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Monstros que habitaram a Terra: Athanasius Kircher ( ), a Arca de Noé e a seleção das espécies

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Monstros que habitaram a Terra: Athanasius Kircher

(1602-1680), a Arca de Noé e a seleção das espécies

FABIANA DIAS KLAUTAU*

MARIA HELENA ROXO BELTRAN**

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Desde a Antiguidade, observa-se um empenho no estudo sobre os animais, bem como nas tentativas em classificá-los. Perpassando autoridades antigas e modernas como Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.), Plínio o Velho (23 d.C. – 79 d.C.), Isidoro de Sevilha (560-636), Conrad Gesner (1516-1565) e Ulisses Aldrovandi (1522 – 1605 ou 07), muitas maneiras de agrupar os seres vivos foram propostas e publicadas, levando em consideração diferentes contextos. Em 1675, Athana-sius Kircher (1602-1680), padre jesuíta que dedicou grande parte da sua vida ao Colégio Romano, tendo à sua disposição informações oriundas dos missionários da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo, publicou a obra Arca Noë in tres

libros digesta. Nesse livro, apropriando-se da narração bíblica do Dilúvio

univer-sal, e tendo a arca como único meio para a preservação da vida diante daquela catástrofe, Kircher se lança a elucidar sobre a existência das espécies animais conhecidas e daquelas recém-descobertas. Para isso, disserta acerca dos animais que foram escolhidos para ingressar na arca, justifica a não entrada de alguns outros e se empenha em explicar a presença de novas espécies encontradas no Novo Mundo, muitas consideradas “monstros” ou “maravilhas” pelo fato de se-rem diferentes do que já se conhecia e por causase-rem estranhamento. Através de argumentos baseados numa teoria da geração espontânea e admitindo o que chamou de hibridização, Kircher sentia-se obrigado a responder indagações que envolviam questões tanto científicas quanto religiosas.

1 *Doutoranda no PEPG em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Pau-lo. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

** Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PEPG em História da Ciência, Doutora em Comunicação e Semiótica.

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Critérios de classificação dos animais e a seleção das espécies

que sobreviveram ao Dilúvio

Segundo Kircher, nem todas as espécies de animais foram salvas pelo in-gresso na arca. Teriam tido lugar na embarcação somente as espécies que des-creveu como puras, pois as demais, ou seja, as espécies impuras, poderiam ser geradas espontaneamente, ou a partir da união de espécies diferentes ou, ainda, por transformações causadas pelas diferentes condições climáticas das diversas regiões da Terra (KIRCHER, 1675: 48-77).

Kircher agrupou os animais seguindo classificações já conhecidas e usadas por eruditos de sua época, além de tomar como base autoridades antigas como Plínio e Aristóteles (BREIDBACH; GHISELIN, 2006: 995-999), porém, sua classifica-ção tinha como foco a entrada e acomodaclassifica-ção dos animais na arca. De modo geral, o jesuíta separa os animais em quadrúpedes - aqueles dotados de cabeça, pesco-ço, ventre e quatro pés; répteis – todo animal que carece de pés e rasteja com o ventre sobre a terra; anfíbios – os que vivem parte do tempo na água e outra parte na terra não podendo permanecer muito tempo em nenhum desses ambientes; voadores – entre eles as aves que são ovíparos, dotadas de sangue, bico e penas, e os que não são aves como os morcegos e algumas serpentes aladas; os aquáticos ou peixes, dos quais ele diz não se deter em dar informações pois não há menção no relato bíblico do Dilúvio, visto que estes, vivendo na água, não necessitavam da arca para a sua conservação; e por fim, os insetos – seres impuros que nasciam espontaneamente da mescla de diferentes materiais (KIRCHER, 1675: 68-71).

