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A luta anticorrupção vista pelos agentes da justiça: aprendizagem, treinamento e padrão interpretativo 1

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Academic year: 2021

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A luta anticorrupção vista pelos agentes da justiça:

aprendizagem, treinamento e padrão interpretativo

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Maria Eugenia Trombini & Elizangela Valarini

1 Introdução

Grandes investigações como o Mensalão e a Lava Jato que se tornaram escândalos na opinião pública escancararam a relação “informal” entre o setor econômico e o político no Brasil e a definição problemática do que é público e privado no período pós-democratização. Muitos estudos se propõem a compreender o problema da corrupção verificando as causas e consequências do comportamento desviante de determinados grupos. Enquanto alguns deles dão foco nos processos da macro esfera, ressaltando as características do sistema político e eleitoral, outros tentam reconstruir suas causas nos processos históricos e analisando a corrupção como um elemento associado à cultura brasileira (DEALY, 1992; FILGUEIRAS, 2009; TAYLOR, 2010; FAORO, 1958). Pesquisas recentes investigam o aprimoramento e incremento institucional (PRAÇA; TAYLOR, 2014) estudando não a corrupção em si, mas dando ênfase no tratamento desta, principalmente através da interação entre as unidades que fazem parte da rede de accountability. (ARANTES, 2011; SADEK, 2019; CASTRO; ANSARI, 2017) Nestes, muito se discute sobre o papel do incremento dos meios de controle, investigação e processamento de crimes, das novas tecnologias, das mudanças no desenho institucional dos órgãos de

accountability e na lei, elementos, os quais teriam finalmente conduzido o

sistema de justiça brasileiro para um tratamento mais efetivo da corrupção. Uma melhora na coordenação interinstitucional e uma proximidade maior entre os agentes que compõe cada uma das entidades nesse emaranhado de mecanismos também tem sido apontada como um dos fatores positivos para a maior efetividade da agenda anticorrupção. No entanto, pouco se sabe sobre os processos cognitivos e normativos, ou seja, aquilo que designaremos aqui como padrões interpretativos, dos agentes inseridos nesta agenda.

Com esse artigo, pretendemos compreender quais os limites das respostas formais fornecidas para se compreender o suposto sucesso no tratamento da corrupção no Brasil, percorrendo as narrativas dos atores, integrantes do campo, usadas para responder qual a agência que desempenham e desempenharam na reforma da paisagem institucional. Para isso, pretendemos reconstruir o padrão de interpretação dos atores do sistema de justiça, os quais têm o enfrentamento 1 Este artigo é parte do projeto de pesquisa binacional Organizational crime and systemic

corruption in Brazil, financiado pelo DFG (Deutsche Forschungsgemeinschaft) e FAPESP

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2 da corrupção como um problema objetivo de ação, recorrendo à forma como estes compreendem a corrupção e os crimes organizacionais2 no contexto

brasileiro. Desse modo, mapearemos os estoques de conhecimento acessados pelo grupo estudado, orientadores da “luta” anticorrupção.

Nossa investigação sobre o sentido que os agentes envolvidos na agenda anticorrupção atribuem às suas ações para justificar e explicar as “soluções” escolhidas e utilizadas para o tratamento da corrupção está baseada na sociologia do conhecimento. Utilizando o método analítico hermenêutico de análise do padrão de interpretação coletivo, (no original alemão

Deutungsmusteranalyse e no inglês traduzido como Collective Mindset Analysis), reconstruiremos os padrões coletivos de interpretação ativados por

estes agentes quando confrontados com a tarefa de posicionarem-se sobre a corrupção. Os estoques de conhecimento adquiridos e construídos nas sociedades facilitam aos indivíduos a classificação de situações, problemas, crises, como por exemplo a corrupção. Mapeá-los nos permite compreender não somente o significado por trás da ação dos atores de determinado grupo, mas também as instituições3 que o produzem e reproduzem.

Nosso recorte analítico foi duplo: (i) primeiro, analisar a narrativa sobre crimes organizacionais e corrupção ativada pelos atores do sistema de justiça brasileiro; (ii) segundo, reconstruir o padrão de interpretação coletivo deste grupo e compreender seu papel e atuação na “luta” anticorrupção nas décadas recentes. Sendo assim, discutiremos os resultados da análise do padrão de interpretação coletivo reconstruído com base numa amostra de 12 entrevistas qualitativas realizadas com juízes, promotores públicos e advogados de defesa envolvidos em grandes casos de corrupção4 nas décadas recentes. Nossa pergunta central

é compreender a “luta contra corrupção no Brasil” a partir da perspectiva dos agentes do meio jurídico atuantes na temática.

Seguindo esta introdução, a segunda seção deste artigo discute brevemente as recentes mudanças no cenário jurídico brasileiro, considerando desde os

2 Crime organizacional significa no contexto deste artigo o desvio das regras formais praticado coletivamente dentro de organizações econômicas (empresas) e organizações politicas (partidos). As duas formas de organização são estudadas no âmbito do projeto de pesquisa aqui apresentado.

3 A análise do padrão de interpretação coletivo apresentada neste artigo está inserida na abordagem institucional em um sentido mais abrangente e lidando especialmente com instituições cognitivas e normativas. Para Richard Scott (1995), as instituições cognitivas constituem o significado social da realidade e a forma através da qual a realidade é percebida. Elas carregam hábitos conhecidos, regras reciprocamente reconhecidas e uma perspectiva em comum sobre como compreender o mundo (ibidem, p. 40). As instituições normativas carregam as regras coletivamente sobre o que é (deve ser) percebido como certo e errado, assim como os deveres que orientam nossa ação (ibidem, p. 37). O padrão de interpretação coletivo, por ser constituído de elementos das instituições cognitivas e normativas e oferece o repertório cultural de como os problemas de ação em uma sociedade podem ser percebidos, assim como as formas de soluciona-lo.

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3 acordos internacionais assinados pelo Brasil nas últimas décadas até mudanças de ordem institucionais no âmbito nacional que juntas formam o “pacote” anticorrupção. Em seguida, apresentaremos na terceira seção as bases teóricas e metodológicas do método de análise do padrão de interpretação coletivo, resgatando sua fundamentação nas teorias estruturalistas e institucionais, assim como sua contribuição para pesquisas sobre esse tema. Na seção seguinte, apresentaremos os resultados da nossa pesquisa, tendo como foco os padrões de interpretação reconstruídos, relacionados ao problema de ação: como erradicar a corrupção no contexto brasileiro. Na quarta seção faremos um esforço de compreender as bases contextuais, sociais, culturais, em que os padrões de interpretação coletivos encontrados são produzidos e reproduzidos. Para isso, procuraremos no contexto brasileiro e nas instituições e organizações das quais estes atores fazem parte, assim como em sua própria trajetória, quais elementos, condições, bases de pensamento, poderiam explicar o estoque de conhecimento acessado por esse grupo diante do problema estudado. Por último, fecharemos o texto com uma discussão geral.

