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Cultura Escolar e Prática Pedagógica em Matemática

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Academic year: 2021

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Cultura Escolar e Prática Pedagógica em Matemática

Audria Alessandra Bovo

Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar a pesquisa que venho desenvolvendo, em nível de doutorado, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos Carreira de Souza, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. O estudo em questão investiga as relações entre cultura escolar e prática pedagógica em Matemática.

Sabe-se que, muitas vezes, a atividade pedagógica em Matemática praticada nas escolas brasileiras se resume no modelo em que o professor apresenta a definição matemática, faz alguns exemplos que consistem em “exercícios-padrão” e, em seguida, pede para os alunos resolverem exercícios semelhantes aos exemplos apresentados. Após isso, geralmente, o professor corrige na lousa as atividades realizadas, na tentativa de fixar os conteúdos e eliminar as dúvidas dos alunos. Nesse tipo de atividade, normalmente, utiliza-se o livro didático, o qual é, muitas vezes, o guia da sala de aula de Matemática.

Este modelo de prática pedagógica em Matemática, quando utilizado de maneira exclusiva, tem sido alvo de críticas por parte dos especialistas na área. Uma das críticas diz respeito ao excesso da repetição de técnicas ou algoritmos. O aluno imita o exemplo, muitas vezes de maneira correta, mas não sabe o que está fazendo e nem o porquê faz aquilo: decora as regras, sem entender os conceitos. Além disso, o aluno não tem muitas oportunidades de fazer explorações/investigações, testar hipóteses, procurar explicações, etc.

Por outro lado, são inúmeras as tentativas de propor mudanças nas práticas pedagógicas em geral, em particular, na matemática. “Práticas alternativas” que estejam pautadas em ações que promovam um maior sentido à matemática apreendida pelo aluno; práticas estas que vão ao encontro das principais tendências em Educação Matemática, tais como: a Modelagem, o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), a resolução de problemas, as atividades de investigação, entre outras.

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Essas tentativas de mudança, em geral, acontecem por meio de cursos de formação continuada promovidos pelas universidades através de projetos de pesquisa e extensão, ou parcerias com governos municipais e estaduais. No entanto, nota-se que, apesar das inúmeras contribuições dos cursos de formação continuada, estes não garantem mudanças nas práticas dos professores (OLIVEIRA, 2003). O professor sai do curso, volta para a escola, encontra uma outra realidade, isto é, um outro contexto diferente do vivenciado no curso e, em geral, permanece com sua prática usual, salvo algumas ações pontuais diferenciadas.

Caminhos alternativos vêm sendo discutidos pela literatura. O trabalho colaborativo entre professores e pesquisadores é um deles (CANCIAN, 2001; FERREIRA, 2003; PENTEADO, 2003). Professores, futuros professores e pesquisadores reúnem-se na própria escola, com o objetivo de rever/refletir sobre sua prática, trocar experiências, estudar, conhecer novas metodologias e/ou recursos de ensino. Apresentam suas necessidades, suas dificuldades, seus problemas e discutem possíveis “soluções” para tais.

Pesquisas apontam que este tipo de trabalho contribui de maneira efetiva para o desenvolvimento profissional dos professores. Entretanto, o trabalho colaborativo tem algumas limitações. Ferreira (2003), por exemplo, aponta o tempo, a falta de financiamento e apoio e as condições da escola pública (tanto recursos como organização) como fatores que dificultam a participação dos professores e a implementação das propostas.

Por outro lado, quero evidenciar uma outra questão que me parece ser de grande importância quando o assunto é prática pedagógica. Trata-se da cultura escolar, isto é, as práticas rotineiras imersas no cotidiano da escola, suas regras, seus valores, seus rituais, a sua organização. Penso que há uma força quase que invisível, uma “areia movediça” diluída no nesse cotidiano que “prende” e “molda” o professor e a escola como um todo, dificultando, ou, até mesmo, impossibilitando a realização de mudanças nas práticas.

