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A CULTURA DO MEDO E OS DETERMINANTES DA CRIMINALIDADE URBANA

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Academic year: 2021

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Eunice Maria das Dôres Vaz de Melo1

RESUMO: O artigo pretendeu apresentar, no contexto do pensamento contemporâneo, quais as atitudes que os agentes têm buscado para não sentir medo da criminalidade urbana ou pelo menos minimizar este temor e, a partir disso, mostrar quais as contribuições da noção de agência humana foram trazidas para esta discussão.

Palavras-chave: pensamento contemporâneo, agência humana, ação, estrutura, cultura do medo e violência.

ABSTRACT: This article aimed at presenting, in the context of contemporary thought, what attitudes agents have taken not to feel fear of urban crime or at least to minimize this fear. Taking this into account, the article also shows what contributions of the concept of human agency were brought to this discussion.

Keywords: contemporary thought, human agency, action, structure, culture of fear and

violence.

1. INTRODUÇÃO

Uma das questões mais instigantes e centrais na teoria sociológica é a relação entre “ação” e “estrutura”. Ao lermos a literatura clássica, é possível percebermos a forma dicotômica como era apresentada esta relação. Temos, de um lado, Durkheim que acredita ser exclusivamente a partir da estrutura, do todo, que se possa explicar a ação e os fenômenos sociais. Do outro, temos Weber que coloca o indivíduo como chave explicativa para a “ação” e os fenômenos sociais. Assim, tais formas de análise interpretam a relação “ação” e “estrutura” como houvesse um abismo quase intransponível entre elas (ELIAS, 2005, p. 126-129).

1Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente,

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Na verdade, as referidas idéias desses autores clássicos influenciaram e ainda influenciam (às vezes de forma marcante) os estudos sociológicos contemporâneos sobre criminalidade. É possível afirmar que Merton (1970), por exemplo, tem uma perspectiva neofuncionalista ao demonstrar como a estrutura social e cultural produz uma tendência a anomia e comportamento desviante; já Taylor, Walton e Young (1980) possuem uma perspectiva estruturalista, já que percebem as leis como um instrumento da elite que deseja manter o status quo; Wilson e Herrnstein (1985) seguem a linha do individualismo metodológico, pois consideram o delito fruto de uma decisão calculada racionalmente.

No entanto, há uma alternativa não dicotômica na forma de se pensar na relação “estrutura” versus “ação”: trata-se da concepção de “agência humana”. Neste sentido, o presente trabalho tem um duplo objetivo: em um primeiro momento, apresentamos uma discussão que aponta quais atitudes os agentes têm buscado para não sentir medo da criminalidade urbana ou pelo menos minimizar este temor. Já no segundo momento, tentamos aproximar a referida discussão sobre a cultura do medo à noção de Agência Humana. Dessa forma, buscamos saber qual seria a contribuição da Agência Humana no estudo do medo da violência.

Acreditamos que a noção de agência não responde por si só a questão da criminalidade ou medo da criminalidade. Contudo, a noção de agência humana oferece uma sólida “orientação” na forma de refletir o medo do crime, na medida em que nos fornece elementos para se pensar a partir de quê os indivíduos agem e pensam.

2. A CULTURA DO MEDO 2.1 O medo: do natural ao social

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Todos têm medo. Ele sempre existiu na história da humanidade, em todos os tempos e lugares, assumindo formas de manifestações diferenciadas. O medo é um sentimento natural, intrínseco a todos os seres vivos, sejam eles racionais ou irracionais (MIRA y LOPEZ, 2005, p.9). Nesse sentido, o medo é uma força que tem como objetivo evitar perigos de qualquer natureza e funciona como um sinal que interrompe qualquer ação imprudente. “É um fenômeno de paralisação ou detenção do curso vital” (MIRA y LOPEZ, 2005, p.9), um sinal de alerta e aviso de perigo.

Delumeau citado por Baierl (2004, p.48) afirma que o ser humano é o único ser que antecipa a sua morte, pois sabe desde cedo que um dia morrerá. Enquanto o medo dos animais é fixo, idêntico e imutável, na espécie humana ele ganha uma multiplicidade de formas não estáticas, mas em profundas mudanças, pois é construído culturalmente. Cada cultura e cada sociedade constroem compreensões do significado e do sentido do medo, dando conteúdos diferenciados em cada tempo e espaço. Assim, os medos dominantes nas sociedades que existiam no passado não são idênticos aos medos que hoje predominam nas sociedades urbano-industriais.