Para Kircher, os quadrúpedes seriam perfeitos por natureza, ou seja, não nasceriam de matéria decomposta, mas sim da união de um macho e uma fê-mea, de acordo com o preceito divino de “crescei e multiplicai-vos”. Dentro desse grupo, eles se diferenciavam por sua índole e seus afetos, sendo uns mansos e domésticos, outros selvagens. Seriam diferentes, também, quanto à forma de se alimentar: uns seriam ruminantes, outros apenas carnívoros, outros estritamente herbívoros e outros onívoros. Também se distinguiam pela constituição dos pés, sendo alguns deles ungulados de um só dedo. Por fim, e como critério essencial para a classificação do jesuíta, os quadrúpedes eram divididos em puros e impu-ros para que o homem os usasse da forma correta e contemplasse a grandeza da sabedoria divina na ordenação do mundo e na Criação (KIRCHER, 1675: 78-79).

Para explicar a diferença entre os animais puros e impuros, Kircher se baseia em Levítico (11, 1-8) e Deuteronômio (14,3-21). Nessas passagens bíblicas lê-se que os animais quadrúpedes que podem ser consumidos como alimento são aqueles que possuem o casco fendido, partido em duas unhas, e que ruminam. A ausência de qualquer uma dessas qualidades caracterizaria o animal como impuro, como é o caso do camelo, do coelho e da lebre que embora ruminem, não apresentam o casco fendido; ou do porco que, apesar de ter o casco fendido, não rumina.

Kircher enumera, também, os quadrúpedes que não teriam sido conservados na arca pois seriam impuros pelo fato de terem nascido do cruzamento de

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espé-cies diferentes, como por exemplo a mula que nascia do cruzamento entre a égua e o asno (KIRCHER, 1675: 67). Da mesma forma, não teria ingresso na arca o tatu, que segundo o jesuíta tratava-se de um animal encontrado no Reino Mexicano (na época Vice Reino da Nova Espanha) semelhante a um cavalo coberto de esca-mas, nas quais pode se enrolar e se esconder dentro delas ao se sentir ameaçado, com focinho de javali e cauda longa. Ele deduziu que esse animal seria proceden-te da tartaruga e do ouriço. Teria ficado de fora também a marmota, nascida do texugo e da fêmea do esquilo, o leocrocuta2 procedente do cruzamento entre o

leão e a hiena, e por fim, o corcobado3, animal giboso da América setentrional,

do gênero dos ovinos, semelhante ao touro mas com pelos que cobrem quase todo o corpo, muito admirado pelo índios que utilizam seu sangue como bebida, sua carne como comida, os chifres como vasilhas, a pele como vestimentas, para cobrir as cabanas, fazer cordas, armas, e até os excrementos são utilizados para manter o fogo. Kircher não aponta as espécies que teriam originado o corcobado, diz apenas que acreditava ser um animal bovino, e que por influência especial do céu, do clima, como se sucedeu com quase todos os animais da América, chegou na forma como se conhecia (KIRCHER, 1675: 69-70).

Leocrocuta e Corcobado, Arca Noë, pg.70

Para os animais aquáticos valia a regra que, tudo que tenha barbatanas e escamas pode ser comido e assim eram considerados puros, com exceção dos “animaizinhos” que infestam a água ou os seres viventes que nela se encontram (KIRCHER, 1675: 70).

No caso dos animais voadores, Kircherfaz um inventário dos que teriam en-trado na Arca e os que teriam ficado de fora. Ele toma como padrão as aves, pois elas são ovíparas, dotadas de sangue, bico e penas. Porém ele complementa que

2 A descrição que Kircher faz do leocrocuta é compatível com as características físicas do animal que conhecemos, atualmente, como hiena malhada, a Crocuta crocuta, representante da família Hyaenidade.

3 Na descrição feita por Kircher, bem como na imagem que ele apresenta para ilustrar o

Cor-cobado, podemos aproximar do que atualmente conhecemos como bisão-americano ou búfalo

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nem todos os animais voadores são aves pois existem aqueles que não são bípe-des, não possuem bico nem penas, como o caso dos morcegos ou “ratões voa-dores”, que são quadrúpedes, possuem dentes, mamas e asas cartilaginosas. Ele relata também a existência de algumas serpentes com asas, que não teriam pe-nas, mas que teriam asas cartilaginosas. Algumas aves são citadas como impuras, entre elas o abutre, o corvo, o avestruz, a coruja, a gaivota, o gavião, o pelicano, a cegonha, a garça. Também seriam impuros o morcego e o grifo. O jesuíta conclui que, como a Sagrada Escritura não faz menção às aves puras, entende-se que, com exclusão das aves carnívoras e de rapina, todas as demais seriam comestí-veis, e, portanto, puras (KIRCHER, 1675: 74-75).