Isso pode ser exemplificado quando, por exemplo, observamos um professor recém-formado ao adentrar a escola. Geralmente, ele chega cheio de idéias, com muitas teorias e com uma imensa vontade de trabalhar de uma forma não-convencional, talvez estimulado pela universidade. No entanto, algum tempo depois, o professor aprende a “dançar conforme a música” e acaba desenvolvendo uma prática em sala de aula muito parecida com a de seus colegas mais experientes.

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Assim, minha hipótese é que existe uma cultura da escola, que vou denominar de cultura escolar, que influiu de maneira incisiva na organização e no desenvolvimento das práticas educativas, em particular, nas práticas em Matemática.

Diante dessa problemática, procuro investigar a prática de professores de Matemática numa perspectiva da cultura escolar. Ou seja, meu objetivo é compreender as relações entre a cultura escolar e a prática pedagógica em Matemática. Penso que a cultura escolar interfere nas práticas e estas, por sua vez, interferem na cultura escolar, tornando-se assim, uma via de mão-dupla.

Na tentativa de compreender o que define a prática pedagógica, muitos estudos têm investigado as concepções e crenças dos professores acerca da Matemática e de seu ensino. Outros estudos enfocam a importância da formação continuada ou o do desenvolvimento profissional do professor. Minha pretensão é direcionar o olhar para algo que pesquisadores, em especial, da área de História da Educação, tem feito a partir dos anos 80: olhar para o cotidiano da escola. O que acontece efetivamente nesse espaço? Quais são as normas, os valores, as práticas corriqueiras das pessoas que ali estão? Estes aspectos interferem na educação matemática praticada na escola? Como isso acontece? Por quê?

Saber o que acontece dentro da escola torna-se algo difícil. Alguns autores utilizam a metáfora da “caixa preta” ao buscar compreender o que ocorre nesse espaço particular, pois as práticas cotidianas desta instituição tornam-se acontecimentos silenciosos do funcionamento interno da mesma (GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005).

Considero este estudo de grande relevância, pois pode vir a auxiliar na compreensão de algo altamente complexo: a prática pedagógica em Matemática. Espera-se que esta pesquisa traga subsídios para se entender por que é tão difícil provocar mudanças nos professores e na escola.

Na próxima seção, apoiar-me-ei na obra de Cuche (2002) para discutir o conceito de cultura nas ciências sociais, evidenciando sua gênese, sua invenção no campo científico, bem como a sua evolução. Para este autor, as palavras surgem para responder certos problemas de um determinado período histórico e em contextos políticos e sociais específicos. Nesse sentido, explica que, se quisermos compreender o sentido do conceito atual de cultura, tal como ele é utilizado nas ciências sociais, é indispensável que se reconstitua sua gênese social, sua genealogia. Assim, examina como foi formada a palavra e, em seguida, seu conceito científico, ou seja, evidencia os laços que existem entre a história da palavra cultura e a história das idéias.

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Sobre o Conceito de Cultura: a evolução da palavra nas línguas

francesa e alemã no período da Idade Média ao início do século

XX

Cuche (2002) explica que a evolução semântica da palavra cultura, a qual permitirá a invenção do seu conceito, se deu na língua francesa do século das Luzes, antes de se difundir em “línguas vizinhas” como o inglês e o alemão. Afirma que a palavra cultura (do latim cultura, significando o cuidado dispensável ao campo ou ao gado) aparece no fim do século XIII para designar uma parcela de terra cultivada.

Entretanto, no início do século XVI, ela passa a ter o significado de ação, e não mais é entendida como um estado (da coisa cultivada), mas sim o fato de cultivar a terra. É somente na metade do século XVI que se forma o seu sentido figurado da palavra, tomando assim o significado de “cultura de uma faculdade”, isto é, o fato de trabalhar para desenvolvê-la. Na verdade, este sentido figurado foi pouco conhecido até a metade do século XVII, não aparecendo na maioria dos dicionários da época e também não obtendo reconhecimento acadêmico.