2 Mudanças no cenário jurídico brasileiro

No que diz respeito ao combate à corrupção, o Brasil foi na última década palco de um reforço das capacidades institucionais de órgãos já existentes e a criação e implementação de novos. (DA ROS, 2019; RICO, 2014; SPECK, 2000) Atualmente, refere-se a esse conjunto de controles administrativos internos e externos, publicidade e transparência de dados, tribunais de contas e outras estruturas e procedimentos por “sistemas de integridade nacional” (POPE, 2000; SPECK, 2002) que formam uma “teia de mecanismos de accountability” (Mainwaring, 2003, p. 20) e desempenham diferentes papéis em um “ciclo de accountability” mais amplo (SCHMITTER, 2004). Na terminologia do Ministério Público Federal, o que existe é um microssistema normativo anticorrupção que abrange diversos diplomas legais5, disciplinadores das consequências jurídicas

de práticas corruptas, notadamente as sanções estatais produzidas em distintas esferas de responsabilização, e atribui a órgãos ou entes públicos as tarefas de controle e sanção de práticas ilícitas, sob a forma de múltipla incidência punitiva (MPF, 2017). Tanto a troca de informações como a ação coordenada entre promotores e policiais federais no uso de mecanismos para investigar e controlar atividades suspeitas seriam indicadores de um amadurecimento no trabalho conjunto entre esses dois membros do microssistema. (ARANTES, 2011) Abaixo, serão destacadas as mudanças institucionais no cenário normativo brasileiro que ocorreram em duas dimensões principais: legal e organizacional.

5 Entre eles: Código Penal, Lei Anticorrupção – LAC (Lei 12.846/2013), Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.º8.429/1992), Lei de Licitações (Lei n.º 8.666/1993) e Regime Diferenciado de Contratações (Lei n.º 12.462/2011), Lei de Defesa da Concorrência (Lei n.º 12.529/2011), Lei de Acesso à Informação (Lei n.º 12.527/2011), Lei Orgânica de Tribunais de Contas, como o TCU (Lei n.º 8.443/1992), Lei de Crimes de Responsabilidade (Lei n.º 1.079/1950).

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Tabela 1: Mudanças normativas anticorrupção no Brasil

Institucional (legal) Organizacional

a) Convenção

Interamericana contra a Corrupção da OEA (Decreto 4.410 de 2002); (1) o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), criado em 1988; Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD) 2004 b) Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Decreto 3.678 de 2000); (2) o Escritório da

Controladoria Geral da União (CGU), criado em 2003;

Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) do Ministério Público Federal (2005)

c) Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de Palermo (Decreto 5.015 de 2004); e (3) a Estratégia Nacional contra a Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), em 2003; e

Sislava: nova plataforma da Receita Federal de gestão da informação do sistema de justiça (2014)

d) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, ou Convenção de Mérida (Decreto 5.687 de 2006) (4) o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), em 2004. Pessoal especializado: cortes, forças tarefas, divisões de polícia (2003)

Laboratório de Tecnologia de Lavagem de Dinheiro (LAB-LD) vinculado ao DRCI (2006)

Fonte: Produzido pelas autoras com base na legislação relevante

Entre as mudanças institucionais estão os acordos internacionais que o país ratificou e internalizou em sua legislação interna, de origem estrangeira. Assim como outras iniciativas no contexto da nova ordem global, as regulações dos crimes financeiros foram lideradas pelos EUA e tiveram nele sua força agregadora. (SLAUGHTER, 2004) A promulgação do Foreign Corrupt Practices

Act (FCPA) em 1977 foi a primeira de seu tipo a proibir o suborno de funcionários

estrangeiros, e por muitos anos os estado-unidenses foram os únicos a terem uma lei desse tipo. Após algumas tentativas fracassadas, as nações da cúpula da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE) foram convencidas pelo argumento americano de reescrever regras tributárias e sancionar o suborno de funcionários estrangeiros, firmando ato multilateral em 1997. (SAGLIBENE, 2014) A partir de então, organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial estabeleceram uma visão normativa de good

governance, e posteriormente desempenharam um papel fundamental na

disseminação de ideias de administração pública usando sua influência para impulsionar reformas. (BRINKERHOFF; BRINKERHOFF, 2015)

Isso nos traz ao segundo eixo de mudanças no desenho institucional: aquelas que vieram acompanhar os tratados subscritos pelo Brasil, materializando a

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5 circulação de tal ideário vindo de fora. Conforme reportado por outros estudiosos do assunto a “agenda anticorrupção” legitimou-se no espaço de poder nacional com a ajuda de doutrinas morais e econômicas propagadas por think tanks, ONGs de transparência, agências de avaliação de risco e bancos de desenvolvimento (ENGELMANN, 2018). No entanto, por ocorrerem no âmbito de organizações domésticas, as proposições estrangeiras foram moduladas ao contexto nacional, e não meramente absorvidas, como ocorre no ordenamento jurídico nacional após a entrada em vigor de ato multilateral aprovado pelo Congresso Nacional (no caso dos tratados, via aprovação dos decretos acima elencados). Ainda assim, numa perspectiva histórica, a agenda anticorrupção é um ponto de contato entre órgãos nacionais e internacionais, mesmo quando não se identifica uma causalidade entre ambos acontecimentos. A criação de unidades especializadas de investigação e persecução aos atos de corrupção e o artigo 36 da Convenção de Mérida ou a recomendação do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana contra a Corrupção (MESICIC) nesse sentido são exemplos disso.6

Em uma perspectiva utilitarista, a vantagem de concentrar esforços materiais e humanos em uma unidade vai além dos aspectos estruturais, e o pessoal especializado se torna uma vantagem isolada. Não por acaso, a Força Tarefa Lava Jato foi composta por alguns dos personagens que integraram a Força Tarefa CC5, responsável pelo Caso Banestado, uma das maiores operações policiais sobre crimes financeiros no Brasil envolvendo a transferência de riquezas para outros países e pioneira na cooperação com órgãos de controle internacionais. Na época, a Justiça Federal do Paraná já possuía unidades especializadas, e a atuação na causa permitiu que Sérgio Moro acumulasse aprendizagem institucional na então 2ª Vara Federal de Curitiba, com competência em lavagem de dinheiro.7 Graças à experiência anterior no

Banestado e ao treinamento temático sobre o tema, antes do início da Operação Lava Jato alguns de seus personagens já haviam se familiarizado com a matéria, o campo, e uns com os outros.

Em razão da interação entre as diversas partes nesse encaixe, as regras formais e incrementos institucionais não apenas restringiram os atores, mas deram-lhes a possibilidade de alterar e reformular significativamente cada organização e seu cenário de forma incremental. (PRAÇA; TAYLOR, 2014) Já se falou sobre a influência dos polos europeu e norte-americano na dinâmica de exportação-importação do sistema normativo internacional anticorrupção. Não há evidências

6 Em relatório de 2018 o Estado brasileiro reportou à OEA que a informação de que não existiriam unidades anticorrupção especializadas estaria equivocada, comunicando a existência da 10a Câmara do TRF da 1a Região e a 13a Vara Federal de Curitiba e de centros especializados no Ministério Público Federal (5a Câmara de Coordenação e Revisão). Ver: http://www.oas.org/en/sla/dlc/mesicic/docs/mesicic5_bra_report_eng.pdf

7 A especialização começou com a Res. 20, de 26.05.2003, do TRF da 4ª Região, sendo que a Res. 99, de 11.07.2013, do TRF alterou a denominação da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, passando a denominá-la 13ª Vara Federal de Curitiba.

