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REPENSANDO A CRITICA DE MARX AO CAPITALISMO

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Academic year: 2021

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REPENSANDO A CRITICA DE MARX AO CAPITALISMO

Moishe Postone INTRODUÇÃO

Neste trabalho, desenvolverei uma reinterpretação fundamental da teoria crítica madura de Marx a fim de reconceituar a natureza da sociedade capitalista. A análise de Marx das relações sociais e das formas de dominação que caracterizam a sociedade capitalista pode ser mais

proveitosamente reinterpretada pelo repensar das categorias centrais de sua crítica à economia política. (1) Com este objetivo, procurarei desenvolver conceitos que preencham dois critérios: primeiro, que os mesmos devem apreender o caráter essencial e o desenvolvimento histórico da sociedade moderna; e, segundo, serem capazes de superar as familiares dicotomias teóricas entre estrutura e funcionamento, significado da vida e vida material. Com base nesta abordagem, tentarei reformular a relação entre a teoria marxiana e os atuais discursos da teoria política e social, de uma forma tal que tenha significação teórica, hoje, e forneça uma crítica básica às teorias marxistas tradicionais e ao que foi denominado de "socialismo realmente existente". Ao fazer isto, espero lançar os fundamentos de uma análise crítica da formação social capitalista, diferente e mais poderosa; uma crítica mais adequada ao final do Século XX.

Tentarei desenvolver tal compreensão do capitalismo com base na análise de Marx, distinguindo conceitualmente o núcleo fundamental do capitalismo, na atualidade, das formas que assumia no Século XIX. Fazer isso significa questionar muitos dos pressupostos básicos das interpretações marxistas tradicionais. Por exemplo, não analiso o capitalismo, primordialmente, em termos da propriedade privada dos meios de produção ou em termos do mercado. Ao contrário, como se tornará claro mais adiante, conceituo o capitalismo em termos de uma forma historicamente específica de interdependência, com um caráter impessoal e aparentemente objetivo. Esta forma de interdependência concretiza-se através de formas das relações sociais historicamente

específicas, que são constituídas por formas determinadas de prática social e, além disso, tornam-se quase independentes das pessoas engajadas nessas práticas. O resultado é uma forma de dominação social nova e crescentemente abstrata - uma forma que subordina as pessoas a imperativos estruturais impessoais e a restrições que não podem ser adequadamente captadas em termos de dominação concreta (e. g., dominação pessoal ou de grupo) e que gera uma dinâmica histórica progressiva. Ao reconceituar as relações e as formas de dominação que caracterizam o capitalismo, tentarei fornecer bases para uma teoria capaz de analisar as

características sistêmicas da sociedade moderna, tais como, seu caráter historicamente

dinâmico, seus processos de racionalização, sua forma particular de "crescimento" econômico e seu modo de produzir dominante.

Esta reinterpretação trata a análise do capitalismo desenvolvida por Marx menos como uma teoria das formas de exploração e de dominação no interior da sociedade moderna, e mais como uma teoria social crítica da própria natureza da modernidade. Modernidade não é um estágio evolucionário na direção da qual evoluem todas as sociedades, mas uma forma específica de vida social que se originou na Europa Ocidental e tem se desenvolvido como um sistema global complexo. (2) Embora a modernidade tenha tomado diferentes formas em diferentes países e regiões, minha preocupação não é examinar estas diferenças, mas explorar, teoricamente, a natureza da modernidade per se. Dentro do quadro de uma abordagem não-evolucionária, tal investigação deve explicitar e explicar a feição característica da modernidade, naquilo que se relaciona a formas sociais historicamente específicas. Meu argumento é que a análise de Marx acerca das formas sociais consideradas básicas para a estruturação do capitalismo - a

mercadoria e o capital - fornece um excelente ponto de partida para a tentativa de aprofundar socialmente o entendimento das características sistêmicas da modernidade e sinaliza no sentido de que a sociedade moderna pode ser fundamentalmente transformada. Além disso, tal

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abordagem é capaz de sistematizar a elucidação daquelas características da sociedade moderna, que no quadro das teorias de progresso linear ou de desenvolvimento histórico harmônico podem parecer anômalas. Essas teorias são incapazes de explicar a visível e

crescente produção da pobreza em meio à abundância e o grau em que importantes aspectos da vida moderna têm sido modelados e subordinados aos imperativos de forças sociais abstratas e impessoais, mesmo que se tenha ampliado substancialmente a possibilidade de controle coletivo sobre as circunstâncias da vida social.

Minha leitura da teoria crítica de Marx concentra-se em sua concepção da centralidade do

trabalho para a vida social, a qual é geralmente considerada como estando situada no núcleo de sua teoria. Argumento que o significado da categoria trabalho em suas obras maduras é diferente do que tradicionalmente tem sido apresentado: ela é historicamente específica, no lugar de

transhistórica. Na crítica madura de Marx, a noção de que o trabalho constitui o mundo social, e é a fonte de toda a riqueza, não se refere à sociedade em geral, mas especificamente à sociedade moderna ou capitalista, Além do mais, e isto é crucial, a análise de Marx não se refere ao

trabalho como ele é concebido em geral e transhistoricamente - uma atividade social direcionada para um objetivo que estabelece a intermediação entre o homem e a natureza, criando produtos específicos a fim de satisfazer determinadas necessidades humanas - mas atribui-lhe um papel peculiar que desempenha na sociedade capitalista. Como aprofundarei mais tarde, o caráter historicamente específico deste trabalho está intrinsecamente relacionado à forma de

interdependência social, característica da sociedade capitalista. Ele constitui uma forma de mediação social, historicamente específica e quase objetiva que, no quadro analítico de Marx, serve como o fundamento social decisivo das características básicas da modernidade.

É esta reconsideração do significado do conceito de trabalho em Marx que fornece a base para minha reinterpretação de sua análise do capitalismo. Ela introduz considerações de

temporalidade e situa a crítica à produção no centro da análise de Marx, e lança o fundamento para uma análise da moderna sociedade capitalista como uma sociedade dinamicamente

regulada, estruturada por uma forma historicamente específica de mediação social que, embora socialmente constituída, possui um caráter abstrato, impessoal e quase objetivo. Esta forma de mediação é estruturada por uma forma de prática social historicamente determinada (o trabalho no capitalismo) e por estruturas, no lugar das ações das pessoas, de suas visões do mundo e de suas competências e talentos. Tal abordagem reformula a questão da relação entre cultura e vida material, transformando-a em uma relação entre uma forma de mediação social historicamente específica e formas de "objetividade" e de "subjetividade" sociais. Como uma teoria da mediação social, é um esforço para superar a clássica dicotomia teórica entre sujeito e objeto na medida em que explica esta dicotomia historicamente.

Assim, em termos gerais, estou sugerindo que a teoria marxiana deveria ser entendida não como uma teoria universalmente aplicável, mas como uma teoria crítica específica da sociedade

capitalista. Ela analisa a especificidade histórica do capitalismo e a possibilidade de sua superação por meio de categorias que captam suas formas específicas de trabalho, riqueza e tempo. (3) Além disso, a teoria marxiana, de acordo com esta abordagem, é auto-reflexiva e, por conseguinte, é, ela mesma, historicamente específica: sua análise da relação entre teoria e sociedade é tal que pode, de uma maneira epistemologicamente consistente, localizar-se historicamente através das mesmas categorias com as quais analisa seu contexto social. Esta interpretação relativa à teoria crítica madura de Marx tem importantes implicações que tentarei desvendar no decorrer desta obra. Para tanto, iniciarei fazendo a distinção entre duas importantes vertentes da análise crítica, fundamentalmente diferente: uma que considera a crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho, e a outra vertente, para qual deve ser feita a crítica ao trabalho no capitalismo. A primeira, baseada em uma compreensão transhistórica do trabalho, pressupõe que exista uma tensão estrutural entre os aspectos da vida social que caracterizam o

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capitalismo (por exemplo, o mercado e a propriedade privada) e a esfera social constituída pelo trabalho. O trabalho, portanto, constitui a base da crítica ao capitalismo, o marco a partir do qual esta crítica é elaborada. De acordo com a segunda vertente de análise, o trabalho no capitalismo é historicamente específico e permeia as estruturas essenciais desta sociedade. Assim, o

trabalho é o objeto da crítica à sociedade capitalista. Do ponto de vista da segunda vertente de análise, é possível identificar que diferentes interpretações de Marx mantêm em comum vários pressupostos básicos da primeira vertente de análise. Por este motivo, caracterizo estas interpretações como "tradicionais". Investigarei seus pressupostos do ponto de vista da minha interpretação da teoria de Marx como sendo uma crítica ao trabalho no capitalismo, a fim de demonstrar não apenas as limitações da análise tradicional como a necessidade de uma outra mais adequada teoria crítica da sociedade capitalista.