Seu sentido figurado começa a se impor no século XVIII, aparecendo no Dicionário da Academia Francesa (edição de 1718) e é quase sempre seguido de um complemento (“cultura das artes”, “cultura das ciências”, “cultura das letras”), como se fosse preciso que a coisa cultivada fosse explicitada.

Progressivamente, ela deixa seus complementos e passa a designar a “formação”, a “educação” do espírito. Mais tarde, no final do século XVIII, em um movimento inverso, a palavra cultura deixa de ser entendida como ação (ação de instruir) e “retorna” a idéia de cultura como estado (estado do indivíduo que tem cultura); uso este que surge no Dicionário da Academia (edição de 1798) que revela a oposição conceitual entre “natureza” e “cultura” (um espírito natural e sem cultura). Esta idéia é fundamental para os pensadores do Iluminismo que concebem a cultura como algo distintivo da espécie humana. Para este grupo, a cultura é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, ao longo da sua história. Nesse sentido, no século XVIII, cultura está ligada a ideologia do Iluminismo, associada às idéias de progresso, de evolução, de educação, de razão, que estão no centro do pensamento da época: “O progresso nasce da instrução, isto é, da cultura, cada vez mais abrangente” (CUCHE, 2002, p. 21).

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Cultura se aproxima, então, de uma palavra que faz bastante sucesso no vocabulário da França no século XVIII: civilização. Enquanto que “cultura” evoca principalmente os processos individuais, “civilização” se refere aos processos coletivos. Desse modo, civilização passa a designar o processo que arranca a humanidade da ignorância e da irracionalidade. A partir de então, o homem é colocado no centro da reflexão e no centro do universo. Aparece aí a idéia da possibilidade de uma “ciência do homem”.

Já na língua alemã, Kultur em seu sentido figurado, aparece no século XVIII com o mesmo significado da palavra francesa (dado o prestígio da língua francesa, na época, e a influência do Iluminismo). No entanto, a partir da segunda metade do século, a palavra Kultur obtém um maior sucesso nesse país em detrimento ao uso da palavra “civilização”, preferida pelos franceses. Isso porque esta palavra foi difundida pela burguesia intelectual alemã em oposição à aristocracia da corte. Ela opunha os valores ditos “espirituais” baseados na ciência, na arte, na filosofia e também na religião aos valores da corte alemã, por se dedicarem demais aos cerimoniais de imitação da corte francesa. Para tais intelectuais, os primeiros valores são considerados autênticos e, os outros, superficiais e desprovidos de sinceridade. Assim, tudo que contribui para o enriquecimento intelectual e espiritual é chamado de cultura. Em sentido oposto, o que é somente aparência, leviandade, refinamento superficial é chamado de civilização. Nesse sentido, a cultura se opõe à civilização à medida que a profundidade se opõe à superficialidade.

Sob a influência do nacionalismo, a idéia alemã de cultura evolui pouco no século XIX e se liga cada vez mais ao conceito de nação: “A cultura vem da alma, do gênio de um povo”. Como afirma Cuche (2002): “A cultura aparece como um conjunto de conquistas artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação, considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade” (p. 28).

Na França do século XIX, a palavra cultura amplia seu sentido, influenciada pela filosofia e pelas letras alemã e passa a ter um caráter coletivo. Designa um conjunto de características próprias de uma comunidade, mas num sentido vasto e impreciso, segundo Cuche (2002). Aparecem as expressões: “cultura francesa”, “cultura da humanidade” e ainda está muito próxima da palavra “civilização”, confundindo-se, às vezes, com ela.

O conceito de cultura na França ainda está ligado à idéia de gênero humano. A cultura, no sentido coletivo, significa a cultura da humanidade. Seus intelectuais não admitem uma cultura nacional, como, por exemplo, a cultura francesa, a cultura alemã, etc.

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Cuche (2002) explica que o debate franco-alemão dos séculos XVIII ao XX é o modelo de duas concepções de cultura (uma particularista e outra universalista) que estão na base das duas definições contemporâneas de cultura.