É dada, também, uma atenção especial ao grupo dos répteis. Existiriam os de natureza perfeita, que nascem do coito entre macho e fêmea e que teriam entrado na arca, como as víboras, a salamandra, o lagarto, o camaleão e o cro-codilo, e os de natureza impura, que nasciam da matéria em putrefação, como as lombrigas. Seriam impuros, também, os insetos alados de quatro patas, e ao homem era permitido como alimento apenas algumas espécies de gafanhotos e grilos (KIRCHER, 1675: 51-56).

Assim, para justificar que nem todos os animais teriam entrado na arca, bem como para explicar o porque das espécies do Novo Mundo serem tão diferentes das até então conhecidas pelos europeus, Kircher, tendo como parâmetro a bíblia, colocou como critério de seleção a pureza ou impureza das espécies, enxertando, nesse ponto, suas ideias sobre geração espontânea e sobre a metamorfose que ocorria em certas espécies, decorrente do clima nas Zonas Tórridas. Com isso, o jesuíta foi obrigado a assumir que o número de espécies antes do dilúvio era menor (ASÚA; FRENCH , 2005: 172), e que a grande diversidade da fauna encon-trada no Novo Mundo seria posterior aos eventos relatados no livro de Gênese (SANTOS;NETO, 2011: 63).

Monstros que habitaram a Terra

É possível encontrar, não só na Arca Noë, mas também em outras obras de Kircher, como é o caso do Mundus subterraneus(1665), descrições de animais exóticos como unicórnios, sereias, basiliscos, grifos e dragões. Estes últimos se-riam quadrúpedes subterrâneos que tese-riam habitado as profundezas da Terra (KIRCHER, 1665: 92-124).

Em 1651, o jesuíta, que era professor no Colégio Romano e considerado um dos maiores eruditos locais, recebeu da Companhia a incumbência de zelar por uma coleção de objetos de artes e antiguidades recebida como doação do mece-nas Alphonso Donino. Esse material, somado a uma série de outros objetos, pas-sou a ser uma coleção do Museu do Collegio Romano, sob a curadoria de Kircher .Também faziam parte desse museu objetos recebidos de missionários jesuítas que viviam nos lugares mais longínquos do planeta, além de maravilhas oriundas da própria Europa (CAMENIETZKI, 1997: 95-96).

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No museu, tudo era devidamente organizado, como se cada objeto tivesse um significado próprio, e como se nada fosse posto ao acaso. No teto, junto à pintura que representava o céu e os astros, podia-se ler a frase “Ex his disces

pe-regrine, quod ut a Deo omnia in omnia derivantur, tanquan a naturae Authore, sic omnia e contra u deum referri pulchra comparatione expressum intuearis”4, que

re-lacionava os objetos extraordinários de sua coleção com uma parcela da natureza derivada de Deus, e por isso, todo aquele que apreciasse os objetos ali exibidos aprenderia que pela analogia, tudo a Ele retorna (CAMENIETZKI, 1997: 96).

Segundo Findlen (1994), Kircher considerou a Arca de Noé como sendo o pri-meiro museu de história natural da humanidade: o Éden, por extensão do univer-so, seria o museu de Deus e a Arca representaria a primeira tentativa de coletar a natureza, a mando do Criador (FINDLEN, 1994: 91). Essa ideia fez com que Kircher associasse sua própria coleção ao grande museu da natureza, sendo que o epi-sódio do dilúvio serviu de parâmetro para a classificação dos animais que com-punham a coleção kircheriana. Sua competência em reunir criaturas ante e pós diluvianas em um único espaço garantiu seu sucesso como colecionador, capaz de reconciliar a natureza nos seus mais diferentes estágios (FINDLEN, 1994: 92).

