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O Direito Achado na Cidade: Leituras Sobre A Efetivaçãodo Direito À Cidade A Partir Da Gestão Democrática 1

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Academic year: 2021

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1 O Direito Achado na Cidade:

Leituras Sobre A Efetivaçãodo Direito À Cidade A Partir Da Gestão Democrática1 The Law Found in the City: Readings on the Right to the City’s Effectiveness

through the participatory management Fernanda Amim Sampaio MACHADO2

Resumo

Partindo da hipótese de que a democracia traduzida na participação efetiva da população nos processos de tomada de decisão está na base do direito à cidade, este artigo tem o objetivo geral de compreender como este direito vem sendo desenhado pelos diversos coletivos e agentes sociais por meio das novas experiências de gestão urbana participativa. Tomando como objeto de análise a experiência de gestão denominada “Decide Madrid”, apontada recentemente como a referência da democratização da participação no mundo pela ONU, e replicada em diversas cidades da América do Sul, este trabalho pretende, por meio das bases epistemológicas do Direito Achado na Rua e do marco teórico do urbanismo crítico, realizar análises qualitativas e quantitativas, a fim de compreender dentre outras questões como essa experiência tem contribuído para a efetivação do direito à cidade e para a transformação do território e da vida urbana.

Palavras-chave

Direito Achado na Rua; Direito à Cidade; Democracia Participativa; Gestão Democrática; Decide Madrid.

Abstract

This articule aim’s to understanding how the Right to the City has been drawing by several collectives and social agents through the new urban participatory management, assuming the hypothesis that the democracy, manifested on the effective social participation in the decision-making process, is the basis of this Right. Considering the participatory management experience named “Decide Madrid” as object of research, we intend to perform qualitative and quantitative analyzes based on the critical urban theory and the critical theory know as “The Law Found on the Street”. This experience was chosen due to the fact it has considered the most democratic experience in whole world by de United Nation. As a result, we hope understanding how this specific management experience has been contributing to the

effectiveness of the Right to the City and the

transformation of territory and urban life. Keywords

1 Trabalho apresentado no GT7 – Direito à Cidade.

2 Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ, Mestre em Direito - PPGD/UFRJ, e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles, e-mail: fernandaasm@gmail.com

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2 The Law Found on the Street; Right to the City; Participatory Democracy; Democratic Management; Decide Madrid.

Considerações iniciais: o direito à cidade achado na rua

Sabemos que o conceito de direito à cidade não surgiu na atualidade, contudo o reaparecimento dessa ideia de forma intensa entre ativistas e movimentos sociais, bem como sua ascensão no debate teórico em diversos países, nos revela que por trás deste conceito encontra-se uma ideia poderosa e transformadora.

Embora seja conceitualmente aberta e até de certa forma imprecisa, a noção de direito à cidade vem sendo caracterizada ao longo do tempo a partir de alguns elementos, dentre os quais se destaca a gestão democrática do espaço urbano, requisito necessário à atividade de “criação da obra” inerente ao ideário Lefebvreriano (LEFEBVRE, 2016; HARVEY, 2014). Cumpre esclarecer que ao apresentar o conceito de direito à cidade, Lefebvre (2016) não o fez a partir de uma perspectiva do direito dogmática, liberal e de bases individualistas. Ao contrário, o introduziu ressaltando a democracia direta na produção coletiva da cidade.

Assim, partindo da hipótese de que a participação popular nos processos de tomada de decisão na elaboração de políticas públicas, de atividades de planejamento e de produção de atos normativos está na base do direito à cidade, este trabalho tem o objetivo de compreender como este direito vem sendo desenhado na atualidade, a partir da experiência paradigmática de gestão da cidade de Madrid, denominada “Decide Madrid”.

