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O dever de anulação administrativa previsto no artigo 168.º, n.º 7, CPA em busca de uma solução eurocompatível 1

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Escola de Direito – Universidade do Minho

O dever de anulação administrativa previsto no artigo 168.º,

n.º 7, CPA – em busca de uma solução eurocompatível

1

Sophie Perez Fernandes*

RESUMO: O objetivo do presente texto é analisar a solução consagrada no n.º 7 do artigo 168.º do Código de Procedimento Administrativo vigente desde 2015. Esta disposição estabelece o dever de anulação administrativa de atos administrativos definitivos contrários ao direito da União Europeia e procura fazer eco da jurisprudência do Tribunal de Justiça que tem no acórdão Kühne a sua landmark decision. No entanto, uma leitura atenta da disposição revela que a mesma não é inteiramente compatível com a jurisprudência do Tribunal de Justiça à qual à primeira vista se reporta. Depois de qualificar essa disposição nacional como uma regra relevante do direito administrativo da União Europeia, propomos decifrar o seu significado e alcance à luz da jurisprudência relevante, a fim de encontrar uma solução interpretativa compatível com o direito da União.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Administrativo da União Europeia – jurisprudência Kühne – reexame de atos administrativos nacionais definitivos contrários ao direito da União Europeia – princípio da cooperação leal.

1 O presente texto foi apresentado ao Prémio Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha 2016

instituído pelo Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, tendo recebido uma menção honrosa em novembro de 2016.

* Professora na Escola de Direito da Universidade do Minho. Membro Doutorado do Centro de

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I. Introdução

O Decreto-Lei (DL) n.º 4/2015, de 7 de janeiro, aprovou o novo Código do Procedimento Administrativo (CPA). Não nos propomos proceder a uma apreciação global do Código hoje vigente,2 mas atentar numa solução específica no quadro do

regime de anulação dos atos administrativos acolhido3 – a solução plasmada no

art. 168.º, n.º 7, CPA consagradora de um dever de anulação administrativa de atos administrativos definitivos contrários ao direito da União Europeia.

Primeiramente, o preceito não se destaca pela clareza:

“Desde que ainda o possa fazer, a Administração tem o dever de anular o ato administrativo que tenha sido julgado válido por sentença transitada em julgado, proferida por um tribunal administrativo com base na interpretação do direito da União Europeia, invocando para o efeito nova interpretação desse direito em sentença posterior, transitada em julgado, proferida por um tribunal administrativo que, julgando em última instância, tenha dado execução a uma sentença de um tribunal da União Europeia vinculativa para o Estado português.”

Apesar de enrodilhada, a redação do art. 168.º, n.º 7, CPA revela, desde logo, que a anulação administrativa em causa se reporta ao direito da União. O novo CPA não se fechou à realidade do direito da União, o que resulta confirmado logo nas considerações iniciais tecidas no Preâmbulo do DL n.º 4/2015. Nele, o legislador dá conta da necessidade de atualizar o regime geral do procedimento administrativo à luz das «novas exigências» que se foram colocando à Administração Pública e ao exercício da função administrativa, considerando nomeadamente a “alteração do quadro” em que esta última é exercida “por força da lei e do direito da União Europeia”.4

No plano das intenções, o CPA procurou acolher soluções compatíveis com o direito da União, o que é visível em alguns preceitos dispersos pelo diploma.5 Assim,

desde logo, a inclusão de um princípio referente à “cooperação leal com a União Europeia” no elenco dos princípios gerais da atividade administrativa é uma das “inovações significativas” trazidas pelo Código de 2015 e procura dar “cobertura à crescente participação da Administração Pública portuguesa no processo de decisão da União Europeia, bem como à participação de instituições e organismos da União Europeia em procedimentos administrativos nacionais”.6 Até agora sem previsão

expressa, o princípio, consagrado no art. 19.º CPA, junta-se ao “conjunto de normas-pórtico de todo o direito administrativo português”,7 se bem que tal já resultasse do

2 Para o que se remete para doutrina mais autorizada – cfr. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda

Neves e Tiago Serrão, coord., Comentários ao novo Código de Procedimento Administrativo, 2ª edição (Lisboa: AAFDL, 2015); e Maria da Glória Garcia, et al., Comentários à revisão do Código do Procedimento

Administrativo (Coimbra: Almedina, 2016).

3 Sobre o mesmo, cfr. Licínio Lopes Martins, “A invalidade do acto administrativo no novo

Código do Procedimento Administrativo: alterações mais relevantes”, e Marco Caldeira, “A figura da ‘Anulação Administrativa’ no novo Código do Procedimento Administrativo de 2015”, in

Comentários ao novo Código de Procedimento Administrativo, 2ª edição, coord. Carla Amado Gomes, Ana

Fernanda Neves e Tiago Serrão (Lisboa: AAFDL, 2015), 907-922 e 1033-1070, respetivamente.

4 Cfr. Preâmbulo do DL 4/2015, cons. 1.

5 Cfr. arts. 19.º, 143.º, 146.º e 168.º, n.os 4 e 7, CPA. 6 Cfr. Preâmbulo do DL 4/2015, cons. 5.

7 Miguel Assis Raimundo, “Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em

particular”, in Comentários ao novo Código de Procedimento Administrativo, 2ª edição, coord. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão (Lisboa: AAFDL, 2015), 169.

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direito da União e, desde logo – e com maior densidade –, do art. 4.º, n.º 3, TUE.8

Com efeito, em termos de conteúdo normativo, a formulação do art. 19.º CPA peca por defeito:9 i) o âmbito da cooperação contemplada limita-se a situações

previstas de forma impositiva no direito da União; ii) o elenco das situações consideradas (prestação de informações, apresentação de propostas ou outras formas de colaboração com a Administração Pública de outros Estados-Membros) é diminuto (e não vai ao encontro do anunciado no preâmbulo); e iii) o conteúdo da cooperação cinge-se ao cumprimento de prazos. Para retomar uma expressão comum na gíria jus-europeia, o preceito perde efeito útil por não contemplar uma cláusula aberta de cooperação leal aplicável na ausência de regra específica.10 O

disposto no art. 19.º CPA fica, pois, aquém do que resulta do art. 4.º, n.º 3, TUE e da sua densificação jurisprudencial.

