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PALAVRAS-CHAVE: DIREITO; SOCIEDADE; DECISÃO JURÍDICA; TEORIA DOS SISTEMAS; MEDICAMENTOS.

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Academic year: 2021

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O PARADOXO DA DECISÃO E A FUNÇÃO DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: OBSERVAÇÕES A PARTIR DA PERSPECTIVA TEÓRICO-SISTÊMICA DE NIKLAS LUHMANN

THE PARADOX OF DECISION AND THE ROLE OF BRAZILIAN TRIBUNALS AT THE REALIZATION OF THE RIGHT TO HEALTH: OBSERVATIONS FROM NIKLAS LUHMANN’S SYSTEMS THEORY PERSPECTIVE

Rodolfo Soares Ribeiro Lopes

RESUMO: O objeto da pesquisa foi a concessão de medicamentos pelo Judiciário, visando a

observar como vem sendo produzido o sentido jurídico de saúde e quais os reflexos nos tribunais brasileiros. O corpus da pesquisa consistiu na íntegra de decisões jurídicas coletadas nos sites do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) e na 7ª Vara da Fazenda Pública no Fórum do Recife, que versassem sobre a questão da concessão de medicamentos, analisando-as a partir da teoria dos sistemas de sentido de Niklas Luhmann. O resultado, ainda que parcial, é que não existe um sentido único e padronizado do que seja a concessão de medicamentos, mas apenas uma dentre várias outras possibilidades, fato que, ao invés de inviabilizar a comunicação, permite que ela continue.

PALAVRAS-CHAVE: DIREITO; SOCIEDADE; DECISÃO JURÍDICA; TEORIA DOS

SISTEMAS; MEDICAMENTOS.

ABSTRACT: The object of research was the concession of medicines by the Judiciary,

aiming to observe how the juridical meaning of health, as well as its consequences, is being produced in the courts. In order to accomplish these objectives, we collected decisions at websites of brazilian judiciary organs – STF, STJ, TJ-PE – and in Recife’s Forum, that dealt with the matter of the concession of medicines, analyzing them considering Niklas

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Luhmann’s systems theory perspective. The result, even if yet partial, is that we don’t have a pattern related to concession of medicines, but only one between multiple possibilities, a fact that, instead of making communication impracticable, allows it to continue.

KEYWORDS: LAW; SOCIETY; JURIDICAL DECISION; SISTEMS THEORY;

MEDICINES.

INTRODUÇÃO

O direito à saúde é garantia fundamental para a existência do indivíduo, a ser implementada mediante políticas sociais e econômicas, constando expressamente na Constituição de 1988, mais especificamente do artigo 197 ao 200. Ademais, como todo direito fundamental, tanto sua implementação quanto sua eficácia envolvem diversos fatores. Com o objetivo de pesquisar de maneira mais aprofundada a concessão de medicamentos, promovemos pesquisa bibliográfica sobre o tema, bem como sobre o marco teórico: a teoria dos sistemas de sentido de Niklas Luhmann.

A fim de obter as decisões jurídicas que compõem o corpus da pesquisa, coletamos os dados nos sites do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE). No primeiro, a pesquisa do termo “medicamentos” trouxe 65 ocorrências; no segundo, 531; no último, por fim, 223 resultados. A vasta quantidade de material disponível demandou, por conseguinte, a seleção de algumas decisões jurídicas, a fim de tornar viável a análise. Ademais, algumas visitas à 7ª Vara da Fazenda Pública, no Fórum do Recife, foram realizadas, oportunidades nas quais pudemos obter outras 32 decisões jurídicas relativas à mesma temática com a ajuda do juiz de Direito José Viana Ulisses Filho e seus estagiários.

O critério de escolha adotado foi temporal, em que foram privilegiadas as decisões mais recentes, tanto de posicionamento contrário, quanto favorável à concessão de medicamentos, visto que o material é extremamente vasto. De modo que o estudo das decisões se tornasse viável, procedemos à seleção de 15 decisões no total (RE-AgRg nº 393175-0/RS; RE-AgRg nº 271286-8/RS; STA 91-1/AL; RMS nº 28338/MG; RMS nº 20335/PR; RMS nº 17903/MG; MS nº 0144946-1/PE; MS nº 0177024-1/PE; MS nº 145961-2/PE; PROCESSO nº 001.2008.008162-3/PE; PROCESSO n° 001.2007.043312-8/PE;

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PROCESSO n° 001.2006.039943-1/PE; PROCESSO n° 001.2008.031138-6/PE; PROCESSO nº 001.2008.044972-8/PE; PROCESSO nº 001.2007.071513-1/PE), incluindo decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) e da 7ª Vara da Fazenda Pública do Fórum de Recife, desde o ano 2000 até 2009.

Em relação às decisões, pesquisamos especificamente os votos dos respectivos ministros, desembargadores e juízes, a fim de observar a produção de sentido de saúde em decisões sobre a concessão de medicamentos. Assim, visamos a frisar que a construção da semântica contemporânea referente à concessão de medicamentos permanece sendo resultado da seleção de uma entre várias outras possibilidades que permanecem acessíveis (LUHMANN, 2002, p. 83).

O artigo está estruturado de forma que iniciamos abordando o direito à saúde como direito fundamental, bem como tratamos de sua eficácia. Em seguida, apresentamos o marco teórico que guiou nossas observações dos dados para, por fim, tratarmos da pesquisa empírica e procedermos à análise dos dados coletados, finalizando com as devidas conclusões.

1. ASPECTOS GERAIS CONCERNENTES AO DIREITO À SAÚDE

A proteção ao direito à saúde, no atual patamar, compõe-se não apenas de uma simples dimensão “curativa” – relacionada à eliminação dos mais variados males que afligiam os seres humanos de sociedades primitivas –, mas também por um aspecto “preventivo”, que passa a tomar corpo com o advento do welfare state (SCHWARTZ, 2001, p. 34). Mais tarde, a partir do período posterior à Segunda Guerra Mundial, surge, ainda, um aspecto de “promoção” do direito à saúde, consubstanciado no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que entende a saúde como o completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças (SCHWARTZ, 2001, p. 35).