Apresentar a análise de Marx como uma crítica historicamente específica do trabalho no capitalismo conduz a uma compreensão da sociedade capitalista muito diferente daquela que está presente nas interpretações marxistas tradicionais. Isso sugere, por exemplo, que, na análise de Marx, as relações sociais e as formas de dominação que caracterizam o capitalismo não podem ser suficientemente entendidas enquanto relações de classe enraizadas em relações de propriedade e mediadas pelo mercado, como pretendem as interpretações tradicionais. Ao contrário, sua análise da mercadoria e do capital - ou seja, das formas quase objetivas de mediação social constituídas pelo trabalho no capitalismo - deveria ser entendida como uma análise das relações sociais fundamentais desta sociedade. Estas formas sociais impessoais e abstratas não apenas encobrem o que tradicionalmente tem sido avaliado como as "reais" relações sociais do capitalismo, isto é, as relações de classe; elas são as reais relações sociais da sociedade capitalista, estruturando sua trajetória dinâmica e seu modo de produzir.

Longe de analisar o trabalho como o princípio de constituição social e a fonte de riqueza em todas as sociedades, a teoria de Marx sugere que, o que caracteriza inequivocamente o capitalismo são suas relações sociais básicas constituídas precisamente pelo trabalho e, por conseguinte, em última instância, uma espécie fundamentalmente diferente daquelas que caracterizam as sociedades não-capitalistas. Embora sua análise crítica do capitalismo inclua a crítica à exploração, à desigualdade social e à dominação de classe, vai além disso, ao procurar elucidar o próprio tecido das relações sociais na sociedade moderna, e a forma abstrata de dominação social que lhes é intrínseca, através de uma teoria que fundamenta sua constituição social em determinadas e estruturadas formas de práticas.

Esta reinterpretação da teoria crítica madura de Marx desloca o foco central de sua crítica para longe das considerações sobre a propriedade e o mercado. Diferentemente das abordagens marxistas tradicionais, a mesma fornece a base para uma crítica da natureza da produção, do trabalho e do "crescimento" na sociedade capitalista, ao sustentar que tais dimensões, em vez de tecnicamente, são socialmente constituídas. Tendo assim deslocado o foco da crítica ao

capitalismo para a esfera do trabalho, a interpretação aqui apresentada conduz a uma crítica ao processo industrial de produção - por conseguinte, a uma reconceituação das definições básicas de socialismo e a uma reavaliação do papel político e social tradicionalmente atribuído ao

proletariado, na possível superação histórica do capitalismo.

À medida que esta reinterpretação implica numa crítica ao capitalismo que não está presa às condições do capitalismo liberal do Século XIX, e acarreta uma crítica à produção industrial, enquanto capitalista, pode fornecer a base para uma teoria crítica capaz de esclarecer a natureza e a dinâmica da sociedade capitalista contemporânea. Tal teoria crítica pode também servir como o ponto de partida para uma análise do "socialismo realmente existente", enquanto uma forma alternativa (e fracassada) de acumulação de capital - no lugar de um tipo de sociedade que representou, não obstante, de maneira imperfeita, a negação histórica do capitalismo.

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A CRISE DO MARXISMO TRADICIONAL

As considerações apresentadas têm sido desenvolvidas em contraposição ao pano de fundo da crise do marxismo tradicional e à emergência do que parece ser uma nova fase no

desenvolvimento do capitalismo industrial avançado. Neste trabalho, a expressão "marxismo tradicional" refere-se, não a uma tendência histórica do marxismo, mas, de um modo geral, a todas as abordagens teóricas que analisam o capitalismo do ponto de vista do trabalho e caracterizam esta sociedade, essencialmente, em termos de relações de classe, estruturadas pela propriedade privada dos meios de produção e por uma economia regulada pelo mercado. As relações de dominação são entendidas, principalmente, em termos de dominação de classe e de exploração. Como é bem conhecido, Marx argumentou que no decorrer do desenvolvimento capitalista emerge uma tensão estrutural ou uma contradição entre as relações sociais que caracterizam o capitalismo e as "forças produtivas". Esta contradição tem sido comumente interpretada em termos de um conflito entre a propriedade privada e o mercado, de um lado, e o modo industrial de produzir, de outro, de tal maneira que, a propriedade privada e o mercado são tratados como marcas características do capitalismo, e a produção industrial apresentada como a base para uma futura sociedade socialista. O socialismo é entendido, implicitamente, em termos da propriedade coletiva dos meios de produção e do planejamento econômico num contexto industrializado. Isso significa que a negação histórica do capitalismo é entendida principalmente como uma sociedade na qual a dominação e a exploração de uma classe por outra estão

superadas.

Esta caracterização ampla e preliminar do marxismo tradicional é útil na medida em que delineia um quadro interpretativo geral compartilhado por um amplo grupo de teorias que em outros aspectos diferem consideravelmente umas das outras. Minha intenção neste trabalho é analisar, criticamente, os próprios pressupostos básicos desse quadro teórico geral, em vez de reconstituir a história das várias linhas teóricas e escolas de pensamento no interior da tradição marxista. No centro de todas as formas de marxismo tradicional encontra-se uma concepção transhistórica de trabalho. A categoria trabalho analisada por Marx é entendida em termos de uma atividade social com objetivo definido que efetiva a mediação entre os homens e a natureza, criando

produtos específicos a fim de satisfazer determinadas necessidades humanas. O trabalho, assim entendido, é considerado como sendo central a toda a vida em sociedade: constitui o mundo social e é a fonte de toda a riqueza social. Esta abordagem atribui transhistoricamente ao trabalho social àquilo que Marx analisou como características historicamente específicas do trabalho no capitalismo. Tal concepção transhistórica do trabalho está amarrada a uma

determinada compreensão das categorias básicas da crítica de Marx à economia política e, por conseguinte, de sua análise do capitalismo. A teoria do valor de Marx, por exemplo, tem sido geralmente interpretada como uma tentativa de mostrar que a riqueza social é sempre, e em qualquer lugar, criada pelo trabalho humano e que, no capitalismo, o trabalho fundamenta o não-consciente, "automático", modo de distribuição mediado pelo mercado. (4) Sua teoria da mais-valia, de acordo com tais abordagens, procura demonstrar que, apesar das aparências, o produto excedente no capitalismo é criado apenas pelo trabalho e é apropriado pela classe capitalista. Dentro deste quadro geral, por conseguinte, a análise crítica do capitalismo elaborada por Marx é, principalmente, uma crítica à exploração do ponto de vista do trabalho: desmistifica a

sociedade capitalista, primeiro revelando ser o trabalho a verdadeira fonte da riqueza social; e, segundo, demonstrando que esta sociedade repousa sobre um sistema de exploração.