Em primeiro lugar cabe destacar que entendemos o Direito como sendo “o modelo da legítima organização social da liberdade” no qual os sentidos de legitimidade são atribuídos pela rua, pela sociedade (LYRA FILHO, 2005; ESCRIVÃO e SOUZA JUNIOR, 2016). Por não ser um fenômeno exclusivamente estatal, apesar de com ele estar intimamente relacionado, a construção do Direito pode ser desenvolvida por meio de diversas práticas sociais que podem estar ancoradas em normas legais existentes, atuarem em um “vazio normativo”, ou até mesmo irem contra certa normatividade produzida de forma ilegítima pelas instituições formais do Estado3.

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Incluímos aqui não apenas as leis e os atos normativos produzidos no âmbito do legislativo e do Executivo, mas também as decisões judiciais proferidas no âmbito do sistema de justiça, devido ao fato de serem dotadas de força normativa, produzindo tanto efeitos de forma específica (casos concretos) quanto de forma difusa.

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3 Trabalhar a partir deste referencial teórico crítico nos permite deslocar a centralidade da análise do plano dogmático, deixando de lado a abstração do mundo teórico e dos textos legais, para o plano da produção do espaço urbano. Desta forma, refletir sobre o Direito À cidade a partir das bases epistemológicas do Direito Achado na Rua, em conjunto com o Urbanismo Crítico, que concebe o espaço como sendo produzido dialeticamente, faz com que seja possível compreendermos as práticas espaciais insurgentes como processos de “legítima organização social da liberdade” (LYRA FILHO, 2005; ESCRIVÃO e SOUZA JUNIOR, 2016).

Com base nesta perspectiva crítica, é possível perceber que a efetivação do direito à cidade vai depender da ação de toda uma coletividade para por em prática ações concretas que possibilitem a transformação da cidade e da vida urbana. Justamente por não ser suficiente para a sua realização apenas a previsão legal no ordenamento jurídico, é que se faz necessário examinar como os diversos coletivos e agentes sociais têm construído este direito.

Para tanto, nos propomos a realizar tanto análises qualitativas, quanto quantitativas da experiência de gestão da cidade de Madrid denominada Decide Madrid, a fim de refletir, dentre outras questões, sobre os temas debatidos e consultados, as propostas populares realizadas, os projetos executados, e a forma de participação da sociedade. Esperamos com isso compreender tanto a relação desta experiência com a promoção e efetivação do direito à cidade, quanto as suas principais características que a tornaram referência no mundo na atualidade.

Cabe ainda destacar que entendemos ser de grande valia a construção de uma reflexão crítica sobre uma experiência que surge em um país central, a partir do olhar do sul, por possibilitar a inversão da lógica colonizadora existente na qual o sul vem se constituindo ora como o objeto de reflexão dos países centrais, ora como o laboratório de implementação de modelos importados destes mesmos países. Buscamos assim, com este trabalho, dar uma humilde contribuição no sentido de tentar romper com essa lógica e de fortalecer o debate teórico do campo do pensamento urbano contemporâneo e do direito crítico.

Decide Madrid: uma experiência de gestão democrática e transformadora?

Em junho de 2018 (dois mil em dezoito) a Prefeitura de Madrid recebeu o Prêmio das Nações Unidas para o Serviço Público. O prêmio foi concedido na categoria “fazer com que

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4 as instituições sejam inclusivas garantindo a participação nos processos de tomada de decisão”. A justificativa decorreu do fato desta experiência ter possibilitado que os cidadãos apresentassem seus próprios projetos, ideias e necessidades ligadas ao planejamento da cidade, e ainda decidissem diretamente sobre os serviços públicos prestados na sua metrópole (Diário de Madrid, 2018, tradução nossa).

Por estabelecer “o modelo de governança mais aberto, transparente, participativo e inclusivo” a Prefeitura de Madrid desbancou as outras 111 candidaturas propostas por diferentes governos, chamando a atenção do mundo para a experiência de gestão que estava se desenvolvendo naquela cidade. Destaca-se que devido ao reconhecimento obtido e as suas ferramentas consideradas “inovadoras”, esta experiência vem sendo replicada, servindo de inspiração para diversas cidades. Mais de 70 administrações locais, distribuídas em pelo menos 18 países, adotaram a sua principal ferramenta (uma plataforma baseada em um software livre), dentre as quais estão incluídas diversas cidades do sul, como Montevidéu, Buenos Aires, Lima, La Paz, Porto Alegre, e Rio Grande (CONSUL, 2018).