O Conceito Científico de Cultura

O conceito de cultura no campo científico se dá no século XIX, com a criação da Etnologia, com o intuito de tratar questões da diversidade humana. Até então, a palavra era usada num sentido normativo, principalmente na França e na Alemanha. Com a criação dessa nova disciplina, os etnólogos dão à cultura, um conteúdo meramente descritivo. Isso pode ser observado na primeira definição etnológica, dada pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor (1832-1917):

Cultura e civilização, tomadas em seu sentido etnológico mais vasto, são um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade (Cuche, 2002, p. 35).

Essa definição, segundo o autor, rompe com uma concepção restritiva e individualista da cultura, pois expressa “a totalidade da vida social do homem” (idem, ibidem, p. 35).

Com uma concepção particularista de cultura encontramos Franz Boas (1858-1942). Ele é considerado o primeiro antropólogo a fazer pesquisa in loco com culturas primitivas, ou seja, ele inventou a etnografia. Percebeu que a organização social era determinada mais pela cultura do que pelo ambiente físico. Assim, considera como diferença fundamental dos grupos humanos a questão cultural e não a racial. Ao contrario de Tylor, Boas objetivava o estudo das “culturas” e não da “Cultura”. É a ele que devemos também a concepção antropológica do relativismo cultural (para ele o relativismo cultural era, antes de tudo, um princípio metodológico). Vale lembrar que sua obra acaba gerando toda a antropologia cultural norte-americana.

Cuche (2002), ao discutir a idéia de cultura entre os fundadores da etnologia francesa, explica que há uma ausência do conceito cientifico de cultura no século XIX e início do século XX, na França. Para os franceses o termo “cultura” continuava

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relacionado à idéia tradicional dos intelectuais, em um sentido elitista e individualista, se referindo apenas à cultura de uma pessoa “culta”.

Outro pesquisador de destaque na criação de conceito científico de cultura é Emile Durkheim (1858-1917). Ele contribuiu para fundar a etnologia na França e assegurar seu reconhecimento internacional. Utilizava poucas vezes o conceito de cultura (usava “civilização”), não por se desinteressar pelos fenômenos culturais, mas acreditava que os fenômenos sociais necessariamente tinham uma dimensão cultural. Ele propôs uma concepção objetiva e não normativa do termo civilização que incluía a idéia da pluralidade de civilizações, sem fragilizar a unidade do homem. Seu pensamento era caracterizado pela relatividade cultural, uma vez que, para ele, “a normalidade é relativa a cada sociedade e ao seu nível de desenvolvimento” (CUCHE, 2002, p.54).

Esse mesmo estudioso considerava a prioridade da sociedade sobre o indivíduo. Como afirma Cuche (2002, p.57):

“Para ele, existe em todas as sociedades “uma consciência coletiva”, feita das representações coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns a todos os seus indivíduos. Esta consciência coletiva precede o indivíduo, impõe-se a ele, é exterior e transcendente a ele: há descontinuidade entre a consciência coletiva e a consciência individual, e a primeira é “superior” à segunda, por ser mais complexa e indeterminada. É a consciência coletiva que realiza a unidade e a coesão de uma sociedade”.

Outro fundador da etnologia francesa é Lévy-Bruhl (1857-1939) com sua abordagem diferencial. Pare ele, a diferença cultural se colocava no centro da suas reflexões. Ele questionava as diferenças de “mentalidade” que ocorriam entre os povos. Na verdade o termo “mentalidade” estava ligado à idéia de “cultura”, termo o qual ele praticamente não usava.

A Evolução do Conceito de Cultura

É nos Estados Unidos, mais precisamente na antropologia americana, que o conceito de cultura obtém seu maior sucesso, talvez por se considerar um país de imigrantes de diferentes origens culturais.

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A antropologia americana é freqüentemente chamada de “culturalista”, sob uma conotação pejorativa e é representada por três grandes correntes1: i) a cultura sob o ângulo da história cultural; ii) as relações entre cultura (coletiva) e personalidade (individual); iii) a cultura como um sistema de comunicações entre os indivíduos.