Ademais, o direito à saúde, pelo fato de ser enquadrado na categoria dos direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais (DA SILVA, 2008, p. 286) e por relacionar-se intrinsecamente a outras garantias fundamentais, a exemplo do direito à vida (art. 5º, caput, da CF/88) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), não deve

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ser relegado ao arbítrio de posterior e incerta concretização, pelo simples motivo de ser norma programática. Ao contrário, o Estado deve implementar as prestações positivas necessárias, de cujo cumprimento depende a sua adequada efetivação (DA SILVA, 2008, p. 309, 465 e 831), visto que a Constituição de 1988 é caracteristicamente uma Constituição dirigente, vinculando, portanto, legislador, poder público, juízes e tribunais.

A fim de viabilizar a concretização do direito fundamental à saúde, a Constituição de 1988 prevê a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde e assistência pública (art. 23, II), assim como compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII). Cabe, ainda, ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, de acordo com o expresso em seu artigo 197.

Apesar da significativa importância representada pelo direito à saúde no cenário nacional, é patente a insuficiência de pesquisas substanciais a respeito do tema. Muitas delas limitam-se a reconhecer dogmaticamente a proteção constitucional conferida à saúde, sem quaisquer correlações com a realidade social do país, desprovidas, ademais, de análises teóricas sérias. A própria expressão “judicialização da política” ou “ativismo judicial” – largamente utilizada nos textos acadêmicos – carece de delimitações mais sólidas, o que termina por levar a análises simplistas e sem profundidade.

Em face das insuficiências encontradas na literatura jurídica, a teoria dos sistemas de sentido de Niklas Luhmann veio a calhar como importante aparato teórico para o empreendimento de uma pesquisa consistente sobre a o direito à saúde e a concessão de medicamentos pelo Judiciário, de maneira específica. Percebe-se, por conseguinte, a relevância do estudo e a inovação trazida pela análise de decisões jurídicas a partir do enfoque da semântica social, proporcionado pela teoria dos sistemas de sentido, uma vez que, atualmente, são bastante escassas as pesquisas desse tipo.

2. BREVES NOÇÕES ACERCA DA TEORIA DOS SISTEMAS DE SENTIDO DE NIKLAS LUHMANN

Nesse ínterim, uma vez expostas as noções gerais do direito à saúde, cumpre, então, realizar breve introdução do marco teórico adotado. De acordo com Niklas Luhmann, a

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p. 13), e não tem nenhum fim, apenas acontece ou não (LUHMANN, 2002, p. 161). Ademais, a comunicação é a síntese de três seleções, a saber: informação (Information), dá-la-a-conhecer (Mitteilung) e entendimento (Verstehen) (LUHMANN, 1997, p. 196, 210, 227, 228 e 229), este último, o pressuposto para aceitar ou rejeitar uma comunicação. Importante, ainda, observar que nenhuma dessas três seleções pode aparecer por si mesma, apenas juntas podem gerar comunicação, o que implica dizer que apenas quando uma diferença entre informação e dá-la-a-conhecer é compreendida – distinguindo-se, portanto, de uma mera percepção do comportamento do outro – ocorre a comunicação (LUHMANN, 2002, p. 157).

Conforme mencionado, o sistema compõe-se de comunicações. Somente se pode, contudo, relacionar as comunicações ao sistema mediante o sentido, uma vez que não há comunicação fora dos sistemas sociais, considerando que esta é a única operação genuinamente social e a menor unidade possível dos sistemas sociais (LUHMANN, 1997, 81 e 82). O meio do sentido como produto das operações que o empregam para viabilizar a reprodução dos sistemas, assim como a sua própria delimitação frente ao ambiente (LUHMANN, 1997, p. 44 e 45), tem importantes consequências para a relação entre sistema e entorno, já que os limites daquele frente a este são limites de sentido, autorreferencialmente produzidos. Assim, a forma do sentido é uma forma de dois lados (Zwei-Seiten-Form), na qual ambos os lados estão dados simultaneamente, mas um em modalidade atualizada e o outro em modalidade potenciada (LUHMANN, 1997, p. 142). Percebe-se, então, a mobilidade do sentido como algo que se constitui na oscilação do caso individual para a estrutura e desta para aquele por meio de confirmações e condensações, inexistindo, assim, pontos fixos de sentido (CLAM, 2006, p. 112).

Ademais, o sentido é reprodução da complexidade do sistema (LUHMANN, 1998, p. 79), esta última caracterizada pelo fato de sempre existirem mais possibilidades do que se pode realizar (LUHMANN, 1983, p. 45), representando, portanto, uma coação de seleção imposta ao sistema, o que implica, por sua vez, contingência (LUHMANN, 1998, p. 48). Contingência, em linhas gerais, carrega a ideia de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas, o que significa perigo de desapontamentos do sistema e necessidade de assumirem-se riscos (LUHMANN, 1983, p. 45 e 46).

O papel do sentido, no que se refere à garantia contra desapontamentos, é fundamental, uma vez que obriga a uma seleção de uma entre várias outras possibilidades (LUHMANN, 2002, p. 83), ou seja, o lado da forma não utilizado pelas operações atuais é

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também considerado na produção de sentido. Essa distinção entre atual e possível é uma forma que é novamente introduzida nela mesma, a fim de que o sistema torne-se apto a continuar operações atuais, apesar da crescente mudança de intenções, usos e impressões (LUHMANN, 2002, p. 83). O que aqui se busca descrever como “forma” tem seu oposto conhecido por “meio”, ambos representando uma distinção interna utilizada pelo sistema para observar as possibilidades de seleção de sentido (LUHMANN, 2002, p. 84). A distinção meio/forma refere-se a como os elementos do sistema estão acoplados, seja de maneira frouxa, no primeiro caso, ou firme, no segundo (LUHMANN, 1997, p. 196). Cumpre salientar que ambos se dão simultaneamente e pressupõem-se – sem meio não há forma e vice-versa –, implicando um processo temporal, que serve tanto para continuar a autopoiesis, quanto para formar e mudar as estruturas necessárias a ela (LUHMANN, 1997, p. 199).

