos e desenvolvimento de serviços em rede pelo poder público faz com que não se tenha evoluído na prevenção e combate à violência doméstica e familiar, o que justifica o significativo aumento do percentual de mulheres agredidas, conforme dados de pesquisa feita em 2017 pelo Instituto DataSenado. Assim, é fundamental uma mudança cultural e uma abordagem integral da violência doméstica e familiar pelo poder público, através do desenvolvimento de políticas públicas intersetorias e eficazes, pois somente dessa forma se reduzirá o número de mulheres em situação de violência e se poderá assegurar a sua dignidade.

1 Introdução

A violência doméstica e familiar contra a mulher recebeu um novo olhar da sociedade brasileira e da comunidade jurídica a partir da promulgação da Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha. Porém, apesar de mais de uma década de vigência da Lei, se analisarmos o número de mulheres em situação de violência, constata-se que não houve uma efetiva evolução no combate e tratamento desse tipo de violência.

Assim, o objetivo deste trabalho é destacar a importância do desenvolvimento de ações articuladas por todos os envolvidos, a família, a sociedade e o poder público, e de políticas públicas articuladas, intersetoriais, como mecanismo fundamental para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Para tanto, partiremos da análise da complexidade que envolve a violência doméstica e familiar, que perpassa a esfera penal e precisa ser compreendida como um problema de saúde pública no qual todos aqueles diretamente envolvidos no processo de violência devem ser tratados, a partir de uma abordagem interseccional, que considere as especificidades históricas, culturais e sociais que levam ao contexto da violência, pois somente dessa forma é que se poderá desenvolver políticas públicas adequadas.

2 A complexidade da violência doméstica e familiar contra a mulher

A violência doméstica e familiar contra a mulher não é um fenômeno recente. Mesmo antes da promulgação da Lei nº 13.340, de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), o sistema jurídico já procurava tutelar essa espécie de violência. Entretanto, o tratamento dado pelo sistema jurídico à violência doméstica e familiar contra a mulher era objeto de críticas, tanto da teoria jurídico-feminista, quanto da corrente garantista, entre outros argumentos, por adotar como critério a quantificação da pena, o que desconsiderava a valoração do bem jurídico tutelado, ou seja, a complexidade

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e gravidade da violência e gerava, consequentemente, uma banalização da violência de gênero.

Assim, de acordo com as normas jurídicas anteriores à Lei Maria da Penha, os casos de violência doméstica e familiar eram, em decorrência da pena capitulada, enquadrados como crimes de menor potencial ofensivo e, por isso, na maioria das vezes eram “resolvidos”, no âmbito judicial, por meio de transação penal, o que levava ao que Campos e Carvalho chamavam de uma “(re)privatização do conflito”, pois não solucionavam o problema, ao contrário, conduziam a novas violências, tanto conjugais quanto públicas, oriundas do próprio processo (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p.14).

Foi, portanto, nesse contexto que sobreveio a Lei Maria da Penha, com o objetivo de criar mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, assegurando-lhe o direito a uma vida sem violência, reconhecendo o direito a uma vida digna e a todos os direitos humanos fundamentais. Para tanto, a Lei estabeleceu que cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária da mulher.

Entretanto, apesar do avanço legislativo que a Lei Maria da Penha representa no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, verifica-se que, atualmente, apesar de a referida Lei já contar com mais de uma década de vigência, este segue sendo um problema e um grande desafio para a sociedade brasileira, o que se deve, entre outros fatores, à própria complexidade desse tipo de violência, pois ocorre, na maioria das vezes, na esfera mais íntima, dentro dos lares, e é praticada por pessoas com forte vínculo emocional com a mulher, o que dificulta o próprio processo de revelação da violência e, também, o rompimento do vínculo.

Pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher1, apontou essa situação, pois, conforme os dados

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Essa pesquisa é realizada pelo DataSenado desde 2005, ano anterior à promulgação da Lei Maria da Penha, a cada dois anos, através de pesquisa telefônica. No ano de 2017 foi realizada a sétima edição da pesquisa, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, na qual foram ouvidas 1.116 brasileiras, no período de 29 de março a 11 de abril. A pesquisa representa a opinião e vivência da população feminina brasileira com acesso a telefone fixo e celular e possui margem de erro de 3 pontos percentuais e nível de confiança de 95%.