Finalmente, ao discutir sobre a renovação do conceito de cultura, Cuche (2002) expõe a questão da abertura de um novo campo de pesquisa sobre os processos de “aculturação”, no decorrer do século XX. Explica que os processos de mudança culturais ocorridos a partir de contatos culturais foram pouco tratados nos trabalhos científicos até este momento. Na verdade o estudo sobre os fenômenos da “aculturação” foram fundamentais para melhor compreensão dos mecanismos da cultura, dando um efeito dinâmico a sua definição.

A partir desse momento houve uma inversão: não se partia mais da cultura para a compreensão da aculturação, mas da aculturação para compreensão da cultura. Assim, o conceito de cultura torna-se totalmente renovado, pois acredita-se que nenhuma cultura existe em “estado puro” e que, portanto, toda cultura é um processo permanente de construção, desconstrução e reconstrução.

O que é Cultura Escolar?

Após discorrer sobre o conceito de cultura, podemos investigar a idéia de cultura escolar. Sabe-se que é crescente o uso do termo “cultura escolar” na comunidade acadêmica, em especial entre os historiadores da educação. Em particular, nos estudos sobre práticas escolares e processos educativos, há um reconhecimento de que estes são parte de processos culturais mais abrangentes (GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005). Isso se justifica, segundo esses autores, à medida que há um crescente interesse em estudar o funcionamento interno da escola, na compreensão de que, dentro dela, há uma cultura em processo de formação, que apesar de ser considerada particular, por apresentar determinadas especificidades, articula-se com práticas culturais mais amplas da sociedade.

1 Para maiores informações sobre tais correntes, consultar o capítulo 3 – O triunfo do conceito de cultura,

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Acrescenta-se que a cultura escolar tem sido utilizada como categoria de análise para os estudos sobre a história da escola, o que tem contribuído para “a produção de um novo olhar sobre a escola” (idem, ibidem, p.33). Isso permitiu um diálogo com estudiosos de outras áreas, como da antropologia, da sociologia, da filosofia e da lingüística. Esse diálogo tem ocorrido, principalmente, a partir da utilização dos autores Forquin, Vinão Frago, Dominique Julia, Nóvoa, Vicent, Lahire, Thin, Hébrard, Chervel e Perrenoud. Esses autores têm utilizado o conceito de cultura escolar de diversas formas na busca de compreender as práticas cotidianas da escola. Saber o que acontece dentro desta instituição torna-se algo difícil.

Dominique Julia2 (2001, apud GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005) utiliza a metáfora da “caixa preta” ao buscar compreender o que ocorre nesse espaço particular, pois as práticas cotidianas da escola tornam-se acontecimentos silenciosos do funcionamento interno da mesma. Os autores explicam que a metáfora da “caixa preta” trazida por Julia tem sido utilizada por muitos autores. Entretanto, consideram que Julia não inaugura o debate sobre essa questão. Explicam que discussões a esse respeito ocorreram desde os anos 80 por Chervel e Forquin.

Forquin, por exemplo, trata a cultura escolar utilizando o conceito sociológico e etnológico de cultura. Para este autor, o conceito de cultura contribui na compreensão dos acontecimentos que se passam dentro e ao redor da escola. Para ele, alunos de diferentes meios sociais com certas características culturais bem como professores com peculiaridades próprias, certos pressupostos e valores assumidos não indicam uma cultura escolar. Assim como as práticas e as situações escolares, as quais “tem suas características de vida própria, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolo” (FORQUIN3, 1993 apud GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005, p.35). Para esse autor, isso deve ser considerado apenas como características da cultura da escola e não da cultura escolar. Esta última é descrita por ele como sendo “o conjunto dos conteúdos cognitivos, e simbólicos que, selecionados, organizados, ‘normalizados’, ‘rotinizados’, sob o efeito dos imperativos da didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas” (idem, ibidem).