É, com efeito, constante a jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ)11 pela

qual todas as autoridades dos Estados-Membros, incluindo as suas autoridades administrativas, devem assegurar, por força deste princípio, o respeito pelo direito da União no exercício das suas competências,12 não tendo o TJ hesitado em

decompor do princípio obrigações concretas na esfera das entidades administrativas dos Estados-Membros.13 Assim, o disposto no art. 19.º CPA falha em transmitir a

real dimensão do princípio da cooperação leal enquanto princípio estruturante na necessária articulação intersistemática e internormativa que preside ao exercício da função administrativa da União e ao direito que o rege. Pelo caminho fica a noção

8 Fausto de Quadros, in Maria da Glória Garcia, et al., Comentários à revisão do Código do Procedimento

Administrativo (Coimbra: Almedina, 2016), 49-50.

9 João Pacheco de Amorim, “Os princípios gerais da atividade administrativa no projeto de revisão

do Código do Procedimento Administrativo”, Cadernos de Justiça Administrativa 100 (2013): 25.

10 Miguel Assis Raimundo, “Os princípios no novo CPA…”, 179-180.

11 No quadro da reforma da arquitetura jurisdicional da União, o Tribunal de Justiça da União

Europeia (TJUE) integra, desde setembro de 2016, duas jurisdições (art. 19.º, n.º 1, TUE): o Tribunal de Justiça (TJ) e o Tribunal Geral (TG) – o texto refere-se à primeira destas jurisdições.

12 Neste sentido, cfr. acórdãos TJ Alemanha c. Comissão, 12 de junho de 1990, Proc. C-8/88,

EU:C:1990:241, cons. 13; Kühne, 13 de janeiro de 2004, Proc. C-453/00, EU:C:2004:17, cons. 20; Kempter, 12 de fevereiro de 2008, Proc. C-2/06, EU:C:2008:78, cons. 34; Wall, 13 de abril de 2010, Proc. C-91/08, EU:C:2010:182, cons. 69; e Byankov, 4 de outubro de 2010, Proc. C-249/11, EU:C:2012:608, cons. 64.

13 A jurisprudência firmada pelo TJ, sob a alçada do princípio da cooperação leal, em matéria de

primado do direito da União, de efeito direto e de interpretação conforme, apesar de, no essencial, desenvolvida tendo por referência os tribunais nacionais, pauta também a aplicação do direito da União pelas administrações dos Estados-Membros. Destes princípios decorrem obrigações concretas para estas, obrigações que assumem especial relevo em caso de contradição entre disposições de direito interno e de direito da União aplicáveis numa dada situação, caso em que terão de reconhecer preferência aplicativa às disposições do direito da União, interpretando as disposições do direito nacional em conformidade ou, não sendo possível a interpretação conforme, deixando de aplicar as disposições do direito nacional desconformes, e, se for o caso, aplicar as disposições do direito da União que gozam de efeito direto – cfr., entre outros, acórdãos TJ

Fratelli Costanzo, 22 de junho de 1989, Proc. 103/88, EU:C:1989:256, cons. 31; Ciola, 29 de abril

de 1999, Proc. C-224/97, EU:C:1999:212, cons. 30; Larsy, 28 de junho de 2001, Proc. C-118/00, EU:C:2001:368, cons. 51-53; Henkel, 12 de fevereiro de 2004, Proc. C-218/01, EU:C:2004:88, cons. 60; Impact, 15 de abril de 2008, Proc. C-268/06, EU:C:2008:223, cons. 85; Gavieiro, 22 de dezembro de 2010, Procs. C-444/09 e C-456/09, EU:C:2010:819, cons. 72 e 73. Na doutrina, cfr. John Temple Lang, “The Duties of National Authorities Under Community Constitutional Law”, European Law Review 23 (2) (1998): 109-131; e Maartje Verhoeven, The Costanzo Obligation. The Obligation of

National Administrative Authorities in the Case of Incompatibility between National Law and European Law

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que, em bom rigor, subjaz ao princípio: as administrações públicas nacionais – e, assim, a Administração Pública portuguesa – são a administração da União de direito

comum,14 sendo-lhes confiada, em primeira linha (art. 291.º TFUE),15 a execução do

direito da União enquanto missão “essencial para o bom funcionamento da União» e «matéria de interesse comum” (art. 197.º TFUE).16

Esta será a principal coordenada que pautará a análise que segue respeitante à solução acolhida no art. 168.º, n.º 7, CPA.

II. A norma do artigo 168.º, n.º 7, CPA como norma de Direito

Administrativo da União Europeia

É amplamente destacada a natureza intersistemática, compósita ou multinível característica do exercício da função administrativa da União,17 função assegurada

quer pelas instituições e pelos órgãos e organismos da União, como pelas autoridades administrativas dos Estados-Membros, enquanto organismos codependentes18 da

autoridade administrativa da União.19 Ora, o bloco de juridicidade que regula o exercício

desta função integra não só normas que regulam a organização e o funcionamento da administração organicamente europeia, mas também os princípios gerais e as regras que regulam a atuação das autoridades administrativas dos Estados-Membros enquanto administração funcionalmente europeia. Neste “espaço administrativo da

14 Aproveitando a expressão utilizada pelo (então) Tribunal de Primeira Instância (TPI)

referindo-se, contudo, ao juiz nacional – cfr. acórdão TG/TPI Tetra Pak, 10 de julho de 1990, Proc. T-51/89, EU:T:1990:41, cons. 42. Também qualificando as administrações públicas nacionais como “administrations communes du système européen” ou “sujets européens communs”, cfr. Mario Chiti, “Les droits administratifs nationaux entre harmonisation et pluralisme eurocompatible”, in Traité de droit administratif européen, 2ª edição, dir. Jean-Bernard Auby e Jacqueline Dutheil de la Rochère (Bruxelas: Bruylant, 2015), 870 e 871.