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levantados, a maioria das mulheres que declarou ter sofrido violência teve como agressor pessoa sem laços consanguíneos e escolhida por elas para conviver intimamente. Conforme os dados apresentados, 41% declarou ter sido agredida pelo atual marido, companheiro ou namorado e outras 33% declararam que o responsável pela agressão foi o ex-marido, ex-companheiro ou ex-namorado.2

Outro fator que evidencia a complexidade desse tipo de violência é o dado relacionado à existência de filhos e uma maior propensão a sofrer violência, pois 34% das entrevistadas pela pesquisa que declararam ter sofrido violência possuíam filhos, enquanto, com relação às mulheres sem filhos esse percentual foi de 15%. Também se constatou uma relação entre a existência de filhos e o tipo de violência, ou seja, conforme a pesquisa, as mulheres com filhos estão mais sujeitas a sofrer violência física, 70% declararam que foram vítimas desse tipo de violência e entre as mulheres que não têm filhos o percentual foi de 38%.

A partir desses dados é possível identificar que a violência sofrida pelas mulheres não está exclusivamente relacionada ao gênero, mas que possui uma relação com uma cultura patriarcal e que o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher exige, em decorrência da sua complexidade, uma abordagem interseccional, que considere as especificidades históricas, culturais e sociais brasileiras3. A respeito das interseccionalidades, Santos esclarece:

A “interseccionalidade” refere-se ao cruzamento de sistemas de opressão e de privilégio, como o (hetero)patriarcado, o capitalismo e

2

Na pesquisa realizada em 2015, 53% das entrevistadas disseram ter os namorados, companheiros ou maridos como agressores e 21% mencionaram ter sido agredidas pelo ex-namorado, ex-companheiro ou ex-marido. Houve, portanto, um crescimento do percentual de mulheres que rompeu com o vínculo com o agressor, o que é, seguramente, um dado positivo no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Aliás, 73% das mulheres que disseram ter sofrido violência declararam não conviver mais com o agressor, enquanto os 27% restantes ainda convivem. (A íntegra da pesquisa está disponível em:

http://www.senado.leg.br/datasenado)

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KRIEGER, PEDERSEN, VINCENSI e ALMEIDA referem que muitas mulheres em situação de violência podem não procurar atendimento, pois em decorrência de uma cultura machista, na qual se veem como submissas, não se reconhecem como vítimas, entendendo que submeter-se à violência é o submeter-seu papel. Ressaltam, ainda, que somente através de um vínculo de confiança com os profissionais encarregados do atendimento a essas mulheres, que muitas vezes buscam a rede de serviços por outras razões, como para atendimento aos seus filhos, é que é possível a revelação da violência. (KRIEGER; PEDERSEN; VINCENSI; ALMEIDA, 2012, p.269).

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o racismo, que estruturam as relações sociais com base em categorias historicamente situadas, tais como, classe social, gênero, raça, etnia, orientação sexual, deficiência, entre outras, (re)produzindo relações desiguais de poder e moldando a formação de identidades individuais e coletivas. (SANTOS, 2017, p.1).

Outro aspecto que deve ser considerado é a própria causa, a origem da violência, especialmente considerando o fato de que esta ocorre, na grande maioria das vezes, como já referimos, na esfera íntima, entre casais ou ex-casais.

Conforme a pesquisa do DataSenado, entre os fatores que induziram a agressão, 24% das mulheres que declararam ter sofrido violência apontaram como causa o uso de álcool, seguido por brigas ou discussões, 19%, e ciúme, 16%. O uso de drogas foi apontado por 5% das entrevistadas. Esses números evidenciam que a violência doméstica e familiar é, de fato, um problema complexo, que perpassa a esfera penal e que se enquadra como um problema de saúde pública, pois 29% das agressões foram motivadas, conforme relatado pelas entrevistadas, pelo uso de álcool e de drogas e 35% por brigas e ciúmes o que indica um desequilíbrio psicológico que pode ter origem na própria cultura patriarcal da sociedade brasileira. Além disso, muitas vezes, como também demonstrou a pesquisa, a relação entre agressor e agredida envolve filhos em comum, o que impede, ou dificulta, o rompimento do vínculo.