Cabe aqui, o destaque dado por Elias (2005, p. 113-120) sobre a distinção entre a biologia e a sociologia. Para ele, a autonomia da sociologia relativamente à biologia baseia-se, em última instância, no fato de as pessoas serem realmente um organismo, mas organismos que têm um caráter singular em certos aspectos. Isso porque devemos ter em mente que a estrutura das sociedades “não humanas” só muda quando se altera sua estrutura biológica, ao passo que nas sociedades humanas há transformações sem que para isso haja qualquer mudança na estrutura biológica. Apesar disso, é devido à sua constituição biológica que as pessoas estão mais aptas a aprender a controlar seus próprios instintos e comportamento, bem como de seus membros.

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Mas, afinal, de que as pessoas têm medo? Marilena Chauí (1987, p.36) oferece alguns elementos que nos ajudam a visualizar melhor esta questão:

Da morte, sempre foi a resposta. E de todos os males que possam simbolizá-la, antecipá-la, recordá-la aos mortais. Da morte violenta, completaria Hobbes. De todos os entes reais ou imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder de vida e de extermínio: da natureza desordenada, da cólera de Deus, da manha do Diabo, da crueldade do tirano... da peste, da fome e do fogo, da guerra e do fim do mundo... Da repressão, murmuram os pequenos; da subversão, trovejam os grandes. E conclui que “juntamente com o ódio, o medo é a mais triste das paixões tristes, caminho de toda servidão. Quem o sentiu sabe” (CHAUÍ, 1987, p.39). Sua origem e seus efeitos fazem com que não seja uma paixão isolada, mas articulada a outras formando um verdadeiro “sistema do medo”, que determina a maneira de viver e pensar dos que a ele são submetidos.

O medo, abordado neste trabalho, tem sua gênese neste singular coletivo. Ele parece ser fruto da sensação de insegurança da população frente à percepção dos crimes e nós o chamaremos aqui de cultura do medo.

2.2. Cultura do Medo: aspectos gerais e conceituais

Ainda que Durkheim (1990) nos mostre que o crime é algo normal, geral, inevitável e útil à sociedade (desde que não ultrapasse determinado nível), percebemos que o crime se situa entre as mais importantes preocupações dos brasileiros. Neste contexto, podemos observar −sob a ótica dos autores como Baierl (2004), Caldeira (2000), Eckert e Rocha (2005) e Koury (2004) − que a violência urbana vem ampliando o que denominamos de “Cultura do Medo” ou “Medo Social”, que conforme Baierl2 (2004, p.48) é

2 Entre os autores citados em minha bibliografia, Baierl (2004) é a única que utiliza o termo “medo social”; os

demais, Caldeira (2000), Eckert e Rocha (2005) e Koury (2004), usam o termo “cultura do medo”. No nosso entendimento, as duas expressões têm o mesmo valor semântico e, por isso, categorizei a expressão “cultura do medo” para que não precise ficar mudando e/ou usando duas expressões diferentes para a mesma coisa.

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[...] um medo construído socialmente, com o fim último de submeter pessoas e coletividades inteiras a interesses próprios e dos grupos, e tem sua gênese na própria dinâmica da sociedade. Produzido e construído em determinados contextos sociais e individuais, por determinados grupos ou pessoas, com vistas a atingir determinados objetivos de subjugar, dominar e controlar o outro, e grupos, através da intimidação e coerção. Esse medo leva coletividades, territorializadas em certos espaços, a temer tal ameaça advinda desses grupos.

Ao usarmos tal conceito, pretendemos tomar cuidado com uma armadilha sociológica muito comum, destacada por Elias (2005), Bourdieu (2000) e Giddens (1989), que é a de tomar os conceitos como algo em estado em repouso e isolado, além de separá-lo de coisas que estão inter-relacionadas. Para estes autores, é preciso pensar os conceitos e objetos sempre calcados em suas relações e conexões. Nas palavras de Elias (2005) teríamos uma melhor compreensão das matérias-primas com que lida a sociologia:

se não nos abstraíssemos do seu movimento e do seu caráter processual e usarmos conceitos que captem a natureza processual das sociedades em seus diferentes aspectos, como uma estrutura de referência para a investigação em qualquer situação social dada. (ELIAS, 2005, p. 26.)