A teoria crítica de Marx, naturalmente, também delineia um desenvolvimento histórico que indica a possibilidade emergente de uma sociedade livre. De acordo com as interpretações tradicionais, sua análise do percurso do desenvolvimento capitalista pode ser esboçada como segue: a

estrutura do capitalismo de livre mercado dá origem à produção industrial a qual aumentou significativamente o montante de riqueza social criada. Contudo, no capitalismo, esta riqueza

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continua a ser extraída mediante um processo de exploração e é distribuída de forma

extremamente desigual. Todavia, desenvolve-se uma crescente contradição entre a produção industrial e as relações de produção existentes. Como um resultado do processo contínuo de acumulação de capital, caracterizado pela concorrência e pelas crises, o modo de distribuição social baseado no mercado e na propriedade privada torna-se cada vez menos adequado a uma produção industrial desenvolvida. Deste modo, a dinâmica histórica do capitalismo, não apenas torna anacrônicas as antigas relações de produção, mas também dá lugar à possibilidade de um novo conjunto de relações sociais. Ela gera as pré-condições técnicas, sociais e organizacionais para a abolição da propriedade privada e para o planejamento centralizado - por exemplo, a centralização e concentração dos meios de produção, a separação entre a propriedade e a gestão, e a constituição e concentração de um proletariado industrial. Estes desenvolvimentos fariam emergir a possibilidade histórica da abolição da exploração e da dominação de classe e o surgimento de um novo modo de distribuição, justo e racionalmente regulado. O foco da crítica histórica de Marx, de acordo com esta interpretação, é o modo de distribuição.

Esta afirmação pode parecer paradoxal, porque o marxismo é geralmente considerado uma teoria de produção. O papel da produção na interpretação tradicional pode ser assim resumido. Se as forças produtivas (que, segundo Marx, entram em contradição com as relações capitalistas de produção) estão identificadas com o modo industrial de produzir, em consequência, este modo é entendido implicitamente como um processo puramente técnico, intrinsecamente independente do capitalismo. O capitalismo é tratado como um conjunto de fatores exógenos colidindo com o processo de produção: propriedade privada e condições exógenas de valorização do capital no interior de uma economia de mercado. Analogamente, a dominação social no capitalismo é

entendida, essencialmente, como uma dominação de classe que permanece externa ao processo de produção. Esta análise implica que a produção industrial, uma vez constituída historicamente, é independente do capitalismo e não a este intrinsecamente relacionada. A contradição marxiana entre as forças produtivas e as relações de produção, quando apresentada como uma tensão estrutural entre a produção industrial, de um lado, e a propriedade privada e o mercado de outro, é entendida como uma contradição entre o modo de produzir e o modo de distribuir.

Consequentemente, a transição do capitalismo para o socialismo é vista como uma

transformação do modo de distribuir (propriedade privada, mercado), e não do modo de produzir. Ao contrário, o desenvolvimento da produção industrial de larga escala é tratado como a

mediação histórica ligando o modo capitalista de produção à possibilidade de uma outra organização social de distribuição. Uma vez desenvolvido, o modo industrial de produção baseado no trabalho proletário é considerado historicamente definitivo.

Esta interpretação da trajetória do desenvolvimento capitalista expressa claramente uma atitude afirmativa com relação à produção industrial, como um modo de produzir que gera as condições para a abolição do capitalismo e constitui o fundamento do socialismo. O socialismo é visto como um novo modo de administrar politicamente e regular economicamente o mesmo modo industrial de produzir que o capitalismo fez surgir; e é concebido como uma forma social de distribuição que não somente é mais justa, mas também a mais adequada à produção industrial. Esta adequação é considerada assim como sendo a pré-condição histórica central para uma

sociedade justa. Tal crítica social é essencialmente uma crítica histórica do modo de distribuição. Enquanto uma teoria da produção, o marxismo tradicional não requer uma crítica à produção. O fundamental é exatamente o oposto: o modo de produzir proporciona a base para a crítica e o critério com o qual é avaliada a adequação histórica do modo de distribuição.

Esta crítica ao capitalismo implica numa outra maneira de conceituar o socialismo, como sendo uma sociedade na qual o trabalho, liberto das relações capitalistas, estrutura a vida social abertamente e a riqueza que ele cria é distribuída de forma mais justa. Dentro do quadro tradicional, a "realização" histórica do trabalho - seu pleno desenvolvimento histórico e sua

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emergência como a base da vida social e da riqueza - é a condição fundamental da emancipação social geral.

A visão de socialismo como a realização histórica do trabalho está também evidente na idéia de que o proletariado - a classe trabalhadora intrinsecamente relacionada à produção industrial - surgirá como a classe universal no socialismo. Isto é, a contradição estrutural do capitalismo é vista, em outro nível, como uma oposição de classes entre os capitalistas, que possuem e

controlam a produção, e os proletários, que com o seu trabalho criam a riqueza da sociedade (e a riqueza dos capitalistas), ainda que tenham que vender sua força-de-trabalho para sobreviver. Esta oposição de classes, porque está fundamentada na contradição estrutural do capitalismo, tem uma dimensão histórica: ao mesmo tempo em que a classe capitalista é a classe dominante da presente ordem, a classe trabalhadora está enraizada na produção industrial e, por

conseguinte, nos alicerces históricos de uma nova ordem, a ordem socialista. A oposição entre estas duas classes é vista imediatamente como um conflito entre explorados e exploradores e como um conflito entre interesses universais e interesses individuais. A riqueza social geral produzida pelos trabalhadores não beneficia a todos os membros da sociedade sob o capitalismo, mas é apropriada pelos capitalistas, para os seus fins particulares. A crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho é uma crítica na qual as relações sociais dominantes (propriedade privada) são tidas como particularizadas, a partir de uma posição universalista. O que é universal e verdadeiramente social é constituído pelo trabalho, porém impedido, pelas relações capitalistas individualizadas, de se tornar plenamente realizado. A visão de

emancipação contida nesta compreensão do capitalismo é, como veremos, uma visão de totalização.

No interior deste quadro básico, que tenho denominado "marxismo tradicional", existem

diferenças políticas e teóricas extremamente importantes. Por exemplo, teorias determinísticas em oposição a tentativas de tratar a subjetividade social e a luta de classes como aspectos essenciais da história do capitalismo; conselhos comunistas versus partidos comunistas; teorias "científicas" versus aquelas que procuram, de várias maneiras, sintetizar marxismo e psicanálise, ou desenvolver uma teoria crítica da cultura ou da vida cotidiana. Apesar disso, na medida em que todas elas têm-se apoiado nos pressupostos básicos relacionados ao trabalho e às

características essenciais do capitalismo e do socialismo acima esboçadas, permanecem presas á estrutura do marxismo tradicional. E não importando quão incisivas tenham sido as diversas análises sociais, políticas, históricas, culturais e econômicas que esta estrutura teórica tenha gerado, suas limitações tornaram-se crescentemente evidentes à luz das várias transformações ocorridas no Século XX. Por exemplo, a estrutura teórica em questão tem sido capaz de analisar a trajetória histórica do capitalismo liberal que o conduziu a um estágio caracterizado pela

substituição parcial ou total do mercado pelo Estado intervencionista como o agente primário de distribuição. Porém, como o cerne da crítica tradicional é o modo de distribuição, o crescimento do capitalismo baseado na intervenção do Estado colocou sérios problemas a esta abordagem teórica. Se as categorias da crítica à economia política aplicam-se somente a uma economia auto-regulada, com a mediação do mercado, e à apropriação privada do excedente, o

crescimento do Estado intervencionista tem feito com que estas categorias se tornem menos adequadas a uma crítica social contemporânea. Ou seja, que não mais captam a realidade social adequadamente. Consequentemente, a teoria marxista tradicional tornou-se cada vez menos capaz de fornecer uma crítica histórica ao capitalismo pós-liberal, ficando confinada a duas opções. Pode-se apoiar nas transformações qualitativas do capitalismo do Século XX e se concentrar naqueles aspectos da estrutura de mercado que continuam a existir - e deste modo reconhecer implicitamente que se tornou uma crítica parcial; ou limitar a aplicabilidade das categorias marxianas ao capitalismo do Século XIX e tentar desenvolver uma nova crítica, presumivelmente mais adequada às condições contemporâneas. No decorrer deste trabalho,

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discutirei as dificuldades teóricas encontradas por algumas das tentativas concernentes a esta última opção.