3 O desenvolvimento de políticas públicas intersetorias para a prevenção e contenção da violência

De fato, como se procurou evidenciar, a violência doméstica e familiar contra a mulher é um problema de grande complexidade, de modo que a mera aplicação de medidas protetivas de urgência, como o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; a proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; a proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; e a proibição de frequentar determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores (são algumas das medidas previstas no art. 22, da LMP), não é capaz de solucionar.

Tampouco, o tratamento dado pelo sistema penal, uma política de encarceramento, sem tratar a origem da violência, se mostra eficiente como forma de prevenção ou contenção da violência doméstica e familiar, pelo contrário, muitas vezes, apenas, tem o condão de potencializar a situação de

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violência, vez que cumprida a pena o agressor, que mantém o vínculo com a mulher, seja em decorrência da existência de filhos em comum ou pelos laços de afetividade, volta ao convívio e, por não ter recebido tratamento adequado, tende a reproduzir o mesmo quadro de agressão.

A Lei Maria da Penha veio, portanto, como instrumento normativo resultante das lutas feministas, para propor um novo olhar frente a complexidade da violência doméstica e familiar contra a mulher e introduziu uma nova forma de enfrentamento do problema, que perpassa a esfera penal e se preocupa com a realidade vivenciada pelas mulheres em situação de violência, como enfatizado por Campos e Carvalho:

Com a Lei Maria da Penha, a violência contra mulheres passa a ser tratada como um problema complexo, originado em uma relação afetiva marcada pela desigualdade de gênero, cuja complexidade o direito deve responder de forma minimamente satisfatória. Desde o ponto de vista do movimento de mulheres, era injustificável cindir artificialmente a situação, como se as questões de família e criminais fossem instâncias distintas da relação afetiva que as originou. Logicamente a racionalidade jurídica, através dos detentores dos discursos autorizados (doutrina e jurisprudência), refutou (e ainda refuta) radicalmente esta aproximação do problema em uma única esfera jurisdicional, visto ser inconcebível para dogmática ortodoxa a superação das fronteiras da jurisdição civil e criminal. A grande questão, porém, é que o movimento feminista, a partir da Lei Maria da Penha, realizou um choque de realidade no campo jurídico, impondo que as formas e os conteúdos do direito tenham correspondência com a realidade dos problemas sofridos pelas mulheres. Contrariamente à tradição do pensamento jurídico, a partir da reforma legal, é o sistema jurídico que necessita se adequar à realidade e não o contrário. (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p.149).

Nessa nova perspectiva de enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha estabelece ao poder público o dever de desenvolver políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 3º, § 1º), não de forma isolada, mas através da articulação de ações de todos os entes federados e de organizações não governamentais4.

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A Lei Maria da Penha estabelece, em seu art. 3º, § 2º, que cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária da mulher.

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Entretanto, apesar dessa nova visão e desses mecanismos de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher instituídos pela Lei Maria da Penha, a pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado apontou que houve um aumento significativo do percentual de mulheres que declararam ter sido vítimas desse tipo de violência provocada por homens. Esse percentual que era de 18% na pesquisa anterior, em 2015, passou para 29%, em 2017. Além disso, 27% das entrevistadas declararam não ter feito nada com relação à última agressão sofrida5.

Esses dados apontados pela pesquisa evidenciam que apesar do grande avanço sob o aspecto legislativo que a Lei Maria da Penha representa para a sociedade brasileira, para as lutas feministas, existem falhas estruturais na implementação dos mecanismos de prevenção, tratamento e contenção da violência doméstica e familiar contra a mulher criados pela Lei, pois não basta a sua existência, é fundamental que todos os responsáveis, ou seja, a família, a sociedade e o poder público, interajam para torná-la efetiva.