Mensagens de redenção e salvação eram o que a coleção de Kircher comu-nicava. O livro da natureza escrito por Deus seria a chave para o grande livro do universo, e este não era passível de corrupção humana. Também os objetos não tinham um fim em si mesmos, eles estabeleciam um ponto de partida para as reflexões de Kircher sobre as diferentes maneiras em que o universo refletia a sabedoria e a intervenção de Deus. E, mais ainda, o jesuíta insistia que a maravi-lha era uma categoria de análise e não simplesmente uma ferramenta para levar os homens à contemplação de verdades superiores, por isso, em suas obras, ele registrava as manifestações físicas que podiam ser milagrosamente capturadas pela observação natural. (FINDLEN, 1994: 92).

Ainda segundo Findlen, “Kircher talvez tenha sido o último naturalista a acre-ditar apaixonadamente na realidade de qualquer dragão” (FINDLEN, 2002: 318) e isto pode ser observado em sua obra Mundus subterraeus, em um capítulo todo dedicado a essas criaturas. De fato, Kircher afirma que, a não ser que alguém ou-sasse contradizer a Palavra de Deus, ninguém poderia duvidar que os dragões se tratassem de criaturas vivas, pois a própria Bíblia trazia a narrativa de um dragão no livro de Daniel (KIRCHER, 1665: 89).

Ao longo do tópico De draconibus subterraneis, Kircher descreve diversas histórias e descrições dessas temíveis bestas, e apresenta suas ideias sobre a ge-ração desse tipo de maravilha. Uma atenção especial é dada às histórias dos san-tos matadores de dragão, homens e mulheres virtuosos que em algum momento de sua vida se depararam com essas criaturas, travaram um embate e venceram (KIRCHER, 1665: 90).

4 “Com isso você aprende, peregrino, que todas as coisas são derivadas de Deus enquanto o

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É o caso do dragão morto pelos poderes derivados do espírito de Santa Margarida de Antioquia (289 d.C – 304 d.C.). Diz a tradição que Santa Margarida, estando na prisão condenada por não ter abandonado sua fé, recebeu a visita do demônio em forma de um dragão que a engoliu. Firmando no corpo do dragão o crucifixo que levava sempre consigo, rasgou-lhe o corpo pelo interior, libertando-se do ventre da criatura. O demônio, acuado e vendo-se incapaz de causar qualquer mal à santa, decidiu deixá-la em paz (RABOT, 2010:189). Santa Margarida é considerada a padroeira das mulheres grávidas e o relato de seu martírio foi um texto muito cultuado na Idade Média. Um raro exemplar manus-crito proveniente do mosteiro de Benediktbeuern, na Baviera, que chegou à bi-blioteca da corte de Munique em 1803, contém uma lista de mártires e a história da vida de vários santos. A única iluminura é a de Santa Margarida de Antioquia (Biblioteca Digital Mundial).

Santa Margarida de Antioquia e o dragão, iluminura medieval.

Kircher também faz referência às cobras voadoras que habitavam as terras egípcias, representadas em inscrições hieroglíficas desses povos. Segundo ele, autoridades antigas como Plínio, o velho (23 d.C -79 d.C), Solino (?-400 d.C.) e Eliano (175 d.C. – 275 d.C.) afirmavam que as cobras aladas teriam migrado da Arábia para o Egito após a inundação do rio Nilo, e que lá, seus filhotes teriam nascido como insetos a partir da matéria em decomposição presente no lodo que sobrou depois do dilúvio (KIRCHER, 1665: 95).

Outra história contada por Kircher é a de um romano chamado Liano, que em novembro de 1660, ao caçar pássaros, atingiu com sua espingarda a asa de um dragão que, enfurecido, investiu num vôo rasante sobre a cabeça do caçador. Mas, o dragão não teve sucesso e Liano conseguiu cortar o pescoço do monstro. Porém, o caçador também teria morrido, por não ter resistido à toxidade do san-gue do animal e ao seu hálito virulento. A cabeça desse dragão teria sido exami-nada e as informações teriam sido transmitidas a Kircher diretamente pelo lorde Jerome Lancta, curador do museu do cardeal Baberini, através de um relatório, juntamente com uma dupla fileira de dentes, comprovando a veracidade da

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his-tória e da existência da criatura. O dragão em questão era bípede e seus pés eram parecidos com os de um pato (KIRCHER, 1665: 95).