As fragilidades do marxismo tradicional, ao considerar a sociedade pós-liberal, tornam-se particularmente visíveis quando analisa de maneira sistemática o "socialismo realmente existente". Nem todas as formas de marxismo tradicional afirmaram como "efetivamente

socialistas" sociedades como a União Soviética. Contudo, tal abordagem teórica não permite uma análise crítica adequada dessa forma de sociedade. As categorias marxianas, quando

tradicionalmente interpretadas, são de pouca utilidade para a formulação de uma crítica social a uma sociedade que é regulada e dominada pelo Estado. Assim, a União Soviética foi com frequência considerada socialista porque a propriedade privada e o mercado foram abolidos; a persistente falta de liberdade foi atribuída às instituições burocráticas repressivas. Esta posição sugere, portanto, que não existe relação entre a natureza da esfera sócio-econômica e o caráter da esfera política, indicando que as categorias da crítica social de Marx (tais como o valor), quando entendidas em termos do mercado e da propriedade privada, não podem captar as razões para a contínua ou crescente falta de liberdade no "socialismo realmente existente" e não podem, portanto, fornecer a base para uma crítica histórica de tais sociedades. Dentro de tal quadro, a relação entre socialismo e liberdade tornou-se uma contingência. Por conseguinte, isso implica que uma crítica histórica ao capitalismo, desenvolvida a partir do ponto de vista do

socialismo, não pode mais ser considerada uma crítica dirigida às razões da falta de liberdade e da alienação, da perspectiva da emancipação humana geral. (5) Estas questões fundamentais apontam os limites da interpretação tradicional. Mostram que uma análise do capitalismo que se concentre exclusivamente no mercado e na propriedade privada não pode mais servir como uma base adequada para uma teoria crítica emancipatória.

À medida que esta fragilidade fundamental vai se tornando mais evidente, o marxismo tradicional vai sendo questionado com maior frequência. Além disso, a base teórica de sua crítica social ao capitalismo - a afirmação de que o trabalho humano é a fonte de toda a riqueza - tem sido criticada à luz da crescente importância do conhecimento científico e da tecnologia avançada para o processo de produção. O marxismo tradicional não somente falha no sentido de fornecer bases para uma adequada análise histórica do "socialismo realmente existente" (ou de seu

colapso), mas sua análise crítica do capitalismo e de seus ideais de emancipação tem se tornado crescentemente distanciada dos temas e razões da atual insatisfação social nos países

industriais avançados. Isto é particularmente verdade no que respeita à ênfase exclusiva e positiva sobre as classes, e sua afirmação de que são o trabalho proletário industrial e as formas específicas de produção e "progresso" técnico que caracterizam o capitalismo. Num momento de crescente crítica a tal "progresso" e "crescimento", de exaltação à consciência acerca dos

problemas ecológicos, de descontentamento generalizado quanto às formas de trabalho

existentes, de aumento da preocupação concernente à liberdade política e de uma progressiva importância relacionada às identidades sociais não baseadas em classe (gênero ou etnia, por exemplo), o marxismo tradicional parece definitivamente anacrônico. Tanto no Leste quanto no Ocidente tem-se revelado historicamente inadequado, diante das transformações ocorridas no decorrer do Século XX.

A crise do marxismo tradicional, no entanto, de forma alguma invalida a pertinência de uma crítica social adequada ao capitalismo contemporâneo. (6) Ao contrário, estimula a necessidade de que tal crítica seja elaborada. A presente situação histórica pode ser entendida em termos de uma transformação da moderna sociedade capitalista que tem um alcance tão significativo - social, política, econômica e culturalmente - quanto a transição anterior do capitalismo liberal para o capitalismo intervencionista de Estado. Parece-nos ainda que se configura uma outra fase histórica do capitalismo desenvolvido (7) Os contornos desta nova fase ainda não estão claros, mas as duas últimas décadas testemunharam o relativo declínio da importância das instituições e instâncias de poder que estiveram no centro do capitalismo intervencionista de Estado - este,

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caracterizado pela produção geograficamente centralizada, grandes sindicatos industriais, crescente intervenção progressiva do governo na economia e um Estado de bem-estar

amplamente expandido. Duas tendências históricas aparentemente opostas têm contribuído para este enfraquecimento das instituições centrais da fase intervencionista do Estado no capitalismo: de um lado, uma parcial descentralização da produção e da política e com ela a emergência de uma pluralidade de grupamentos sociais, organizações, movimentos, partidos e subculturas; e, de outro, um processo de globalização e concentração de capital que tem ocorrido em novas bases, seguramente abstratas, sem qualquer paralelo com a experiência imediata e,

aparentemente, pelo menos por enquanto, para além do controle efetivo do Estado.

Essas tendências, no entanto, não deveriam ser entendidas em termos de um processo histórico linear. Elas incluem mudanças que destacam o caráter anacrônico e inadequado da teoria

tradicional - por exemplo, o surgimento de novos movimentos sociais, tais como os movimentos ecológicos de massa, os movimentos de mulheres, os movimentos de emancipação das

minorias, bem como o crescente descontentamento (e a polarização concernente) com as formas existentes de trabalho e os sistemas tradicionais de valores e instituições. Ainda, o momento histórico, desde o início dos anos de 1970, tem sido caracterizado também pela reemergência de manifestações "clássicas" do capital industrial, tais como suas relocalizações econômicas em todo o mundo e a intensificação da rivalidade intercapitalista, em escala global. Tomadas em conjunto, essas mudanças sugerem que uma análise crítica adequada à sociedade capitalista contemporânea deve ser capaz de incluir suas novas e significativas dimensões e os

fundamentos de sua continuidade enquanto capitalismo.

Em outras palavras, tal análise deve evitar a visão teórica unilateral das versões mais ortodoxas do marxismo tradicional. Estas são frequentemente capazes de afirmar que crises e rivalidade intercapitalistas são características que acompanham a evolução do capitalismo (apesar da emergência do Estado intervencionista); mas incapazes de se reportar às mudanças históricas qualitativas na identidade e na natureza dos grupamentos sociais que expressam

descontentamento e oposição, ou no caráter de suas necessidades, insatisfações, aspirações e formas de consciência. Ainda, uma análise adequada deve também evitar a tendência igualmente unilateral de se reportar apenas às mudanças mais recentes, ignorando a "esfera econômica" ou simplesmente pressupondo que, com o surgimento do Estado intervencionista, as considerações econômicas tomaram-se menos importantes. Finalmente, nenhuma crítica adequada pode ser formulada, simplesmente juntando as análises que se concentravam em questões econômicas àquelas que se reportavam à análise das mudanças qualitativas sociais e culturais - e assim, com os pressupostos teóricos básicos de tal crítica permanecendo aqueles da teoria marxista

tradicional. O caráter crescentemente anacrónico do marxismo tradicional e suas sérias fragilidades, enquanto uma teoria crítica emancipatória, são intrínsecas a esta abordagem da sociedade capitalista. Em última análise, estão na origem de sua insuficiência na tentativa de apreender adequadamente o capitalismo.

