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Práticas culturais afro-brasileiras e pertença evangélica na comunidade da Rasa/RJ

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1 Práticas culturais afro-brasileiras e pertença evangélica na comunidade da Rasa/RJ

IONE MARIA DO CARMO*

A comunidade remanescente de quilombo da Rasa, localizada no Município de Armação de Búzios-RJ, recebeu, em 9 de novembro de 2005, a Certidão de Autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares/MinC. Rasa foi a oitava comunidade negra, do Estado do Rio de Janeiro, a receber o documento que intitula as comunidades negras como “remanescentes das comunidades de quilombos”. Como as demais 37 comunidades negras também certificadas pela Fundação Cultural Palmares/MinC no Estado do Rio de Janeiro1, os moradores de Rasa fundaram uma Associação e se autorreconheceram como “quilombolas”, atendendo às exigências da Fundação Cultural Palmares/MinC para formalizar a existência da comunidade.

A certificação da comunidade quilombola é a primeira etapa a ser concluída dentro do processo de legitimação do direito às terras ocupadas, de acordo com o artigo 68 do ADCT da Constituição federal de 1988. Após cumprir esse requisito, a comunidade quilombola está apta a solicitar a abertura do processo administrativo para a regularização de seus territórios junto à Superintendência Regional do INCRA. Em seguida, o INCRA encaminha à comunidade uma equipe interdisciplinar, responsáveis pela produção do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID, também conhecido como “relatório antropológico”.

Os RTIDs trazem, de forma recorrente, o registro de práticas culturais que foram vivenciadas no passado pelos escravos e a permanência de tais práticas no presente. Nos relatórios das comunidades do sudeste, o jongo2 é um dos elementos culturais destacados na construção do documento que ratifica a reivindicação de determinadas comunidades quilombolas pela posse da terra. Reconhecido em 2005 como um dos patrimônios da cultura imaterial brasileira, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) define o jongo da seguinte forma:

* Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, doutoranda em História Social do Programa de Pós-Graduação em História - PPGH.

1 De acordo com as Certidões expedidas às Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs), atualizada

até a Portaria nº 45/2018, publicada no DOU de 5/3/2018. Disponível em

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2 O jongo é uma forma de expressão afro-brasileira que integra percussão de tambores, dança coletiva e prática de magia. É praticado nos quintais das periferias urbanas e de algumas comunidades rurais do sudeste brasileiro. Acontece nas festas dos santos católicos e divindades afro-brasileiras, nas festas juninas, no Divino, no 13 de maio da abolição da escravatura.

O jongo é uma forma de louvação aos antepassados, consolidação de tradições e afirmação de identidades. Tem suas raízes nos saberes, ritos e crenças dos povos africanos, principalmente os de língua bantu. São sugestivos dessa origem o profundo respeito aos ancestrais, a valorização dos enigmas cantados e o elemento coreográfico da umbigada.3 (grifos meus)

Associada ao passado escravista e africano, o jongo é apresentado nos relatórios como elemento de organização da memória coletiva da comunidade quilombola e como um instrumento importante na legitimação do passado histórico. Algumas equipes de pesquisadores que produzem o documento das comunidades quilombolas identifica práticas e rituais, pertencentes ao continente africano, no jongo. No RTID da comunidade remanescente de quilombo de Pinheiral, por exemplo, essa relação é evidenciada:

A tradição de reverenciar os mais velhos e pedir licença aos “pretos velhos” e aos jongueiros antigos, quando se inicia atualmente qualquer roda de Jongo, também encontra ligações com a valorização dos guardiões e conselheiros de um grupo de descendência – os intérpretes dos provérbios – da África central. O respeito aos anciãos é algo marcante inclusive em toda a África.4 (MATTOS; ABREU, 2010)

O jongo caracteriza-se como um elemento significativo na construção da identidade quilombola do grupo étnico, tendo em vista que é neste documento que serão apresentados os referenciais identitários que comprovem seu processo histórico e social que levou o grupo a se atribuir a condição de quilombola.