O paradoxo das operações atuais enquanto operações possíveis, por conseguinte, é a condição de possibilidade da reprodução do sistema, uma vez que sua autopoiesis requer contínua atualização de diferentes possibilidades. (LUHMANN, 2002, p. 84). Portanto, não há um único sentido, fixo, estável, mas vários, fato que, ao contrário do que se possa pensar, não inviabiliza a comunicação, mas a torna possível. A própria operação que (re)produz o sentido é caracteristicamente histórica (LUHMANN, 1997, p. 47), viabilizando a indeterminação de formas futuras, o que garante a diferença entre atualidade e possibilidade, isto é, o sentido utilizado atualmente pode tornar-se possível, do mesmo modo que o possível pode atualizar-se (LUHMANN, 1997, p. 50).

É importante notar, em relação à situação do indivíduo, que a teoria dos sistemas de sentido entende o conceito de ser humano como um “obstáculo epistemológico” (LUHMANN, 1997, p. 24), impedindo uma análise científica adequada e promovendo expectativas impossíveis de serem satisfeitas. Por esse motivo, rejeita o apego humanístico de sociedade e considera que somente a comunicação, como uma síntese de três diferentes seleções (informação, dá-la-a-conhecer e (in)compreensão), é capaz de comunicar (LUHMANN, 2002, p. 156 e 157). Assim, pode-se inferir que a reprodução da comunicação mediante comunicação acontece na própria sociedade e que todas as outras condições (mentais, psíquicas, neurofisiológicas, etc.) são condições do entorno, o que não quer dizer – absolutamente – que a comunicação seja possível sem que haja consciência e cérebros (LUHMANN, 1997, p. 14). Como conseqüência, tanto os sistemas psíquicos quanto os comunicativos são estruturalmente determinados e realizam sua reprodução de acordo com as suas próprias operações (LUHMANN, 2002, p. 171).

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Nesse contexto, o direito é um dos subsistemas da sociedade que contém expectativas comportamentais generalizadas congruentemente (LUHMANN, 1983, p. 115). A fim de lidar com a complexidade e a contingência, o direito desenvolve uma estrutura, que, basicamente, é responsável por restringir o âmbito da possibilidade de opções, ou seja, delimita o optável (LUHMANN, 1983, p. 53 e 54). Em virtude de existirem mais possibilidades do que se pode selecionar, as estruturas são obrigadas a tratar do problema dos desapontamentos, a frustração de expectativas. Visto que a crescente complexidade e contingência poderiam conduzir a um nível insuportável de tensões, as estruturas dispõem tanto de expectativas cognitivas, caracterizada por uma disposição ao aprendizado, uma adaptação à realidade decepcionante, quanto de expectativas normativas, que não devem ser abandonadas, caso ocorra sua transgressão (LUHMANN, 1983, p. 55 e 56). Percebe-se, por conseguinte, que as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos. (LUHMANN, 1983, p. 57). Assim, o direito funciona conferindo uma espécie de alívio às expectativas, já que oferece opções congruentemente generalizadas, através de uma indiferença em relação às outras possibilidades, reduzindo consideravelmente, portanto, o risco da expectativa contrafática (LUHMANN, 1983, p. 115).

A própria complexidade que caracteriza o direito, por conseguinte, é responsável por limitar a possibilidade de escolha, reduzindo complexidade (LOSANO, 2002, p. 323), consideravelmente maior no entorno. O sistema, então, apesar de autopoiético e autorreferencialmente constituído, não é fechado, mantém contato com o entorno. A própria diferenciação do sistema aumenta, ao mesmo tempo, a dependência e a independência do entorno (CAMPILONGO, 2002, p. 86). O direito, especificamente, não pode separar-se do ambiente, como se fosse um sistema normativo auto-suficiente de maneira completa (ZAGREBELSKY, 2008, p. 138). Desse modo, os elementos que definem o interior do sistema têm a função de selecionar os elementos do entorno a serem processados interiormente por meio do código binário próprio ao sistema, isto é, atuam na redução de complexidade do ambiente e apenas servem no interior do sistema (LOSANO, 2002, p. 328; LUHMANN, 2004, p. 60).

Percebe-se, portanto, que ao sistema são constantemente oferecidas alternativas às quais ele reage por meio de uma decisão, que estabelece o que é direito e o que não é. A incapacidade de decidir inerente ao direito, já que não pode autolegitimar seus próprios valores e critérios utilizados nas situações em que ele decide, é superada pela decisão, que acaba com a falta de decisão (CLAM, 2006, p. 106). Por conseguinte, a decisão não é algo

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como uma alternativa que se pode escolher, mas sem alternativa não haveria decisão; esta é, assim, a inclusão do terceiro excluído. (FISCHER-LESCANO, 2005, p. 220). Importante salientar, entretanto, que a decisão não exclui as outras possibilidades de escolha, que permanecem acessíveis como horizonte de possibilidades (FISCHER-LESCANO, 2005, p. 234).