Assim, cultura do medo é aqui entendida como a expressão das necessidades historicamente condicionadas de um grupo social e de seus indivíduos e como referência à totalidade das práticas sociais coletivas e suas representações simbólicas. Vale ressaltar que a cultura não pode ser concebida como estática e imutável; ao contrário, mostra-se como uma expressão dinâmica das ações e interpretações dos agentes. Nesse sentido, a cultura é traduzida como reflexo das mudanças nas relações sociais, desde a esfera da produção econômica até a esfera do imaginário dos agentes e das representações de ordem (PASTANA, 2007, p.91).

Dessa forma, comungamos da opinião de Luis Eduardo Soares citado por Eckert; Rocha (2005, p.4) quando ele afirma que a violência se converte numa linguagem compartilhada, a partir da qual temos pensado os limites da sociabilidade, sua crise e suas possibilidades, situando o medo e a insegurança como determinismos socializadores cada vez mais presentes no convívio urbano.

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De fato, é por medo que muitas vezes o ser humano muda seu comportamento e sua forma de se relacionar com o outro, aumentando ou diminuindo o grau de coesão entre os agentes. Conforme Baierl (2004, p.20), a cultura do medo “vem alterando profundamente o território e o tecido urbano e, conseqüentemente, a vida cotidiana da população. Todos se sentem afetados, ameaçados e correndo perigo”.

No entanto, este fato é intensificado pelas formas como esses índices são veiculados e tratados pela mídia, pelas falas corriqueiras entre os indivíduos sobre crimes e, principalmente, pela ineficiência e impunidade do Estado frente à questão. Tentaremos entender agora como isso ocorre.

2.2.1 A espetacularização do crime

Os meios de comunicação em massa transformaram a violência em uma das suas grandes atrações. No entanto, percebemos que a mídia confere uma grande atenção aos crimes mais violentos e cria-se uma idéia de que estes são os mais freqüentes, o que não é verdade. Em muitos momentos a seleção das notícias que irão a público pode expressar, também, uma estratégia especificamente focada para capturar audiência e ampliar mercado, o que acaba por aumentar os medos da população, alguns deles até infundados (ADORNO, 2006; GLASSNER, 2003).

Tal questão leva Glassner (2003, p. 99-100) a acreditar que o crime parece ser maior do que realmente é. Nos Estados Unidos, por exemplo, enquanto os crimes diminuíram nas estatísticas em 20%, as notícias sobre a violência aumentaram 600% no mesmo período.

2.2.2 A Fala do Crime

Caldeira (2000, p.9) e Adorno (2006, p.155) apontam a “Fala do Crime” como um forte intensificador da cultura do medo. Segundo os autores, as narrativas cotidianas,

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comentários, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas, que têm o crime como tema central contrapõem-se ao medo e a experiência de ser uma vítima do crime e, ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar. Na verdade, essas narrativas e práticas “impõem separações, constroem muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias, segregam, diferenciam, impõem proibições, multiplicam regras de exclusão e de evitação e restringem movimentos... elaboram preconceitos e tentam eliminar ambigüidades” (CALDEIRA, 2000, p.28).

Além disso, “a fala do crime” não é eficaz para controlar a violência, mas acentua o medo e a violência e promove uma re-simbolização da violência, pois esta opera não legitimando violência legal para combater a violência ilegal, mas sim o contrário3.

2.2.3 O Leviatã enfraquecido

Percebemos, contudo, que a cultura do medo se gesta em um contexto em que o Estado não consegue assumir para si seu papel legítimo de garantir e manter o “Estado de Direito”. Desse modo, os instrumentos legais não se configuram para a população como legítimos e eficientes, considerando que a polícia aparece como um sujeito que também aterroriza (BAIERL, 2004, p.26-41). Isso evidencia um Estado limitado em sua política de segurança, sem controle eficaz sobre a deterioração dos direitos à liberdade na condição pública (ECKERT; ROCHA, 2005, p.13).