15 A redação dada ao art. 291.º TFUE pelo Tratado de Lisboa propicia esta leitura. Nos termos

do preceito, a execução dos atos juridicamente vinculativos da União cabe, em primeira linha, aos Estados-Membros (n.º 1) e só quando “sejam necessárias condições uniformes de execução” à Comissão (sob controlo dos Estados-Membros nos termos do n.º 3) e “em casos específicos devidamente justificados” ao Conselho (n.º 2).

16 Artigo único de um capítulo introduzido pelo Tratado de Lisboa em matéria de cooperação

administrativa. Para Jürgen Schwarze, as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa no que se refere especificamente à execução administrativa do direito da União, como a nova redação dada ao art. 291.º TFUE e a introdução deste art. 197.º TFUE, demonstram que os Estados-Membros não pretendem abdicar da sua autonomia administrativa; em relação a esta última disposição, o Autor sublinha que, pese embora a sua importância simbólica, o preceito não cria novas obrigações na esfera dos Estados-Membros para além daquelas já resultantes do princípio da cooperação leal – cfr. Jürgen Schwarze, “European Administrative Law in the Light of the Treaty of Lisbon”, European Public Law 18(2) (2012), 285-304. Pelo contrário, Mario Chiti elege o art. 197.º TFUE como a “clé de voûte” de toda a disciplina da questão administrativa operada pelo Tratado de Lisboa, concluindo que a mesma terá feito largamente desaparecer a autonomia administrativa dos Estados-Membros – cfr. Mario Chiti, “Les droits administratifs nationaux entre harmonisation et pluralisme eurocompatible”, 874-875.

17 Cfr., entre outros, Maria Luísa Duarte, Direito Administrativo da União Europeia (Coimbra:

Coimbra Editora, 2008), 28-30; Claudio Franchini, “Les notions d’administration indirecte et de coadministration”, in Droit administratif européen, dir. Jean-Bernard Auby e Jacqueline Dutheil de la Rochère (Bruxelas: Bruylant, 2007), 261; e Mario Chiti, “Forms of European Administrative Action”, Law and Contemporary Problems 68 (2004), 38, respetivamente.

18 Jürgen Schwarze, Droit Administratif Européen, 2ª edição (Bruxelas: Bruylant, 2009), I-67.

19 Jacques Ziller, “L’autorité administrative dans l’Union européenne”, in L’autorité de l’Union

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internormatividade”,20 coexistem, por isso, fontes de proveniência jus-europeia e

fontes de proveniência nacional.

O segmento normativo apelidado Direito Administrativo da União Europeia21

pressupõe um pluralismo normativo de fontes diferenciadas, conducente, é certo, a múltiplas dificuldades metódicas,22 mas que deve orientar-se por uma ideia de

“pluralismo administrativo eurocompatível”.23 É assim que a expressão administração

da União de direito comum não é meramente descritiva do protagonismo das autoridades administrativas dos Estados-Membros na execução do direito da União, mas também explicativa do seu lugar no sistema administrativo integrado da União: sem deixarem de integrar o respetivo sistema administrativo nacional, a sua atuação nas vestes de administração funcionalmente europeia é regida pelo direito da União e, na falta deste,24 pelo direito nacional no respeito pelo direito da União ou de acordo com os

critérios ditados por este.25

Concretizando, se o direito nacional que disciplina ou na medida em que é mobilizado para disciplinar a atuação das administrações públicas dos Estados-Membros nas suas vestes de administração funcionalmente europeia releva do Direito Administrativo da União Europeia, então é possível qualificar a norma do art. 168.º, n.º 7, CPA como norma (jurídica portuguesa) de Direito Administrativo da União Europeia pois tem por escopo disciplinar a atuação da Administração Pública portuguesa enquanto administração funcionalmente europeia. Como já referido, a previsão da norma reporta-se exclusivamente ao direito da União: é com fundamento em “nova interpretação deste direito em sentença posterior, transitada em julgado, proferida por um tribunal administrativo que, julgando em última instância, tenha dado execução a uma sentença de um tribunal da União Europeia vinculativa para o Estado português” que fica a Administração constituída (“Desde que ainda o possa fazer”…) no dever de anulação do ato administrativo “que tenha sido julgado válido por sentença transitada em julgado, proferida por um tribunal administrativo com base na interpretação do direito da União Europeia”.

Propomo-nos, por isso, analisar a solução plasmada na disposição à luz da jurisprudência do TJ que o legislador do CPA procurou acolher.26 Afinal, enquanto

20 Maria Luísa Duarte, Direito Administrativo da União Europeia, 100.

21 Como explicamos em outro lugar [“Administração Pública”, in Direito da União Europeia –

Elementos de Direito e Políticas da União, coord. Alessandra Silveira, Mariana Canotilho e Pedro Madeira

Froufe (Coimbra: Almedina, 2016), 77-85], seguimos a noção avançada por Maria Luísa Duarte,

Direito Administrativo da União Europeia, 17-20 e 28-30.

22 José Joaquim Gomes Canotilho, “Estado de Direito e Internormatividade”, in Direito da União

Europeia e Transnacionalidade, coord. Alessandra Silveira (Lisbon: Quid Iuris, 2010), 171-185.

23 Mario Chiti, “Les droits administratifs nationaux entre harmonisation et pluralisme eurocompatible”,

868.