No que se refere às relações com o entorno e outros subsistemas, vale frisar, para os objetivos desse trabalho, uma em especial: as existentes entre o direito e a política e por meio de que mecanismos ela ocorre. Os sistemas são operativamente fechados, o que não significa, entretanto, solipsismo, mas apenas que as operações próprias se possibilitam recursivamente pelos resultados das próprias operações (LUHMANN, 1997, p. 94; LUHMANN, 1995, p. 440). A unidade do sistema, portanto, somente pode ser obtida através das próprias operações do sistema, fato que inviabiliza a comunicação com o entorno utilizando-se das próprias operações (LUHMANN, 1995, p. 440). O mecanismo adequado para o estabelecimento de relações com o entorno é , então, o acoplamento estrutural, que pressupõe que ambos os sistemas acoplados sejam capazes de guiar suas operações de acordo com suas próprias estruturas (LUHMANN, 1997, p. 100; LUHMANN, 1995, p. 436). Lançando mão dessa ferramenta de redução de complexidade, os sistemas conseguem alçar-se a condições altamente complexas do entorno sem necessidade de absorver ou reconstruir sua própria complexidade, o que significa redução de complexidade como condição necessária para construir complexidade (LUHMANN, 1997, p. 107; LUHMANN, 1995, p. 441). O código binário lícito/ilícito utilizado pelo direito, por exemplo, passa a ser relevante como segundo código no interior do sistema político, viabilizando sua autonomização (NEVES, 2006, p. 89). Os acoplamentos estruturais provocam “irritações” em ambos os sistemas, ou seja, são uma forma de percepção interior do sistema, que não encontra correlato no entorno e apenas podem ser percebidas ao nível da observação de segundo grau (LUHMANN, 1995, p. 443), necessitando, ainda, de uma preparação interna indispensável para reagir a elas. Os sistemas acoplados, por sua vez, assim como operam em diferentes velocidades, também reagem às “irritações” em tempos diversos; portanto, a sincronia existente entre sistema e ambiente só ocorre pontualmente, em um determinado momento, o que não implica sincronização (LUHMANN, 1995, p. 443). Assim, não importa o quanto possa crescer a complexidade, as influências do entorno podem apenas “irritar” o sistema jurídico, nunca participar diretamente no seu interior (LUHMANN, 1995, p. 445), uma vez que as “irritações” se dão internamente, de acordo com as estruturas próprias de cada sistema

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(CAMPILONGO, 2002, p. 95). O que ocorre é que a complexidade de um sistema é desordem do outro, surgindo uma necessidade recíproca de seleção ou de reestruturação da complexidade penetrante (NEVES, 2006, p. 92).

A forma encontrada para garantir o acoplamento estrutural entre direito e política foi a Constituição (LUHMANN, 1995, p. 470), responsável por restringir as influências recíprocas entre os dois sistemas e, ao mesmo tempo, por aumentar as possibilidades desse acoplamento, uma vez que o sistema pressupõe as particularidades do entorno no plano de suas próprias estruturas (NEVES, 2006, p. 97). Importante mencionar que o acoplamento estrutural apresenta-se de diferentes formas e tem variadas consequências, de acordo com o sistema que o acessa, de modo que se pode dizer que a Constituição fornece soluções políticas para o problema da autorreferência do sistema jurídico e soluções jurídicas para o problema da autorreferência do sistema político (LUHMANN, 1995, p. 478; NEVES, 2006, 98). Assim, a Constituição exclui as ingerências da política no direito não mediadas por mecanismos jurídicos e vice-versa, da mesma forma que impede um valor imediato de outros critérios de natureza valorativa e moral, por exemplo, dentro do sistema jurídico (NEVES, 2006, p. 98 e 99). No caso dos direitos fundamentais – e do direito à saúde, mais especificamente –, a Constituição os institucionaliza visando a evitar o “perigo da indiferenciação” e de uma “simplificação totalitária” (NEVES, 2006, p. 102 e 103), assegurando, então, uma ordem diferenciada de comunicação. Por fim, a ausência de transparência mútua entre os sistemas acoplados é condição necessária ao reforço das mútuas irritações do acoplamento estrutural; somente indiferença de ambos os sistemas em relação ao outro torna possível o crescimento de uma específica dependência recíproca (LUHMANN, 1995, p. 480; LUHMANN, 1997, p. 106).

3. SOBRE A INEFICIENTE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Conforme expresso anteriormente, o direito à saúde adquiriu proteção constitucional e, graças ao seu caráter programático, demanda posterior concretização na realidade social, sob o risco de desrespeito à exigência constitucional. O direito, enquanto estrutura, é mecanismo fundamental para lidar com as expectativas recíprocas existentes em sociedade, tendo por função a generalização de expectativas comportamentais normativas (LUHMANN, 1983, p. 170). Importante salientar que a estrutura do direito se modifica de acordo com a evolução da complexidade social, não se podendo considerar o direito como um fenômeno

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apartado da sociedade, fechado em si mesmo, mas em constante interação com esta e com os outros subsistemas. Desse modo, a complexidade e a contingência são responsáveis por orientar as pressões por mudança nas estruturas da sociedade e do direito (LUHMANN, 1983, p. 172).

Em virtude da presença de inúmeros interesses antagônicos na sociedade, a institucionalização dos direitos fundamentais – a exemplo da saúde – serve à viabilização do desenvolvimento de comunicações, operações fundamentais para a constituição dos sistemas (LUHMANN, 1997, p. 13) em diversos níveis diferenciados, a fim de evitar concepções totalitárias que não consideram a pluralidade e a contingência de expectativas, levando a uma indiferenciação inadequada à complexidade da sociedade contemporânea (NEVES, 2007, p. 75). Nesse aspecto, cabe considerar que a construção da semântica referente à concessão de medicamentos é resultado da seleção de uma entre várias outras possibilidades (LUHMANN, 2002, p. 83), restando possíveis outras possibilidades latentes que permanecem à disposição do sistema: não há um único sentido, fixo, estável, referente à concessão de medicamentos, mas vários, fato que, ao contrário do que se possa pensar, não inviabiliza a comunicação, mas a torna possível.

Grandes discussões foram suscitadas na jurisprudência a respeito da obrigatoriedade de União, Estados e Municípios fornecerem medicamentos gratuitamente para indivíduos sem condições materiais de os adquirirem, assim como das responsabilidades concorrentes dos entes públicos no desenvolvimento de tal obrigação. A principal problematização é se o Judiciário, ao posicionar-se a favor da concessão de medicamentos, estaria substituindo o Poder Público em atribuições típicas da Administração, invadindo sua esfera de discricionariedade no que diz respeito à alocação de recursos aos diversos âmbitos governamentais, de acordo com as necessidades consideradas prioritárias.