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6 consistentes, no entanto, se o referencial normativo estrangeiro empregado por grande parte dos atores integrantes do sistema de justiça brasileiro no enfrentamento da corrupção, condiz com suas próprias crenças com relação à forma que este problema deve ser enfrentado, ou somente utilizado porque lhes foi de alguma forma imposto. Tampouco há acordo sobre quais referenciais estrangeiros são acessados e interpretados pelos atores do campo da corrupção para ancorarem suas práticas. Ao nos aproximarmos do campo, identificamos duas orientações coexistindo: uma vinda dos Estados Unidos e da tradição

common law e outra emprestada da Europa continental. De um lado, a

hegemonia norte-americana na agenda do combate à corrupção no Brasil é reportada. (TOURINHO, 2018; FRANCO; WOOD, 2010; MENUZZI, 2019) De outro, a inspiração da Mani Pulite, história que teve como personagem principal o parquet italiano, difundiu representações anticorrupção pelo mundo, não sendo diferente no Brasil.

A operação Mãos Limpas foi assunto de trabalhos acadêmicos de personagens relevantes da Lava Jato, como o procurador à frente da Força Tarefa no Ministério Público, Deltan Dallagnol, e o magistrado Sérgio Moro.8 Referências

à operação da Itália foram feitas também em processos judiciais. Na sentença onde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado há uma citação de autoria de Piercamilo Davigo, membro da equipe de investigação milanesa.9

Segundo os críticos, a operação italiana foi o “plano de ação que veio a resultar na Lava Jato”, sendo possível enxergar a publicação de 2004 como um indicador psicológico da predisposição do autor: “Tamanho o impacto em Sérgio Moro, que ele já se fantasiava como juiz da Mani Pulite, que, quando se olhava no espelho, se via refletido nas capas de jornal” (Fernandes, 2020, p. 104) Outros apontam que o uso da imprensa para obter apoio da população pelos procuradores na Itália (SBERNA; VANNUCCI, 2013) e replicado no Brasil (ALMEIDA, 2019; SÁ E SILVA, 2020) foi considerado salutar anos antes pelo magistrado em artigo doutrinário favorável à divulgação de informações produzidas nas investigações. (PRONER; CITTADINO; RICOBOM; DORNELLES, 2017)

Motivações políticas à parte, as comparações entre a Mãos Limpas e a Lava Jato abundam na literatura especializada. O Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou um livro sobre o Brasil em 2019 no qual dois artigos falam nas lições aprendidas pelos brasileiros com os esforços anticorrupção italianos. Em resposta à pergunta se a experiência italiana foi reproduzida no Brasil, Kerche e Feres Júnior (2018) argumentaram que houve uma “italianização” do ponto de vista institucional e de estratégia de judicialização do combate à corrupção. Há quem aponte as semelhanças entre o modelo judicial italiano e o brasileiro que

8 Moro, S. F. 2004. “Operation Considerations Mani Pulite.” Revista CEJ 8(26): 56–62 e Dallagnol, D., Pozzobon, R. (2019) Ações e reações no esforço contra a corrupção no Brasil. In Pinotti, M. C. (Org.) Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas, 129 - 183

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7 os aproximariam em maior grau do que com os EUA10. Certos mecanismos

negociais adotados no Brasil, por exemplo, teriam sido inspirados no instituto de

patteggiamento, o plea bargain traduzido para um sistema continental com maior

controle judicial do que estado-unidense. (VASCONCELLOS; CAPPARELLI, 2015)

As evidências de como a agenda da luta contra a corrupção no Brasil e em particular seus atores atribuem significado recorrendo à categorias estrangeiras merecem, no nosso entendimento, um tratamento mais cuidadoso. Por entendermos que a realidade é construída socialmente e interpretada intersubjetivamente, nosso estudo parte da premissa que, isoladamente, as mudanças institucionais no âmbito regulatório não aterrissam nos membros da comunidade humana a que dizem respeito: nem nos potenciais infratores, nem nos agentes de controle social que investigam e processam os ilícitos. Elas necessitam estar engrenadas com mudanças institucionais de ordem cognitivas (conjunto de crenças e valores sociais existentes em uma sociedade ou subgrupos societais) e normativas para surtir o efeito antecipado, que por vezes é presumido numa análise superficial. Embora até aqui tenhamos nos atido aos níveis macro e meso, o arranjo de disposições referidas gera efeitos na sociedade. À título de exemplo, a primeira plenária da Estratégia Nacional contra a Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), realizada em 2003, aprovou metas ligadas ao objetivo de “desenvolver uma cultura de combate à lavagem de dinheiro no Brasil”.

Forjar uma nova cultura coloca o povo brasileiro como alvo, ainda que nesse trabalho os detalhes de padrões de interpretação coletivamente partilhados serão pormenorizados somente em relação à visão de mundo de um grupo de atores societais específico: os do sistema de justiça. Um indivíduo experimenta o mundo social (Lebenswelt11, nos termos de Alfred Schütz) no nível subjetivo,

em suas cogitações dentro do mundo da vida cotidiana, e no nível das coletividades sociais, apreendendo as relações simbolicamente e gerando sentido de forma interpretativa. Podemos hipotetizar que, como membros do sistema jurídico, as representações simbólicas através das quais o grupo interpreta as leis sejam mais uniformes do que as interpretações de terceiros a respeito dos mesmos símbolos. No entanto, nossa investigação irá se debruçar justamente sobre as narrativas sobre o enfrentamento da corrupção encontradas 10 À título de exemplo, o Código Rocco, revogado em 1988 na Itália foi referência para desenvolvimento do atual Código de Processo Penal Brasileiro, e a “Sospensione del

procedimento com messa alla prova” seria mecanismo semelhante à suspensão condicional do

processo no ordenamento brasileiro.

11 O conceito de Lebenswelt, desenvolvido por Alfred Schütz, cuja origem encontra-se na fenomenologia de Edmund Husserl e que foi utilizado por Jürgen Habermas na sua Teoria Crítica e conceito de sistema, “...é o mundo da atitude natural, da relação entre semelhantes, da existência cotidiana, da experiência do pensamento do senso comum, mundo natural, social e cultural, mundo de trocas, portanto intersubjetivo, em que é preciso entender fundamentalmente os que estão mais próximos (os associados) e ser compreendido por eles” (FIORAVANTE GARCEZ: 2014, p.75).

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8 entre magistrados, promotores e advogados atuantes no campo. Seguiremos essa pergunta com o apoio de um método apropriado para responder, indutivamente, se e em que medida referências internacionais figuram entre os estoques de conhecimento social (SCHÜTZ, 1971) acessados por tais agentes para explicar as “soluções” escolhidas e utilizadas para o tratamento da corrupção.

