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A ruptura de Marx com a filosofia idealista na década de 1840

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A ruptura de Marx com a filosofia idealista na década de 1840

Marlon Garcia da Silva (UFSC)* Rodrigo Prado Evangelista (ALMA)*

Resumo

O presente artigo expõe resultados do estudo da formação do pensamento original de K. Marx, delimitando para análise debates principais do autor na interlocução crítica com a filosofia clássica alemã, destacadamente, com os pensamentos de Hegel, Feuerbach e dos chamados filósofos neogelianos. Busca-se demonstrar elementos da ruptura de Marx com a filosofia hegeliana e neohegeliana em geral, bem como explicitar a originalidade da crítica e da posição filosófica desde então instauradas. Defende-se que a problemática do conhecimento é radicalmente redimensionada por Marx, posto que deslocada do âmbito das disputas gnosio-epistêmicas acerca da relação entre sujeito e objeto, e repostas a partir da relação entre produtor e produto, a qual compreende a potência do saber e da práxis como atributos intrínsecos dos homens na produção de si e do mundo social. As representações em geral, e nelas, o pensamento filosófico, explicam-se desde as bases sócio-materiais de entificação do humano, conforme a historicidade concreta. Na sociedade capitalista, tais bases explicam a formação e a função social das ideias filosóficas (e das representações científicas, artísticas, religiosas etc.) na dinâmica da produção e reprodução da vida social.

Palavras-chave: Crítica filosófica, relação produtor/produto, capitalismo.

* Professor do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:

longarcia@gmail.com

*

Graduado em Psicologia pela UEL – Universidade Estadual de Londrina, em 2011, atualmente membro do cineclube Ahoramágica e do Núcleo de Comunicação Popular e Comunitária da ALMA – Associação Intercultural de Projetos sociais. Email: irreversível_prado@yahoo.com.br.

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I. Premissas

Desde meados de 1843, quando redige as glosas intituladas Crítica da Filosofia do

Direito de Hegel, Marx rompe com a filosofia especulativa, idealista, defendendo, sob a

influência das ideias materialistas de L. Feuerbach, a natureza objetiva do ser e de suas relações, a existência pré e supra teorética do ser material-sensível, sendo a potência subjetiva um predicado dos homens que vivem, sentem, pensam, se relacionam. A objetividade é uma propriedade primária de todo existente. As ideias, o pensamento, o espírito, se constituem como predicados do ser sensível e, enquanto tal, pensante, espirituoso. Pode-se dizer, assim, que Marx descarta qualquer concepção transcendente do ser. O que existem são as coisas e relações materiais, naturais e humanas, autopostas e existentes por si. O pensamento não põe a realidade do ser, mas reproduz idealmente a

“lógica específica”1

dos seres e relações determinados, reais. Tais ideias remetem ao reconhecimento do homem como o “ser soberano para si”, sendo tarefa dos próprios homens o enfrentamento dos seus problemas teóricos e práticos, a explicação do seu ser, de suas relações, seu mundo, de tudo que nele há.

A partir de tais aquisições e desafios, Marx passa à investigação dos processos de entificação e objetivação do humano, da constituição específica do seu ser, tomando por referência as relações de produção e reprodução da vida nos marcos da sociedade burguesa, as relações econômicas, e estudando, ao mesmo tempo, suas expressões ideais, no caso, mais diretamente, aquelas expressas nas formulações dos economistas-políticos clássicos. “A anatomia da sociedade civil”, diz Marx, “deve ser buscada na economia

política”2

. As formas e estruturas materiais e ideais da vida social burguesa explicam-se desde as relações da propriedade privada da indústria capitalista. Esta é, pois, uma referência principal a partir da qual explicam-se as representações teóricas em geral, nelas incluídas as formulações filosóficas, com as quais Marx se defronta. As representações não são criticadas nem enfrentadas por si, mas como momentos ideais cujas raizes encontram-se nas relações sócio-materiais de produção.

No conjunto destas elaborações originais de Marx encontra-se, pois, o redimensionamento da problemática do conhecimento. De saída, afirma-se o por si da realidade do mundo natural e humano, afirmação dos conteúdos do ser enquanto ser, e

1

MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 108.