Essa insuficiência tem se tornado mais clara diante da atual transformação da moderna sociedade capitalista. Da mesma forma que a Grande Depressão revelou os limites da

"autoregulação" de uma economia mediada pelo mercado e as deficiências de concepções que igualavam capitalismo, a capitalismo liberal, o período caracterizado pelas crises que marcaram o final da era de prosperidade e expansão econômica do pós-Guerra, evidenciou os limites da capacidade do Estado intervencionista de regular a economia. Isto abalou as concepções

lineares de desenvolvimento do capitalismo, de uma fase liberal a uma outra centrada no Estado. A expansão do Estado de bem-estar social, após a II Guerra Mundial, tornou-se possível em virtude da expansão por um longo período da economia mundial, que se notabilizou como a fase de ouro do desenvolvimento capitalista; não como um resultado do fato das esferas políticas terem, exitosa e permanentemente, assumido o controle da esfera econômica. Contudo, o desenvolvimento do capitalismo nas últimas duas décadas fez retroceder as tendências visíveis

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do período anterior, enfraquecendo e impondo limites ao intervencionismo do Estado. Isto ficou manifesto na crise do Estado de bem-estar no Ocidente - que proclamou a morte do

keynesianismo e, de modo patente, reafirmou a dinâmica contraditória do capitalismo - bem como, na crise e colapso na maioria dos estados e partidos comunistas no Leste. (8)

É digno de atenção que, comparada à situação depois do colapso do capitalismo liberal no final dos anos de 1920, as crises e desarticulações associadas às mais recentes transformações do capitalismo estimularam poucas análises críticas, desenvolvidas a partir de uma perspectiva que apontasse para a possível superação do capitalismo. Isto pode ser interpretado como uma expressão de incerteza teórica. A crise do capitalismo intervencionista de Estado serviu para indicar que o capitalismo continuou a se desenvolver com uma dinâmica quase autônoma. Este desenvolvimento, portanto, demanda uma reconsideração crítica daquelas teorias que haviam interpretado a substituição do mercado pelo Estado como significando a eliminação definitiva das crises econômicas. No entanto, a natureza fundamental do capitalismo, do processo dinâmico que se afirma a si mesmo, mais uma vez, permanece sem explicação. Não é mais convincente clamar que o "socialismo" representa a resposta para os problemas do capitalismo, quando o que se está querendo justificar é simplesmente a introdução do planejamento central e da

propriedade estatal (ou mesmo pública).

A frequentemente evocada "crise do marxismo" não expressa, então, apenas a rejeição

desiludida ao "socialismo realmente existente", a descrença no proletariado e a incerteza quanto a quaisquer outros possíveis agentes sociais de transformação social fundamental. Mais

fundamentalmente é a expressão de uma profunda incerteza quanto ao significado essencial do capitalismo e do que viria substituí-lo com sua superação. A diversidade de posições teóricas formuladas nas décadas passadas - o dogmatismo de muitos grupos da Nova Esquerda do final dos anos de 1960 e no início dos anos de 1970, as críticas puramente políticas que reemergiram subsequentemente e muitas das posições "pós-modernas" contemporâneas - pode ser vista como expressão de tal incerteza quanto à natureza da sociedade capitalista e mesmo como um desapontamento quanto à possibilidade de iniciativas no sentido de captá-la. Esta incerteza pode ser entendida, em parte, como uma expressão da insuficiência básica da abordagem marxista tradicional. Suas fragilidades têm sido reveladas não somente pelas dificuldades com relação ao "socialismo realmente existente" e diante das necessidades e insatisfações inerentes aos novos movimentos sociais. Mais fundamentalmente, tem-se tornado claro que este paradigma teórico não fornece uma concepção satisfatória sobre a própria natureza do capitalismo; uma concepção que estabeleça uma análise adequada das mudanças que o atingem e que seja capaz de

proporcionar o entendimento de suas estruturas fundamentais de modo a apontar a possibilidade de sua transformação histórica. A transformação subentendida pelo marxismo tradicional não é, em nenhuma medida, plausível como uma "solução" para os males da sociedade moderna. Se a sociedade moderna deve ser analisada enquanto capitalista e, por conseguinte, como transformável em um nível fundamental, então, o núcleo fundamental do capitalismo deve ser redefinido. Sobre esta base poderia ser formulada uma teoria crítica diferente acerca da natureza e trajetória da sociedade moderna - uma teoria que buscasse apreender, social e historicamente, as raízes da não-liberdade e da alienação na sociedade moderna. Tal análise contribuiria

também para uma teoria política da democracia. A história do marxismo tradicional tem apenas revelado explicitamente que a questão da liberdade política deve ser central para qualquer posição crítica. Não obstante, é preciso ainda considerar que uma adequada teoria da

democracia requer uma análise histórica das condições sociais de liberdade, que não pode ser elaborada a partir de uma posição abstratamente normativa ou de uma posição que atribua uma existência material à esfera da política.

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A presente reinterpretação da natureza da teoria crítica de Marx é uma resposta à transformação histórica do capitalismo e às fragilidades do marxismo tradicional esboçadas acima. (9) Minha leitura dos Grundrisse de Marx, uma versão preliminar de sua crítica à economia política, levou-me a rever a teoria crítica que ele desenvolveu em seus escritos maduros, particularlevou-mente em O Capital. Esta teoria, como a entendo, é diferente e mais poderosa do que as interpretações do marxismo tradicional; e também possui um significado mais contemporâneo. Considero que a reinterpretação da concepção de Marx, quanto às relações estruturantes básicas da sociedade capitalista aqui apresentada, pode servir como ponto de partida para uma teoria crítica do capitalismo, superar muitas das deficiências da interpretação tradicional e ser mais adequada para se reportar a muitas mudanças e questões postas recentes.

A reinterpretação aqui apresentada tanto tem sido influenciada pelas, quanto pretende ser uma crítica às abordagens desenvolvidas por Georg Lukács (especialmente na obra History and Class Consciousness) e por adeptos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Tais abordagens,

baseadas em compreensões sofisticadas da crítica de Marx, expressam uma resposta teórica à compreensão da transformação histórica do capitalismo, da forma liberal, regulada pelo mercado, para uma forma organizada, burocrática, dirigida pelo Estado, mediante um redirecionamento do capitalismo. Dentro dessa tradição interpretativa, a teoria de Marx não é considerada como uma teoria da produção material e da estrutura de classes, e menos ainda, uma teoria da economia. No lugar disso, é entendida como uma teoria da constituição histórica de formas determinadas, reificadas, de objetividade e subjetividade sociais. Sua crítica à economia política é considerada como uma tentativa de analisar criticamente as formas culturais e as estruturas sociais da civilização capitalista. (10) Adicionalmente, a teoria de Marx é considerada como capaz de

compreender a relação entre teoria e sociedade, de maneira auto-reflexiva, por procurar analisar seu contexto - a sociedade capitalista -, situando-se historicamente e creditando-se à condição de se tornar o próprio ponto de vista. (Esta tentativa de fundamentar socialmente a possibilidade de uma crítica teórica é vista como um aspecto necessário a qualquer tentativa de fundamentar a possibilidade de ação social antitética e transformadora.) Encaro com simpatia o projeto geral de desenvolver uma ampla e coerente crítica social, política e cultural, adequada à sociedade capitalista contemporânea, por meio de uma teoria social auto-reflexiva, com objetivo

emancipatório. Todavia, como ainda irei aprofundar, alguns dos pressupostos teóricos básicos impediram, de modo diferenciado, Lukács, bem como membros da Escola de Frankfurt, de

realizarem plenamente seus objetivos teóricos. Por um lado, eles reconheceram as inadequações de uma teoria crítica da modernidade que definisse o capitalismo situando-o apenas no Século XIX, ou seja, em termos do mercado e da propriedade privada. Por outro, entretanto,

permaneceram presos a alguns pressupostos deste mesmo tipo de teoria, em particular, no que diz respeito a sua concepção transhistórica do trabalho. O objetivo programático de ambos, em desenvolver uma concepção de capitalismo adequada ao Século XX, não poderia ser realizado com base em tal compreensão acerca do trabalho. Pretendo melhor adequar a força propulsora crítica dessa tradição interpretativa, reexaminando a análise de Marx sobre a natureza e

significado do trabalho no capitalismo.