24 Com efeito, segundo jurisprudência constante do TJ relativa ao princípio da autonomia dos

Estados-Membros nas suas dimensões institucional, procedimental e processual, é “na falta de regulamentação da União” que cabe à ordem jurídica de cada Estado-Membro designar os órgãos competentes e definir as regras processuais e procedimentais aplicáveis à execução do direito da União a nível interno. Entre nós, sobre este princípio e os limites decorrentes dos princípios da efetividade e da equivalência, cfr., entre outros, Miguel Prata Roque, Direito Processual Administrativo Europeu: a convergência dinâmica no

Espaço Europeu de Justiça Administrativa (Coimbra: Coimbra Editora, 2011), 66-88; Fausto de Quadros, Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia, 3ª edição (Coimbra:

Almedina, 2013), 648-652; e o nosso “Administração Pública”, 106-113.

25 Fausto de Quadros, Direito da União Europeia…, 641 e 643.

26 Com efeito, como veremos infra, o direito da União deixa “máxima discricionariedade ao

legislador nacional para prever ou não a figura (expressa ou implicitamente) e de a regular (por exemplo, o prazo para o particular solicitar a anulação)”, de modo que o art. 168.º, n.º 7, CPA,

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administração da União de direito comum, a lealdade das autoridades administrativas dos Estados-Membros não está apenas para com as respetivas ordens jurídicas internas, mas simultaneamente e, em certas circunstâncias, prioritariamente, para com a ordem jurídica da União que devem assimilar, enquanto tal (ou seja, de acordo com os critérios por ela ditados), como igualmente sua.27 O mesmo sentido de lealdade

manifesta-se na interpretação das disposições de direito interno que as rege quando atuam no âmbito de aplicação do direito da União.

III. A norma do artigo 168.º, n.º 7, CPA à luz da jurisprudência

do Tribunal de Justiça

Na medida em que o direito da União integra o bloco de juridicidade que vincula as administrações públicas dos Estados-Membros, também não deixa ilesos os direitos administrativos internos,28 alterando-os, condicionando a sua criação,

orientando a sua interpretação, ajustando a sua aplicação. No CPA atualmente vigente, a disposição que nos propusemos analisar é disso paradigmático exemplo.

A solução inscrita no art. 168.º, n.º 7, CPA procura acolher jurisprudência do TJ relativa ao delicado problema do reexame de atos administrativos nacionais que tenham adquirido caráter definitivo mas cuja desconformidade com o direito da União é revelada após a sua consolidação na ordem jurídica. É, aliás, quase intuitiva a sua associação ao acórdão Kühne,29 a landmark decision proferida pelo TJ nesta sede. Qualquer solução

àquele problema deve procurar conciliar exigências de segurança e certeza jurídicas, que apontam para a estabilidade do ato administrativo, e exigências de legalidade relativamente ao direito da União.30 Como já tivemos oportunidade de sublinhar,31

o problema reporta-se também à articulação entre as ordens jurídicas nacionais e a ordem jurídica da União. Não é por acaso que, no acórdão Kühne e em outros que se lhe seguiram, a questão foi colocada ao TJ e por este respondida à luz do princípio da cooperação leal.32

A problemática identificada – e para a qual o art. 168.º, n.º 7, CPA oferece, então, solução legal – tem surgido na jurisprudência do TJ em três tipos de situações.

i) situação-tipo 1 – acórdão Kühne

Numa primeira situação, o reexame respeita a um ato administrativo que adquiriu caráter definitivo por força de decisão judicial transitada em julgado. Assim sucedeu no caso subjacente ao acórdão Kühne. Em concreto, a administração neerlandesa, após verificação das declarações prestadas pela empresa Kühne & Heitz, reclassificou

não pode “ser justificado como decorrendo de uma vinculação do Direito da UE.” – Rui Tavares Lanceiro, “O dever de anulação do artigo 168.º, n.º 7, do novo CPA e a jurisprudência Kühne &

Heitz”, ICJP, 22-23, disponível em www.icjp.pt (último acesso a 20.06.2017).

27 Herwig C. H. Hofmann, Gerard C. Rowe, e Alexander H. Türk, Administrative Law and Policy of the

European Union (Oxford: Oxford University Press, 2011), 137.

28 O direito da União modela ou “penetra no interior dos Direitos Administrativos nacionais” –

Fausto de Quadros, Direito da União Europeia…, 633.

29 Rui Tavares Lanceiro, “O dever de anulação…”, 9.

30 Assim colocou o TJ os termos da equação no acórdão Byankov, 77.

31 Sophie Perez Fernandes, “O reexame de atos administrativos definitivos contrários ao direito da

União em matéria de cidadania – os contornos do acórdão Byankov”, Debater a Europa 9 (2013), 81-82, disponível em debatereuropa.europe-direct-aveiro.aeva.eu (último acesso a 20.06.2017).

32 Cfr. acórdãos Kühne, cons. 19 e 28; i-21 Germany e Arcor, 19 de setembro de 2006, Procs. C-392/04

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a mercadoria por esta exportada e exigiu-lhe o reembolso dos montantes entretanto prestados a título de restituições à exportação. O órgão jurisdicional que conheceu e negou provimento ao recurso interposto pela Kühne & Heitz considerou, à luz da jurisprudência CILFIT,33 que a interpretação da regulamentação da União aplicável

não suscitava dúvidas, nem a empresa requereu que fosse submetida uma questão prejudicial ao TJ. Anos volvidos, e na sequência da prolação por este de um acórdão num processo envolvendo outras partes34 e que acolheu, em sede de classificação

pautal, interpretação do conceito de “coxa” que lhe era favorável, a Kühne & Heitz solicitou à administração neerlandesa o pagamento das restituições cujo reembolso lhe havia sido erradamente exigido. Não vendo a sua pretensão acolhida, a empresa recorreu para o órgão jurisdicional que suscitou o reenvio na origem do acórdão Kühne.35