“Madrid do comum”, “Comuna de Madrid”, ou ainda “Madrid: laboratório democrático global” (GUTIERREZ, 2017) são alguns exemplos das expressões que vêm sendo utilizadas para caracterizar, de forma bastante entusiasmada, esta experiência. Ressalte-se que Ressalte-seu próprio contexto de criação chama a atenção, visto ter sido implementada em um contexto global de “regressão” de experiências democráticas4

e de perda de “demodiversidade” no mundo (SANTOS E AVRITZER, 2002).

Importante destacar, que o seu reconhecimento enquanto paradigma da participação social e da democracia direta no mundo, bem como a sua expansão para diversas cidades que possuem contextos históricos, sociais e culturais bastante diversos faz com que a experiência de Madrid seja um caso bom para pensarmos tanto em termos de produção de cidade, quanto em termos de produção de direitos.

Afinal de contas, no que consiste esta experiência? como surgiu? como funciona? quais são as suas principais características que fazem com que a cidade de Madrid venha sendo percebida como laboratório da democracia e como cidade referência na produção e gestão de comuns urbanos no mundo?

4 Por exemplo, conforme apontado por Bezerra (2016) após um momento de aprofundamento das experiências

participativas no Brasil, o país começou a passar por uma onda de regressão destas experiências percebida por meio do abandono do orçamento participativo por parte de diversos

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5 Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que apesar de ter sido implementada em 2016 pela Prefeitura de Madrid, a ideia desta experiência não tem origem nas instituições, tendo seu embrião surgido na rua, na praça, no espaço público madrileño durante as ocupações promovidas pelos “indignados” em 2011. Na ocasião, Hackers ativistas do movimento histórico anticapitalista peer-to-peer criaram um software livre, chamado PROPONGO, para que os participantes da ocupação pudessem formular propostas políticas para serem debatidas, votadas e encaminhadas às autoridades (GUTIERREZ, 2016 e 2017).

A ideia não que não foi adiante naquele momento, por ausência de vontade política daqueles que estavam no poder, não foi completamente abandonada, restando “adormecida” pelos anos que seguiram naquela cidade5. Com a vitória em 2015 da coalizão “Ahora Madrid”, formada por pequenos partidos e movimentos cidadãos o projeto participativo foi finalmente posto em prática, introduzindo novos arranjos institucionais na gestão da cidade de Madrid6.

Utilizando mecanismos sofisticados de participação e de deliberação, combinando a participação online com a presencial, esta experiência possuí como principal ferramenta uma plataforma baseada no software livre CONSUL, denominada “Decide Madrid”. Por meio desta plataforma, qualquer cidadão pode propor projetos ligados à temática da cidade e do planejamento urbano, votar em consultas apresentadas pelo Poder Público, decidir como parte do orçamento do município será distribuído, propor e decidir sobre a legislação municipal, e ainda criar espaços para debates cidadãos.

Apesar da tecnologia utilizada, os arranjos participativos não estão restritos ao espaço virtual da rede, sendo garantida à população a possibilidade de participar de todas as votações e consultas presencialmente por meio das Oficinas de Apoio ao Cidadão, existentes em cada um dos distritos da cidade7. Desta forma, a Prefeitura de Madrid busca combinar a utilização

5 Apesar de não ter sido levada adiante em Madrid, a tecnologia criada pelos Hackers ativistas, bem como a

filosofia por detrás, foi parcialmente aproveitada por outras gestões e experiências ao redor do mundo, como é o caso do Gabinete Digital, projeto emblemático de participação cidadã desenvolvido no Estado do Rio Grande do Sul (GUTIERREZ, 2017).