Em determinados RTIDs percebemos a preocupação da equipe técnica em realizar uma reflexão sobre a historicidade das comunidades negras, conduzindo a uma discussão sobre a ligação desses grupos com a história da escravidão no Brasil, seja pela descendência dos antigos quilombolas, seja por possuírem uma memória coletiva pautada na ancestralidade escrava, ou ainda, na identidade étnica e cultural africana e negra. Nessa perspectiva, o resgate e o fortalecimento das práticas culturais de matriz africana, muitas vezes, são abordados de forma naturalizada quando refere-se à questão da construção da identidade quilombola. No entanto, se optarmos por um outra escala de observação,

3 Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/IPHAN). Jongo, patrimônio imaterial brasileiro.

Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Jongo_patrimonio_imaterial_brasileiro.pdf. Acesso em 08/04/2018.

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veremos que nem todas as comunidades quilombolas da atualidade se apoiam nos mesmos referenciais culturais de matriz africana para legitimar sua identidade quilombola. É possível observar nas falas de alguns quilombolas que a opção pelo preterimento de alguns desses referenciais, no processo de construção da identidade quilombola, está intimamente ligada às escolhas religiosas, como é o caso da Comunidade da Rasa:

As brincadeiras do jongo, da luta da capoeira e do Rei de Boi cederam lugar, pouco a pouco, às práticas religiosas da Assembleia de Deus. Na Rasa, a grande maioria dos seus moradores se converteu ao protestantismo, que se iniciou na casa de Dona Donária. É ainda o Pastor Luís quem nos diz: “… tenho lembrança forte da primeira igrejinha, que era na casa da minha avó Donária, eu estava com 8 ou 10 anos… certamente era onde tinha o jongo, era a família que cantava o jongo, que tocava o jongo, que o povo dançava… No momento que essa família se tornou evangélica, acabou o jongo. Logo que a família tornou-se crente, o jongo terminou.” (O’DWYER, 1999)

Embora o jongo não seja mais dançado pelos quilobolas da comunidade da Rasa, ele está presente na memória dos mais velhos. Dona Uia, nascida em 3 de junho de 1941, bisneta de escravos, ao falar do passado da comunidade quilombola insere o jongo na memória coletiva do grupo. Em suas lembranças alguns cânticos de jongo permanecem. Em seu depoimento sobre a história da comunidade, Dona Uia cantou o seguinte ponto de jongo:

Tava dormindo

Candongueiro me chamou Alevanta se apronta Cativeiro se acabou5

O ponto acima faz alusão ao 13 de maio, tema recorrente nas letras de ponto de jongo nas diversas comunidades quilombolas do Sudeste brasileiro. Muitas comunidades cantam os mesmos pontos de jongo, com algumas variações de palavras e ritmo. Isso aponta para uma memória comum entre as diferentes comunidades quilombolas do sudeste, considerando o jongo como um elemento constitutivo da memória desses grupos no presente, principalmente por ter sido vivenciado pelos mais velhos ou mesmo “vividos por tabela” pelos mais novos. (POLLAK, 1992:201)

Independente do processo histórico de formação, as comunidades remanescentes de quilombo no Brasil, sejam elas rurais ou urbanas, têm em comum o reconhecimento da

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Ponto de jongo cantado por Carivaldina Oliveira da Costa (Dona Uia), em entrevista concedida à autora em 21/01/2012.

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ancestralidade escrava na afirmação de suas identidades quilombolas. Muitas dessas comunidades mantêm expressões culturais praticadas por seus antepassados no contexto do período escravista. A manutenção ou a recuperação dessas práticas, ressignificadas pelos moradores dos atuais quilombos, apresentam-se em consonância ao direito garantido pela legislação, que se remete à terra não somente no sentido de um espaço de produção, mas também como território, espaço de reprodução cultural e social.6 Neste sentido, o jongo enquanto prática afro-brasileira é para algumas comunidades negras ícone de resistência e elemento de identidade quilombola. No entanto, a religiosidade presente no jongo é um aspecto importante que pode definir a inserção ou não dessa manifestação cultural no processo de construção da identidade quilombola.