3 Método e dados

O uso do método qualitativo de Análise do Padrão de Interpretação Coletivo está baseado na premissa de que situações de crise e problemas estruturais recorrentes, os quais exigem uma resposta dos indivíduos afetados, não podem simplesmente ser eliminados da vida social. Para que os indivíduos possam integrar tais situações em sua visão de mundo, fazem uso de “modelos” de interpretações recorrentes, que se desenvolveram no processo de socialização e são empregados em situações relevantes para uma sociedade ou grupo específico. (BÖGELEIN; VETTER, 2019) Ou seja, uma experiência não ocorre de forma isolada ou diz respeito a um único indivíduo, pois os modelos de interpretações são “supra-individuais” – mesmo sendo processos não conscientes. A carga normativa do problema é um dos elementos centrais do padrão de interpretação coletivo que indica “do que se trata” e, se necessário, “como deve ser resolvido”. (SCHÜTZ, 1971). Juntas, a carga cognitiva e normativa orienta o sujeito não só em como interpretar o problema, mas sim como deve agir: o que é certo e desejável. (ULLRICH, 1999)

A base metodológica do método qualitativo de análise do padrão de interpretação coletivo, desenvolvida a partir de 1976, perpassa pela hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann que propõe uma investigação das situações que abordam as relações sociais e seus padrões coletivos de interpretação. A hermenêutica objetiva poderia ser descrita e sintetizada como o ato de “descortinar” a lógica entre as estruturas de reprodução social reveladas em algum tipo de texto, portanto, desvendar e revelar a realidade sui generis contida em material produzido: entrevistas, documentos, obras de arte, música, arquitetura, dentre outros. Seu objetivo é reconstruir os sentidos que foram atribuídos a uma situação, os quais estão registrados no material sob análise. (VILELA; NOACK-NAPOLES, 2011, p. 305)

Os padrões de interpretação se tornam hábitos para o sujeito, sendo rotinizados devido à sua propriedade de resolução “automática” de problemas coletivos. Ao estruturarem ações cotidianas coletivas, fornecendo modelos de situações típicas, sob as quais acontecimentos são subsumidos com base em características comuns, tais padrões permitem que as reações socialmente esperadas possam ser antecipadas com base em formas de significação e ação. (HÖFFLING; PLAß; SCHETSCHE, 2002, p. 3) Eles permanecem latentes, ou seja, não são refletidos e podem ser percebidos muitas vezes como estereótipos

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9 que facilitam a interpretação e consequentemente a ação do sujeito diante de uma determinada situação. Como somente a análise hermenêutica pode reconstruí-los, o método de análise do padrão de interpretação coletivo tem por finalidade possibilitar a reconstrução do processo de compreensão da realidade, isto é, o sentido reconhecido coletivamente, cujo conjunto pode ser chamado de estoque de conhecimento. (ULLRICH, 1999, p. 430) O estoque individual de conhecimento e suas estruturas justificáveis de relevância (derivações) são naturalmente subjetivos (experiências individuais), mas as ideias que as embasam e abrangem estruturas e práticas sociais são compartilhadas pelo grupo, portanto, coletivas. Embora a análise tenha como base documentos ou declarações individuais, seu objetivo é a reconstrução do padrão coletivo. (POHLMANN; BÄR; VALARINI, 2014, p. 18)

As passagens de texto analisadas no âmbito deste estudo foram guiadas por entrevistas qualitativas, mobilizando denso conteúdo narrativo e argumentativo, tendo como foco o tema da corrupção e dos crimes corporativos. A aplicação do método seguiu as etapas analíticas a seguir, desenvolvidas no trabalho de Pohlmann, Bär e Valarini (2014):

(1) Seleção de sequências relacionadas com o interesse da pesquisa. (2) Sintetização e Reformulação dos principais argumentos, e explicações

na sequência.

(3) Identificação de categorias abstratas de argumentos, explicações e justificações e a elas relacionadas à estrutura lógica e normativa do texto.

(4) Abstração da ordem lógica e normativa presentes na sequência, reconstruindo a lógica cognitiva (como o caso/fato é explicado) e normativa (como o caso/fato é avaliado) centrais neles contidos.

(5) Comparação da estrutura cognitiva e normativa analisada com outras sequências para identificação de padrões comuns e/ou diferentes, bem como a identificação do padrão de interpretação dominante (que se sobressai).

(6) Identificação de regras de interpretação e ação.

(7) Contextualização dos padrões de interpretação coletivos através da busca das variáveis, condições e instituições, as quais possam explica-los.

(8) Explicação geral com a introdução de abordagens e teorias que possam generalizar os resultados encontrados.

Como o padrão de interpretação pode ser observado como manifestação explícita a partir da explicação e justificação do indivíduo (derivação) quando questionado sobre um determinado problema de ação (ULLRICH, 1999), a reconstrução do padrão de interpretação coletivo é o resultado da análise das derivações individuais, que após classificadas e tipificadas possibilitam a reconstrução da lógica subjacente cognitiva e normativa apresentada coletivamente pelo grupo. (POHLMANN; BÄR; VALARINI, 2014) Para

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10 acessarmos derivações, utilizamos o método de entrevista qualitativa centrada no problema, haja vista que o padrão não pode ser diretamente perguntado, demandando métodos indiretos. Com perguntas abertas sobre a corrupção e seu tratamento, mecanismos de punição e prevenção, provocamos nos entrevistados justificações, explicações, argumentações e narrações de situações específicas, essenciais para a análise.

As etapas analíticas foram realizadas por um grupo de interpretação, composto pelas autoras, para reconstruir os padrões encontrados. A análise em grupo é essencial para este tipo de análise por funcionar como um controle da influência subjetiva sobre a análise, servindo como validação dos resultados.

Nossa amostra é formada por 12 entrevistas com representantes do Judiciário, do Ministério Público Federal e da Advocacia de Defesa. Nove delas foram realizadas em 2017, no auge da Operação Lava Jato e as outras três em 2019 e 2020. Um dos critérios para a escolha dos entrevistados, além das variáveis sócio demográficas, foi a sua participação em uma ou mais grandes investigações de corrupção e crimes financeiros lato sensu. Embora não permanentes, pois emprestam do conhecimento já existente e são incorporadas à ele, padrões de interpretação em determinada sociedade se modificam muito lentamente. Esse traço constitui uma vantagem analítica do método para examinar entrevistas feitas com indivíduos de diferentes gerações, envolvidos em diferentes episódios de corrupção no Brasil.

Todas as entrevistas foram realizadas em português, língua nativa das entrevistadoras e dos entrevistados, e gravadas em dispositivo de áudio. Uma parte delas, por conta da pandemia do Covid-19, não pôde ser realizada pessoalmente e, portanto, deu-se online. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e codificadas no software de análise de conteúdo MAXQDA.

Tabela 2: Composição da amostra Casos Sexo Área de

atuação Estado de atuação Operação Entrevista 01 F Advocacia SP múltiplas 2017 02 M Judiciário PR OLJ 2017 03 F Procuradoria RJ OLJ 2019

04 F Procuradoria SP Castelo de Areia 2020

05 F Judiciário SP OLJ 2020

06 F Judiciário PR OLJ 2017

07 M Advocacia SP múltiplas 2017

08 M Procuradoria PR OLJ 2017

09 M Advocacia SP múltiplas 2017

10 M Judiciário SP Castelo de Areia 2017

11 M Procuradoria PR OLJ 2017

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11 Na seção a seguir apresentaremos os padrões de interpretação coletivos reconstruídos através da análise qualitativa, acessados pelos juízes, membros do Ministério Público e advogados de defesa que compõem nossa amostra. O problema objetivo de ação do grupo estudado, o tratamento e enfrentamento da corrupção no contexto brasileiro, nos remete a dois elementos substantivos. O primeiro está relacionado a como o problema é interpretado, em outras palavras, qual significado é atribuído ao fenômeno. A forma como a corrupção é explicada remete à busca de um conhecimento presente e passado, pois causas e fatores relacionados ao “surgimento” do problema são acionadas como referências. O segundo elemento está relacionado a ação em si dos atores da justiça com relação ao enfrentamento da corrupção. Para explicar como esse problema deve ser combatido, os entrevistados recorrem a um conhecimento intersubjetivo construído num período recente e até mesmo projetam expectativas para o futuro.