6 De acordo com Bernardo Gutierrez, “Em maio de 2015, as confluências cidadãs, extravasando os formatos

tradicionais de partidos políticos, conquistaram os governos das principais cidades da Espanha. E parte da inteligência tecnopolítica das praças foi transferida aos governos locais. Hacktivistas, programadores, facilitadores de assembleias e processos participativos foram trabalhar para as instituições” (GUTIERREZ, 2017)

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Além disso, é garantido a todos a possibilidade de votar por meio do correio, sendo também aceito os tradicionais “abaixo-assinados” para fins de contabilização de apoios para a apresentação das propostas cidadãs, incluindo os casos envolvendo o orçamento participativo.

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6 do espaço virtual com a participação presencial, buscando não apenas facilitar e otimizar a participação nos processos de tomada de decisão, como também tentar diminuir os impactos decorrentes da exclusão social e tecnológica.

Em geral, podem participar da gestão da cidade todas as pessoas maiores de 16 anos com direito a voto que tenham se registrado na plataforma, sendo ainda permitida a participação dos demais habitantes da cidade em casos específicos (incluindo migrantes que tenham atingido a idade mínima e realizado o registro exigido). Os coletivos, as associações e as ONG’s podem participar desta experiência introduzindo debates e apresentando propostas (incluindo as que envolvam um gasto orçamentário), sem, contudo, poder votar nos projetos selecionados. Apenas os indivíduos podem votar e decidir como querem “construir” a sua cidade.

Existem quatro formas de participação dos processos de tomada de decisão por meio desta experiência: a) debates, b) propostas cidadãs, c) orçamento participativo, e d) consultas públicas. Com a exceção das consultas públicas, que são iniciadas pela própria Prefeitura, todas as demais modalidades têm como ponto de partida a iniciativa popular8, motivo pelo qual esta experiência vem sendo apontada como uma experiência de democracia de “baixo para cima”, do tipo “bottom-up” (Neil-Brenner, 2015).

As “consultas públicas” são propostas pelo poder público para elaboração e revisão de regulamentação urbana, para escolhas de políticas públicas e de projetos urbanos de largo alcance, como por exemplo, a reformulação de vias ou requalificação de áreas da cidade. Diferentemente das propostas cidadãs que tem um período pré-definido para acontecer, as consultas públicas podem ser realizadas a qualquer momento.

Os “debates” são utilizados para propor uma discussão tanto sobre assuntos gerais ligados à cidade de Madrid, quanto sobre ideias passíveis de serem transformadas em propostas cidadãs. As “propostas cidadãs” são utilizadas para apresentação de qualquer projeto ligado à temática da cidade e do planejamento urbano, incluindo a criação/modificação da legislação, sem que seja necessário o empenho de verba orçamentária para a sua realização. Por sua vez, o “orçamento participativo” corresponde a uma proposta cidadã que necessita de verba orçamentária para ser desenvolvida.

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Esta dinâmica diferencia a experiência de Madrid das experiências anteriormente desenvolvidas de orçamento participativo, nas quais o Poder Público idealizava e apresentava os projetos, as áreas e os serviços para que a partir disso a população escolhesse o que deveria ser implementado.

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7 Destaca-se que as “propostas cidadãs” e de “orçamento participativo” configuram o principal instrumento de participação social na gestão da cidade. Podem ser criadas para atender toda a cidade, ou se restringir apenas a um distrito específico. Ambos os processos ocorrem anualmente, a diferença entre os dois é que no caso das “propostas cidadãs”, elas podem ser iniciadas a qualquer tempo, indo para votação no momento que atingirem 1% de apoio dos cidadãos com direito a voto (27.662 pessoas), enquanto as propostas de “orçamento participativo” têm um período pré-determinado para ocorrer em decorrência da necessidade de previsão orçamentária.

O processo envolvendo as propostas de “orçamento participativo” possui quatro fases. A primeira, denominada proposição, ocorre entre janeiro e março, e corresponde ao período de apresentação dos projetos. A segunda fase, chamada de pré-seleção, é a fase de manifestação de apoio às propostas apresentadas. Nesta fase, as propostas que receberem 1% de apoio dos cidadãos com direito a voto (27.662 pessoas) são levadas a votação, desde que sejam tecnicamente viáveis, e não atentem contra direitos fundamentais e liberdades públicas já garantidas. A terceira fase corresponde à votação, que acontece de forma virtual e presencial, entre 15 de maio e 30 de junho de cada ano. A última fase é a de implementação dos projetos escolhidos, ocorrendo no ano subsequente ao da votação.