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definem-se as tarefas do “sujeito”, dentre as quais, a reprodução ideal das efetividades objetivas, reais. O mundo social é considerado como produto histórico dos próprios homens, e enquanto tal, confirma a potência primária do saber dos homens como força essencial e vital na peculiar produção de si e dos objetos sociais, e confirma igualmente a possibilidade e a potência do reconhecimento teórico dos mesmos processos de entificação. Ou seja, a querela gnosiológica sobre a possibilidade do conhecimento é criticada e descartada por Marx como questão escolástica. O mundo socialmente produzido traz consigo os conteúdos, as relações, os modos e as formas dos processos de entificação, os quais podem e precisam ser conhecidos e reconhecidos a favor do desenvolvimento do domínio de si e do próprio mundo dos homens, dos produtores. Neste sentido, os pensamentos filosófico e científico percorrem o caminho inverso dos processos reais de entificação, partindo do complexo para o simples e retornando ao real como concreto pensado e esclarecido, o elucidando e articulando teoricamente em suas múltiplas determinações e dimensões, sejam elas as mais diretamente sincronizadas com o tempo histórico presente, sejam elas as mais remotas e diacrônicas.

II. Desenvolvimento e elementos teóricos para o debate

Os estudos filosóficos de Marx, desde muito cedo e ao longo de sua produção, abarcam um vasto conjunto de obras clássicas do pensamento universal. As presentes considerações limitam-se a tomar por referência interlocuções principais do autor conforme aparecem em seus trabalhos produzidos desde meados 1843, quando da publicação da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. A primeira interlocução principal a ser considerada é, pois, aquela estabelecida com Hegel (1770-1831), cuja obra predomina nos debates filosóficos alemães da primeira metade do século XIX. Numa formulação inicial muito genérica, pode-se afirmar que o primeiro pensamento de Marx – dos estudos universitários aos trabalhos na Gazeta Renana – é profundamente influenciado pelo idealismo hegeliano, como o demonstra, por exemplo, sua concepção do Estado racional. O fato que Hegel esteja autenticamente envolvido com as grandes questões do tempo histórico justifica seu estudo privilegiado. Nos fins da primeira metade dos anos de 1840, Marx vai tomando com clareza crescente a filosofia hegeliana como autêntica expressão ideal das relações materiais da sociedade burguesa, imbricada, portanto, aos avanços e entraves históricos reais do modo de produção capitalista.

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A análise da interlocução Marx-Hegel será aqui considerada a partir de três textos, os quais oferecem argumentos decisivos e peculiares da ruptura de Marx com a filosofia idealista. O primeiro deles, a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, redigida em 1843, o segundo os Manuscritos Econômico-filosóficos, de 1844, e por fim, A Ideologia Alemã, escrita em parceria com Engels, no ano de 1846.

Instigado, por um lado, pela realidade social, pelos “problemas” e contradições “dos chamados interesses materiais”, ao considerar, por exemplo, a parcialidade do Estado que arbitra a favor dos interesses particulares dos grandes proprietários privados de terras em detrimento dos interesses universais do povo, dos camponeses pobres, como o ilustra o conhecido episódio sobre “o furto da lenha” na região do vale do rio mosela, e por outro lado, mergulhado no estudo dos clássicos das filosofias políticas e especialmente influenciado pelas ideias materialistas de L. Feuerbach, Marx, no ensejo de um momento político conturbado da vida prussiana deixa as atividades jornalísticas da Gazeta Renana e “retira-se” “para o gabinete de estudos”, como o atesta seu testemunho alguns anos mais tarde3.

O primeiro trabalho que empreende para o enfrentamento das “dúvidas” e dificuldades que o tomavam versa centralmente sobre filosofia e política, trabalho dedicado à “revisão crítica” e acerto de contas com a filosofia do direito de Hegel.

Um erro principal então apontado na filosofia hegeliana consiste na identificação de sujeito e objeto, pensamento e realidade, confundindo pelo idealismo objetivo a natureza e as relações entre ambas as esferas. Hegel concebe a Ideia como sujeito da história, concebe a história como o movimento da alienação e do retorno do Espírito que se manifesta e constitui em-si e para-si como cultura humana, num processo dialético pelo qual as figuras da “Consciência” se constituem e manifestam como realidade, e a realidade, por sua vez, se constitui e manifesta como consciência-de-si humana, espírito e cultura humana.