4 Como combater a corrupção no Brasil?

Do ponto de vista dos agentes atuantes no campo em estudo, a solução para o problema da corrupção no Brasil está no processo evolutivo do sistema de justiça brasileiro, o qual seria desencadeado pela abertura legislativa e aprendizagem técnica ao se incorporarem experiências de países desenvolvidos. O contexto brasileiro sozinho é “cego” para enfrentar este problema. Por um lado, há escassez de conhecimento, de técnica e de legislação adequados para lidar com um fenômeno racional econômico. Por outro lado, as mudanças são dependentes da atitude proativa dos agentes do sistema de justiça para o aprendizado e assim, aplicação do conhecimento e instrumentos legais cabíveis. Dois padrões de interpretação foram reconstruídos através da análise das entrevistas qualitativas realizadas. O primeiro deles é dominante, portanto, reproduzido pela grande maioria dos casos analisados. O segundo padrão de interpretação é recessivo, tendo pouca representatividade dentro do grupo estudado e acessado em especial por um subgrupo composto pelos atores especializados na área do direito econômico.

4.1 Evoluir como condição para combater a corrupção: importar, copiar e aprender

Neste padrão de interpretação há unanimidade de que as influências internacionais com relação ao combate a corrupção no contexto brasileiro são positivas. A luta contra a corrupção é tratada como uma questão de conhecimento, a força motriz de qualquer sistema em constante evolução, a qual não estaria disponível no Brasil, mas sim em “culturas” ou “sistemas” desenvolvidos. Como a luta contra a corrupção não é compreendida como uma tarefa local, mas sim inserida num panorama global, o processo de “harmonização” legislativa seria um dos elementos fundamentais para o seu enfrentamento. Diante disso, a relação entre o Brasil e outros países, em

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12 especial os EUA, seria indispensável para a evolução do sistema interno. Os órgãos e profissionais das carreiras jurídicas do Estado são os principais agentes nesse processo evolucionário, pois são eles que preenchem a lacuna existente entre o conhecimento necessário e o aperfeiçoamento da cultura por intermédio da aplicação das regras. O sistema, mesmo que de forma lenta, está em constante evolução, sendo isto, na avaliação do grupo analisado, motivo de elogio.

Tanto o sistema de justiça brasileira quanto a sociedade brasileira estariam em processo de desenvolvimento. Este “caminhar” pode ser mensurado através da extensão da corrupção existente e de seu enfrentamento, em comparação com outras sociedades e com o próprio Brasil de antigamente. O processo evolucionário, mesmo em relação ao meio externo (internacional) é dependente de fatores endógenos ao próprio sistema. Estes, o aprendizado, treinamento e a legislação, seriam os catalizadores de evolução. O aprendizado, através da busca de conhecimento e do aperfeiçoamento técnico – mediante a seleção, adaptação e internalização de novos mecanismos – inauguraria uma nova forma de interação entre os agentes e agências (formas de trabalho). A fonte da busca do aprendizado são as sociedades “evoluídas”. Os conteúdos aprendidos, uma vez internalizados, são também incorporados por outros sistemas interligados ao sistema de justiça, como o de educação, no qual “novos” agentes serão socializados. O treinamento, diretamente ligado à aprendizagem, seria crucial para o processo de mudança, pois é através da capacitação dos agentes no uso de novas práticas, formação de novas ideias, assim como a utilização de formas diferenciadas de trabalho, que se dá o impulso para a mudança. Os encontros entre os sistemas ou culturas mais e menos evoluídas não necessariamente necessitam ocorrer em contextos de aprendizado formal como cursos e especializações, podendo se darem através de acordos de cooperação e intercâmbios em investigações. Por último, a própria legislação funcionaria como catalizador do processo evolutivo, pois são as regras formais que norteiam a ação dos agentes do sistema de justiça e oferecem as diretrizes para indivíduos de outros sistemas.

[...] existe uma tendência de harmonização internacional na legislação de repressão de determinados tipos de crime [...] então realmente existe uma harmonização. Primeiro os americanos desde que o FCPA começou a ser efetivamente exercido nos Estados Unidos, eles tiveram que também obrigar os outros países a terem regras mais claras e/ou semelhantes em relação a corrupção privada. O 11 de setembro nos deu um caminho financeiro, mecanismo, principalmente a lei de lavagem que é talvez o melhor mecanismo que nós temos. E também os escândalos de corrupção mudaram, também a forma pela qual certos paraísos começaram a ver, a Suíça especialmente, a ver o seu papel nesse episódio, nisso tudo. Então você pode admitir o dinheiro de sonegação, invasão de divisas não é meu problema, mas corrupção o meu país é muito evoluído pra aceitar esse dinheiro, antes aceitava agora não aceita mais. Então houve uma mudança muito grande, porque um dos pilares da Lava Jato é justamente a cooperação internacional. Nós aceitamos participar de acordos internacionais, temos uma legislação razoavelmente evoluída nesse aspecto, porque o brasileiro é bom copiador, então copia bem a as legislações normalmente e de certa forma nós começamos a aprender e os outros países começaram a ser mais perceptivos [...] Então a Suíça e os Estados Unidos, nós fizemos um acordo de FCPA com os Estados Unidos que é o da Odebrecht, que é o maior acordo que os Estados

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13 Unidos já celebrou e basicamente é um acordo nosso, que nós construímos. Então hoje em dia nós temos assim, também nós passamos a ser melhor treinados, as escolas foram sendo instituídas internas e segundo boa parte de nós fez um aprendizado no exterior, então aqui o Dr. D. em Harvard, o Dr. G. em Londres, o Dr. V. em Coimbra, então você tem uma coisa de buscar referências externas e trazer também. (Promotor público federal) Um segundo elemento cognitivo reconstruído neste padrão interpretativo está relacionado ao ethos do combate à corrupção. Este seria traço exclusivo dos atores do sistema de justiça, os quais teriam a autoridade para acessá-lo na condição de detentores do conhecimento, dos mecanismos e da capacidade de avaliar, decidir e julgar qualquer conteúdo pertinente a esse assunto. A detenção de um ethos diferenciado indica status privilegiado em relação a outros grupos desprovidos deste, pois a posição assumida no sistema de justiça permite-lhes que façam parte de uma estratégia maior de aplicação da lei que é negada aos demais. Por fim, o estrangeirismo, que por hora é ativado como americanismo, consiste em um elemento de relação entre forças externas e internas referentes à detenção do conhecimento e à implantação de práticas utilizadas para o combate à corrupção. As mudanças anticorrupção ocorridas no contexto brasileiro são vistas como reflexo de um movimento internacional, principalmente impulsionado pelos EUA, que investiram esforços para “harmonizar” as regras sobre o assunto. O processo de homogeneização invoca a existência de uma instância de saber maior (EUA) com poder de impor mudanças; e de sub-instâncias, países como o Brasil, capazes de absorver o saber superior e incorporá-lo com sucesso. A aprendizagem é inserida numa relação assimétrica e unilateral na qual a ação de buscar o conhecimento evoca o reconhecimento de “não ter algo disponível”, e então ir à busca “naqueles que o têm”.