Segundo minha reinterpretação, embora a análise marxiana do capitalismo pressuponha uma crítica à exploração e ao modo burguês de distribuição (o mercado, a propriedade privada), não é desenvolvida a partir do ponto de vista do trabalho; ao contrário, está baseada na crítica ao trabalho no capitalismo. A teoria crítica de Marx procura mostrar que o trabalho no capitalismo desempenha um papel historicamente específico para mediar as relações sociais e para elucidar as consequências desta forma de mediação. Sua ênfase sobre o trabalho no capitalismo não implica que o processo material de produção seja necessariamente mais importante do que outras esferas da vida social. Ao contrário, sua análise da especificidade do trabalho no

capitalismo sugere que a produção no capitalismo não é um processo puramente técnico; mas sim que está inextricavelmente relacionada e moldada pelas relações sociais básicas desta

(11)

sociedade. Estas, por sua vez, não podem ser compreendidas tomando por referência apenas o mercado e a propriedade privada. Esta interpretação da teoria de Marx fornece a base para uma crítica da forma de produção e da forma de riqueza (isto é, o valor), que caracterizam o

capitalismo, ao invés de simplesmente questionar sua apropriação privada. Também caracteriza o capitalismo em termos de uma forma abstrata de dominação associada à natureza peculiar do trabalho nele existente, e situa nesta forma de dominação, o fundamento social último para o "crescimento" anárquico e o caráter crescentemente fragmentado do trabalho, e até mesmo da existência individual, na sociedade capitalista. A presente interpretação sugere que a classe trabalhadora é essencial para o capitalismo, em vez de materializar sua negação. Como veremos, tal abordagem reinterpreta a concepção de alienação em Marx à luz da sua crítica madura ao trabalho no capitalismo e situa esta concepção reinterpretada de alienação no centro de sua crítica à sociedade capitalista.

Claramente, tal crítica da sociedade capitalista difere inteiramente daquele tipo de crítica "produtivista", característica de muitas interpretações marxistas tradicionais, que ratificam o trabalho proletário, a produção industrial e um "crescimento" industrial totalmente livre. Na verdade, do ponto de vista da reconsideração aqui apresentada, a posição produtivista não representa uma crítica fundamental: não apenas fracassa por não apresentar uma alternativa de uma possível futura sociedade além do capitalismo, mas ratifica alguns aspectos centrais do próprio capitalismo. A este respeito, a reconstrução da teoria crítica madura de Marx assumida neste trabalho fornece o ponto de vista para uma crítica ao paradigma produtivista na tradição marxista. Como deixarei claro, aquilo que a tradição marxista tem geralmente tratado como positivo, é precisamente o objeto de crítica nas obras mais recentes de Marx. Pretendo enfatizar tal diferença, não somente para assinalar que a teoria de Marx não era produtivista e, portanto, questionar uma tradição teórica que professa se apoiar nos textos de Marx - mas também

mostrar como a própria teoria de Marx fornece uma crítica poderosa ao paradigma produtivista, e que, não por acaso, o rejeita como falso, e ainda procura torná-lo compreensível em termos sociais e históricos. Assim o faz, fundamentando teoricamente a possibilidade de tal concepção nas formas sociais estruturantes da sociedade capitalista. Desse modo, a análise categorial (11) de Marx do capitalismo estabelece a base para uma crítica ao paradigma do produtivismo

enquanto uma posição que, na verdade, expressa um momento da realidade histórica da sociedade capitalista mas o faz numa perspectiva transhistórica e, por conseguinte, numa perspectiva não-crítica e ratificadora.

Apresentarei uma interpretação similar à teoria da história de Marx. Nas obras maduras, sua noção de uma lógica imanente ao desenvolvimento histórico também não é transhistórica e nem categórica, mas é crítica e se refere especificamente à sociedade capitalista. Marx identifica o fundamento de uma forma particular de lógica histórica nas formas sociais específicas da sociedade capitalista. Sua posição nem afirma a existência de uma lógica transhistórica da história, nem nega a existência de algum tipo de lógica histórica. Ao contrário, trata tal lógica como uma característica da sociedade capitalista que pode ser, e tem sido projetada sobre toda a história da humanidade.

A teoria de Marx, ao expressar dessa maneira formas de pensamento, social e historicamente plausíveis, procura tornar válidas, reflexivamente, suas próprias categorias. A teoria, então, é tratada como parte da realidade social na qual ela existe. A abordagem que proponho é uma tentativa de formular uma crítica ao paradigma da produção com base nas categorias sociais da crítica marxiana da produção e, através disso, amarrar a crítica da teoria a uma possível crítica social. Esta abordagem fornece a base para uma teoria crítica da sociedade moderna que não exige nem uma afirmação abstratamente universalista e racionalista da modernidade, nem uma crítica anti-racionalista e antimoderna. Ao contrário, procura superar ambas as posições, tratando suas contradições como historicamente determinadas e enraizadas na natureza das relações sociais capitalistas.

(12)

A reinterpretação da teoria crítica de Marx aqui apresentada baseia-se na reconsideração das categorias fundamentais de sua crítica à economia política - tais como valor, trabalho abstrato, a mercadoria e o capital. Estas categorias, de acordo com Marx, "expressam as formas de ser [Daseinsformen], as determinações de existência" [Existenzbestimmungen]... desta sociedade específica. (12) Elas se apresentam como se fossem categorias de uma etnografia crítica da sociedade capitalista realizada em suas entranhas - categorias que pretendem expressar as formas básicas de objetividade e de subjetividade que estruturam as dimensões da vida social, econômica, histórica e cultural desta sociedade, sendo elas mesmas constituídas por formas determinadas de prática social.

No entanto, muito frequentemente, as categorias da crítica de Marx têm sido consideradas como sendo categorias puramente econômicas. A "teoria do valor-trabalho" de Marx, por exemplo, tem sido entendida como uma tentativa de explicar, "em primeiro lugar, os preços relativos e a taxa de lucro em equilíbrio; em segundo, a condição de possibilidade do valor-de-troca e do lucro; e, por último, a alocação racional de produtos em uma economia planejada". (13) Uma abordagem tão restrita das categorias, quando trata das dimensões sociais, históricas, cultural-epistemológicas da teoria crítica de Marx, o faz apenas quando aparecem referências àquelas passagens que se referem explicitamente a estas dimensões, retiradas do contexto de sua análise categorial. A amplitude e a natureza sistêmica da teoria crítica de Marx, no entanto, só podem ser captadas completamente através de uma análise de suas categorias, entendidas como determinações do ser social no capitalismo. Apenas quando as afirmações explícitas de Marx são entendidas com respeito aos desdobramentos de suas categorias, é possível reconstruir adequadamente a lógica interna de sua crítica. Por conseguinte, dedicarei especial atenção à reconsideração das

determinações e implicações das categorias básicas da teoria crítica de Marx.

Ao reinterpretar a crítica marxiana, tentarei reconstruir sua natureza sistêmica e resgatar sua lógica interna. Não examinarei a possibilidade de ocorrências de divergências ou contradições nas obras maduras de Marx, nem reconstruirei o percurso do desenvolvimento de seu

pensamento. Metodologicamente, minha intenção é interpretar as categorias fundamentais da crítica à economia política feita por Marx de uma maneira logicamente coerente e

sistematicamente rigorosa, tanto quanto possível, a fim de desenvolver a teoria do núcleo do capitalismo embutida na essência de tais categorias - aquela que define o capitalismo enquanto tal, ao longo de seu desenvolvimento. Minha crítica ao marxismo tradicional é uma parte desta retomada conceitual da teoria marxiana, em seu nível mais coerente.

Esta abordagem poderia servir também como o ponto de partida de um esforço no sentido de situar historicamente as próprias obras de Marx. Tal esforço reflexivo permitiria examinar as prováveis tensões internas e os elementos "tradicionais" contidos nesses trabalhos, do ponto vista da teoria da natureza imanente e da trajetória do capitalismo derivada de suas categorias fundamentais. Algumas dessas tensões internas poderiam, então, serem entendidas em termos da tensão que se estabelece, de um lado, entre a lógica da análise categorial de Marx do

capitalismo como um todo e, de outro, sua crítica mais imediata ao capitalismo liberal - isto é, em termos de uma tensão entre dois diferentes níveis situados historicamente. Contudo, este

trabalho será desenvolvido como se a autocompreensão de Marx fosse aquela derivada da lógica de sua teoria do cerne da formação social capitalista. Uma vez que espero contribuir para a reconstituição de uma teoria social crítica sistemática do capitalismo, a questão se a efetiva autocompreensão de Marx era, na verdade, adequada àquela lógica é, para este propósito, de importância secundária.