2 JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas,

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Ainda nesta mesma linha, orientado pela transposição didática, encontra-se Perrenoud. Ele irá conceber a transposição didática da seguinte maneira “ensinar é, antes de tudo, fabricar artesanalmente os saberes tornando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de uma turma, de um ano, de um horário, de um sistema de comunicação e trabalho” (PERRENOUD4, 1993 apud GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005). Aqui a cultura escolar é analisada na perspectiva da profissão docente.

Chervel5 é outro autor bastante citado em relação à temática da cultura escolar, o qual traz contribuições para a história das disciplinas. Em contraposição ao conceito de transposição didática, ele defende a especificidade da cultura que a escola produz, criticando a idéia do saber escolar enquanto saber inferiorizado em relação a outros saberes.

Para ele, disciplina é um modo de disciplinar o espírito; de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento e do conhecimento. Destarte, acredita que a história das disciplinas contribui para compreensão da cultura produzida na e pela escola, uma vez que esta desempenha um papel de formação do individuo e de uma cultura que vai penetrar, moldar e modificar a sociedade.

Outro autor que trabalha com o conceito de cultura escolar é Vinão Frago. Define-a como “um conjunto de idéias, princípios, critérios, normas e práticas sedimentadas ao longo do tempo das instituições educativas” (VINÃO FRAGO6, 2000 apud GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005). Aproximando-se dessa idéia, mas acrescentando o conjunto das culturas contemporâneas na análise da cultura escolar, encontra-se Dominique Julia. Compreende a cultura escolar como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIA, 2001 apud GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005).

3 FORQUIN, J. C. Escola e Cultura: As bases sociais e epistemológica do conhecimento escolar. Porto

Alegre, Artes Médicas, 1993.

4PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa,

Dom Quixote, 1993.

5 Aqui, o autor se refere à obra: CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo

de pesquisa. Teoria e educação. Porto Alegre, n. 2, 1990, p.177-229.

6 VINÃO FRAGO, A. El espacio y el tiempo escolares como objeto histórico. Contemporaneidade e

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Finalmente, Gonçalves e Faria Filho (2005) falam sobre o conceito de forma escolar, apontado por Vicent, Lahire e Thin7 (2001). Para esses autores, a forma escolar é “um modo de socialização” que se impôs no transcurso histórico a outros modos de socialização. Explicam Gonçalves e Faria Filho (2005) que, nesse sentido, “a sociedade produz a escola e por ela também é produzida” e que também “a escola ao produzir a sociedade também está sendo produzida por ela” (idem, ibidem, p.38).

Opções Metodológicas

Investigar a relação entre a prática pedagógica em Matemática e a cultura escolar é o objetivo desta pesquisa. Mas como estudar a prática dos professores olhando para a cultura escolar? Ou melhor, como “captar” a cultura escolar? Como ter acesso a esta “caixa preta”? Visitar a instituição, olhar os documentos (diários de classe, relatórios, caderno de alunos, planejamento, projeto político-pedagógico da escola, atas dos Conselhos de Classe e Escola), fazer entrevistas com os professores? Será que, por meio desses únicos instrumentos de pesquisa, é possível perceber o que, efetivamente, acontece na escola?

Para mim, a resposta a esta pergunta é não. Penso que muito do que acontece na escola (sua organização, seus valores, as normas, etc.) não está escrito em nenhum documento oficial, nem ao menos é possível captar fazendo algumas visitas ao local. Penso também que tais questões são por demais complexas para “aparecerem” em uma simples entrevista. É preciso ir a fundo e com muita calma...

Foi pensando nestas questões que decidimos (orientador e eu) formar um grupo composto por professores de Matemática que estejam interessados em discutir problemas e propor novos caminhos para sua prática em sala de aula, de forma coletiva. Este grupo contará com a participação do orientador desta pesquisa bem como a de outros interessados a freqüentar o grupo, tais como alunos e professores da PGEM.