Embora o Brasil possua capacidade de gestão das novidades incorporadas, não está provido da criatividade e “cultura” necessária para a criação de novas regras e técnicas, mas somente de competência para replicar tais novidades, e, ao fazê-lo com sucesso, ser um bom imitador. Um segundo elemento relacionado à harmonização das regras é a universalidade da justiça, reforçando um de seus atributos éticos: a imparcialidade. A justiça, a partir de sua elevada posição em relação às demais fontes de regras que proporcionam aos indivíduos padrões morais ou éticos de conduta, estaria acima de fatores políticos, socioeconômicos ou culturais no panorama nacional. A introdução de regras universais permite à justiça desempenhar sua função de neutralidade, permanecer “limpa”, hígida e incólume. Mas, além disso, permite aos atores deste sistema, quando confrontados com a tarefa de julgar, proteger-se da influência gerada pelo contexto brasileiro, no qual foram socializados que pode ser prejudicial.

Olha no começo quando eu aplicava e invocava a convenção de Mérida de corrupção, crime organizado as pessoas [...] “ah, mas que é isso, o Brasil assinou a gente tem que aplicar”. Falava de lavagem vinda da OCDE da GAFI e as pessoas: primeiro não sabiam, os juízes, não se atualizavam. Esse é um outro problema, os juízes não se atualizavam. Você aplicava era mal visto. Hoje em dia tem uma aceitação maior por que é uma imposição de fora pra dentro, graças a Deus, porque eu sempre falava isso, o Brasil só vai endireitar a justiça quando vier de fora pra dentro, porque eu já fiquei tão desencantado em certos momentos, ainda tô né, como você percebeu. Tem que haver a justiça universal,

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14 a minha crença é na justiça universal, que é uma justiça, que no campo da corrupção está se tornando, porque os tratados, as cooperações internacionais e as convenções internacionais estão falando a mesma coisa: a corrupção é grave, a pena tem que ser proporcional à gravidade, não pode o Estado amolecer, flexibilizar, tem que interpretar de forma dura, obviamente respeitando direitos individuais, mas o direito individual é uma vez respeitado mas com o crime cometido apena-se na medida correspondente, e aí eu acho que a justiça está se tornando universal nesse sentido né, há uma compreensão universal desse crime e do combate necessário desse crime. Então parece que o linguajar é um só, aonde que você vai, você vê palestras, é tudo igual, todo o mundo falando a mesma coisa, cada um com a sua, com seu jeito de explicar, mas no fundo é a mesma coisa que está sendo falada. Eu acho que é positivo esse lado do Brasil de sempre estar interessado, a sua política externa sempre interessada em acatar esses valores universais (Desembargador de justiça, vara criminal especializada).

Na estrutura normativa deste padrão de interpretação a “harmonização” de leis, ou seja, as influências internacionais são indispensáveis para erradicar a corrupção no Brasil. Sem esta relação com países desenvolvidos, o Brasil não teria condições de se desenvolver nesta direção. Para que a cultura/sistema brasileiro evolua, em outras palavras, se torne efetivo na erradicação de crimes econômicos e de corrupção, o país tem a missão de ser mais que um mero imitador de leis. Os agentes e agências diretamente envolvidos nesta empreitada devem assumir a responsabilidade por tais mudanças, pois tendo a capacidade técnica necessária e o conhecimento formal, têm também a tarefa de transformar o cenário brasileiro. Para isso, devem manter um compromisso ativo com a justiça, por intermédio da permanente atualização e treinamento, o que os obriga antes de tudo a serem agentes ativos, trabalhando internamente em nome da evolução do sistema e buscando reparar os erros do passado, quando a corrupção era aceita, com aplicação da lei, seguindo modelos externos.

Algumas regras de interpretação e ação foram identificadas no contexto deste padrão de interpretação coletivo.

Regras de interpretação Regras de ação

O enfrentamento à corrupção está

relacionado ao grau de evolução do sistema de justiça, portanto, ele só evolui quando incorpora conhecimentos, práticas e experiências armazenadas por sistemas já evoluídos.

Espelhem-se nos evoluídos, os detentores do conhecimento técnico, para que a justiça nacional possa evoluir.

A ausência da cultura de repressão à corrupção em âmbito nacional obriga o brasileiro a buscar o conhecimento e copiar técnicas e práticas eficientes e eficazes no exterior.

Busquem as repostas para o problema da corrupção fora do contexto nacional, pois é lá que os conhecimentos aprimorados e as melhores técnicas podem ser encontrados. As imposições externas são necessárias

quando os agentes do sistema de justiça não assumem seu papel de protagonistas no combate à corrupção.

Capacitem-se e atualizem-se, pois essa é a base para o aprimoramento do sistema e para a operacionalização da justiça universal.

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4.2 Legitimação do ilícito para erradicar a corrupção

No segundo padrão interpretativo, a corrupção é também compreendida como um fenômeno racional, tanto em sua natureza (da prática) quanto entre os atores envolvidos (da escolha). Os atores envolvidos nestas práticas seriam norteados pelo cálculo racional-econômico para manterem seus negócios e maximizar seus ganhos, e não porque teriam uma inclinação oculta, ou pré-disposições psicológicas, sociais e criminológicas. Assim, a solução para o problema da corrupção só poderia ser encontrada em medidas que proporcionassem incentivos capazes de desencorajá-los a fazer o que é comum, em vez de remediar o fenômeno utilizando mecanismos de outras disciplinas do direito. Este elemento explicativo sobre a corrupção está diretamente relacionado à segunda categoria mobilizada, os fatores (in)efetivos no tratamento jurídico da

corrupção. As soluções racionais-econômicas, se buscadas dentro do conjunto

de regras do direito econômico e administrativo, seriam capazes de combater efetivamente o fenômeno da corrupção. Como a legislação brasileira não considera a racionalidade do fenômeno, ela seria inadequada para o seu tratamento. Descriminalizar práticas amplamente realizadas e situações que recorram ao uso de mecanismos ilícitos seria o mais eficaz. A principal preocupação no Brasil deveria ser a de punir os crimes violentos, que justificam a prisão e costumam ser cometidos por pessoas de classes com baixo capital social. Atos corruptos seriam práticas circunscritas às camadas detentoras de maior poder econômico, característica que se confirma pela ausência de violência e o uso da racionalidade entre seus “criminosos”.