Importante destacar que passada a fase de votação, as propostas aprovadas são obrigatoriamente implementadas pela prefeitura de Madrid, não cabendo modificação ou cancelamento da proposta escolhida pela população. Caso a proposta seja ligada a questões cuja competência seja de outro ente, a Prefeitura assume o compromisso de “levar adiante”. Ou seja, encaminhar a proposta ao ente responsável, cobrando ainda do mesmo as medidas necessárias para a sua realização.

Cabe ainda ressaltar, que até o momento não existe vinculação jurídica que obrigue a Prefeitura acatar as decisões populares tomadas no âmbito desta experiência. A vinculação da Prefeitura é política, ou seja, baseada em um acordo político que até o momento tem sido respeitado. Ademais, a Prefeitura de Madrid iniciou recentemente uma Consulta Pública para que os cidadãos decidam se desejam promover alterações na regulamentação existente sobre participação cidadã na gestão a fim de adequar as normas atuais às novas dinâmicas

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8 experimentadas na cidade9, o que pode acabar gerando uma vinculação jurídica com as escolhas e decisões tomadas no âmbito desta experiência.

Apesar de esta experiência possuir arranjos extremamente interessantes e inovadores é preciso pensar criticamente sobre eles, pois conforme apontado por Faranak Mirafitab, ao analisar questões decorrentes do “planejamento urbano radical”, a legitimação de certos padrões de dominação se deu ao longo do tempo por meio da inclusão de diversos grupos sociais em processos de decisão (MIRAFTAB, 2009). De acordo com a autora,

[...] é fundamental para a discussão sobre a participação cidadã na era neoliberal o reconhecimento de como o neoliberalismo, entendido como um projeto ideológico forte, depende da legitimação e da percepção de inclusão por parte dos cidadãos, para ativar o seu poder hegemônico (MIRAFTAB, 2009, p. 33).

Considerando que, a existência de arranjos institucionais não são suficientes para garantir a participação social, e que muitas vezes a inclusão nos processos de tomada de decisão provocou a estabilização dos padrões de opressão presentes na sociedade atual, é preciso verificar como esta experiência vem sendo desenhada na prática se quisermos compreender o seu potencial transformador.

A construção social do direito à cidade em Madrid: análises sobre a participação social entre 2016 e 2018

Desde que foi implementada, no ano de 2016, foram realizados quatro processos de votação de propostas cidadãs e de Orçamento Participativo, por meio dos quais a prefeitura disponibilizou anualmente 100 milhões de euros. O quinto processo, iniciado em janeiro de 2020, ainda esta em andamento, encontrando-se atualmente na fase de propositura dos projetos. Durante este mesmo período, foram submetidos pela Prefeitura à apreciação popular alguns processos de consulta. Por meio destes processos, coube à população definir sobre a reforma da Plaza de España, o plano de mobilidade da Gran Vía e a remodelação de 11 praças de diferentes distritos de Madrid.

A Prefeitura também levou a votação em 2017 duas outras propostas que foram inicialmente apresentadas pelos cidadãos, mas que devido a sua importância temática, o

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9 número de apoios obtidos na fase inicial, e o limite orçamentário10 disponibilizado, foram transformadas em consultas pelo poder público. A proposta Madrid 100% sustentável foi aprovada por 188.665 pessoas, enquanto a proposta Bilhete Único de Madrid bateu o recorde de todas as votações realizadas recebendo 198.905 votos.

Destaca-se que atualmente se encontra em aberto um novo processo de consulta pública, apresentado em 2020, que propõe a alteração da legislação municipal referente à participação cidadã, abrindo possibilidades para que se tornem vinculantes juridicamente as decisões tomadas pelos cidadãos no âmbito de Decide Madrid.