Para Caldeira (2000, p.91), quando as pessoas vêem o número de crimes aumentando, elas freqüentemente culpam as instituições públicas e diagnosticam a necessidade de uma autoridade forte. Se as instituições falham, as pessoas sentem que têm de resolver seus

3 É importante não ser levado a confundir o medo com a violência e com as formas de reação a ele. Pode-se

reagir ao medo fugindo dele, entregando-se a ele e ao objeto do medo, enfrentando-o ou pode-se, simplesmente, fingir que ele não existe. Resumindo, a violência não é sinônimo de medo ou vice-versa. Medo diz respeito a emoções e violência é a ação. As reações ao medo, estas sim, podem ser violentas ou não (BAIERL, 2004, p. 39).

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problemas por seus próprios meios. A partir daí, surgem então “novas formas de determinações socioculturais que alimentam a tentação da busca de uma ordem considerada "caótica” e que afeta a população alimentada de medo e que se coloca na defensiva” (ECKERT; ROCHA, 2005, p.23).

Mas, qual é o “preço” que a população está pagando para reduzir este medo? Quais as atitudes tomadas para tentar ordenar este mundo considerado ameaçador e “caótico”?

3. A CULTURA DO MEDO CONSTRUINDO NOVAS CONFIGURAÇÕES SOCIAIS E URBANAS

3.1 Tensão, separação, discriminação e suspeição do “outro”

Para Eckert e Rocha (2005), a crise configurada pelo medo social da violência na cidade, refere-se ao tempo presente, em que as formas interativas no mundo cotidiano já não garantem uma previsibilidade das rotinas e interações de reconhecimento do outro na imagem ideal do trabalhador honesto. Nesse sentido, “há uma espécie de socialização da violência na indagação sobre a construção da imagem do Outro, promovida pela cultura do medo”(falta número da página).

Dessa maneira, muitos se tornam sob suspeita, sobretudo os mais pobres que, freqüentemente, são os considerados marginais ou bandidos pelo simples fato de serem pobres4, o que amplia a distância entre classes, com a exclusão e banalização dos miseráveis.

Os indivíduos, reféns do estranhamento em suas redes de pertencimento, restringem seus movimentos; saem menos à noite, andam menos pelas ruas, evitam as “zonas perigosas” de sua cidade. Assim, “a desconfiança do outro leva ao mergulho no sentimento de esvaziamento dos sentidos coletivos, fortalecendo ainda mais as bases de um ethos social

4 Vários trabalhos - Beato (1999), Campos (1980), Paixão (1990) - enfatizam que pensar pobreza como dínamo

para a criminalidade responde a questão motivacional, mas não responde por que a esmagadora maioria dos pobres repudia a via criminosa. Dessa forma, relacionar pobreza e criminalidade, assim como classes perigosas e criminalidade não passa de um mito, que não pode ser provado empiricamente.

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hiperindividualista” (ECKERT; ROCHA, 2005, p.15). “Tensão, separação, discriminação e suspeição são as novas marcas da vida pública” (CALDEIRA, 2000, p.301).

3.2 A Estética do Medo

Nas últimas duas décadas, vemos uma expressiva alteração na paisagem arquitetônica das cidades brasileiras em decorrência do medo da violência, numa perspectiva que podemos definir como “estética da segurança” ou mesmo “estética do medo”. Proliferam, cada vez mais, casas ou condôminos com grades, muros altos, sistemas de alarme contra roubo, guaritas, enfim, todo um arsenal de recursos que visa dar maior proteção às pessoas e ao patrimônio. Tal ação acaba por construir novas complexidades nos processos de segregação espacial e social que também funcionam para estigmatizar, controlar e excluir os “estranhos”, em especial os pobres e marginalizados5.

De acordo com Caldeira (2000, p.291), a necessidade de se cercar e se fechar afetou os moradores pobres e ricos e transformou as suas maneiras de viver e a qualidade das suas interações públicas na cidade. Segundo Baierl (2004, p.205,206), se as classes mais abastadas se alojam em espaços protegidos e fortificados como condomínios fechados, as favelas também se constituem como espaços fechados e fortificados, controlados por outros poderes e outras formas de segurança.

Neste quadro, fica evidente que o medo como fobia social não aceita coletivizar a ação, “... ao contrário, transporta-se para o particular, para o mundo privado, em que as estratégias encontradas podem se configurar como novas formas alimentadoras do ciclo da violência ou como formas possíveis de convivência social” (BAIERL, 2004, p. 71).