Neste acórdão, como depois no acórdão Kempter,36 o TJ começou por abordar a

tensão “segurança jurídica/legalidade relativamente ao direito da União” subjacente à problemática que nos ocupa. Por força desta, “incumbe a todas as autoridades dos Estados-Membros assegurar o respeito das normas de direito comunitário no âmbito das suas competências respectivas”, de modo que os órgãos administrativos nacionais devem aplicar as disposições do direito da União tal como interpretadas pelo TJ “mesmo a relações jurídicas nascidas e constituídas antes de proferido o acórdão do Tribunal de Justiça que decidiu o pedido de interpretação.” Por outras palavras, o acórdão interpretativo do TJ tem natureza declarativa e, por isso, produz efeitos ex tunc37/38. Assim, o imperativo de

legalidade relativamente ao direito da União aponta para a reposição da juridicidade infringida com a eliminação do comportamento estadual desconforme. Contudo, o princípio da segurança jurídica, que também “figura entre os princípios gerais reconhecidos no direito comunitário”,39 aponta para a estabilidade dos atos administrativos, não

tolerando que estes sejam indefinidamente postos em causa;40 ora, o “carácter definitivo

de uma decisão administrativa, adquirido na expiração de prazos de recurso razoáveis ou por esgotamento das vias de recurso, contribui para a referida segurança”.41

Procurando uma solução de compromisso,42 o TJ fixou a seguinte jurisprudência.

Por regra, o princípio da segurança jurídica, tal como reconhecido pelo direito da União, “não exige que um órgão administrativo seja, em princípio, obrigado a revogar uma decisão administrativa que já adquiriu (…) carácter definitivo.” Contudo, a consideração do princípio da cooperação leal impõe ao órgão administrativo em causa o dever de, em determinadas circunstâncias, “reexaminar a referida decisão para ter em conta a interpretação da disposição pertinente do direito comunitário entretanto feita pelo Tribunal de Justiça”.43 Aquelas

33 Acórdão TJ CILFIT, 6 de outubro de 1982, Proc. 283/81, EU:C:1982:335, cons. 13-21. 34 Acórdão TJ Voogd, 5 de outubro de 1994, Proc. C-151/93, EU:C:1994:365.

35 Cfr. acórdão Kühne, cons. 5-10 e 18.

36 No qual o problema foi mais uma vez suscitado em sede de restituições à exportação – cfr.

acórdão Kempter, cons. 8-18.

37 Cfr. acórdãos Kühne, cons. 20-22; e Kempter, cons. 34-36.

38 Sem prejuízo de o TJ, excecionalmente e no exercício de uma competência exclusiva, limitar os

efeitos no tempo de um acórdão interpretativo – cfr. acórdão TJ Denkavit Italiana, 27 de março de 1980, Proc. 61/79, EU:C:1980:100, cons. 16-18.

39 Cfr. acórdãos Kühne, cons. 24; e Kempter, cons. 37. 40 Cfr. acórdão i-21 Germany e Arcor, cons. 51. 41 Cfr. acórdãos Kühne, cons. 24; e Kempter, cons. 37.

42 Maria Luísa Duarte, Direito Administrativo da União Europeia, 111.

43 Cfr. acórdãos Kühne, cons. 24, 27 e 28; Kempter, cons. 37-38; i-21 Germany e Arcor, cons. 51-52; e

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circunstâncias/condições44 são as seguintes:

1) o órgão administrativo em causa deve dispor, “segundo o direito nacional, do poder

de revogação” do ato administrativo que se tornou definitivo;45

2) o ato deve ter-se tornado definitivo “em consequência de um acórdão de um órgão jurisdicional nacional que decidiu em última instância”;46

3) esse acórdão deve, face à jurisprudência posterior do TJ, basear-se “numa interpretação errada do direito comunitário aplicada sem que ao Tribunal de Justiça tivesse sido submetida uma questão prejudicial”;47 e

4) o interessado deve ter-se dirigido ao órgão administrativo competente dentro de um prazo razoável fixado pelo direito interno.48

Em especial, o enunciado da segunda condição permite limitar o alcance da jurisprudência Kühne aos casos em que, ao caráter consolidado do ato administrativo, acresce a força de caso julgado da decisão judicial proferida em última instância em virtude da qual aquele se tornou definitivo. A jurisprudência Kühne visa essencialmente “mitigar os efeitos negativos que provoca a ausência do reenvio prejudicial” (aquando da prolação da decisão judicial por força da qual o ato administrativo contrário ao direito da União se tornou definitivo), “oferecendo aos litigantes que fizeram uso das vias de recurso previstas no seu direito interno uma nova possibilidade de fazer valer os direitos que lhes confere o direito comunitário.”49 A jurisprudência Kühne

insere-se, pois, no quadro das ‘sanções’ do direito da União ao não cumprimento da obrigação de reenvio prejudicial que para os órgãos jurisdicionais nacionais que

44 Se no acórdão Kühne, cons. 27, o TJ se refere a “circunstâncias”, em jurisprudência posterior

refere-se às mesmas enquanto “condições” – cfr. acórdãos Kempter, cons. 39; e i-21 Germany e Arcor, cons. 52.

45 Nas suas Conclusões de 16 de março de 2006, i-21 Germany e Arcor, Procs. C-392/04 e C-422/04,

EU:C:2006:181, cons. 67, o Advogado-Geral D. R. Jarabo Colomer denuncia o “erro da doutrina Kühne & Heitz” em razão do “apego ao direito nacional, promovido nesta matéria pelo Tribunal de Justiça”, o qual suscita “problemas sérios”, entre os quais destaca a “disparidade na tutela dos direitos baseados na ordem jurídica comunitária.” Para um apanhado geral dos regimes jurídicos existentes nos distintos Estados-Membros sobre a matéria, cfr. Consequences of Incompatibility with

EC Law for Final Administrative Decisions and Final Judgments of Administrative Courts in the Member States (Varsóvia: Association of the Councils of State and Supreme Administrative Jurisdictions,

2008). Criticando esta solução, cfr. Dominique Ritleng, “Le retrait des actes administratifs contraíres au droit communautaire”, in L’état actuel et les perspectives du Droit Administratif Européen, dir. Jürgen Schwarze (Bruxelas: Bruylant, 2010), 266-270; Laurent Coutron, “L’irénisme des Cours européennes. Rapport introductif ”, in L’obligation de renvoi préjudiciel à la Cour de justice. Une obligation

sanctionnée?, dir. Laurent Coutron (Bruxelas: Bruylant, 2014), 40-41.