A importância de se observar o fenômeno religioso nas comunidades quilombolas se dá pelo fato deste ser um dos elementos definidores de identidades. Nesta perspectiva, Clifford Geertz define a religião como um sistema cultural na medida que esta modela comportamentos, motiva ações e ordena o mundo daquele que crê, conferindo-lhe sentido.(GEERTZ, 1989) Ao analisarem as comunidades dos agudás – ex-escravos e seus descendentes retornados do Brasil ao Benim durante o século XIX – Manoela Carneiro da Cunha e Milton Guran destacaram o papel do catolicismo como um elemento modelador e distintivo do grupo em relação aos demais na Costa da África. A construção da identidade dos agudás, assim chamados pelos autóctones, teve como base a diferença cultural entre os antigos escravos retornados e os nativos, onde a religião foi um dos componentes principais de definição da identidade coletiva do grupo. (CUNHA, 1986)

Embora, o jongo esteja presente na memória de Dona Uia, uma das principais lideranças da comunidade quilombola da Rasa, verifiquei, através do trabalho de campo, em 2012, que a conversão do grupo ao protestantismo contribuiu para o surgimento de uma resistência em torno da reconstrução do jongo no grupo. Durante entrevista, Dona Uia, que ocupava a função de diaconiza na Igreja Assembleia de Deus, lembrou-se de quando assistia a prática do jongo em Rasa, ainda criança. A líder do quilombo da Rasa falou sobre a possibilidade de pessoas de São José da Serra irem à Rasa realizar oficina de jongo, mas afirma não existir muito interesse por parte dos jovens por motivo de escolha religiosa dos mesmos. Marta, outra liderança política do quilombo da Rasa, também diaconisa da

6 De acordo com o parágrafo 2º do artigo 1º do decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, “são terras

ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.”

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mesma instituição religiosa ao qual Dona Uia fazia parte, em 2012, justificou a resistência da comunidade em praticar o jongo, afirma:

Não existe jongo como brincadeira. O jongo ele é o que é, e as cantorias dele não é brincadeira, sempre têm influência das religiões de matriz africana. Então a gente como evangélico não fica legal uma hora você está dentro da igreja e outra hora você tá ali fazendo uma dança que a gente sabe que acontece na umbanda, acontece no candomblé, entendeu? Não que seja baseado só nisso, mas acontece, então a gente não tem aqui.7

Assim, percebemos que Marta apresentou um outro olhar sobre o jongo. Na opinião de Marta, não existia possibilidades da comunidade dançar jongo, por questões religiosas. Ressalte-se que o motivo pelo qual a comunidade não praticava e não demonstrava a possibilidade de reconstrução da dança na localidade seria justamente o fato de perceberem aspectos da umbanda e do candomblé no jongo. No RTID da Comunidade de Rasa, Bloco 4, relacionado às manifestações culturais da comunidade, o jongo é citado como uma das tradições culturais de expressão na comunidade, juntamente com prática da capoeira e a festa do Rei de Boi, que “foram asfixiadas pela religião protestante”:

1. Festejos do grupo: as brincadeiras do jongo, da luta de capoeira, do Rei de Boi, cederam lugar, pouco a pouco, às práticas religiosas da Assembleia de Deus.

2. Religião/credo do grupo: a maioria da comunidade se encontra frequentando os cultos evangélicos.

3. Religiosidade: os moradores se converteram ao protestantismo e não frequentam a Igreja católica nem cultuam santos.

4. Danças e cânticos principais: o Jongo era uma das tradições culturais mais típicas dos negros dessa região. Seus versos eram feitos nas rodas de dança, como este exemplo: “Embarca morena / Vamos embora pro sul / O mar é verde e o céu é azul / Qual é o que é verde aí, o céu ou o sol? / Depois do sol, o céu é o quê? / É o mar.” Esta alegria também se repetia nas festas do Rei de Boi e nas rodas de capoeira. ( O’DWYER, 1999) No Dia Nacional da Consciência Negra de 2001, a comunidade remanescente de quilombo da Rasa recebeu como homenagem do prefeito Delmires de Oliveira Braga uma escultura, representadando um homem e um bebê negros (figura 1). A obra, feita pela escultora Christina Motta, está localizada no Cruzeiro do bairro da Rasa. De acordo com o

7 Entrevista com Marta da Costa Cardozo de Andrade concedida a Ione Maria do Carmo, 21/01/2012,

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relato de Dona Uia, a percepção dos moradores negros da localidade perante a ação do prefeito na época não foi positiva:

Dona Uia: Quando botaram Zumbi ali, eles queriam tudo quebrar

Zumbi porque eles acharam… como assim… uma…um modo de…que o prefeito queria… como assim… (…) que era uma humilhação. Queria nos humilhar. Então eles queriam quebrar o negro.

