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Trabalhando a convivência a partir da transversalidade

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Academic year: 2021

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Trabalhando a convivência a partir da transversalidade

Cristina Satiê de Oliveira Pátaro1 Ricardo Fernandes Pátaro2

Já há alguns anos, desenvolvemos em sala de aula o trabalho com projetos em uma perspectiva transversal e interdisciplinar. Esta prática considera os conteúdos escolares como meios para se atingir, com os alunos e alunas, uma formação voltada para o exercício da cidadania e a construção de valores como democracia, justiça e solidariedade.

Neste sentido, o foco dos projetos é sempre uma temática que tenha como objetivo a formação ética, relacionada, por exemplo, aos direitos humanos, à afetividade, aos problemas sociais, à resolução de conflitos, etc. Tal temática deve se articular transversalmente aos conteúdos escolares, os quais são trabalhados de forma interdisciplinar e servem para auxiliar os alunos e alunas na compreensão dos temas e das questões abordadas. Assim, segundo esta perspectiva, os conteúdos escolares não são vistos como fim em si mesmos, mas como meios para se discutir a temática transversal que compõe o foco do projeto.

Este texto se propõe demonstrar de que forma a prática de projetos, articulada aos temas transversais, pode colaborar para o trabalho com a convivência escolar, à medida que modifica a lógica de trabalho com o conhecimento, pois este deixa de ser visto de maneira fragmentada e descontextualizada e, sem perder sua importância dentro do processo de

1 Professora da Universidade Federal de São Carlos (São Paulo). 2 Professor da Escola Comunitária de Campinas (São Paulo).

PROGRAMA ÉTICA E CIDADANIA construindo valores na escola e na sociedade

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aprendizagem, passa a abranger o cotidiano, os interesses dos alunos e alunas, e as necessidades das crianças e da sociedade.

Relataremos aqui as experiências provenientes de dois projetos, um deles trabalhado com crianças da 1a série do Ensino Fundamental e outro com crianças de 4a série do Ensino Fundamental.

(Con)vivência na Escola

O projeto aqui relatado foi desenvolvido junto a uma turma de 1a série do Ensino Fundamental da rede pública, composta por 37 crianças com diferentes características. Impossível descrever aqui as características de todas elas, mas, para o presente relato, é importante dizer que, no grupo, conviviam lado a lado, por exemplo, crianças já alfabetizadas, alunos moradores de periferia, um aluno com deficiência mental leve, filhos e filhas de famílias com alto poder aquisitivo, estudantes que freqüentavam a 1a série pela segunda vez, outros que não haviam freqüentado a educação infantil, entre muitos outros e outras.

Neste grupo, dentre as coisas que chamava atenção, desde o início do ano, estavam as freqüentes brigas, desentendimentos, conflitos de várias naturezas, que se manifestavam não só em agressões verbais e físicas, mas também em atitudes de deboche e exclusão para com algumas crianças da turma. Os conflitos ocorriam tanto fora quanto dentro de classe, e, várias vezes ao dia, era preciso interromper o trabalho para acalmar crianças que se desentendiam, agrediam-se ou simplesmente se recusavam a permanecer dentro de sala de aula. Com esta preocupação em mente – e, obviamente, diante da necessidade de alfabetizar e de ensinar todo o conteúdo previsto para a 1a série – foi desenvolvido com a turma, ao longo de um pouco mais de um mês, um projeto que recebeu o nome de “(Con)vivência na escola”.

Para a construção de um projeto, na perspectiva que aqui apresentamos, a temática a ser desenvolvida é inicialmente proposta e discutida para que, em seguida, as crianças levantem questões que representem suas dúvidas,

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curiosidades e interesses a respeito do tema a ser abordado. Assim, foi levada ao grupo a idéia de um estudo sobre a vivência e convivência na escola, e, após uma semana de trabalho – dedicada à compreensão do que significava de fato “viver e conviver” –, foram escolhidas as questões que seriam o ponto de partida do projeto.

Durante o mês que se seguiu, as questões foram abordadas uma a uma. Estas questões – que eram quatro, e versavam sobre: as brigas entre as crianças, o momento do lanche, os acidentes nos brinquedos e a importância das aulas – foram analisadas, trabalhadas e respondidas, através de pesquisas, dinâmicas, atividades dirigidas e diferentes produções das crianças, sendo que tudo o que era feito passava a compor o “livrão” do projeto, ou o chamado portfólio. Neste material, de autoria do grupo, estão todas atividades e os registros desenvolvidos ao longo do projeto.