Conforme visto anteriormente, os subsistemas direito e política funcionam de acordo com critérios temporais diferentes (LUHMANN, 1995, p. 443), ocorrendo uma sincronia temporária apenas no momento do acoplamento estrutural entre os sistemas, que, posteriormente, processarão as informações de acordo com seus diferentes tempos. A desarmonia existente entre os critérios temporais de ambos parece ser um dos principais fatores responsáveis por ocasionar o descompasso entre a observação às normas jurídicas e à implementação de políticas públicas. O sistema jurídico, como se percebe, é consideravelmente mais lento do que o sistema político (LUHMANN, 1995, p. 427). Por sua vez, a legislação, situada na periferia do sistema jurídico, é mais constantemente exposta a

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“irritações” de vários outros subsistemas, devendo processá-las ou não em normas jurídicas de modo mais rápido (LUHMANN, 1995, p. 321 e 322), principalmente no contexto de uma sociedade extremamente complexa com interesses de inúmeros grupos divergentes em conflito, o que confere um caráter instável à lei (ZAGREBELSKY, 2008, p. 38). Assim, a periferia opera em um nível de complexidade mais elevado do que o centro – que opera em um grau significativamente acentuado de isolamento cognitivo –, e poucas das comunicações que ocorrem naquela chegam a este, que correria o risco de restar desconfigurado (LUHMANN, 1995, p. 322; CAMPILONGO, 2002, p. 84) caso não existisse um mecanismo seletivo de autocontrole.

Em linhas gerais, alegam os que são contra a interferência do Judiciário, alguns dos medicamentos seriam de alto custo, não teriam eficácia comprovada pelos agentes do SUS e não estariam previstos no rol de medicamentos que o SUS seria responsável por fornecer, desconsiderando, por conseguinte, a própria previsão orçamentária. Por outro lado, frente à omissão de União, Estados e Municípios, com base na previsão constitucional e em farta jurisprudência consolida nessa direção, o Poder Judiciário entende ser possível proceder à concessão de medicamentos e suprir a inércia do Poder Público.

Contudo, apesar da veiculação de uma suposta jurisprudência “consolidada”, “assentada” e “pacífica”, é preciso salientar que ainda há entendimentos de Ministros no sentido contrário, da não concessão de medicamentos. Portanto, uma das problematizações da análise por ora desenvolvida é mostrar que a expressão “concessão de medicamentos” não carrega um único significado, mas vários, construídos constantemente na prática desenvolvida pelos Ministros nos Tribunais Superiores. Para tanto, necessário analisar mais detalhadamente a posição ocupada pelos tribunais, assim como sua importância, no âmbito do sistema jurídico.

4. A FUNÇÃO DOS TRIBUNAIS NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: O PARADOXO DA DECISÃO JURÍDICA

A diferenciação dos sistemas também requer diferenciações internas, desenvolvidas ao mesmo tempo em que o sistema se desenvolve. No que se refere ao sistema jurídico, existem diversos outros subsistemas no seu interior, distinguindo-se entre periferia – mais exposta às zonas de contato com o entorno, sujeita a inúmeras e diversificadas “irritações” – e

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centro, no qual se localizam os tribunais, responsáveis por garantir a unidade do sistema jurídico. Ou seja, visam a estabilizar expectativas contrafáticas e, assim, lidar com o paradoxo da decisão (FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 28). Contudo, vale frisar que a distinção centro/periferia não se refere a qualquer diferença ou posição social, o que se busca é tornar possível que a legislação possa complementar as decisões, da mesma forma que as decisões possam tornar possível a legislação; o centro não pode operar sem a periferia e vice-versa (LUHMANN, 1995, p. 323; LUHMANN, 2004, p. 37). O importante é assumir a relação existente entre legislação e decisão jurídica de forma circular, como limitação mútua no âmbito de decisões.

Quando, por longo tempo, a teoria do direito encarava essa relação como assimétrica, visava a evitar assumir, sobretudo, que os tribunais “criam” direito, substituindo a referida afirmação pela de que, através da “descoberta” da lei, ocorria sua mera “aplicação” (LUHMANN, 1995, p. 306; LUHMANN, 2006, p. 50). Em outras palavras, buscava-se fugir da função paradoxal dos tribunais: decidir. A decisão, assim, é a diferença que constitui alternativa, ou seja, é a terceira opção excluída pelas duas alternativas dadas, a unidade da diferença; as decisões apenas podem ser feitas se a indecisão for dada (LUHMANN, 1995, p. 308; LUHMANN, 2002, p. 133; FISCHER-LESCANO, 2005, p. 220). Ademais, o paradoxo da decisão é como um observador, que não pode ser ele mesmo uma distinção com a ajuda da qual define alguma coisa, mas tem que excluir a si próprio como um ponto cego da observação, o que envolve tempo (LUHMANN, 1995, p. 308; LUHMANN, 2002, p. 133, 134, 135 e 136).

O recurso utilizado para viabilizar a unidade da diferença entre passado e futuro é, então, o presente, que é o ponto cego do tempo. Devido a essa possibilidade, o sistema pode utilizar o tempo como o momento para que a decisão ocorra, mudando o que não poderia ser mudado de outra forma no passado e o que ainda pode ser alterado no futuro (LUHMANN, 1995, p. 308 e 309). Por conseguinte, pode-se notar que a decisão não é determinada pelo passado, mas opera de acordo com suas próprias construções, que apenas são possíveis no presente (LUHMANN, 1995, p. 309), fato que leva as Cortes a se precaverem contra possíveis consequências trazidas pela decisão, mesmo que não sejam capazes de prevê-las totalmente, já que outras decisões posteriormente irão interferir nas anteriores. Essa incapacidade de lidar com o futuro, portanto, gera a ilusão de que as decisões devam ser determinadas pelo passado (LUHMANN, 1995, p. 309).