O jesuíta continua seus escritos com a descrição de um basilisco alado. Se-gundo KIRCHER (1665, pg 95), era “bem sabido que eles nascem de ovos de uma galinha senil” e ele prossegue revelando a existência de quadrúpedes

spoloumor-ph, seres que nascem como larvas em grandes massas, e que depois de crescerem

ganham asas semelhantes às dos pássaros. Esses seriam os horrendos dragões alados (KIRCHER, 1665: 95). Um exemplar dessa espécie teria sido observado na história que entrelaça a vida de duas santas, Marta e Maria Madalena. Kircher ex-plica que Santa Maria Madalena teria se refugiado, isoladamente, em montanhas próximas à Marselha, onde hoje é conhecido como La Baume. Madalena teria habitado uma caverna entre os pináculos e lá teria entrado em combate com um hediondo dragão de tamanho incomum, o qual conseguiu expulsar “em nome de Cristo”. O dragão teria voado para longe, para a região do Ródano, onde vivia Santa Marta, que capturou a besta por meio de orações. O dragão foi amarrado e levado para Tarascon, onde teria sido morto5.

Marta e Maria Madalena são vistas juntas numa famosa pintura do século XVI, intitulada Quattro santi e executada por Antonio Allegri (1489-1534), conhe-cido como Correggio. A imagem retrata São Pedro segurando as chaves do Reino dos Céus, ao lado de Santa Marta que mantém preso, em seu cinto, o dragão alado; em seguida, Maria Madalena tem nas mãos um frasco de perfume; e por fim São Leonardo de Noblac, padroeiro dos prisioneiros, mostra os grilhões. Nes-sa tela, a floresta, denNes-sa, cria uma atmosfera perturbadora, o tipo físico de Maria Madalena bem como seu sorriso ambíguo, a luminosidade revelando as cores das roupas e a posição dos olhares, ora para baixo como Pedro e Marta, e ora para o espectador como Maria Madalena poderia se tratar de uma homenagem de Correggio à Leonardo Da Vinci e sua técnica de pintura (WARBURG Banco Comparativo de Imagens).

Quattro santi, Antonio da Correggio.

5 Para saber mais sobre a História de Santa Marta e o Dragão ver REIMER, I.R. Marta, diácona e domadora de dragão.

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É interessante notar que, na pintura, a criatura retratada condiz com a descrição do dragão alado cuja existência Kircher quer comprovar. Ele afirma que quando esteve na Catedral de Tarascon, em 1632, viu o dragão retratado pictoricamente numa grande arte, além de ter ouvido de testemunhas confiáveis outros relatos sobre o monstro e explica que optou por contar as minúcias desse episódio para que as pessoas passassem a acreditar que dragões alados, de fato, “existem na natureza, no passado e no presente” (KIRCHER, 1665: 96-98).

Kircher não apresenta apenas narrativas, mas sempre que possível, recorre a imagens para ilustrar as características físicas dos dragões. É o caso da imagem da criatura capturada e morta pelo cavaleiro Deodato de Gozon, em 1345 na Ilha de Rodes, conforme explica o texto que acompanha a imagem.

Kircher, Mundus subterraneus, 1665, pg. 91.

Francisco Deodato foi um jovem francês de família nobre, dotado de cora-gem e força de espírito. Ele teria tido conhecimento de um dragão que habitava a ilha de Rodes, inclusive tendo feito um ninho numa caverna subterrânea na região. O horrível monstro, enorme, de hálito mortal, predava homens e animais com indescritível rapidez e selvageria, que ninguém, nem os mais corajosos sol-dados e cavaleiros ousavam se opor a ele. Instigado pelo desejo de realizar um grande feito e imortalizar seu nome, Deodato partiu para a batalha contra a besta monstruosa, primeiro apenas observando a forma, a constituição e as cores do couro do corpo da fera (KIRCHER, 1665: 91).