Pela crítica de Marx, o ser é identificado à objetividade sensível, existe como propriedades, atributos, predicados, qualidades, dimensões etc. materiais-sensíveis, as quais o instituem e identificam como objetividade específica. Os conteúdos das coisas estão nas próprias coisas, dão-se na materialidade do ser, não estão nem se dão a priori na cabeça do filósofo. A preocupação primeira do filósofo, a matéria do seu trabalho desloca-se para o plano da objetividade desloca-sensível, diversa e heterogênea em relação à subjetividade.

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A ideia passa a ser “medida” pelo ser real. O pensamento é um predicado do ser pensante, não a figuração abstrata da Consciência desencarnada. Neste sentido, sua tarefa é a reprodução ideal dos seres efetivos e suas lógicas específicas.

Em decorrência dos princípios idealistas sobre os quais se assenta seu sistema filosófico, Hegel defende o Estado moderno como expressão do “desenvolvimento geral do espírito humano”, da Razão desenvolvida que se encarna nas instituições políticas, permeia os poros e relações da sociedade civil, constituindo-se como potência superior que instaura e organiza o reino da universalidade humana. O Estado político garantiria, segundo Hegel, a administração e resolução racional das chamadas “colisões empíricas” presentes na sociedade civil burguesa. Confrontando a esta posição, Marx critica que as contradições reais são resolvidas e harmonizadas por Hegel no pensamento especulativo, são solucionadas por mediações formais, abstratas, aparentes. O folósofo idealista concebe a burocracia, pelo lado do governo, e os estamentos políticos legislativos, pelo lado da sociedade civil, como mediações políticas formais, ideais, para o que Marx identifica, neste momento, como “opostos reais”, separados: a sociedade civil e o Estado político moderno. O Estado realizaria, segundo a impostação hegeliana, a unidade substancial do particular, do singular e do universal, suprassumindo na superioridade essencial da razão universal as contradições empíricas da sociedade civil burguesa, as quais, todavia, conforme a crítica de Marx, continuam ativas e tensas na vida social real.

A crítica de Marx se move, pois, por dois eixos principais, imbricados: 1. Hegel mistifica e perde a peculiar natureza do ser e do pensar, da materialidade e da idealidade, da objetividade e da subjetividade. Para ele, a Razão absoluta se põe como realidade. Os conteúdos do ser e da filosofia dão-se como figurações diversas do pensamento abstrato, expressões determinadas forjadas desde o ser indeterminado. Reiterando: Marx contrapõe-se defendendo a natureza material e objetiva do contrapõe-ser. Os conteúdos dos contrapõe-seres reais e particulares estão nos próprios seres reais e particulares, o pensamento é um atributo, um predicado do ser pensante, humano. A realidade não pode ser decifrada senão a partir de si, de sua materialidade constitutiva, de seus conteúdos e sentido próprios, imanentes. A tarefa do pensamento consiste em reproduzir idealmente tais efetividades particulares. Já aí Marx defende, com clareza, a formação dos universais desde os singulares e particulares reais. 2. O Estado não explica-se pelo Ideia, pelo desenvolvimento geral do Espírito, mas desde sua materialidade constitutiva. Não é o Estado que entifica as esferas finitas da família e da sociedade civil. Pelo contrário, as particularidades dessas esferas e relações explicam o

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Estado político moderno. A tarefa filosófica consiste na decifração de tal materialidade constitutiva do mundo humano, de seus objetos, relações, seus processos reais de entificação e objetivação.

Logo em seguida ao referido trabalho empreendido em Krëuznach, Marx escreve dois artigos que aparecem nos conhecidos Anais Franco-Alemães, publicados em Paris, nos inícios de 1844: Crítica da Filosofia do Direito – Introdução, e Questão Judaica. Mediando para o segundo momento da análise da relação Marx-Hegel, algumas breves observações sobre estes escritos são oportunas. Marx afirma desde então, com força

crescente, que “a raiz para o homem é o próprio homem”4

, ou seja, o homem produz o seu próprio mundo, é o responsável pela produção de si, de suas riquezas e suas misérias. Religião e política, por exemplo, deixam de ser consideradas e combatidas criticamente no campo privilegiadamente filosófico, e passam a ser explicadas desde suas raizes de entificação, a sociabilidade e a atividade dos homens. Diferentemente da argumentação estritamente filosófica das glosas de Krëuznach, a crítica agora se embrenha pelos condutos da sociabilidade burguesa, buscando as determinações dos processos próprios de entificação do humano a partir de si. Neste sentido, religião e filosofia são formas ideais consentâneas a relações sócio-materiais determinadas. Os combates da filosofia não podem se ater ao campo estritamente gnosiológico.