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Os tribunais, como se percebe, desempenham importante papel na desparadoxização do paradoxo, já que, de acordo com o princípio da proibição do non liquet, são forçados a decidir os casos a eles submetidos – mesmo quando não podem decidir – e, assim, obrigatoriamente lidam com a questão do paradoxo da unidade da multiplicidade da decisão jurídica, transformando indeterminação em determinação através de distinções (LUHMANN, 1995, p. 310, 313, 314, 317; FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 61). A importância da distinção centro/periferia, já esboçada, reside no fato de que os tribunais ficam responsáveis por garantir a consistência do sistema, sua unidade, enquanto a periferia fica exposta a variadas pressões advindas do entorno, filtrando as que podem ser processadas de acordo com o código jurídico e, assim, apreciadas pelos tribunais (FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 61).

5. ANÁLISE DAS DECISÕES JURÍDICAS FRENTE À TEORIA DOS SISTEMAS

Proceder-se-á, então, à análise de algumas das decisões coletadas frente ao marco teórico já esboçado anteriormente, uma vez que demasiada extensa seria a análise de cada uma delas em detalhes. Entretanto, antes de analisarmos as decisões, cumpre-nos fazer algumas observações a respeito de quatro gráficos por nós produzidos, que trazem dados mais detalhados a respeito de cada uma delas, de acordo com o tribunal de origem, e um gráfico referente à porcentagem das decisões que foram favoráveis ou contrárias à concessão de medicamentos.

O primeiro deles refere-se às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), respectivamente dos anos 2007, 2000 e 2006:

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STF QUANTO À CONCESSÃO ARGUMENTOS UTILIZADOS FUNDAMENTAÇÃO LEGAL JURISPRUDÊNCIA CITADA

STA 91-1 Contrária parcialmente

Lesão à ordem pública em termos de ordem administrativa;

medicamentos cujo fornecimento não está previsto pelo SUS.

art. 4º da Lei nº 8437/92; art 1º da Lei nº 9494/97; Lei nº 8080/90; Portaria nº 1318/MS; art. 23, II, art. 196, art. 198, I da CF/88 Rcl 475/DF; Rcl 497-AgR/RS; SS 2187-AgR/SC; SS 2465/SC RE-AgRg nº 271286-8/RS Favorável Obrigação de Estado e Município fornecerem medicamentos a pacientes hipossuficientes; necessária efetivação do dever constitucional; respeito à dignidade humana; indisponibilidade e essencialidade do direito subjetivo à saúde; impossibilidade de transformar a norma programática em promessa inconsequente; obrigação do Poder Público em promover políticas públicas.

art. 2º, art. 167, I, art. 196, art. 198, parágrafo único RE nº 271286/RS; Ag nº 232469/RS; Ag 236644/RS; AgRg 238328/RS; RE 273042; RE 236200/RS; RE 247900/RS; RE 264269/RS; RE 267612/RS; RE 242859/RS; RE 232335/RS; RE 273834/RS RE-AgRg nº 393175-0/RS Favorável Indissociabilidade do direito à saúde e do direito à vida; dever do Poder Público garantir o acesso à assistência farmacêutica e médico-hospitalar aos cidadãos carentes; interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. art. 196 da CF/88; art. 557, §2º do CPC RTJ nº 171/326-327; AI nº 462563/RS; AI nº 486816-AgR/RJ; AI nº 532687/MG; AI nº 537237/PE; RE nº 195192/RS; RE nº 198263/RS; RE nº 237367/RS; RE nº 242859/RS; RE nº 246242/RS; RE nº 279519/RS; RE nº 297276/SP; RE nº 342413/PR; RE nº 353336/RS; AI nº 570455/RS; RTJ 175/1212-1213; RE nº 257109-AgR/RS; RE nº 271286-AgR/RS; RE nº 273042-AgR/RS; AI nº 604949-AgR/RS

Nota-se, nas três decisões selecionadas, o reflexo da predominância do posicionamento referente à concessão de medicamentos – largamente expresso no corpus de decisões pesquisadas neste tribunal –, sustentado com base em vasta jurisprudência a esse respeito, como se pode observar na última coluna do gráfico. Ademais, a argumentação empregada nas decisões gira em torno, basicamente, das responsabilidades do Estado em promover a efetivação da norma constitucional que trata do direito à saúde através de políticas sócio-econômicas. Há, portanto, um claro realce da omissão do Poder Público frente às necessidades dos cidadãos.

Seguimos, então, com a análise do segundo gráfico, referente às decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), dos anos 2009, 2007 e 2004:

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Tabela 2: Análise qualitativa das decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) STJ QUANTO À CONCESSÃO ARGUMENTOS UTILIZADOS FUNDAMENTAÇÃO LEGAL JURISPRUDÊNCIA CITADA RMS nº 28338/MG Favorável parcialmente

Direito a medicamentos aos sem disponibilidade financeira para custear o tratamento; o direito assim reconhecido não possibilita ao paciente escolher o medicamento que mais de adeque ao seu tratamento.

art. 5º, art. 6º, art. 23, II, art. 194, parágrafo único, I, art. 196, art. 198 da CF/88

REsp nº 430526/SP

RMS nº

20335/PR Favorável

Direito à saúde como dever do Estado; obrigatoridade do Estado em promover políticas sócio-econômicas necessárias à implementação do direito à saúde; normas burocráticas não podem ser eguidas como óbice à obtenção de tratamento adequado e digno por parte do cidadão carente Lei nº 8080/90; Lei nº 8142/90 RMS nº 17449/MG; RMS nº 17425/MG; RMS nº 13452/MG; RMS nº 17903/MG RMS nº 17903/MG Favorável Obrigação do Estado em fornecer gratuitamente medicamentos aos que necessitam; hierarquia entre normas de direito constitucional e infraconstitucional; as normas burocráticas não podem ser erguidas como óbice à obtenção de tratamento adequado e digno por parte do cidadão carente