Dentro desta experiência, os processos de votação de propostas cidadãs, em especial as de orçamento participativo, correspondem a um mecanismo de participação por meio do qual os cidadãos com direito ao voto podem tomar decisões municipais de forma direta, configurando uma possibilidade de materialização de diversos direitos já garantidos, motivo pelo qual os elegemos como foco central das nossas reflexões.

Para tanto, escolhemos analisar os dados dos processos envolvendo as propostas de orçamento participativo, realizados entre os anos 2016 e 2018, devido ao fato de já restarem terminados ou em fase de desenvolvimento, permitindo, portanto, a sua completa verificação.

Em 2016, 45.516 mil pessoas participaram do primeiro processo de votação de propostas de orçamento participativo da cidade de Madrid. No ano de 2017 este número aumentou para 67.135 mil pessoas, tendo dobrado o número em 2018, em relação ao primeiro ano, atingindo um patamar de 91.035 mil participantes, conforme especificado abaixo:

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os custos da ambas acabariam extravasando o limite de 100 milhões de euros disponibilizados anualmente para a realização dos projetos de orçamento participativo, o que acabaria inviabilizando a realização de centenas de outros projetos também aprovados.

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Fonte: Decide Madrid

Foram propostos 5.072 mil projetos de orçamento participativo em 2016, dentre os quais 1662 foram considerados inviáveis e 623 foram para a fase final. No ano de 2017 foram apresentados 3.215 mil projetos, dentre os quais 926 foram apontados como inviáveis e 720 chegaram à fase final. Já em 2018, dos 3.323 mil projetos apresentados, 1.027 mil foram classificados como inviáveis, tendo 702 projetos alcançado a fase final, conforme abaixo especificado:

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1 1 Os projetos podem estar relacionados com toda a cidade, ou se vincular apenas à um distrito específico. Os 100 milhões de euros disponibilizados do orçamento municipal para a execução dos projetos selecionados são divididos em duas partes: 1ª) 30 milhões - destinados aos projetos para toda a cidade, e 2ª) 70 milhões - reservados aos projetos localizados nos distritos específicos.

Destaca-se que o orçamento disponibilizado para cada distrito é proporcional ao seu número de habitantes e inversamente proporcional a sua renda per capita. Esse formato de distribuição tem gerado uma descentralização orçamentária, promovendo ainda a redistribuição de bens e serviços que eram restritos apenas para partes específicas da cidade, para todo o território.

Foi possível identificar 15 temas ligados aos mais de 11.600 mil projetos de orçamento participativo apresentados, a saber: associações, cultura, esporte, direitos sociais, economia, emprego, igualdade, meio ambiente, participação, mobilidade, segurança, saúde, urbanismo, transparência e sustentabilidade. Cabe ainda mencionar que as demais propostas cidadãs, bem como os fóruns de discussão e debates também estão ligados às 15 temáticas acima elencadas, sendo possível concluir que estes são os temas gerais a partir dos quais os cidadãos de Madrid têm buscado produzir a sua cidade.

A partir destas temáticas, foram realizadas centenas de projetos nos últimos anos por toda a cidade, dentre os quais cabe ressaltar, apenas para fins exemplificativos, os seguintes: a) instalação de redes de coleta seletiva de lixo pela cidade (2016), b) construção de casas de acolhimento para mulheres vítimas de violência (2016), c) plano de reflorestamento de Madrid (2016), d) criação de um banco de alimentos para famílias sem recursos (2017), e) aluguel social para refugiados (2017), f) criação de pontos de estacionamento de bicicletas próximos aos centros públicos, g) Instalação de placas solares nos edifícios públicos (2018), h) realização de cursos de música gratuitos nas escolas públicas e nos centros culturais (2018), i) transformações de jardins municipais em zonas de diversão para crianças (2018).