A corrupção ativa x corrupção passiva seria o binômio, no qual o peso de oferecer seria inferior ao de pedir, conduta mais grave também em termos morais. Sendo assim, a classe econômica seria vítima das propostas corruptas advindas da classe política, do funcionalismo público, ficando à revelia das ofertas ilícitas e, em consequência disso, vendo-se envolvida em práticas puníveis. A perspectiva do direito econômico seria a forma mais eficaz de proteger tais indivíduos contra os pacotes de ilicitude. Tal visão veio de fora, pois a visão estrangeira do tratamento dos crimes financeiros enfatiza o paradoxo entre a genialidade americana e ordinariedade brasileira, e acentua, portanto, a relação assimétrica compreendia entre as duas nações. O modelo americano seria, portanto, aquele a ser preferido pela legislação brasileira para o tratamento eficaz da corrupção.

[...] eu sou contrário a um agravamento da punição eu acho que a gente tem que ter eficácia, são coisas completamente diferentes, se a gente não perdesse tanto tempo com incidentes processuais e a discussão sobre a prisão inicial e sobre o tamanho da pena e a gente fosse para um cardápio de punições que fossem mais razoáveis e próprio pra aquelas pessoas, porque essas pessoas, o que nós nos preocupamos principalmente no Brasil é com a violência. A prisão é feita para os atos que são de violência, a corrupção é algo gravíssimo, mas o que nós queremos é a punição [...] Agora o que que eu acredito é o problema da corrupção e o FCPA pra mim é genial, porque o americano trouxe uma coisa nova que é a visão econômica para a regulação quer dizer ele passa a regular também não só buscando a consequência da sanção, mas como a lei vai produzir o efeito

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16 econômico. O FCPA é a grande desculpa dada pelo executivo americano pra não corromper, ele não é, o sujeito não tá usando aquilo por medo de ser punido é pra ele poder chegar em qualquer país e dizer assim eu adoraria poder atender o seu pleito, agradeço a sua gentileza de me oferecer todo esse pacote de ilicitudes eu não posso se não vou ser preso no meu país, o FCPA é uma lei com uma forca de pensamento econômico muito grande. Eu acredito nisso, que a prevenção técnica, ou seja, quando você cria mecanismos de legislação até direito administrativo que impedem atos de corrupção eles seriam muito mais eficaz do que a punição do ponto de vista do direito penal, acho que você mudar formas de licitação [...] Quer dizer você transformar em ideias econômicas algumas práticas que são práticas ilícitas e transformar coisas obsessa [...] quer dizer, soluções econômicas, soluções administrativas, soluções de direito administrativo que parecem que tem muito mais impacto no fenômeno da corrupção porque eu acredito no fenômeno econômico, não vou com teses criminológicas: "ah isso é uma tara, não é tara”, o problema, a natureza do problema é econômico. Esse tipo de remédio que é muito mais eficaz, muito mais (Advogado de defesa, direito penal).

Na estrutura normativa deste padrão de interpretação, como nem a natureza da corrupção é violenta, nem seus atores teriam motivos de ordem psicológica, mas preponderantemente econômicos, as soluções de regulação teriam que incorporar a racionalidade do fenômeno ao invés de impor punições que existem para crimes gravíssimos, praticados por pessoas violentas, que merecem uma reprimenda moral e do convívio social. O sistema de justiça deve admitir essa diferença e parar de insistir em uma visão deturpada que ignora o elemento estratégico deste tipo de crime e de seus criminosos. Achar que o remédio seria insistir no agravamento da pena é uma visão inocente, ingênua e até mesmo desatenta para o vanguardismo e a genialidade dos americanos que já perceberam muito antes que certos ilícitos podem ser institucionalizados para romper o ciclo vicioso da corrupção. Não são os agentes da justiça os detentores da missão de mudar o sistema, e nem poderiam, pois a legislação ineficaz para o combate aos crimes financeiros impede a atuação e o tratamento correto pelos

law enforcers.

Neste padrão de interpretação recessivo, puderam ser identificadas as seguintes regras de interpretação e ação norteadoras da ação do grupo estudado.

Regras de interpretação Regras de ação

Ao contrário da violência, não é o agravamento da pena que reprimirá o fenômeno da corrupção, mas sim o uso de conhecimentos e métodos jurídicos que atendam à sua racionalidade econômica.

Espelhem-se na genialidade americana, legitimando o ilícito e deslocando assim o problema da corrupção para o controle dos executivos.

A legitimação de práticas ilícitas através de soluções econômicas é a melhor estratégia para se reprimir efetivamente o problema da corrupção.

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5 Discussão

Quais estruturas de conhecimento são acessadas pelos agentes do sistema de justiça brasileiro para enfrentar o problema da corrupção? Quais padrões de interpretação orientam sua ação diante da tarefa de combater a corrupção no Brasil? Em busca de compreender mais a fundo a luta anticorrupção no Brasil, desempenhada com afinco nos últimos anos, tomamos como categoria de análise a forma como os principais protagonistas desta empreitada a interpretam e os padrões interpretativos que dão orientação à decisões e ação coletiva deste grupo. Para responder a estas perguntas utilizamos o método de análise do padrão de interpretação coletivo e reconstruímos a estrutura de conhecimento e significado existentes debaixo da superfície da ação destes agentes. Nossos resultados mostram que a corrupção é compreendida de forma geral como um fenômeno amoral e de ordem racional-econômica.

O grupo compartilha de uma visão positiva que considera o tratamento mais eficaz da corrupção aquele feito por meio da implantação de técnicas práticas internacionais. Porém a orientação aos conhecimentos e práticas internacionais, em especial encontradas entre os norte-americanos, estão ancoradas em níveis mais profundos no pensamento dos atores investigados do que uma mera afirmação positiva ou negativa com relação à sua implantação. Orientar-se “para fora” representa, para a sociedade brasileira, não somente uma forma de encontrar a “cura” para o tratamento da corrupção, mas constitui verdadeira categoria normativa, a qual impõe tal orientação como requisito para o sucesso nesta “luta”.

Como demostrado acima, na perspectiva dos agentes em exame o combate à corrupção só pode se concretizar a partir de um processo evolucionário do “sistema” / “cultura” brasileira. Sendo assim, práticas corruptas estariam na escala de “subdesenvolvimento”, uma vez que sociedades mais desenvolvidas conseguem tratar de forma efetiva desse problema. Para evoluir é preciso então buscar o conjunto de conhecimento, instrumentos e técnicas existentes nos contextos evoluídos. Embora a sociedade brasileira e, portanto, o sistema de justiça brasileiro, estejam caminhando para isso, existe ainda “muito o que se fazer” para podermos chegar a um nível de desenvolvimento “adequado” para a erradicação do crime de corrupção.

Mas como compreender essa coordenada geográfica para “o que é de fora” dos protagonistas da luta anticorrupção no Brasil? Estaria esta orientação da ação vinculada às mudanças internacionais ocorridas nas últimas décadas com relação ao pacote anticorrupção?

A explicação encontrada para as “novidades” internacionais buscaremos tanto em elementos que caracterizam os atores estudados como grupo, como características sócio demográficas, de carreira, assim como elementos organizacionais. Além disso, buscaremos no contexto brasileiro variáveis que possam produzir e reproduzir esse padrão de ação para explicá-lo.