46 Como se verá, a jurisprudência Kühne não se aplica caso o interessado não tenha atuado

judicialmente para impugnar o ato administrativo que, assim, se torna definitivo por esgotamento dos prazos de que dispunha para o efeito.

47 O acórdão Kempter, cons. 43-44, esclareceu não ser exigível ao interessado que suscite, “no âmbito do

seu processo jurisdicional de direito interno, a questão de direito comunitário que foi posteriormente objecto do acórdão prejudicial do Tribunal de Justiça”; para o preenchimento desta condição, basta que a questão de direito

da União cuja interpretação se tenha revelado errada à luz de um acórdão posterior do TJ tenha sido examinada pelo órgão jurisdicional nacional que decidiu em última instância ou que pudesse ter sido suscitada oficiosamente por este.

48 A propósito, o TJ de alguma forma substitui no acórdão Kempter, cons. 54-60, o imediatismo

resultante do acórdão Kühne, cons. 28, pelo caráter razoável dos prazos fixados pelo direito nacional. Mas, não impondo o direito da União um prazo para a apresentação de um pedido de reexame de um ato administrativo que se tornou definitivo, os prazos fixados para o efeito pelo direito interno devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade.

49 Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot de 24 de abril de 2007, Kempter, Proc. C-2/06,

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decidam em última instância resulta do art. 267.º, n.º 3, TFUE.50

Do acórdão Kühne resulta ainda que, verificadas aquelas condições, decorre para os órgãos administrativos nacionais uma obrigação de reexame/reapreciação do ato administrativo contrário ao direito da União que se tenha tornado definitivo – só em função dos resultados desse reexame determinarão se estão obrigados “a revogar, sem lesar os interesses de terceiros, a decisão em causa.”51 Como explicado supra, do

direito da União não resulta para os órgãos administrativos nacionais a obrigação geral de revogar/anular um ato administrativo que tenha adquirido caráter definitivo (princípio da segurança jurídica), mas apenas, verificadas certas condições, uma obrigação de reexame de forma a ter em conta jurisprudência posterior do TJ à luz da qual aquele ato se revelou contrário ao direito da União (princípio da cooperação leal). Uma vez, então, procedido o reexame à luz do quadro interpretativo correto e ponderados todos os interesses públicos e privados envolvidos, cabe ao órgão administrativo nacional em causa determinar se se impõe ou não revogar/anular o ato administrativo – o que as exigências de legalidade relativamente ao direito da União não toleram é a inércia das autoridades administrativas dos Estados-Membros.

ii) situação-tipo 2 – acórdão Lucchini

Em relação à jurisprudência Kühne, o acórdão Lucchini introduziu uma exceção setorial.52 A par do reexame de um ato administrativo que adquiriu caráter definitivo

por força de decisão judicial transitada em julgado, o caso coloca também um problema competencial. Estava em causa a recuperação de auxílios de Estado declarados incompatíveis com o mercado interno. Antes de a Comissão ter tomado esta decisão, a Lucchini já havia acionado judicialmente as autoridades italianas a fim de lhe ser reconhecido o direito ao pagamento do auxílio pedido, iniciando uma saga judicial ao longo da qual a decisão da Comissão entretanto tomada foi ignorada; acresce que nem a Lucchini nem o Governo italiano interpuseram recurso desta decisão. Em consequência, o despacho de concessão do auxílio em favor da Lucchini adquiriu caráter definitivo por força de decisão judicial transitada em julgado. Só após correspondência trocada com a Comissão, a administração italiana revogou o referido despacho e exigiu da Lucchini o reembolso dos montantes prestados. O órgão jurisdicional que conheceu do recurso interposto pela Lucchini acolheu a sua pretensão considerando que as prerrogativas que permitem à Administração revogar os seus próprios atos estavam, no caso, limitadas pelo direito à concessão do auxílio reconhecido por acórdão transitado em julgado. Interposto recurso junto do Consiglio

di Stato, este suscitou o reenvio na origem do acórdão Lucchini.53

Segundo jurisprudência constante, a recuperação de um auxílio de Estado declarado incompatível com o mercado interno é consequência lógica desta declaração, limitando-se o papel das autoridades nacionais a dar execução à decisão da Comissão (não gozam de um poder discricionário para decidir de forma diferente). Se bem

50 Laurent Coutron, “L’irénisme des Cours européennes…”, 39-52. 51 Cfr. acórdão Kühne, cons. 27.

52 Laurent Coutron, “L’irénisme des Cours européennes…”, 32. Para Fausto de Quadros, Direito

da União Europeia…, 684-687, dos acórdãos Kühne e Lucchini emergem regimes diferenciados de

revogação/anulação consoante o ato administrativo incida sobre matéria de atribuição exclusiva ou concorrente da União.

53 Cfr. acórdão TJ Lucchini, 18 de julho 2007, Proc. C-119/05, EU:C:2007:434, cons. 17-39; para uma

reconstrução cronológica dos factos, cfr. Conclusões do Advogado-Geral L. A. Geelhoed de 14 de setembro de 2006, Lucchini, Proc. C-119/05, EU:C:2006:576, cons. 13.