Nos distritos específicos destacamos também para fins exemplificativos, a realização dos seguintes projetos: Criação de hortas urbanas em parques, jardins e solares abandonados (2016), fontes de água potável e gratuita nos espaços públicos (2016), transformação dos prédios públicos vazios/fechados em bens comuns (2016), criação de espaços públicos para

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1 2 estudos e leitura (2016), reforma de equipamentos esportivos dos bairros (2017); realização de oficinas de sensibilização de igualdade de gênero nos colégios e institutos (2017), criação de videotecas municipais (2017), criação de auxílio alimentação e suporte escolar para alunos carentes (2017), pavimentação de ruas (2018), remodelação de parques e equipamentos públicos (2018), criação e recuperação de zonas verdes (2018), melhoria da iluminação pública das ruas (2018) e criação de espaços autogeridos para jovens (2018).

Com base nos projetos realizados foi possível perceber que não só os temas apresentam profunda ligação com o ideal do direito a cidade, como também a sua execução é pensada a partir das necessidades reais das próprias pessoas que vivem na cidade, e não a partir de um ideal mercadológico. Isso tem possibilitado que grupos até então excluídos das políticas públicas tenham se transformado em objeto de diversas políticas públicas municipais na atualidade, e que diversos direitos venham sendo materializados por meio dos projetos propostos pelos próprios cidadãos.

Ademais, a distribuição do orçamento por diferentes distritos, a partir de um percentual proporcional ao seu número de habitantes e inversamente proporcional a sua renda per capita tem provocado uma descentralização orçamentaria, permitindo que bens e serviços nunca implementados (ou implementados apenas em uma parte da cidade) passem a ser realizados por toda a cidade.

Além disso, a implementação de fóruns locais demonstra um compromisso de descentralização do poder e da participação na gestão da cidade. Isso tem gerado, consequentemente, novas dinâmicas que tem provocado não apenas a remodulação dos bairros e praças da cidade, como também a reconstituição de algumas das suas relações econômicas e da participação dos cidadãos nos processos de toma de decisão.

Considerações Finais

Os dados existentes e disponibilizados referentes aos três últimos anos desta experiência revelam o início de uma ruptura na cidade de Madrid com o modelo de planejamento urbano empreendedor neoliberal, altamente aplicado e replicado no mundo hoje (HARVEY, 2005; SANTOS JUNIOR, 2015). Este rompimento se desenvolve, a princípio, a partir da execução de uma política de descentralização da cidade, traduzida na distribuição de

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1 3 bens e serviços por todo o território, na redistribuição orçamentária, e também na reconfiguração do poder devido às novas articulações sociais decorrentes desta experiência.

A forma como essa experiência vem sido desenvolvida - com seus mecanismos deliberativos, diretos, vinculantes e de "baixo para cima" - constitui uma das principais diferenças em relação aos demais processos participativos existentes no mundo atual. A combinação da participação virtual, com a presencial, tem otimizado a participação. As cláusulas de vedação ao retrocesso têm operado como uma barreira impedindo que projetos de conteúdo racista, xenófobo, sexista, bem como contra os Direitos Humanos, sejam colocados em debate e votação. Além disso, o amplo e contínuo processo informativo, baseado na política de governo de dados abertos, tem possibilitado o exercício de controle social sobre os resultados desta experiência.

Dessa forma, é preciso considerar que embora a governança neoliberal acabe legitimando certos padrões de dominação, por meio da criação e do reconhecimento de certos espaços de participação, este processo também cria condições para que movimentos de resistência constituam importantes alternativas heterotópicas. (BOAVENTURA E AVRITZER, 2002; MIRAFTAB, 2009).

No caso específico da experiência Decide Madrid, a institucionalização do modelo de gestão democrática que nasceu nas praças tem contribuído até o presente momento não só para a efetivação do direito à cidade, como também para a construção de diversos outros direitos fundamentais, como a moradia, alimentação, cultura, lazer. Cabe ainda destacar que as propostas cidadãs e de orçamento participativo têm promovido a articulação do poder público com as novas gramáticas sociais. Além disso, a implementação dos projetos criados e escolhidos pelos próprios cidadãos têm possibilitado que por meio da produção da cidade a sociedade madrileña venha promovendo os seus próprios processos de legitima organização social da liberdade.

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