A cabeça do dragão era grande como a de um cavalo, longa como a de uma vaca, possuía escamas como uma cobra, e se situava ao final de um pescoço comprido. As orelhas eram alongadas como as de uma mula, e na boca tinham dentes enormes. Os olhos eram grandes e a respiração ardia como fogo. Tinha quatro pés com garras como as de um urso e as partes posteriores, assim como a cauda, eram como as de um crocodilo. Todo o corpo era recoberto por pele extremamente dura de escamas sobrepostas; tinha duas asas compridas mem-branosas, uma de cada lado do corpo, e a cor era semelhante a das barbata-nas de golfinho: azul barbata-nas costas e a parte inferior amarelo dourado, enquanto o

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restante do corpo era colorido com uma mistura dessas duas cores. Com a ajuda de seu cavalo e de seus cachorros, Deodato, armado com sua espada e seu escu-do, discerniu a parte mais vulnerável do dragão e deferiu-lhe um golpe, conse-guindo dilacerá-lo. Segundo Kircher, um espetáculo maravilhoso de se ver! Mas Deodato também pagaria um alto preço, tendo ficado envenenado pela toxina infernal do monstro, quase perdendo a vida (KIRCHER, 1665: 91). Como reco-nhecimento por seu grande feito, Deodato recebeu o título de “Sir Deodado de Gozon, matador de dragão” e entre os anos de 1346 e1353 ocupou o lugar de Grão Mestre da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários6.

Kircher também apresenta em imagem o dragão que teria sido encontrado nos campos próximos à Bolonha, pelo Papa Gregório XIII (1505-1585). Ele explica que, a figura tem o intuito de mostrar um dragão com diferentes características físicas, dessa vez, bípede, sem asas, cujo corpo poderia ser visto no museu de Al-drovandi, o qual escreveu o seu tratado sobre dragões e serpentes aproveitando o aparecimento dessa criatura e a partir de outros exemplos de serpentes dos quais ele teria ouvido falar (FINDLEN, 94: 99).

Kircher, Mundus subterraneus, 1678, pg.99.

Partindo para a Arca Nöe, em sua catalogação sobre os quadrúpedes, Kir-cher explica que poderia enumerar muitos animais de caráter monstruoso. Seria o caso da sereia, um monstro marinho do grupo dos anfíbios, chamada de pece

muguer pelos espanhóis e pesce donna pelos italianos, composta pela parte

supe-rior de uma mulher e pela parte infesupe-rior de um peixe, terminando em cauda. Ele diz ainda que ninguém poderia duvidar da existência desse animal, pois a cauda e os ossos estariam expostos em seu museu (KIRCHER, 1675: 73).

De fato, o primeiro catálogo das coleções do Museu do Colégio Romano, pu-blicado em Amsterdã em 1678, continha uma descrição de Kircher sobre um es-queleto de sereia. Porém não se tratava de uma sereia mitológica, nem de sereias

6 Para saber mais sobre o cavaleiro Deodato de Gozon ver PORTER, W.A history of the knights of Malta, or The Order of the Hospital of St John of Jerusalem, Vol 1, Cambridge University Press, 2013.

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que apareciam nas narrativas fantásticas da antiguidade e idade média. O obje-tivo da descrição era uma tentativa de comprovar a existência desse ser, metade peixe, metade mulher, a partir de relatos e de um esqueleto enviados de regiões longínquas da terra. A descrição de Kircher localiza a origem da peça como sendo as ilhas Molucas no Oceano Pacífico e, nesse escrito, ele compara as caracterís-ticas da criatura com as de um ser humano. Os termos utilizados para descrever o animal variam entre sereia e peixe, sendo que a única menção mitológica do monstro é sua virtude em estancar hemorragias (CAMENIETZKI, 1997: 97).

Para o jesuíta, a entrada da sereia, assim como de outros anfíbios entre eles o hipopótamo, o crocodilo, a lontra, o castor, a tartaruga e a foca, na Arca era discutível: alguns autores diziam que esses bichos rondavam a arca e faziam ni-nhos em sua lateral, mas Kircher discordava dessa afirmação argumentando que a Sagrada Escritura não trazia nenhuma referência sobre animais mantidos fora da arca. Para outros, esses seres não passavam de uma alucinação, e outros ainda acreditavam que esses animais teriam ficado submersos durante o Dilúvio. Mas, Kircher afirma que esses bichos foram preservados na Arca, e que haveria lugar e provimentos suficientes para nela alocá-los e mantê-los (KIRCHER, 1675: 73).