Um consequência desta posição mostra-se na defesa de que as armas ideais, as “armas da crítica” da sociedade burguesa adquirem sentido e potência quando associadas à “críticas das armas”, postas a serviço das tarefas progressistas e revolucionárias da história. Já aí Marx identifica, na força crescente do proletariado de então, a potência do trabalho na produção do humano, particularmente, na “desprodução” de si do trabalhador nas relações da indústria capitalista. A opressão e os grilhões que usurpam as forças sociais localizam-se nas relações de produção da sociedade burguesa, aslocalizam-sentadas na propriedade privada, a qual passa desde então a ser estudada com profundidade crescente por Marx.

A análise dos Manuscritos Econômico-filosóficos ilumina com mais força os desenvolvimentos e aquisições de Marx no processo de ruptura com a filosofia idealista. Nos três cadernos que escreve, Marx incursiona pela vida social tomando por referência o presente histórico, a sociedade civil burguesa, analisada a partir das relações e categorias materiais da produção social, ou seja desde as relações da economia.

4

MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Grijalbo, 1977. (Coleção Temas de Ciências Humanas V. 2), p. 14.

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De saída, dois planos peculiares ficam distinguidos: o da efetividade e o da idealidade. Marx estuda as relações materiais da produção, as relações e categorias econômicas como efetividades, e também como idealidades expressas pelos economistas-políticos clássicos. Da mesma forma, o pensamento especulativo hegeliano é tomado como expressão ideal, filosófica, da atividade e da sociabilidade humana nos marcos das relações burguesas de produção e reprodução da vida.

A fim de tratar inicialmente tais problemas densos, apresenta-se nas linhas seguintes a concepção marxiana dos complexos categoriais da Entfremdung (aqui traduzida por “estranhamento”) e da Entäusserung (aqui traduzida por “alienação”). A opção da tradução dos termos não é aleatória, pois tais categorias são centrais na formulação da posição teórico-política original de Marx, na nascente crítica à economia política, e na já decidida ruptura com o idealismo filosófico.

Nos Manuscritos, dentre os vários movimentos do pensamento de Marx, um dos fundamentais consiste em dissecar a própria realidade social, a fim de extrair racionalmente suas mediações e determinações constitutivas. Após retomar enunciados importantes de economistas-políticos clássicos, Marx defende a via científica que parte de

fatos, de situações e relações reais, a qual não “dá por suposto o que deve ser explicado”5

, remetendo, assim, as relações sociais de produção a origens fictícas, tampouco as naturalizando. A leitura atenta da obra de Marx demonstra que o autor não se situa no campo do empirismo, posto que persegue o tempo todo a explicitação dos processos constitutivos sincrônicos e diacrônicos do real. Antes, tal posição, adverte para as questões prementes e urgentes que desafiam e tensionam a vida social. No caso, Marx começa a analisar a economia burguesa a partir das relações presentes, prático-sensíveis, entre os produtores e os produtos, extraindo de tal análise a evidência de uma relação invertida onde a produção de um mundo objetivo, um mundo de riquezas (capital), se faz como “desprodução” de si do produtor (trabalho). Esta realidade guarda em si outra determinação mais profunda: a situação na qual produtor e produto estão separados e hostilmente contrapostos mostra-se no ato mesmo da produção em sua forma ativa, ou seja, ato de separação e contraposição igualmente hostil entre força vital de produção e produto.

E “o que é a vida senão atividade”6

?

5

Marx, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 80.