A prevenção e contenção da violência doméstica e familiar demanda, portanto, uma abordagem e tratamento interdisciplinar, com a instituição de serviços articulados em rede, como estabelece a Lei Maria da Penha, pois a fragmentação das políticas públicas leva a um paralelismo de ações e à revitimização da mulher que, muitas vezes, percorre diferentes serviços em busca de atendimento e não encontra o encaminhamento e as respostas adequados, tampouco, profissionais capacitados para entender e atender a complexidade do problema da violência (KRIEGER; PEDERSEN; VINCENSI; ALMEIDA, 2012, p.269).

Mesmo antes da Lei Maria da Penha já havia uma preocupação por parte de estudiosos com a intersetorialidade das políticas públicas como meio de enfrentamento da violência de gênero. Blay, em artigo feito e publicado em 2003, intitulado “Violência contra as mulheres e políticas públicas” - no qual fez um apanhado histórico da evolução do movimento feminista no Brasil no final do século XIX e início do século XX, abordando os reflexos da cultura patriarcal na nossa sociedade a partir do caso do assassinato de Angela Diniz e o surgimento das organizações não governamentais feministas ao longo das décadas de 1960 1970, assim como dos Conselhos da Condição Feminina e as Delegacias de Defesa da Mulher -, apontou a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas transversais como ferramenta fundamental para o enfrentamento da cultura machista e patriarcal e como

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Na pesquisa realizada em 2009, o percentual era de 23%, sendo que em 2013 houve uma considerável redução para 17% das mulheres que declararam não ter tomado qualquer atitude, porém, no ano de 2015 já se registrou um aumento para 21%, chegando, no ano de 2017, ao já referido expressivo número de 27%.

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instrumento de promoção da equidade entre homens e mulheres e para dirimir a violência, em especial a de gênero. Para tanto, a autora apontou a necessidade de articulação entre diferentes Ministérios (Justiça, Educação, Saúde, etc.) e a necessidade de trabalhar a igualdade de gênero no ensino fundamental e universitário, ressaltando, também, a essencialidade da participação da sociedade civil para o planejamento das políticas públicas transversais (BLAY, 2003).

Assim, a Lei Maria da Penha ao instituir o dever de desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais e do tratamento interdisciplinar da violência doméstica e familiar contra a mulher, veio a consolidar e dar força a uma necessidade que já se fazia sentir em decorrência da própria complexidade desse tipo de violência e de enquadrar-se como um problema que perpassa a esfera penal e se constitui, efetivamente, como de saúde pública6.

Azambuja e Nogueira tratam da relação que existe entre a violência e o desenvolvimento de doenças. Conforme as autoras, investigações mostram que mulheres que sofreram violência sexual têm maior propensão a doenças, tanto físicas quanto psicológicas, como a depressão, e até mesmo o desenvolvimento de comportamentos não saudáveis como o tabagismo, o consumo de álcool, drogas, entre outros. Outro aspecto apontado é de que a violência conjugal impacta diretamente na saúde dos filhos que a presenciam, de modo que possuem, também, maior propensão ao desenvolvimento de problemas psicológicos e conjugais (AZAMBUJA; NOGUEIRA, 2008, p.109).

Por trata-se de um problema de grande complexidade, e de saúde pública, que atinge todos os atores envolvidos, a mulher em situação de violência, os filhos e o próprio agressor, somente através da intersetorialidade de políticas públicas, da atuação em rede, é que se pode enfrentar a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Entretanto, apesar da essencialidade do desenvolvimento de políticas públicas articuladas para a prevenção, tratamento e contenção da violência contra a mulher, o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou a violência contra as mulheres7, apontou a deficiência

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A intersetorialidade invade os limites disciplinares e organizacionais rompendo com a subordinação de uma política a outra e instaurando processos de diálogo, de construção de redes e construção de vínculos em uma perspectiva coletiva. É identificada como transcendência do escopo setorial e geralmente se traduz como articulação de saberes e experiências inclusive no ciclo vital das políticas, que compreende procedimentos gerenciais dos poderes públicos em resposta a assuntos dos interesses do cidadão (BELLINI; FALER, 2015. p. 125).