Portaria/MS nº 863/02; art. 196 da CF/88

RMS nº 11129/PR

Como se percebe, também no caso do STJ há um entendimento prevalecente no sentido da concessão de medicamentos, expresso nas três decisões selecionadas. Importante salientar, todavia, recente decisão (RMS nº 28338/MG) que destaca a impossibilidade de o paciente escolher o medicamento que mais de adeque ao seu tratamento, apesar de reconhecer a obrigação estatal em fornecê-lo (terceira coluna do gráfico acima), apontando para um novo aspecto até então não considerado em decisões desse tipo. Desse modo, pode-se notar o que foi sustentado anteriormente: a decisão não exclui as outras possibilidades de escolha, que permanecem acessíveis como horizonte de possibilidades (FISCHER-LESCANO, 2005, p. 34), isto é, o paradoxo das operações atuais enquanto operações possíveis atua como condição de possibilidade da reprodução do sistema, uma vez que sua autopoiese requer contínua atualização de diferentes possibilidades (LUHMANN, 2002, p. 84). Justamente por isso não há um único sentido, fixo, estável, mas vários, fato que, ao invés de inviabilizar a comunicação, torna-a possível. Em outras palavras, o sentido utilizado atualmente pode

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tornar-se possível, do mesmo modo que o possível pode atualizar-se (LUHMANN, 1997, p. 50).

O outro gráfico diz respeito às decisões do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE), dos anos 2008, 2009 e 2009:

Tabela 3: Análise qualitativa das decisões do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) TJ-PE QUANTO À CONCESSÃO ARGUMENTOS UTILIZADOS FUNDAMENTAÇÃO LEGAL JURISPRUDÊNCIA CITADA MS nº 0144946-1/PE Favorável Comprovada a necessidade do medicamento para a garantia da vida do paciente, deverá ele ser fornecido, entendendo-se a vida no seu sentido mais amplo

art. 23, II, art. 196 da CF/88; art. 159 da Constituição Estadual; Súmula 18 do TJ-PE REsp nº 212346; RMS nº17425/MG; MS nº 83478-4/PE; MS nº 111651-6/PE; MS nº 139557-1/PE; MS nº 79574-2/PE MS nº 0177024-1/PE Favorável Indispensabilidade do fornecimento da medicação à efetividade dos direitos à saúde, à vida e à dignidade humana; a prestação jurisdicional não é invasiva da seara administrativa, eis que a ordem apenas determina o cumprimento de obrigação já imposta pela CF/88

art. 5º, caput, art. 196, art. 198,§1º, da CF/88; art. 5º, parágrafo único, I, da Constituição Estadual; Lei nº 8080/90; Súmula 18 do TJ-PE; Súmula 512 do STF REsp nº 656296/RS; REsp nº 507202/PR; ROMS nº 11129/PR; REsp nº 212346/RJ; REsp nº 194678; ROMS nº 13452/MG; REsp nº 828140/MT; REsp nº 863240/RJ; RE-AgRg nº 393175-0/RS MS nº 145961-2/PE Favorável

Direito do cidadão, privado ao acesso à medicamento de alto custo, de receber do Estado a prestação de assistência à saúde; a manutenção do bem maior, a vida, depende do medicamento

art. 5º, caput, art. 166, art. 198, II, art. 196 da CF/88; Lei nº 8080/90 MS nº 84901-2/PE; MS nº 158576-8/PE; MS nº 158579-9/PE; Ag nº 238328/RS; Resp nº 249026/PR; ROMS nº 11183/PR; AgRg nº 271286/RS

As decisões do TJ-PE, conforme se observa, manifestam uma tendência à concessão, ancoradas em argumentação (terceira coluna do gráfico acima) que alude à conexão do direito à saúde ao direito à vida e à dignidade humana e em extensa jurisprudência dos tribunais superiores, a exemplo do STF e do STJ. A Súmula 18 do TJ-PE já traz esse posicionamento no sentido da concessão de medicamentos, pelo qual boa parte das decisões se pauta.

Por fim, proceder-se-á à análise do gráfico quatro, que trata das decisões de primeira instância conseguidas com o auxílio do juiz José Viana Ulisses Filho, da 7ª Vara da Fazenda Pública do Estado de Pernambuco:

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Tabela 4: análise qualitativa das decisões da 7ª Vara da Fazenda Pública do Estado de Pernambuco 7ª VARA FAZENDA PÚBLICA/PE QUANTO À CONCESSÃO ARGUMENTOS UTILIZADOS FUNDAMENTAÇÃO LEGAL JURISPRUDÊNCIA CITADA PROCESSO n° 001.2006.0399 43-1/PE Favorável

O Poder Judiciário deve manisfestar-se para evitar lesões aos que necessitam dos medicamentos, garantindo aos cidadãos o direito à saúde e a um tratamento clínico eficaz; é obrigação solidária dos entes federativos assegurar o acesso a medicamentos aos hipossuficientes; os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos inalienáveis; atuação excepcional do Judiciário quando os órgãos estatais descumprirem seus encargos político-jurídicos. Lei nº 8080/90; art. 475 do CPC REsp nº 828140/MT; AgRg no Ag nº 893108/PE; RMS nº 20335/PR PROCESSO n° 001.2007.0433 12-8/PE Favorável

Idem Idem MS 84901-2/PE; REsp nº 828140/MT; AgRg no Ag nº 893108/PE; RMS nº 20335/PR PROCESSO nº 001.2007.0715 13-1/PE Favorável

Idem Idem REsp nº 828140/MT; AgRg no Ag nº 893108/PE; RMS nº 20335/PR PROCESSO nº 001.2008.0081 62-3/PE Favorável

Idem Idem MS 84901-2/PE; REsp nº 828140/MT; AgRg no Ag nº 893108/PE; RMS nº 20335/PR PROCESSO n° 001.2008.0311 38-6/PE Favorável

Idem art. 5º, art. 196, art. 200 da CF/88; Lei nº 8080/90; art. 475 do CPC REsp nº 828140/MT; AgRg no Ag nº 893108/PE; RMS nº 20335/PR PROCESSO nº 001.2008.0449 72-8/PE Favorável parcialmente Insuficiência na prestação de serviços de saúde pela Administração Pública; obrigação do Poder Público de garantir, aos cidadãos, o acesso aos serviços de saúde; obrigação do governo fazer provisão dos serviços necessários ao atendimento das necessidades da população art. 196 da CF/88; art. 7º, II, da Lei nº 8080/90; art. 21, parágrafo único, do CPC REsp 325337 / RJ