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Marx expressa tal situação pelas categorias Entäusserung e Enfremdung – estranhamento e alienação. A propriedade privada é a propriedade dos meios de produção, nos quais consta a potência ativa das forças vitais do trabalho, da classe trabalhadora, em criar um mundo de riquezas. Marx desloca as relações da propriedade privava da esfera fenomênica da relações entre indivíduos e coisas, remetendo-a para a esfera radical da produção e da sociabilidade contraditória da propriedade privada, demonstrando-a pela mediação da indústria capitalista.

A densa argumentação de Marx envolve muitas outras considerações. Um aspecto da originalidade destas suas elaborações está no que Lukács chamou de “elevação das categorias econômicas à esfera da filosofia”, ou seja, à esfera “da produção e reprodução

da vida humana”7

. Ilustrando: o trabalhador, reduzido a mercadoria, a meio de produção, é ativo pela negação de si, dentro e fora da indústria capitalista, ou seja, na efetividade das relações de produção, tem suas forças físicas e mentais dragadas e canalizadas para o capital, e reproduz sua vida material e espiritual miseravelmente. A anatomia da sociedade civil burguesa, suas formas, estruturas e suprerestruturas, seu metabolismo, do tópico ao profundo, dão-se pelas relações de produção assentadas na propriedade privada capitalista.

Considerando mais de perto a relação entre as bases materiais e a superestrutura nas relações de produção e reprodução sociais capitalistas, pode-se dizer que os economistas políticos burgueses reconheceram no trabalho a essência subjetiva da riqueza, um avanço em relação aos fisiocratas e os mercantilistas, os quais, consonantes aos tempos precedentes ao domínio da indústria capitalista, ou concebiam a riqueza como externa aos homens, ou sob uma forma particular limitada. Contudo, ao reconhecerem no trabalho estranhado e alienado, no interior das relações da propriedade privada burguesa, a essência da produção de valores e riquezas, os economistas burgueses afirmam o homem (trabalhador) negado, afirmam o não-ser como ser. Assim como os mercantilistas são comparados por Marx aos católicos adoradores de ídolos, os economistas clássicos são comparados aos protestantes que subjetivaram o deus externo, introduzindo o padre na alma do leigo, de modo que aquilo que antes se constituía como essência externa estranha e hostil, tornou-se agora inumanidade interior e ativa, “o homem como não-ser tomado como

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um ser”8. “Engels chamou por isso, com razão, Adam Smith de Lutero

político-econômico”9

.

Por este tipo de elaboração peculiar, o qual se adensa nos trabalhos posteriores de Marx, demarca-se já a originalidade da posição conforme a qual as ideias e representações científicas e filosóficas são tomadas como expressões ideais de relações de fato, historicamente determinadas. No caso mais específico da filosofia hegeliana, é original a posição crítica de Marx nos Manuscritos ora analisados. Hegel é introduzido quando a análise de Marx sobre as relações da propriedade privada na sociedade burguesa se faz num nível mais abstrato. Contudo, os conteúdos e disputas que estão em jogo são exatamente os mesmos de quando da crítica aos economistas clássicos: por um lado, os contrangimentos e forças indicativos do esgotamento das tarefas históricas das relações da propriedade privada, e por outro, as possibilidades objetivas e a necessidade da emancipação humana, da superação de tais relações, da elevação do humano a um outro patamar de desenvolvimento histórico, aquele denominado por Marx como próprio da “humanidade social”.

A crítica de Marx a Hegel constitui um momento da crítica geral dirigida contra o mundo da alienação e do estranhamento-de-si humano, seu momento ideal expresso pela filosofia especulativa. Hegel se põe na mesma posição da economia política clássica, ou seja, do ponto de vista da propriedade privada, do trabalho alienado e estranhado. “/.../ Ele vê somente o lado positivo do trabalho, não seu lado negativo. /.../ O trabalho que Hegel

unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual”10

. Assim, não percebe, não decifra, nem pode contestar a essência ativa da propriedade privada como alienação, estranhamento e perda-de-si efetivos, prático-sensíveis dos homens, da classe trabalhadora. Os processos de geração, alienação, objetivação e reapropriação do mundo humano são abstratos, se dão por entificação e resolução de natureza abstrata, espiritual. A filosofia hegeliana é expressão ideal do estranhamento-de-si do homem na sociedade civil burguesa. Para Hegel as “formas de consciência”, como a filosofia especulativa, e “as formas jurídicas”, como o Estado moderno, se “explicam” “a partir de si” ou como produtos do

“desenvolvimento geral do espírito humano11”. Marx critica que estas formas específicas,

8

Marx, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 100.