Entrevistadora: Mas quem queria fazer isso?

Dona Uia: Os próprios negros porque achavam que era uma

discriminação Búzios botar um negro na Rasa.

Entrevistadora: Não entenderam como uma homenagem?

Dona Uia: Era uma homenagem, mas aí eles não entendiam. Botaram a

homenagem lá e não falaram nada. Chegaram ali botaram o negro e acabou. Não explicaram, ninguém nunca falou sobre o porquê que botaram aquilo ali.8

A fala de Dona Uia demonstra a complexidade em torno da identidade étnica, um dos elementos significativos no processo de construção da identidade quilombola de uma comunidade negra. A identidade étnica, que segundo Barth é sempre contrastiva, implicando na existência de um nós – que se posiciona a partir de elementos considerados comuns a todos os membros do grupo, como a ancestralidade – em oposição aos outros. (BARTH, 2004: 72) Desta forma, podemos entender que a noção de pertencimento de um indivíduo a uma determinada comunidade quilombola perpassa, entre outros fatores, pela valorização de um passado histórico, que reforça a afirmação de uma identidade e o diferencia de outros grupos. Nesse sentido, Jacques D’Adesky salienta que “os traços raciais, religiosos e linguísticos” não garantem a definição da noção de grupo étnico em um determinado local, mas sobretudo “é necessário saber em que proporção esses traços diferenciais dão lugar à tomada de consciência e às reivindicações coletivas de uma determinada identidade”. Para o autor, as reivindicações e a ideologia pela qual ela se expressa só são compreensíveis quando se conhece a história da inserção desse grupo na nação (memória), o grau de crença dos seus membros em sua unidade e a vontade de serem eles mesmos diferentes de todos os demais grupos. (D’ADESKY, 2009: 39)

O fato de parte dos membros da comunidade da Rasa não aceitarem inicialmente a estátua de um negro no bairro nos faz pensar em algumas possibilidades. A primeira é de que nem sempre a compreensão das lideranças de um grupo equivale a compreensão dos demais membros. O que pode estar claro para Dona Uia, por exemplo, pode não estar para

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Entrevista de Carivaldina Oliveira da Costa, Dona Uia, concedida a Ione Maria do Carmo, 21/01/2012 – Comunidade da Rasa, Búzios, RJ.

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os demais negros da localidade. Ao interpretar a figura retratada como Zumbi é um indício de sua postura política e ideológica. No entanto, para parte dos negros da Rasa, o sentimento de “humilhação” causado, segundo eles, pelo representante do poder público, pode ter surgido por razão de uma diferente interpretação do significado do monumento. A representação do negro como escravo pode ter sido interpretada como uma subordinação da população negra, uma ideia de inferioridade dos negros da Rasa em relação aos outros indivíduos da localidade.

Figura 1

Escultura em Homenagem ao Quilombo da Rasa Fonte: Arquivo fotográfico – trabalho de campo, 2012

Uma outra hipótese em relação a rejeição dos negros da Rasa perante ao monumento estaria relacionada a realidade territoral da comunidade remanescente de quilombo da Rasa. Diferente de outras comunidades quilombolas, como São José da Serra e Bracuí, o espaço reconhecido como remanescente de quilombo em Búzios corresponde a todo o território do bairro da Rasa, que é ocupado não apenas pela população negra. Devido a especulação imobiliária, a região vem sendo ocupada, inclusive, por empresários estrangeiros. Desta forma, a diversidade étnica percebida no território quilombola da Rasa pode dificultar a construção de um sentimento de pertencimento dos indivíuos negros neste espaço e, consequentemente, na construção de uma identidade territoral. Sabemos que as