A análise das decisões tratadas no gráfico acima mostra que é dado destaque à função do Judiciário na concretização do direito à saúde, frente à omissão dos outros Poderes. Conforme visto anteriormente, os tribunais desempenham função essencial na desparadoxização do paradoxo do direito, que toma corpo na decisão jurídica, somente tornada possível caso a indecisão seja dada, garantindo a unidade da diferença (LUHMANN,

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1995, p. 308; LUHMANN, 2002, p. 133; FISCHER-LESCANO, 2005, p. 220). A posição central ocupada pelos tribunais no sistema jurídico serve à garantia da sua unidade, uma vez que – e ao contrário das zonas periféricas mais expostas às diversas “irritações” do entorno – viabiliza a filtração das questões a eles submetidas através do código próprio ao sistema, transformando indeterminação em determinação através de distinções (LUHMANN, 1995, p. 310, 313, 314, 317; FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 61). São forçados, portanto, a decidir e, obrigatoriamente, lidar com a questão do paradoxo da unidade da multiplicidade da decisão jurídica.

O último gráfico refere-se à porcentagem das decisões que foram favoráveis e contrárias à concessão de medicamentos, dentre as selecionadas para compor o conjunto de decisões da pesquisa. Importante observar que a classificação “não favoráveis” engloba as decisões que não concederam totalmente os pedidos feitos, enquadrando tanto as decisões parcialmente favoráveis quanto às contrárias em parte:

Tabela 5: porcentagem das decisões favoráveis e contrárias à concessão de medicamentos DECISÕES STF STJ TJ-PE 7ª VARA FAZENDA PÚBLICA TOTAL FAVORÁVEIS 66,60% 66,60% 100% 83% 80% NÃO FAVORÁVEIS 33,30% 33,30% 0% 16,60% 20%

O resultado de toda a análise é que a decisão, uma vez que, para viabilizar a unidade da diferença entre passado e futuro, ocorre no presente (LUHMANN, 1995, p. 308 e 309), ou seja, não pode ser determinada pelo passado. Ao invés disso, opera com base em suas próprias construções, apenas possíveis no presente (LUHMANN, 1995, p. 309), o que leva os juízes a se precaverem na medida do possível contra as consequências trazidas pela decisão, mesmo que não possam prevê-las em sua totalidade, já que outras decisões futuras modificarão as anteriores. A incapacidade de lidar com o futuro, portanto, gera a ilusão de que as decisões devam ser determinadas pelo passado (LUHMANN, 1995, p. 309), “solidamente” construídas sobre precedentes “firmados” e “assentados” pela prática diária dos tribunais.

Em sentido contrário, contudo, pode-se afirmar que não há um único sentido, fixo, estável, referente à concessão de medicamentos, mas vários, fato que, ao contrário do que se

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possa pensar, não inviabiliza a comunicação, mas a torna possível. É a própria comunicação, enquanto operação constitutiva da sociedade, que viabiliza a pluralidade de acepções acerca da concessão de medicamentos, e não os indivíduos que fazem uso da comunicação.

6. CONCLUSÕES

A conclusão a que se pode chegar, após a análise do material com base na teoria dos sistemas de sentido de Niklas Luhmann, é que não existe um entendimento padronizado e único do que seja a concessão de medicamentos e da sua admissibilidade frente ao caso concreto. Ocorre, de maneira inversa, uma diversidade de usos pelos ministros, desembargadores e juízes da mesma expressão, que, apesar de ser composta pelas mesmas palavras, pode ser utilizada em contextos variados (LUHMANN, 1997, p. 47 e 48). Por conseguinte, o meio do sentido como produto das operações que o empregam para viabilizar a reprodução dos sistemas, assim como a sua própria delimitação frente ao ambiente (LUHMANN, 1997, p. 44 e 45), tem importantes consequências para a relação entre sistema e entorno, já que os limites daquele frente a este são limites de sentido, autorreferencialmente produzidos. Ademais, a historicidade característica da construção de sentido pelo sistema mostra que determinada semântica social – como a da concessão de medicamentos – só é possível como a seleção de uma possibilidade, em certo momento, dentre outras possíveis de se realizar (LUHMANN, 1983, p. 45; LUHMANN, 2002, p. 83). Isto é, o lado da forma não utilizado pelas operações atuais é também considerado na produção de sentido.

Nota-se, então, que essa atualização de possibilidades – uma seleção atual como possível e vice-versa – serve tanto para continuar a autopoiese, quanto para formar e mudar as estruturas necessárias a ela (LUHMANN, 1997, p. 199), demonstrando, mais uma vez, o fato de que o sentido contemporâneo conferido à concessão de medicamentos foi construído pela prática nos tribunais e é apenas uma dentre várias outras opções possíveis de realizar. O direito não está presente na lei nem na fundamentação dos tribunais, da mesma forma que as decisões jurídicas não são uma criação do nada, por meio de uma decisão autoritária, mas acontecimentos (Ereignisse), que separam em um antes e um depois o processo de significação, sem poder determinar o futuro deste mesmo processo através da absorção da incerteza (FISCHER-LESCANO, 2005a, p. 235).

A decisão jurídica, por fim, não pode ser determinada pelo passado, como se pode imaginar, mas opera de acordo com suas próprias construções, que apenas são possíveis no

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presente (LUHMANN, 1995, p. 309) e envolvem uma multiplicidade de usos de expressões como “concessão de medicamentos”. Esses usos variados, ao contrário do que se possa supor, não inviabilizam a comunicação, mas permitem que ela continue, tendo em vista o aspecto temporal dos sistemas, o que garante a estabilidade em forma dinâmica ao substituir antigos elementos por outros novos, tornando viável, então, a constante atualização de possibilidades (LUHMANN, 1997, p. 52). Esse processo verifica-se de forma mais evidente a partir da produção de sentido do direito através da decisão jurídica.

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