Os encontros ocorrerão, provavelmente, aos sábados pela manhã, no Departamento de Matemática da UNESP-Rio Claro, no decorrer do ano de 2008. A idéia é convidar professores de matemática de escolas públicas de Rio Claro e/ou cidade vizinhas. Tais

7VICENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista,

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encontros ocorram na forma de um curso de extensão, para que o professor obtenha certificado. Isso porque, penso que deve haver um estímulo para o professor, para evitar desistências, garantindo assim, sua permanência na pesquisa até o final da coleta dos dados.

As reuniões do grupo terão dois momentos: um primeiro em que os professores irão discutir seus problemas em sala de aula, propor “soluções” em conjunto, estudar, elaborar atividades a serem desenvolvidas a posteriori. Em um segundo momento, os professores desenvolverão essas atividades com os alunos em suas respectivas salas de aula. Tais intervenções, juntamente com todos os “acontecimentos cotidianos” da escola serão contadas (narradas), em forma de episódios de sala de aula, e discutidas com demais membros do grupo. Todos os encontros serão gravados em fitas de áudio ou vídeo. Estamos estudando a possibilidade de oferecermos um ambiente virtual para que os integrantes do grupo disponibilizem e troquem informações entre si, bem como registrem episódios interessantes ocorridos na escola. Além desta análise de episódios, podem ser realizados autobiografias e diários reflexivos.

Assim, meu intuito é trabalhar com a investigação narrativa. Para Clandinin e Connelly (2000), a investigação narrativa é uma forma de compreender a experiência. Esses autores definem que: “A investigação narrativa é uma colaboração entre pesquisadores e participantes, através do tempo, em um lugar ou série de lugares, em interação com seu meio social. (...) A investigação narrativa são histórias vividas e contadas” (p. 20).

Quanto à abordagem, esta pesquisa é qualitativa, visto que minha preocupação “não é com a representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma trajetória, etc”. (GOLDENBERG, 1999, p.14). Uma característica marcante neste tipo de abordagem é a análise interpretativa.

Considerações Finais

Este artigo teve o objetivo de apresentar a pesquisa que venho desenvolvendo a qual busca compreender as relações entre a prática pedagógica dos professores de Matemática e a cultura escolar. Uma discussão foi também realizada sobre o conceito de

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cultura nas ciências sociais, bem como a verificação de diferentes abordagens da idéia de cultura escolar, debatidas pela literatura.

É importante salientar que outras questões aqui devem ser consideradas. Por exemplo, é preciso estudar as relações entre cultura e história, entre cotidiano e educação (a partir de um “olhar” para as práticas cotidianas na condição pós-moderna) e também considerar as relações entre educação e poder. Tais questões deverão subsidiar todo o meu trabalho de doutorado.

Referências Bibliográficas

CANCIAN, A. K. Reflexão e colaboração desencadeando mudanças – Uma experiência de Trabalho junto a professores de matemática. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, UNESP, Rio Claro, 2001.

CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Narrative Inquiry: Experience and Story in qualitative Research. Jossey-Bass Education Series, 2000.

CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2 ed., 2002.

FERREIRA, Ana Cristina. Metacognição e Desenvolvimento Profissional de Professores de Matemática: uma experiência de trabalho colaborativo. 2003. 367p. Tese (Doutorado em Educação: Educação Matemática) — FE, Unicamp, Campinas (SP).

GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. 112p.

GONÇALVES, I. A.; FARIA FILHO, L. M. História das culturas e das práticas escolares: perspectivas e desafios teórico-metodológicos. In SOUZA, R. F.; VALDEMORIN, V. T. (Orgs.) A cultura escolar em debate: questões conceituais, metodológicas e desafios para a pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 2005, p. 31- 58.

OLIVEIRA, A. M. P. Formação continuada de professores de Matemática e suas percepções sobre as contribuições de um curso (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, UNESP, Rio Claro, 2003.

PENTEADO, M. G. Rede Interlink: integração escola pública e universidade para a inserção de tecnologia informática na educação matemática. Texto apresentado no VII Congresso Estadual Paulista sobre formação de educadores (manuscrito). Águas de Lindóia, 2003.

Referências

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