3.3 A Indústria do Medo

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De acordo com Baierl (2004, p.70,71) e Musumeci (1998), a violência e o medo gerado por ela fazem crescer um mercado novo e em ampla expansão – a denominada Indústria do Medo. Calcula-se que indústrias, comércio e condomínios fechados mantêm, hoje, aproximadamente um milhão e trezentos mil trabalhadores na segurança privada, que vem tendo um incremento de 30% ao ano. Na verdade, segurança é hoje uma mercadoria vendida no mercado sob formas cada vez mais sofisticadas e variadas.

O crescimento da indústria de segurança privada (tanto equipamentos quanto de serviços) não é uma característica exclusiva do Brasil, mas também das sociedades ocidentais como um todo. No entanto, Caldeira (2005, p.204) afirma que, com a difusão da segurança privada, numa sociedade desigual como o Brasil, a discriminação contra os pobres pela força de “segurança” é dobrada. Os pobres, que são vítimas dos abusos da polícia (como controle, desrespeito e humilhação), tornam-se vítimas também destas novas formas de vigilância.

4. OS ENTRAVES PARA A CIDADANIA: AUMENTANDO OS MUROS E REDUZINDO O MUNDO

Portanto, diante de um desejo singular coletivo de reconstrução de uma ordem perdida, (...) as pessoas intensificam suas próprias medidas de encerramento e controle, de separação e construção de barreiras, tanto simbólicas ( preconceitos e estigmatização de alguns grupos) como materiais (muros, cercas e toda parafernália eletrônica de segurança). Além disso, elas tendem a apoiar medidas de proteção que são violentas e ilegais, tais como a ação dos justiceiros e abusos da polícia (CALDEIRA, 2000, p.90). Elas procuram se isolar mais em suas residências, aumentar os muros das casas, cercá-las e fortificá-cercá-las e com isso, buscam refúgio nos avanços oriundos da modernidade que propiciam o “conforto” de não ser necessário sair de casa para quase nada. A televisão, o telefone, o fax e a Internet promovem a sensação de ter o mundo em sua casa. Se precisar de alguma coisa é só pedir, utilizando um desses equipamentos, que alguém (que provavelmente

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não passará do portão da casa) entregará em seu domicílio. Enfim, é como se criasse um mundo auto-suficiente, isolado de todos os perigos e mazelas do mundo extramuros6.

Quando agem desta forma, as pessoas se afastam de logradouros públicos como praças ou centros de lazer. Além disso, as pessoas não colocam mais suas cadeiras nas calçadas para um momento de descanso, já não ficam na rua até mais tarde conversando com os amigos ou com os vizinhos e tendem a não participar de atividades comunitárias. O resultado é uma nova dinâmica de clausura e fragmentações crescentes.

O movimento de construir muros é compreensível. O problema é que as conseqüências da fragmentação, da privatização e dos “muros”, são severas; uma vez que os muros são construídos, eles alteram a vida pública. Cidades de muros não fortalecem a cidadania, e sim “contribuem” para sua corrosão, na medida em que, ao invés de articular as pessoas em torno de uma busca conjunta de enfrentamento, propicia novas formas de segregação social e espacial, discriminação e preconceito. A cidade de muros é o oposto do espaço público aberto, do ideal moderno de vida urbana e, portanto, um entrave para a cidadania.

Neste sentido, a cultura do medo vai moldando um novo tipo de cidadão, ou melhor, cria-se um sub-cidadão; um sujeito que não percebe com clareza seus direitos individuais e tampouco luta pelos direitos sociais de forma coletiva. Na medida em que ele vê seus direitos minados dia a dia, ele busca estratégias na esfera privada para a sua sobrevivência e segurança (BAIERL, 2004, p.65). Percebemos assim, uma atitude nociva aos valores da cidadania, presa a um universo que não contribui para uma sociedade mais pacífica e harmônica.

Diante de tal exposição, quais interpretações poderíamos fazer acerca das motivações das ações destes indivíduos com a cultura do medo? A partir de quê estes indivíduos agem?