9

Ibid., p. 99.

10

Marx, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 124.

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ao contrário do que pensava Hegel, são determinadas pela sociedade civil, pela sociabilidade da propriedade privada. As contradições materiais da vida dos homens na sociedade civil são contradições prático-efetivas, que só podem ser compreendidas, enfrentadas e resolvidas no plano de sua materialidade constitutiva.

O problema da alienação e do estranhamento humanos, da miséria material e espiritual é um problema de natureza social. A propriedade privada e a alienação são relações sociais de dominação e exploração do trabalho e da vida humana, que só podem ser enfrentadas, revertidas, resolvidas, por força e poder material. Para Marx, pela “revolução política com alma social”, pela “emancipação” dos “trabalhadores”, em cuja “emancipação está encerrada a emancipação humana universal”, já que “a opressão

humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a produção /.../”12

. Pela crítica a Hegel, Marx defende que a emancipação humana, a recuperação e reapropriação das forças humanas alienadas e estranhadas é uma tarefa prático-efetiva do presente histórico.

A tais movimentos do pensamento original de Marx na ruptura com o idealismo filosófico hegeliano, se articula um outro, já presente no contexto das aquisições teóricas obtidas no gabinete de estudos de Kreuznach e na produção dos Manuscritos de Paris, evidente, contudo, com força decisiva na Ideologia Alemã: a concepção materialista da história. O anteriormente exposto indicou o descarte por Marx de quaisquer concepções metafísicas ou idealistas e o concomitante reconhecimento do protagonismo humano na produção de seu mundo próprio, social. A análise do modo de produção e reprodução da vida na sociedade civil burguesa faculta a formulação e a defesa de um enunciado materialista mais geral, decisivo como passaporte do pensamento para as viagens pela história do gênero humano, para a investigação dos seus processos genéticos e de seu ser e evolver sociais, suas categorias e legalidades, materialidade e movimentos: considera-se que “tal como os indivíduos exteriorizam a sua vida, assim são eles. O que eles são coincide com a sua produção, tanto com o que produzem, como também com o modo

como produzem”13

. A generalidade razoável do enunciado expõe sua validade para a análise de diferentes tempos e formações sociais particulares da história humana. A um determinado modo de produção (seja escravista, feudal, capitalista, ou outro),

12

Marx, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 89.

13

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correspondem determinadas formas de sociabilidade, relações políticas, representações ideológicas etc.

A partir da materialidade da história são formadas e demonstradas teoricamente as legalidades e tendências do desenvolvimento do ser social, com o que se iluminam e esclarecem também suas formas de ser presentes e seus possíveis vir-a-ser. A estrutura dos trabalhos de Marx da década de 1850 e 1860, dos Grundrisse a O Capital, constitui-se por essa articulação de estudos da sociedade civil burguesa em sua atualidade complexiva e seus processos histórico-genéticos de entificação, suas legalidades constitutivas.

Por tal concepção, Marx e Engels contestam as concepções idealistas da história, tanto a de Hegel como a dos neohegelianos. A história não é uma “coleção de fatos mortos”.

Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele parte de pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante. Seus pressupostos são os homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantástica, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinadas condições. Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas14.

Na crítica mais diretamente dirigida aos neohegelianos, às suas elaborações filosóficas e às suas posições idealistas, Marx e Engels acusam a base sócio-material sobre a qual se formam tais representações, o “solo alemão” e as particularidades de uma formação sócio-econômica retrógrada, assentada em fortes bases feudais, num contexto histórico-social em que o capitalismo e a vida burguesa ganham campo na Europa, despontando ao mesmo tempo suas contradições específicas. Tal análise pressupõe que “a produção de idéias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a

linguagem da vida real”15, ou seja, “a consciência não pode jamais ser outra coisa que o ser

consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real”16

.