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18 O padrão de interpretação Evoluir como condição para combater a corrupção:

importar, copiar e aprender foi encontrado entre a ampla maioria dos agentes de

justiça que compõe a amostra. Examinando as variáveis biográficas e profissionais dos atores que o atualizam, verificamos que todos eles atuam em áreas especializadas, dedicadas ao tratamento de crimes econômicos, ainda que nem todos tenham iniciado sua carreira nesta área, acumulando experiências em áreas correlatas do Direito Penal. Nascidos nos anos 60, estudaram direito em universidades brasileiras de renome. Em relação à carreira, atuam em média há 25 anos como magistrados, promotores públicos e advogados, durante os quais passaram algum tempo no exterior, principalmente nos EUA, para em algum tipo de formação profissional. No que diz respeito à origem familiar, em 70% dos casos, membros da família exerceram carreiras jurídicas e foram mencionados pelos entrevistados na escolha da profissão. Note-se que estamos diante de grupo relativamente homogêneo em termos sócio demográficos, além da especialidade temática que já era esperada dado o recorte da presente investigação.

Estudos da composição dos integrantes das carreiras do direito sinalizam o compartilhamento de características comuns. A magistratura, para a qual existem mais estudos disponíveis, é composta majoritariamente por homens brancos, provenientes de famílias das classes alta e média-alta. Em via de regra, estudaram direito em faculdades tradicionais, como a Universidade de São Paulo e outras universidades de prestígio, fundadas nos anos 60. A educação secundária é uma variável estratégica para entender a socialização dos profissionais jurídicos brasileiros, pois o recrutamento da elite judiciária através de instituições educacionais é condicionado pelas admissões em uma determinada faculdade; portanto, a posição social da família do candidato ao vestibular é primordial para os ingressantes. (OLIVEIRA; MONTEIRO; GOULART, MÔNICA HELENA HARRICH SILVA; VANALI, 2017)

Com relação à internacionalização deste grupo, alguns estudos mostram que os “períodos no exterior” estão cada vez mais presentes em sua trajetória. A internacionalização da carreira ocorreria de diferentes maneiras para membros das carreiras jurídicas no Estado e na prática privada. Os primeiros, procuradores e juízes, teriam mais oportunidades para investir em qualificações acadêmicas, ao passo que os advogados fariam outros investimentos em sua carreira, haja vista que sua inserção no mercado de trabalho ocorre por meio de estágios em escritórios de advocacia e cursos de longo prazo ou pós-graduações no exterior seriam mais custosos. Sobre isso, já foi dito outrora que a expertise técnico-jurídica aparenta estar se convertendo no campo jurídico brasileiro em um tipo próprio de recurso político à disposição das elites burocráticas. (ALMEIDA, 2019) Encontramos na nossa amostra muitas referências à cursos de longa ou curta duração realizados em faculdades americanas no contexto do exercício da profissão. Isso é consistente com a literatura apontando que embora países como França, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha fossem destinos

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19 comuns no passado, a escolha pelos Estados Unidos tem crescido significativamente. (ENGELMANN, 2012)

Um traço interessante do padrão de interpretação coletivo recessivo, designado por Legitimação do ilícito para erradicar a corrupção é que foi atualizado por casos da carreira da advocacia que tiveram passagens tanto na Europa quanto nos EUA. Esse perfil teve contato com diferentes estoques de conhecimento, além do nacional, que podem, ao lado da carreira na defesa de acusados, ter resultado numa maior variância na percepção de como a corrupção deve ser tratada. Os outros dois casos que reportaram passagens na Europa e nos EUA integram as elites burocráticas, e, portanto, não combinam, intuitivamente, com a solução administrativa encontrada nesse padrão residual.

Em decorrência da globalização, uma hierarquia profissional de dois níveis surgiria dentro de cada país: a clássica, entre os que formaram-se em escolas de elite e o resto da população, e uma segunda estaria emergindo, separando os que “simplesmente” frequentaram universidades de elite e uma nova elite cosmopolita que aproveita oportunidades educacionais. (DEZALAY; GARTH, 2000) Atores atuantes no campo da corrupção e dos crimes financeiros seriam membros deste grupo. Nossos achados comprovam parcialmente o que a literatura sugere sobre orientações normativas estrangeiras. O que encontramos aqui não indica uma “novidade” ou ruptura dos processos anteriores de diferenciação do campo jurídico, mediados pelo plano internacional, mas interconectados com as experiências dos atores em sua arena de atuação: no âmbito do território doméstico, onde foram socializados antes da trajetória profissional. Tampouco nossos achados parecem sugerir que uma orientação inédita e totalmente estrangeira emergiu na última década graças aos novos instrumentos de legislação ou treinamento na temática anticorrupção. Nossas premissas, de que a realidade é construída socialmente na interação contínua entre os níveis micro, meso e macro, foi reforçada pelas narrativas examinadas.

6 Conclusão

Conforme expomos, a análise do padrão de interpretação é uma ferramenta metodológica científica que pode contribuir para a análise das instituições cognitivas e normativas, pois foi idealizado para operacionalizar a análise institucional das sociedades, através da identificação, reconstrução e mapeamento dos estoques de conhecimento e suas alterações de forma a refazer/reconstruir o caminho inverso daquele feito pelo ator social que se utiliza do padrão coletivo em questão. A tarefa do cientista social é examinar a motivação da ação para somente então reconstruir o padrão de significação do grupo analisado e identificar a orientação da ação, sob pena de ser guiado por conclusões apressadas sobre a realidade. Os estoques de conhecimento disponíveis aos agentes da justiça é incrementado com alterações nas instituições normativas, porém isso não garante uma transformação nas

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20 instituições cognitivas, que se modificam lentamente e por vezes sequer são tocadas por mudanças sensíveis à análise.

Com relação aos resultados empíricos preliminares deste estudo, embora o tipo de treinamento dos membros da elite judicial pareça estar mudando, sua composição sóciodemográfica parece ainda se manter. Isto contradiz o que alguns autores afirmam sobre a articulação entre as instituições, as quais refletiriam mudanças na composição sóciodemográfica e no tipo de treinamento de seus membros (SADEK, 2019). Ainda sobre o “florescimento” de uma nova cultura jurídica, deve-se ressaltar que estes membros valorizam o conhecimento especializado e as técnicas mais modernas e sofisticadas na investigação de crimes de colarinho branco. Muitos desses juízes, promotores, policiais e membros de outras agências de controle participaram de cursos no exterior, especializando-se em procedimentos de investigação de crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. (ibidem, p.1280)

No padrão de interpretação coletivo reconstruído, as mudanças institucionais são consequências da “aprendizagem no exterior” e não causa das mudanças. Alguns autores afirmam que as agências brasileiras há muito tempo tiveram missões anticorrupção, mas sem dúvida tiveram que esperar pela “prontidão contextual” (ANSARI; PHILLIPS, 2011, p. 1593), “janelas de oportunidade” (ABERBACH & CHRISTENSEN, 2001), e a disponibilidade de “matérias-primas” sociais (ANSARI; PHILLIPS, 2011) para impulsionar sua agenda.

Por fim, os resultados analíticos mesmo que ainda em andamento trazem novas reflexões sobre as estruturas de conhecimento dos agentes do sistema de justiça e sua ação diante do problema da corrupção no Brasil. A ação coletiva não está desconexa do sistema de crenças e valores presentes no sistema de justiça brasileiro, assim como expressa um sistema de significados e valores construídos e reproduzidos dentro de um grupo específico e com poder de transformação.

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Referências

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