6 Não desprezo aqui a atitude “reserva” posta por Simmel (1979, p.17) que faz com que, dentre outras coisas,

nem conheçamos nossos vizinhos durante anos. No entanto, queremos destacar um fator importante para o isolamento dos indivíduos que é o medo da violência, visto que, na pesquisa de Caldeira (2000, p.291), por exemplo, nenhum dos seus entrevistados usou argumentos como privacidade, individualismo e intimidade para justificar a preferência. Os entrevistados parecem temer mais a difusão do mal do que valorizarem o individualismo.

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Estas ações tomadas por eles seria fruto de uma reprodução da estrutura ou de vontades individuais autônomas? Qual seria a contribuição da noção de agência humana neste estudo?

5. AGÊNCIA HUMANA E CULTURA DO MEDO

Como vimos, a cultura do medo tem levado as pessoas a intensificarem suas próprias medidas para uma suposta diminuição de vulnerabilidade através da construção de “muros”, de barreiras que são simbólicas (preconceito e estigmatização de alguns grupos), quanto materiais (muros, cercas e toda parafernália eletrônica de segurança). Além disso, as pessoas têm se isolado mais dentro de suas casas, evitando sair a eventos e espaços públicos por medo da violência. Todavia, a partir de tal conclusão poderíamos ter várias interpretações sobre por que as pessoas estão agindo desta maneira.

A partir de um viés estruturalista é possível argumentar que o medo e as formas de proteção sempre existiram ao longo da história. Assim, como vivemos hoje em uma sociedade que preza pelo Estado mínimo e ampla liberdade de mercado, a estrutura social age de forma a padronizar as ações das pessoas e a buscar por segurança via mercado e afastamento dos espaços públicos. Para Elias (1994) e Giddens (1989), em uma perspectiva estruturalista o individuo é concebido como mero reprodutor da ordem, a ênfase é dada às formações socio-históricas e ao todo social sobre as partes.

Já em uma análise funcionalista, é provável supor que, sendo a sociedade como um organismo vivo, os atos de afastar dos espaços públicos e buscar segurança privada estariam cumprindo a função de autodefesa ou adaptação dos sistemas sociais frente a uma ameaça. Na verdade, como nos lembra Giddens (1989, p. 1), uma apreciação funcional geralmente se embasa no pensamento de Comte e/ou Durkheim, fazendo analogias com a biologia para

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conceituar a estrutura e o funcionamento dos sistemas sociais e, assim como o estruturalismo, dá ênfase ao todo social sobre os indivíduos.

Outra possibilidade seria uma análise baseada no individualismo metodológico, por onde seria razoável afirmar que os indivíduos, ao tentarem maximizar suas possibilidades de ficarem mais seguros, buscam, cada um a sua maneira, as consideradas melhores saídas para tal impasse. Dessa forma, faríamos uma interpretação calcada no indivíduo concebido como totalmente livre para agir e pensar racionalmente. É a concepção do homus economicus, criticada por Bourdieu (2000, p. 61), pois esta adota a idéia de que o homem age como se não existisse estrutura, o indivíduo cria, planeja e direciona todos os fenômenos.

Se pensarmos estas três possibilidades de análises, veremos que a análise estruturalista e/ou funcionalista oferece uma grande ênfase à estrutura, no entanto perde o poder explicativo quando questionada sobre ações individuais. Por outro lado, ao tomarmos como base o individualismo metodológico estamos privilegiando a ação, porém negligenciamos a força dos fatores estruturais.

Elias (1994, p. 15) destaca que tanto os teóricos “pró-estrutura”, quanto os teóricos “pró-ação”, tendem a formular suas questões deixando implícito um abismo quase intransponível entre estrutura e ação. É como uma equação de soma “zero”: uma teoria tem mais poder explicativo no ponto onde a outra teoria é mais limitada e vice-versa.

Neste contexto, surge a noção de Agência Humana como uma nova forma de pensar este problema central na teoria sociológica, que é a relação entre ação e estrutura. Conforme podemos perceber no texto, “A sociedade dos indivíduos”, Norbert Elias (1939) já falava de agência humana mesmo antes de se começar o debate entre “ação” e “estrutura”. No entanto, é, a partir da década de 80, que os teóricos Giddens (1989) e Bourdieu (2000) cunham o conceito de agência humana.