Este trabalho foi concebido para ser o estágio inicial de minha reinterpretação da crítica

marxiana. Antes de qualquer coisa, propõe-se a ser mais um trabalho de esclarecimento teórico fundamental, do que uma exposição plenamente elaborada dessa crítica, e menos uma teoria acabada do capitalismo contemporâneo. Portanto, não me reportarei à fase mais atual da

(13)

sociedade capitalista desenvolvida. Em vez disso, tentarei interpretar a concepção de Marx sobre as relações estruturantes fundamentais da sociedade moderna, da forma como estão expressas em suas categorias da mercadoria e do capital, de modo a não limitá-las a quaisquer das

principais fases do capitalismo desenvolvido - e talvez, através disso, permitir-lhes esclarecer a natureza imanente da formação social como um todo. Isto pode fornecer a base para uma análise da sociedade moderna do Século XX em termos de uma acentuada e crescente distinção entre o capitalismo na atualidade e sua forma burguesa primitiva.

Iniciarei com um esboço geral de minha interpretação baseado na análise de várias seções dos Grundrisse de Marx. Sobre esta base, no Capítulo 2, prosseguirei no exame mais aprofundado dos pressupostos fundamentais do marxismo tradicional. A fim de esclarecer minha abordagem, e explicitar sua relevância para uma teoria crítica contemporânea, examinarei, no Capítulo 3, as tentativas empreendidas por membros do círculo da Escola de Frankfurt - em particular, Friedrich Pollock e Max Horkheimer - de desenvolver uma teoria crítica social adequada às importantes mudanças ocorridas na sociedade capitalista do Século XX. Tomando como referência minha interpretação do marxismo tradicional e a de Marx, examinarei os dilemas e fragilidades envolvidas nessas tentativas. Em minha argumentação, procuro revelar que tais questões indicam os limites de uma teoria que tenta entender o capitalismo pós-liberal, mantendo ainda certos pressupostos básicos do marxismo tradicional.

Minha análise daqueles limites tem a pretensão de ser uma resposta crítica aos dilemas teóricos da Teoria Crítica. A obra de Jürgens Habermas, obviamente, pode ser entendida como uma outra resposta; porém, ele também retém o que considero uma compreensão tradicional sobre o

trabalho. Minha crítica a esta compreensão procura também apontar para a possibilidade de uma teoria social crítica reconstituída, que difere daquela apresentada por Habermas. Tal teoria

prescindiria das concepções evolucionárias da história e da noção de que a vida humana em sociedade esteja baseada sobre um princípio ontológico que "se afirma a si mesmo" no curso do desenvolvimento histórico (por exemplo, o trabalho no marxismo tradicional, ou a ação

comunicativa na obra mais recente de Habermas). (14)

Na segunda metade deste trabalho, iniciarei minha reconstrução da crítica marxiana, a qual irá esclarecer, ainda que retrospectivamente, a base para minha crítica ao marxismo tradicional. N’O Capital, Marx busca desvendar a sociedade capitalista identificando suas formas sociais

fundamentais, e sobre esta base, desenvolve, cuidadosamente, um conjunto de categorias inter-relacionadas, com as quais explica seu funcionamento subjacente. Começando com as

categorias que ele presume serem capazes de revelar as estruturas nucleares da formação social - tais como a mercadoria, o valor e o trabalho abstrato - Marx então desvenda seu significado, criteriosa e rigorosamente, a fim de incorporar aspectos e níveis cada vez mais concretos e complexos da realidade social. Minha intenção é esclarecer as categorias

fundamentais com as quais Marx inicia sua análise, isto é, o nível mais abstrato e básico desta análise. Na minha opinião, vários intérpretes passaram muito rapidamente para o nível analítico da realidade social concreta imediata e, consequentemente, não perceberam alguns aspectos cruciais das próprias categorias estruturantes fundamentais.

Examino a categoria trabalho abstrato, no Capítulo 4, e o tempo abstrato, no Capítulo 5. Com base nestas categorias, examino criticamente a crítica de Habermas a Marx, no Capitulo 6 e, em seguida, nos Capítulos 7, 8 e 9, reconstruo as determinações iniciais do conceito de capital de Marx e suas noções de contradição e dinâmica histórica. Nesses capítulos, procuro esclarecer as principais categorias básicas da teoria marxiana, para assim fundamentar minha crítica ao

marxismo tradicional e justificar meu ponto de vista de que a lógica da apresentação categorial revelada n’ O Capital aponta na direção consoante com a apresentação da contradição do capitalismo e da natureza do socialismo contidas nos Grundrisse. Ao estabelecer o fundamento para o posterior desenvolvimento de minha reconstrução, algumas vezes extrapolarei meus

(14)

argumentos para revelar suas implicações quanto a uma análise da sociedade contemporânea. Tais extrapolações são determinações abstratas e iniciais de aspectos do capitalismo moderno, baseadas em minha reconstrução do nível mais fundamental da teoria crítica de Marx; elas não representam uma tentativa de analisar diretamente, sem quaisquer mediações, níveis mais concretos da realidade social com base nas categorias mais abstratas.

Com base no que estou desenvolvendo aqui, pretendo prosseguir meu projeto de reconstrução [de uma teoria crítica] num trabalho futuro. Em minha opinião, este trabalho demonstra a

plausibilidade de minha reinterpretação da crítica à economia política de Marx e da crítica ao marxismo tradicional a esta associada. Revela ainda a força teórica da teoria marxiana e sua possível relevância para a reconstrução de uma teoria crítica da sociedade moderna. Não obstante, a abordagem deve ser mais aprofundada antes que a questão da viabilidade das categorias nela contidas, tendo em vista uma teoria crítica da sociedade contemporânea, seja discutida adequadamente.

OS GRUNDRISSE:

REPENSANDO A CONCEPÇÃO DE MARX SOBRE O CAPITALISMO E A SUA SUPERAÇÃO Minha reinterpretação da teoria crítica madura de Marx origina-se do exame de aspectos dos Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, os importantes fundamentos escritos por Marx em 1857-1858. (15) O conteúdo dos Grundrisse ajusta-se muito bem para servir como ponto de partida para a pretendida reinterpretação: são mais fáceis de decifrar do que o Capital, o qual é sujeito a mal-entendidos por estar estruturado de uma maneira rigorosamente lógica enquanto uma crítica imanente isto é, uma crítica desenvolvida a partir de um ponto de vista que é imanente ao seu objeto de investigação, em vez de externo. Como os Grundrisse não estão estruturados tão rigorosamente, o objetivo estratégico geral da análise categorial de Marx é mais acessível, particularmente naquelas seções onde ele apresenta sua concepção da contradição básica da sociedade capitalista. Nelas, sua análise do núcleo essencial do capitalismo e da natureza da sua superação histórica tem importante significação na atualidade, pois lança dúvidas acerca das interpretações de sua teoria, centradas em considerações relativas ao mercado e à dominação e exploração de classe. (16)

Tentarei mostrar como essas seções dos Grundrisse indicam que as categorias da teoria de Marx são historicamente específicas, que sua crítica do capitalismo é direcionada tanto para seu modo de produzir como para seu modo de distribuir, e que sua noção da contradição básica do

capitalismo não pode ser concebida simplesmente como uma contradição entre o mercado e a propriedade privada, de um lado, e a produção industrial, de outro. Em outras palavras, minha discussão acerca do tratamento dado por Marx à contradição do capitalismo nos Grundrisse aponta para a necessidade de uma reconsideração de mais longo alcance sobre a natureza de sua teoria crítica madura: em particular, sugere que sua análise do trabalho no capitalismo é historicamente específica, e sua teoria crítica madura é uma crítica ao trabalho no capitalismo, não uma crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho. Assim estabelecido, estarei em condições para me referir ao problema do porquê, na crítica de Marx, as categorias fundamentais da vida social no capitalismo são categorias do trabalho. Isto não é, absolutamente, evidente por si mesmo, e não pode ser justificado meramente apontando para a importância óbvia do trabalho para a vida social humana em geral. (17)