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que, na ausência de disposições do direito da União, a recuperação opere de acordo com as disposições pertinentes do direito interno, as mesmas devem ser aplicadas de forma a não tornar praticamente impossível a recuperação exigida pelo direito da União e respeitando em toda a sua extensão o interesse da União.54 Em particular,

no acórdão Alcan, o TJ já havia retirado a consequência de que a autoridade nacional competente “está obrigada, por força do direito comunitário, a revogar a decisão de concessão de um auxílio atribuído ilegalmente, em conformidade com uma decisão definitiva da Comissão que declara o auxílio incompatível e exige a sua recuperação, mesmo que tenha deixado expirar o prazo previsto para esse efeito” no direito interno pois, a partir do momento em que a Comissão notifica a sua decisão, os intervenientes no mercado deixam de estar numa situação de incerteza sobre a possibilidade de recuperação do auxílio.55

Indo mais longe, do acórdão Lucchini resulta que a obrigação de recuperação do auxílio subsiste apesar de existir uma decisão judicial nacional em sentido contrário que tenha adquirido força de caso julgado. O TJ aí declarou que o direito da União se opõe à aplicação de uma disposição do direito nacional que pretende consagrar o princípio da autoridade do caso julgado quando a sua aplicação obsta à recuperação de um auxílio de Estado concedido em violação do direito da União e cuja incompatibilidade com o mercado interno foi declarada por decisão definitiva da Comissão.56 O acórdão Olimpiclub viria esclarecer que o alcance desta erosão do

princípio da autoridade do caso julgado se limita à “situação muito especial”, em causa no acórdão Lucchini, relativa à repartição das competências entre a União e os Estados-Membros em matéria de auxílios de Estado, quadro no qual a Comissão dispõe, sob controlo do juiz da União, de competência exclusiva para apreciar a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno.57

Em rigor, pois, a pretensão da Lucchini almejava a consolidação de uma decisão judicial nacional que, ignorando flagrantemente o direito da União aplicável, lhe reconheceu o direito à concessão do auxílio quando os órgãos jurisdicionais nacionais não são competentes para decidir sobre a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno.58 Acresce que a referida decisão judicial transitou

em julgado já depois de a decisão da Comissão se ter tornado definitiva. Esclareceu o TJ no acórdão Comissão c. Eslováquia que, pelo contrário, quando a decisão judicial nacional transitada em julgado é anterior à decisão pela qual a Comissão impõe a recuperação do auxílio, a jurisprudência Lucchini não é “diretamente pertinente”.59

Confirma-se o caráter excecional e particular da jurisprudência Lucchini: como resultava de jurisprudência anterior e seria posteriormente confirmado, “o direito da

54 Entre outros, acórdãos TJ Deutsche Milchkontor, 21 de setembro de 1983, Procs. 205 a 215/82,

EU:C:1983:233, cons. 30-33; Alcan, 20 de março de 1997, C-24/95, EU:C:1997:163, cons. 24, 25 e 34; Comissão c. Portugal, 27 de junho de 2000, Proc. 404/97, EU:C:2000:345, cons. 38 e 55; Comissão

c. Eslováquia, 22 de dezembro de 2010, Proc. C-507/08, EU:C:2010:802, cons. 42, 43 e 52. Este

sentido de jurisprudência encontrou eco no direito derivado – cfr. art. 16.º, n.º 3, do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.º TFUE, JO L 248 de 24.9.2015, p. 9-29.

55 Cfr. acórdão Alcan, cons. 35-38. 56 Cfr. acórdão Lucchini, cons. 63.

57 Acórdão TJ Olimpiclub, 3 de setembro de 2009, Proc. C-2/08, EU:C:2009:506, cons. 25.

58 Cfr. acórdão Lucchini, cons. 50-52 e 62. A atitude da Lucchini que, dirigindo-se aos órgãos

jurisdicionais nacionais, optou pelo “elo mais fraco da cadeia jurisdicional que podia ser chamado a decidir sobre a legalidade da concessão do auxílio de Estado”, apenas foi considerado por L. A. Geelhoed mas como “argumento acessório” – cfr. Conclusões Lucchini, cons. 68, 75 e 83.

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União nem sempre obriga um órgão jurisdicional nacional a deixar de aplicar as regras processuais internas que conferem autoridade de caso julgado a uma decisão judicial, mesmo que isso permiti[a]

obviar a uma violação do direito da União pela decisão em causa”.60 E assim não o impôs no

acórdão Comissão c. Eslováquia, mas tal não impediu o TJ de declarar o incumprimento por não terem sido adotadas, dentro do prazo fixado, todas as medidas necessárias para recuperar o auxílio junto da empresa beneficiária.61

iii) situação-tipo 3 – acórdãos i-21 Germany e Arcor e Byankov

Como referido supra, a segunda condição para a aplicação da jurisprudência Kühne é a de que o ato administrativo se tenha tornado definitivo “em consequência de um acórdão de um órgão jurisdicional nacional que decidiu em última instância”. Assim não sucedendo, ou seja, caso o ato administrativo tenha adquirido caráter definitivo na expiração dos prazos de impugnação judicial, aquela jurisprudência “não é diretamente pertinente” – assim esclarecem os acórdãos i-21 Germany e Arcor e Byankov.62 Em concreto, nem

aquelas empresas nem Hristo Byankov lançaram mão das vias judiciais disponíveis para impugnar os atos administrativos que, respetivamente, determinavam a aplicação de taxas a título de licença individual de telecomunicações e uma proibição de saída do território nacional. No primeiro caso, as empresas requereram a revogação daqueles atos invocando a ilegalidade e a inconstitucionalidade da regulamentação ao abrigo da qual foram adotados entretanto declaradas em tribunal; no litígio judicial que se seguiu, invocaram igualmente a sua desconformidade com a Diretiva 97/13.63

Hristo Byankov requereu a revogação da proibição de saída do território invocando a sua qualidade de cidadão da União, o direito à livre circulação e residência associado a esse estatuto e a Diretiva 2004/38 que regula o seu exercício.64 Nenhuma das

pretensões obteve sucesso por não estarem reunidas as condições de direito interno para a revogação de atos administrativos definitivos.65

60 Acórdão Comissão c. Eslováquia, cons. 60. A importância do princípio da autoridade do caso julgado

para a ordem jurídica da União e na sua relação com o direito nacional foi confirmada nos acórdãos TJ Köbler, 30 de setembro de 2003, Proc. C-224/01, EU:C:2003:513, cons. 38; Kapferer, 16 de março de 2006, Proc. C-234/04, EU:C:2006:178, cons. 20-21; e Olimpiclub, cons. 20-23.