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Kircher, Arca Noë, pg. 73

Segundo CAMENIETZKI (1996), a inclusão dessa peça na coleção do museu kircheriano demonstrava a crença do jesuíta na Filosofia Natural, intrinsicamen-te ligada à sua noção de possibilidades da obra da Criação. Kircher acreditava que as virtudes naturais eram “causas postas em movimento por Deus”, assim, o testemunho de alguém respeitável acompanhado de alguma evidência era o suficiente para se comprovar a existência de um portento. Da mesma forma, os prodígios eram o resultado da manifestação de um Deus “infinitamente livre que manipulava as virtudes naturais para realizar seus intentos, aqueles que os ho-mens não poderiam conhecer com certeza absoluta” (CAMENIETZKI, 1997: 97).

Na Arca Noë há espaço, também, para discussão sobre as maravilhas que Kir-cher considerava de existência duvidosa, como o caso do unicórnio. KirKir-cher expli-ca que ninguém poderia afirmar ter visto este animal e, por isso, ele era coloexpli-cado entre os animais fabulosos de Plínio. O jesuíta explica que se sabia da aparição de animais com um único chifre nas terras da China e na África, como rinocerontes e alguns exemplares de cabras, asnos e touros, mas o espécime como descrito por Plínio e por Joseph Justus Scaliger (1540-1609), nunca fora visto em seu tempo,

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nem em terras além mar. Pensar que o unicórnio teria perecido durante o Dilúvio era, para Kircher, contradizer os desígnios da Divina Providência, como se Deus não quisesse ou não pudesse conservar esta espécie. Por isso deveria se entender por unicórnios animais de famílias semelhantes a esta espécie, como a do rinoce-ronte, e assim, se manter fiel às Escrituras (KIRCHER, 1675: 58-59).

Ele também faz uma breve referência aos chifres soterrados que por vezes eram encontrados. Para o jesuíta, não propriamente se tratariam de chifres de unicórnio, mas de chifres cuja força da natureza teria feito crescer no rosto de enormes peixes, encontrados especialmente na Groelândia (KIRCHER, 1675: 81-82). No seu Mundus subterraneus, Kircher discorre com mais detalhes sobre os fósseis de chifres, os cornua fossilia, e se esses achados eram, de fato, chifres de unicórnio. Ele ilustra esse capítulo da obra com a imagem de um animal que descreve como uma baleia que habita o oceano glacial, explicando que seria o vestígio da procedência dos longos chifres encontrados pelo homem (KIRCHER, 1665: 66-67).

Balænarum, Kircher, Mundus subterraneus, pg.67.

Como comentado acima, um forte candidato para ilustrar o unicórnio, na visão de Kircher, era o rinoceronte. Para o jesuíta, o animal que possuía um chi-fre no nariz, era um pouco menor que o elefante, e tinha a força de um touro se tratava, no seu entendimento, de um rinoceronte, animal que era recoberto pelo homem com ferro para ser utilizado na guerra. Para ilustrar o espécime, Kircher utiliza a imagem produzida por Albrecht Dürer, feita a partir de desenho do primeiro rinoceronte enviado à Europa pelos portugueses. Dürer não teve acesso direto ao animal e produziu a imagem baseando-se no desenho de um português anônimo, recebido do impressor Valentim Fernandes, juntamente com uma descrição. Essa imagem de Dürer teria sido considerada, desde a sua pro-dução, por mais de dois séculos, a “verdadeira representação” do rinoceronte (COSTA, 2006: 250).

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Rinoceronte, Kircher, Arca Noë, pg. 59. Rhinocerus, Dürer, 1515.

Considerações Finais

Como podemos notar, Kircher foi um dos eruditos que, no século XVII, se dedicou à investigação das maravilhas da natureza. Os exemplos acima demons-tram que seu interesse permeava as esferas tanto religiosa quanto científica, e por isso, ele via no maravilhoso, a manifestação do poder e da vontade do Criador. Além disso, seu museu que simultaneamente distraiu e maravilhou o público com a exposição de animais exóticos, era um exercício de investigação da natureza e um meio de celebrar a divina Criação, através da contemplação de Suas obras.

Referências

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Referências

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