Nos Grundrisse, a análise de Marx acerca da contradição entre as "relações de produção" e as "forças produtivas" no capitalismo difere da análise das teorias marxistas tradicionais, que se concentram no modo de distribuir e entendem a contradição como uma contradição entre as esferas da distribuição e da produção. Marx critica, explicitamente, aquelas abordagens teóricas que conceituam a transformação histórica em termos do modo de distribuir sem considerar a possibilidade de que o modo de produzir seja transformado. Marx toma como exemplo de tais

(15)

abordagens, a afirmação de John Stuart Mill para quem "as leis e condições da produção da riqueza compartilham do caráter das verdades físicas... Não é assim com a distribuição da riqueza. Esta é, unicamente, um problema das instituições humanas." (18) Esta separação, de acordo com Marx, é ilegítima: "As 'leis e condições' da produção da riqueza e as leis da'

distribuição da riqueza' são as mesmas leis sob diferentes formas, e ambas se modificam, experimentam o mesmo processo histórico; sendo, enquanto tal, puramente momentos de um processo histórico." (19)

A noção de Marx sobre o modo de distribuir, no entanto, não se refere apenas à maneira pela qual as mercadorias e o trabalho são socialmente distribuídos (por exemplo, através de

mecanismo do mercado); vai mais adiante, ao descrever que "a condição de não-proprietários dos trabalhadores e a ...apropriação do trabalho alheio pelo capital", (20) isto é, as relações capitalistas de propriedade enquanto "modos de distribuição [que ] são as próprias relações de produção, porém sub specie distributionis. (21) Estas passagens indicam que a noção de Marx de modo de distribuição envolve as relações capitalistas de propriedade. Elas também implicam que sua noção sobre "relações de produção" não pode ser entendida apenas em termos do modo de distribuir, mas deve também ser considerada como sub specie productionis - por outras

palavras, que as relações de produção não podem ser entendidas como tradicionalmente têm sido. Se Marx considera as relações de propriedade como sendo relações de distribuição, (22) decorre daí que o seu conceito de relações de produção não pode ser plenamente captado em termos de relações capitalistas de classe, baseadas na propriedade privada dos meios de

produção e expressas na desigual distribuição social do poder e da riqueza. Ao contrário, aquele conceito deve também ser entendido com referência ao modo de produzir no capitalismo. (23) No entanto, se o processo de produção e as relações sociais fundamentais do capitalismo estão inter-relacionados, o modo de produzir não pode ser igualado às forças produtivas, que acabam entrando em contradição com as relações capitalistas de produção. Em vez disso, o próprio modo de produzir deveria ser visto como intrinsecamente relacionado ao capitalismo. Estas passagens sugerem, em outras palavras, que a contradição marxiana não deveria ser concebida como uma contradição entre a produção industrial de um lado, e o mercado e a propriedade privada capitalista do outro; sua compreensão acerca das forças e das relações de produção deve ser, portanto, profundamente repensada. A noção de Marx acerca da superação do

capitalismo sugere que a mesma significa uma transformação, não somente do modo de distribuir existente, mas também do modo de produzir. É precisamente a este respeito que, com certa simpatia, Marx aprova o significado do pensamento de Charles Fourier: "O trabalho não pode se transformar em diversão, como Fourier gostaria, o que não desmerece sua grande contribuição em ter expressado a substituição, não da distribuição, mas do próprio modo de produzir, por uma forma superior, como o objetivo último." (24)

Assumindo que o "objetivo último" é a "derrubada" ou superação do próprio modo de produzir, este deve incorporar as relações capitalistas. Na verdade, a crítica de Marx a estas relações aponta, numa passagem posterior, para a possibilidade de uma transformação histórica da produção:

"Não é necessário um grande esforço para compreender que, onde, e.g., o trabalho livre ou o trabalho assalariado resultado da dissolução da servidão, é o ponto de partida, as máquinas surgem como antítese ao trabalho vivo, como propriedade que lhe é alheia e como força que lhe é hostil; i.e., que elas devem confrontá-lo na condição de capital. Mas, da mesma forma é fácil perceber que as máquinas não cessarão de ser agentes de produção social quando se tornam, e.g., propriedade de trabalhadores associados. No primeiro caso, porém, sua distribuição, i.e., em que elas não pertencem ao trabalhador, obedece à mesma condição de ser do modo de produção baseado no trabalho assalariado. No segundo caso, a modificação da distribuição se

(16)

iniciaria a partir de um fundamento da produção modificado, uma nova base a ser primeiramente criada pelo processo da história." (25)

A fim de entender mais claramente a natureza da análise de Marx e alcançar o que ele quer dizer ao se referir à transformação do modo de produzir, devemos examinar sua concepção quanto ao "fundamento" da produção (capitalista). Isto é, devemos analisar sua noção de "modo de

produção baseado no trabalho assalariado" e refletir sobre o que poderia significar uma "base de produção modificada".

O NÚCLEO FUNDAMENTAL DO CAPITALISMO

Minha investigação da análise do capitalismo feita por Marx inicia-se com uma seção crucialmente importante dos Grundrisse, intitulada "Contradição entre a base da produção burguesa (valor como medida) e seu desenvolvimento". (26) Marx começa esta seção como se segue: " A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado -i.e., o posicionamento do trabalho social na forma da contradição entre capital e trabalho assalariado - é o desenvolvimento último da relação valor e da produção baseada no valor." (27) O título e a frase inicial desta seção dos Grundrisse indicam que, para Marx, a categoria valor expressa as relações básicas de produção do capitalismo -aquelas relações sociais que caracterizam a especificidade do capitalismo como um modo de vida social -, bem como indicam que a produção no capitalismo está baseada no valor. Em outras palavras, valor, na análise de Marx, constitui o "fundamento da produção burguesa."

Uma peculiaridade da categoria valor é que aparenta expressar tanto uma determinada forma de relações sociais como uma forma particular de riqueza. Qualquer análise do valor deve, portanto, esclarecer ambos os aspectos. Temos observado que o valor, enquanto uma categoria de

riqueza, geralmente tem sido concebido como uma categoria do mercado. Contudo, quando Marx se refere à "troca" no desenrolar da análise, quando da consideração da "relação valor" nas passagens citadas, o faz tendo em vista o processo capitalista de produção em si. A troca a qual se refere não é própria da circulação, mas sim, à troca que ocorre na produção -"a troca de trabalho vivo por trabalho objetivado". Isto implica que o valor não deveria ser entendido meramente como uma categoria do modo de distribuição de mercadorias, isto é, como um

argumento para fundamentar o automatismo do mercado auto-regulável. Ao contrário, deveria ser entendido como uma categoria da produção capitalista em si. Parece, então, que a noção

marxiana da contradição entre as forças e as relações de produção deveria ser reinterpretada como se referindo a momentos distinguíveis do processo de produção. O fato da "produção baseada no valor" e "o modo de produção baseado no trabalho assalariado" parecerem estar intimamente relacionados requer um exame mais aprofundado.

Quando Marx discute a produção baseada no valor, ele a descreve como um modo de produção cujo "pressuposto é - e permanece sendo - a quantidade de tempo de trabalho direto, a

quantidade de trabalho empregado, como o fator determinante da produção de riqueza." (28) Segundo Marx, o valor, como uma forma de riqueza, é caracterizado por ser constituído a partir do dispêndio de trabalho humano direto no processo de sua produção - por permanecer preso a tal dispêndio como o fator determinante na produção da riqueza e por ter uma dimensão

temporal. O valor é uma forma social que expressa o, e está baseada no, dispêndio de tempo de trabalho direto. Para Marx, esta forma está no coração da sociedade capitalista. Como uma categoria das relações sociais fundamentais que constituem o capitalismo, o valor expressa o que é, e permanece sendo, o fundamento básico da produção capitalista. Todavia, surge uma crescente tensão entre este fundamento do modo capitalista de produção e os resultados de seu próprio desenvolvimento histórico:

"Porém, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real vai depender menos do tempo de trabalho, e da quantidade de trabalho empregado, e passa a depender mais

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