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Em decorrência da relevância e abrangência que o tema da violência doméstica e familiar tomou na sociedade brasileira, em especial após o advento da LMP, o Congresso Nacional instaurou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar a violência

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da rede especializada de serviços de prevenção e atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar que não conta com profissionais devidamente capacitados. Essa rede que, como determina a Lei Maria da Penha, deve ser composta, prioritariamente, por varas e juizados especializados em violência doméstica e familiar, delegacias de defesa da mulher, promotorias e defensorias públicas especializadas e casas-abrigo são insuficientes e, além disso, estão em sua maioria com seus serviços localizados nas capitais ou regiões metropolitanas, o que dificulta ou inviabiliza o acesso das mulheres em situação de violência, considerando que muitas estão em condições de vulnerabilidade social, não dispondo de recursos financeiros para o deslocamento e a busca pelo atendimento (CAMPOS, 2015). Esse aspecto apontado no relatório representa uma grave falha na implementação dos mecanismos de prevenção, assistência e contenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, o que, seguramente, considerada a relevância do desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, é um dos fatores que justifica o aumento do número desse tipo de violência, conforme se contatou na pesquisa realizada pelo DataSenado. 4 Considerações finais

A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui-se em um problema de grande complexidade, pois ocorre na esfera mais íntima, entre pessoas com vínculos afetivos, o que, em decorrência da nossa cultura patriarcal, dificulta o próprio processo de reconhecimento e revelação da violência. Trata-se de um problema que perpassa a esfera penal e que se constitui, efetivamente, em um problema de saúde pública.

O enfrentamento desse tipo de violência demanda uma ação articulada entre todos os entes federados, a família e a sociedade, para que seja possível oferecer tratamento a todos os atores envolvidos, a mulher em situação de violência, os filhos e o próprio agressor, atingindo, assim, a origem da violência. É exatamente o que estabelece a Lei Maria da Penha, que se constitui em um grande avanço, sob o aspecto legislativo, na prevenção e contenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, mas que, como visto, em decorrência da falta de efetividade das políticas públicas, mesmo após mais de uma década de vigência, não logrou êxito na redução da violência.

Assim, somente através de uma mudança cultural e de maiores investimentos no desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, de uma atuação em rede, com profissionais qualificados para a compreensão e

contra as mulheres, realizada entre março de 2012 e julho de 2013, portanto, com mais de um ano de duração.

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tratamento das situações de violência, e do acesso a esses serviços a toda a sociedade é que se poderá prevenir e combater a violência no âmbito doméstico e familiar.

Referências bibliográficas

AZAMBUJA, Mariana Porto Ruwer de; NOGUEIRA, Conceição. Introdução à violência contra as Mulheres como um problema de Direitos humanos e de Saúde Pública. In: Saúde Soc. São Paulo, v. 17, n. 3, p. 101-112, 2008.

BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. Estudos Avançados 17 (49), 2003.

BRASIL, Brasília: Senado Federal. Observatório da Mulher Contra a Violência. Panorama da violência contra as mulheres no Brasil [recurso eletrônico]: indicadores nacionais e estaduais. – n.1, 2016. Disponível em:<http://www.senado.leg.br/datasenado>. Acesso em 19 out. 2018.

CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e Juizados Especiais Criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Estudos Feministas, Florianópolis, 14 (2): maio-agosto, 2006.

______. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2011.

______. A CPMI da violência contra a mulher e a implementação da Lei Maria da Penha. In Estudos Feministras, Florianópolis, 23(2): 352, maio – agosto, 2015.

KRIEGER Grossi, Patrícia; PEDERSEN, Jaina Raqueli; VINCENSI, Jaqueline Goulart; ALMEIDA, Sônia María A. F. (2012). Prevenção da violência contra mulheres: desafios na articulação de uma rede intersetorial. Athenea Digital, 12 (3), 267-277.

SANTOS, Cecília MacDowell. Para uma abordagem interseccional da Lei Maria da Penha. In Machado, Isadora Vier (Org.). Uma década de Lei Maria da Penha: percursos, práticas e desafios. Curitiba: CRV, 2017.

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