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fronteiras territoriais não são rígidas, que as interações sociais entre os grupos sociais que ocupam diferentes territórios são constantes. No entanto, o território exerce uma importância na construção das identidades das comunidades quilombolas, tendo em vista que:

O território é uma condição essencial porque define o grupo humano que o ocupa e justifica sua localização em determinado espaço. (…) Mas antes de tudo é um espaço comum, ancestral, de todos que têm o registro da história, da experiência pessoal e coletiva do seu povo, enfim, uma instância do trabalho concreto e das vivências do passado e do presente. (ANJOS, 2006: 49)

A relação das comunidades quilombolas com o território, tanto no sentido funcional quanto no sentido simbólico do termo (HAESBAERT, 2005) – tendo em vista que tais grupos exercem domínios sobre seus espaços, realizando funções e produzindo significados – contribui na singularidade cultural de cada grupo, bem como nas reivindicações políticas em relação ao território que ocupam.

Quando os moradores das comunidades quilombolas vivenciam tais práticas, de outras que compõem o patrimônio imaterial da cultura afrobrasileira, estão não só legitimando suas lutas perante o processo de reivindicação de suas identidades como remanescentes de quilombo. As diferentes formas de recriação das práticas culturais demonstram também as continuidades de práticas culturais vivenciadas pelos antepassados escravos, fortalecendo a memória pautada na escravidão e estabelecendo relações sagradas com as matrizes africanas.

O discurso da tradição muitas vezes é utilizado para legitimar a ligação das comunidades jongueiras com o passado escravo. Em São José da Serra, por exemplo, a continuidade de dançar o jongo em volta da fogueira, o recurso à herança com base no parentesco fundado no reconhecimento de ancestrais em comum presente na transmissão da liderança do jongo e a resistência em aceitar outros instrumentos além dos dois tambores feitos de troncos de árvores escavados, são algumas das características da dança vistas como “tradicionais” não só pelos membros da comunidade, mas também por outras comunidades jongueiras. No entanto, é importante destacar que essas tradições, como quaisquer outras, não são estáticas, elas podem também ser alteradas ou transformadas de maneira bastante repentina. Em São José da Serra percebemos que o jongo vem sendo reinventado, tendo em vista não só a sua utilização como uma das principais bandeiras de

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luta pela conquista dos direitos da comunidade, mas também pela inclusão de novos elementos na prática da dança, como é o caso da benção da fogueira. É interessante salientar que a cultura está inserida num processo de transformações. As mudanças em torno da dança do jongo representam a manutenção em torno desta manifestação cultural que é definida pelos quilombolas como uma das tradições que remetem aos antepassados. Tradições essas que são entendidas como “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas”, onde “tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam incultar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.” Desse modo, determinadas práticas inseridas no jongo recentemente podem ser tratadas como elementos tradicionais por conta da freqüência pela qual elas são exercitadas. (HOBSBAWN; RANGER, 1997: 9-23)

Algo semelhante vem acontecendo também na comunidade da Rasa. Há cinco anos os moradores de Rasa reconstruíram a prática da produção de bonecas e o ritual de batismo das mesmas. Dona Uia conta que quando criança as bonecas eram feitas de palha de milho. Na atualidade, as bonecas ganharam uma nova roupagem, são feitas de tecido. Todas as bonecas são negras, representando, assim, a identidade étnica do grupo. Considerada pelo grupo como uma “tradição”, o batismo das bonecas acontece no dia da consciência negra, 20 de novembro.

A pertença evangélica de Rasa emerge como elemento fundamental para o afastamento de expressões culturais, como o jongo, na construção da identidade quilombola do grupo, embora sejam essas principais referências identitárias das comunidades quilombolas do sudeste ao legitimar seu reconhecimento dessas identidades. No entanto, no processo de construção da identidade quilombola de Rasa, verifica-se uma consolidação da identidade étnica do grupo, sendo, talvez, esse , o elemento que mais se destaca na conformação desse proceso.

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