Os conteúdos da 1a série foram trabalhados de forma articulada às questões levantadas pelos alunos e alunas, ajudando na compreensão das mesmas. Abaixo, apresentam-se alguns exemplos de atividades realizadas junto às crianças, que demonstram como esta articulação foi feita:

¾ Para o estudo sobre os acidentes nos brinquedos do parque, as crianças realizaram entrevistas com adultos e familiares. Para compreender e tabular as informações obtidas, foi trabalhado o sistema de numeração decimal (Matemática) e a equivalência algarismo-quantidade. A partir do estudo desta questão, estudamos também sobre noções de primeiros socorros e, ao final, as crianças puderam elaborar e refletir sobre algumas regras de convivência para os momentos de parque, no sentido, inclusive, de evitar maiores acidentes. ¾ Em História e Geografia foram estudados os conhecimentos referentes ao

espaço escolar, o que serviu de instrumento para que as crianças compreendessem melhor a escola e as relações que ali se estabelecem. Assim, a partir do estudo do próprio espaço escolar, puderam pensar sobre os sentimentos, os conflitos, as ações que permeiam as relações entre crianças, entre adultos e também entre crianças e adultos.

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¾ A partir de produção de textos coletivos, registros individuais, elaboração de tabelas e gráficos, as crianças puderam refletir sobre situações de conflitos cotidianos, que levavam a constantes brigas entre os alunos e alunas, bem como pensar em formas para resolvê-los – o que, ao final do trabalho, acabou resultando em cartazes com acordos e regras coletivos, além de um espaço onde as crianças pudessem escrever sobre os conflitos que ocorriam toda semana.

¾ O estudo do corpo humano e de seu funcionamento (Ciências) nos permitiu compreender a importância dos diferentes momentos na rotina escolar, em especial a hora do lanche e o uso do banheiro, o que conduziu para uma discussão acerca da necessidade de se construir e respeitar regras de convivência, para que os espaços e o tempo fossem melhor aproveitados.

Assim, todo o conteúdo que era aprendido vinha, de maneira interdisciplinar e contextualizada, auxiliar na compreensão da temática central (“Convivência na escola”) a qual, por sua vez, foi escolhida com o objetivo de levar as crianças a refletirem sobre as diferenças presentes no grupo, as relações de convivência estabelecidas e as formas de resolução de conflitos.

Tratando-se de uma primeira série, é preciso ressaltar que a leitura e escrita (alfabetização) eram trabalhadas intensamente, de forma individual e coletiva, em todos registros das atividades do projeto. Como já colocado anteriormente, tudo o que foi desenvolvido ficou registrado no “livrão” dos alunos e alunas. Os resultados deste trabalho, entretanto, foram muito além. Ao abordar questões relacionadas à convivência na escola, as crianças não só puderam aprender os conteúdos da série de forma significativa e diversificada, como também aprenderam muito com a própria diversidade presente na sala de aula. As crianças que eram excluídas pelos próprios colegas, devido a características específicas, começaram aos poucos a ser mais valorizadas e respeitadas, e, quem antes se recusava a permanecer em sala de aula, passou a conviver mais tranqüilamente com o grupo.

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Evidente que nem todos os desentendimentos e agressões cessaram, algumas atitudes conflituosas permaneceram até o final do ano; mas, ao término do trabalho, uma grande mudança na postura de algumas crianças pôde ser notada, e as atividades em classe já não eram mais tão freqüentemente interrompidas pelos desentendimentos entre as crianças. Também temos consciência de que este trabalho, por si só, não atinge plenamente os objetivos de uma formação voltada para a convivência democrática. Acreditamos, entretanto, que é este um primeiro e importante passo a ser dado!

Relacionamento entre homens e mulheres – O machismo e o feminismo Este projeto foi desenvolvido em uma escola da rede particular com uma turma de 4a série do Ensino Fundamental, composta por 33 crianças. Já desde o

início do ano dois fatos chamavam a atenção nesta turma: a grande quantidade de crianças que já entravam na puberdade e as características fortemente machistas presentes nas atitudes dos meninos. Era comum, por exemplo, que, ao exporem suas opiniões, as meninas fossem alvo de zombaria por parte dos meninos, que discordavam, reprimiam e desqualificavam suas idéias. Também ocorriam humilhações mútuas durante a prática de jogos esportivos, quando os meninos não deixavam as meninas jogarem futebol dizendo que não era coisa de meninas, ou quando meninos choravam e eram reprimidos por ser coisa de “frutinha”.

Diante da necessidade de levar aos alunos e alunas desta classe uma visão mais equilibrada das relações de convivência entre homens e mulheres, foi desenvolvido com a turma um projeto, ao longo de um bimestre, articulando diferentes conteúdos disciplinares a temáticas relativas à discriminação presente nas relações de gênero.