Tais movimentos indicativos da ruptura de Marx com a filosofia idealista encontram nas interlocuções com as ideias materialistas L. Feuerbach (1804-1872) fonte fecunda e privilegiada. Dos fins de 1830 à primeira metade de 1840, Feuerbach publica um conjunto

14

Marx, K. Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 94-5.

15 Ibid., p. 93. 16 Ibid., p. 94.

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de textos dedicados à crítica do idealismo religioso e filosófico, voltando-se principalmente contra o sistema filosófico hegeliano, predominante nos debates alemães daquele período. Os textos de Feuerbach influenciam o debate alemão, trazendo a primeiro plano os problemas filosóficos acerca da natureza do ser, as relações entre matéria e ideia, ser e pensar, sujeito e predicado, sensibilidade e espiritualidade, objetividade e subjetividade. Tais ideias impactam o pensamento em formação de Marx, como o próprio o testemunha, e como se evidencia em textos como a Crítica da da Filosofia do Direito de Hegel, analisada nos parágrafos acima. Interessa neste passo final do presente trabalho, tecer algumas considerações gerais sobre a relação Marx-Feuerbach.

Pode-se afirmar uma influência decisiva de Feuerbach sobre Marx, evidente sobretudo na identificação filosófica do ser à materialidade, à imanência de conteúdos próprios, objetivos, bem como no reconhecimento do pensar como predicado do ser vivente, material, sensível, pensante, humano. Com que se redimensiona, nos termos de

Chasin (1999) “a tarefa do sujeito” “e o locus da verdade”17

. Contudo, não parecem sustentáveis as posições que sugerem um Marx feuerbachiano. A argumentação acima desenvolvida buscou indicar linhas principais das formulações filosóficas originais de Marx, as quais são impulsionadas por diversas motivações tanto teóricas como radicadas na materialidade social. As importantes ideias materialistas feuerbachianas fecundam e se desenvolvem em Marx em direções inéditas. De saída, os confrontos de Marx com Hegel atestam preocupações com problemáticas de natureza social, como aquelas da natureza e das relações entre sociedade civil e Estado político, tomadas tanto em suas expressões efetivas e pensadas. Não há em Feuerbach preocupações, menos ainda encaminhamentos deste tipo.

O caminho peculiar de Marx propende à investigação da objetividade social figurada na materialidade da sociedade civil burguesa, aos processos de objetivação do humano. Desde os Manuscritos de 1844, a concepção materialista de Marx toma a objetividade sensível, social, não somente sob a forma do objeto, mas também como atividade sensível, a qual compreende as formas subjetivas, a unidade da diversidade de ser e pensar. Feuerbach, por seu materialismo sensualista, por sua antropologia naturalista, permaneceu até o fim da vida obliterado para os problemas e categorias típicos da vida social. Por fim, a concepção materialista da história inaugurada por Marx o distancia imensamente das

17

CHASIN, J. Marx – Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. In: Teixeira, F. – Pensando

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formulações imediato-sensualistas de Feuerbach. Sua concepção materialista é a-histórica e a sua concepção histórica não é materialista, diz Marx.

Contudo, a força da identificação materialista do ser à objetividade, defendida por Feuerbach e redimensionada no interior das descobertas e teses originais de Marx, não pode ser subestimada. Neste sentido, é instrutivo observar que nos Manuscritos

Econômico-filosóficos, cujo cerne está na análise crítica das relações da propriedade

privada na sociedade civil burguesa, decifradas desde as relações do trabalho estranhado e alienado, desde a sociabilidade e atividade humanas particulares, históricas, ou seja, uma estrutura de pensamento absolutamente original em relação às formulações feuerbachianas, nesses Manuscritos, a certa altura, no interior da argumentação original à favor da emancipação humana, da reapropriação das forças sociais alienadas nas relações da propriedade privada burguesa, do capital, Marx, defendendo contra Hegel a efetividade dos processos de objetivação, alienação, e defendendo as vias sócio-materiais da emancipação humana, chama em seu auxílio, L. Feuerbach, destacando seu mérito na sustentação do

“positivo que descansa sobre si mesmo e positivamente se funda a si próprio”18

. A idéia feuerbachiana da positividade do ser, no novo lugar que assume na elaboração original de Marx, é decisiva na contraposição à especulação hegeliana e na sustentação da efetividade dos processos de alienação e emancipação humana.

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Referências

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