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Apesar de usarem termos e expressões diferentes Norbert Elias (1939) fala de configuração, Bourdieu (2000) de habitus e Giddens (1989) de estruturação , podemos afirmar que estes autores têm muito em comum. No fundo, todos eles propõem uma nova forma de pensar, que não vê a relação “ação” e “estrutura” de forma dicotômica, mas sim de forma complementar. Podemos dizer que ambos entendem que somos nós que fazemos a sociedade e, ao mesmo tempo, somos feitos por ela.

Nesse sentido, a noção de agência sugere que o indivíduo, que sempre se encontra envolvido em uma rede de relações de interdependência, tem diante de si uma matriz oferecida pela ordem dentro da qual “ele” escolhe agir. Logo, ele pode tanto reproduzir, quanto pode introduzir inovação (ELIAS, 1939; BOURDIEU, 2000; GIDDENS, 1989).

A partir da noção de agência é possível pensar a cultura do medo em termos de relações e funções. De acordo com Bourdieu (2000, p.28), é mais fácil pensar em termos de realidades que podem ser vistas claramente como grupos e/ou indivíduos, do que pensar em termos de relações. No entanto, o autor acredita que o objeto nada é fora das relações com o todo e complementa: “se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo” (p.31).

Assim sendo, nossa interpretação calcada na noção de agência deve considerar a cultura do medo como em uma rede de relações de interdependência. Uma rede em constante movimento, como um tecer e destecer ininterrupto de ligações. Nesta rede, muitos fios isolados se ligam uns ao outros estabelecendo uma relação recíproca que constituem, portanto, um precipitado de relações, só podendo ser entendido a partir de sua totalidade. Dessa forma, a pessoa individual não é um começo e suas relações com as outras não têm origens primeiras (ELIAS, 1994).

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Portanto, se os agentes têm freqüentemente evitado sair a lugares públicos, confiado menos em outrem, modificado suas residências, dentre outras coisas, não podemos afirmar que os agentes estão apenas reproduzindo formas de proteção que são dadas pela ordem, nem tampouco que os mesmos estão apenas agindo da forma que racionalmente melhor lhes convém. A partir de uma interpretação de agência é bem possível afirmar que as atitudes ante a cultura do medo são frutos de práticas sociais ordenadas no tempo e no espaço.

Elias (1994, p. 46) afirma que o continuum de seres humanos interdependentes tem um movimento próprio neste cosmo mais poderoso, uma regularidade e um ritmo de mudança que, por sua vez, são mais fortes que a vontade e os planos das pessoas individualmente consideradas. Há um equilíbrio flutuante e elástico e um equilíbrio de poder, que se move para um lado e depois para o outro. Dessa forma, estes atos e obras das pessoas isoladas não são premeditados, mas produto de reviravoltas e formações do fluxo histórico que elas mesmas constituem, embora não controlem.

Portanto, tendo em mente a concepção de agência humana, devemos pensar a cultura do medo como uma atividade social estratégica que as pessoas usam para resolver seus problemas e prosseguir na vida. A agência humana é criada por atores sociais, mas também continuamente recriadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Em suas atividades, e através destas, os agentes reproduzem as condições que tornam possíveis essas atividades (GIDDENS, 1989, p. 2).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que as contribuições da noção de Agência Humana no estudo do medo do crime são várias. A primeira seria pensar a cultura do medo como algo não estático e imutável, ao contrário, mostra-se como uma expressão dinâmica das ações e interpretações

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dos agentes no tempo e no espaço. Segundo, é pensá-la de forma relacional, composta por uma rede de indivíduos interdependentes que estabelecem uma relação recíproca e constituem, portanto, um precipitado de relações, que só pode ser entendido a partir de sua totalidade. Em terceiro é entendê-la como criadora e criatura dos agentes. Agentes estes que possuem o poder de modificá-la ou mantê-la, embora não possam controlá-la.

O presente estudo sociológico acerca do medo da violência ainda se apresenta em forma há de ser esclarecido. No entanto, acreditamos que as supracitadas contribuições da noção de agência humana possibilitam uma sólida “orientação” na forma de pensar o medo do crime, na medida em que nos fornece elementos para se pensar o papel dos agentes na construção da sociedade em que vivem e na formação de si próprios.

REFERÊNCIAS

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Referências

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