Para começar a pensar no assunto as crianças leram o livro “Faca sem ponta, galinha sem pé...”, de Ruth Rocha, história na qual dois irmãos, Joana e Pedro, brigam por serem de sexos diferentes e pensarem que existem coisas que só meninos ou meninas podem fazer. A partir desta leitura, foi escolhido o tema

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“Relacionamento entre homens e mulheres: o machismo e o feminismo” e as crianças levantaram suas dúvidas e questões, que foram: (1) Por que existem tantas brigas entre homens e mulheres? Como acontecem? (2) Por que a conversa sobre sexualidade é tão evitada por algumas pessoas? (3) Por que nos nossos jogos existe o machismo e o feminismo? Como começou? Como podemos combatê-los? (4) Por que o relacionamento homossexual é discriminado e o entre homens e mulheres não?

Durante os dois meses seguintes foram desenvolvidas atividades que tinham como objetivo responder às perguntas formuladas pelas crianças e também trabalhar com os conteúdos disciplinares da série em questão. Dentro da perspectiva com a qual trabalhamos, todas as atividades desenvolvidas ao longo do projeto têm por finalidade a formação ética e moral dos futuros cidadãos e cidadãs, trabalho que encontra auxílio nas diversas áreas do conhecimento escolar, como matemática, línguas, ciências, história, geografia, etc. A seguir estão exemplificados, de maneira resumida, algumas das atividades deste projeto: ¾ Investigando os motivos de tantas brigas entre homens e mulheres, (pergunta

1) lemos dois textos que narram o conflito vivido por um casal de namorados, Antonio e Maria. Em cada um dos textos os personagens expressam, em forma de diário, seus pontos de vista, argumentos e sentimentos sobre o conflito. A partir da leitura, organizou-se um debate em que a metade da turma defendia o ponto de vista de Maria e a outra metade o de Antonio. Neste momento, as crianças notaram que ambos personagens estavam certos e também errados, percebendo que a convivência entre as pessoas não depende apenas de um lado, mas dos dois. Também foram produzidas narrativas propondo formas amigáveis de resolução do conflito vivido por Maria e Antonio, além de tabelas e gráficos organizando as opiniões da classe sobre a briga entre Maria e Antonio relatada nas páginas do diário.

¾ Já para abordar o tabu em torno da sexualidade (pergunta 2), trabalhamos com o texto “Sexa”. Recheado de ironias e entrelinhas, o texto, de Luís Fernando

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Veríssimo, descreve a situação em que uma criança tenta conversar com o pai sobre por que não existe o feminino da palavra “sexo”. Aqui as crianças puderam refletir sobre como pode ser difícil para adultos conversarem com seus filhos e filhas sobre sexualidade. A partir da reflexão, foram produzidas charges a respeito deste tabu e da convivência entre pais e filhos. Também foram feitos estudos das mudanças que ocorrem no corpo das crianças ao entrarem na puberdade e escritas cartas em que alunos e alunas tentaram abordar o assunto da puberdade e sexualidade com seus pais, aproximando-se mais da convivência familiar. A surpresa das crianças aqui foi que elas também manifestaram dificuldades em abordar o assunto em suas cartas.

¾ Ao conversarmos sobre como o machismo começou em nossas vidas (pergunta 3) percebemos que a turma considerava a palavra “feminismo” como sendo o contrário de “machismo”. Partimos então em busca de dados históricos para definir os dois conceitos. O resultado deste trabalho de pesquisa foi a produção de textos informativos com o objetivo de traçar uma análise histórica dos comportamentos machistas e do início do movimento feminista. Este conhecimento possibilitou às crianças um maior envolvimento na luta contra os pequenos gestos de discriminação de gênero que ocorriam em seu cotidiano, melhorando a convivência entre meninos e meninas. Os meninos já não desconsideravam as opiniões das meninas e passaram a entender que o choro também é uma forma de manifestação masculina. Já as meninas passaram a exigir mais respeito dos meninos e também respeitá-los. ¾ No trabalho com a pergunta 4, sobre o preconceito existente para com os

relacionamentos homossexuais, as crianças puderam entrar em contato com fotos e obras de arte que retratavam o beijo como demonstração de carinho e amor. Ao refletirem sobre o beijo homossexual com ajuda de fotos, o incômodo, desconforto e estranhamento que as crianças manifestavam deu lugar ao respeito. Além disso, alunos e alunas puderam conscientizar-se de que o preconceito também é aprendido.

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Em resumo, cada uma das questões foi respondida de maneira a trabalhar, interdisciplinarmente, aspectos da convivência entre meninos/homens e meninas/mulheres com ajuda de diferentes conteúdos disciplinares. Algumas atividades foram exemplificadas acima, mas muitas outras foram desenvolvidas com o objetivo de auxiliar as crianças a refletirem sobre a discriminação presente nas relações de gênero e as formas de resolução de conflitos que podem ser utilizadas em nossa convivência.

Bibliografia

ARAÚJO, U. F. (2002). A construção de escolas democráticas: histórias sobre complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna.

_________.(2003). Temas transversais e a estratégia de projetos. São Paulo: Moderna.

MORENO, Montserrat et al. (1998). Temas transversais em Educação: Bases para formação integral. São Paulo: Ática.

Referências

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