61 No caso, no quadro de um processo de recuperação, havia sido perdoada uma dívida fiscal à

Frucona mediante acordo com os credores (concordata) aprovado por decisão judicial. Em execução da decisão da Comissão que declarava o auxílio de Estado assim concedido incompatível com o mercado interno, a repartição de finanças competente acionou judicialmente a Frucona em vista à recuperação do auxílio, sem sucesso, requerendo depois a interposição de um recurso extraordinário de revisão da decisão de concordata que tinha adquirido força de caso julgado. Sem criticar a via judicial seguida, o TJ declarou o incumprimento por não terem sido fornecidos elementos suficientes de que tinham sido efetuadas todas as diligências possíveis para obter o reembolso do auxílio dentro do prazo fixado e, em particular, não havia sido precisado o desfecho dado ao recurso extraordinário de revisão interposto – cfr. acórdão Comissão c. Eslováquia, cons. 6-14, 53 e 61-65.

62 Acórdãos i-21 Germany e Arcor, cons. 53-54; e Byankov, cons. 51.

63 Diretiva 97/13/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de abril de 1997, relativa a

um quadro comum para autorizações gerais e licenças individuais no domínio dos serviços de telecomunicações, JO L 117, 7.5.1997, p. 15-27, revogada pela Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas, JO L 108, 24.4.2002, p. 33-50.

64 Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa

ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.º 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE, JO L 158, 30.4.2004, p. 77-123.

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Em ambos os casos, o TJ pronunciou-se pela desconformidade com o direito da União da regulamentação nacional ao abrigo do qual os atos administrativos controvertidos haviam sido adotados.66 Apesar de estes terem adquirido caráter

definitivo, colocava-se a questão de saber se, a fim de salvaguardar os direitos que para os particulares decorriam do direito da União, este impunha o seu reexame e eventual revogação às autoridades administrativas competentes.67 Se bem que a

jurisprudência Kühne não fosse aplicável, o TJ recordou o princípio aí estabelecido: “o caráter definitivo de uma decisão administrativa contribui para a segurança jurídica, com a consequência de que o direito da União não exige que um órgão administrativo seja, em princípio, obrigado a revogar uma decisão administrativa que já adquiriu este caráter definitivo.”68 Assim,

na falta de regulamentação da União na matéria, a questão seria de resolver de acordo com o direito interno de cada Estado-Membro, condicionado ao respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade.69

No caso i-21 Germany e Arcor, o órgão jurisdicional de reenvio deu conta que, segundo a jurisprudência alemã, os órgãos administrativos dispõem de um poder, em princípio, discricionário de revogar atos administrativos inválidos, mesmo quando estes se tenham tornado definitivos; este poder discricionário pode, porém, desaparecer se a manutenção do ato for “simplesmente insuportável” à luz dos princípios da igualdade, da equidade, da ordem pública ou da boa-fé, ou em caso de “ilegalidade manifesta”. Foi, em particular, questionada a aplicação deste conceito à luz do princípio da equivalência. Tendo o TJ esclarecido que a regulamentação alemã era “claramente incompatível” com o direito da União, exortou as autoridades nacionais a daí extraírem todas as consequências uma vez que, sendo a administração obrigada, em aplicação do direito interno, a revogar um ato administrativo definitivo se for manifestamente incompatível com o direito interno, idêntica obrigação deve existir em caso de manifesta incompatibilidade com o direito da União.70

No caso Byankov, o escrutínio do TJ foi mais apertado. De acordo com as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, o direito búlgaro admite a revogação de atos administrativos definitivos em condições taxativamente enunciadas, nomeadamente com fundamento em “violação substancial da sua legalidade”; nesse caso, contudo, a reabertura do procedimento apenas pode ser apresentado no prazo de um mês a contar da data da prática do ato e o seu destinatário não tem legitimidade para o efeito. Em consequência, Hristo Byankov estava impossibilitado de obter a reapreciação do seu caso apesar da “ilegalidade manifesta” (à luz do direito da União) da proibição de saída de território a que estava sujeito. Considerando a “importância que o direito primário atribui ao estatuto de cidadão da União”, que a aplicação do direito búlgaro perpetuava por tempo indeterminado a proibição de saída do território, tendo por efeito a “negação mesmo da liberdade de circulação e de residência” conferido por aquele estatuto, e que a possibilidade de revisão prevista no art. 32.º, n.º 1, da Diretiva 2004/38 se impunha, a fortiori, numa situação como a que estava em causa, o TJ considerou que a regulamentação búlgara em causa não era “razoavelmente justificada

66 O modo de cálculo da taxa previsto na regulamentação alemã contrariava o disposto no art.

11.º, n.º 1, da Diretiva 97/13 e a restrição ao direito de livre circulação e residência resultante da regulamentação búlgara não observava as condições fixadas no art. 27.º, n.os 1 e 2, da Diretiva

2004/38 – cfr. acórdãos i-21 Germany e Arcor, cons. 28-42; e Byankov, cons. 34-48.

67 Cfr. acórdãos i-21 Germany e Arcor, cons. 56; e Byankov, cons. 65. 68 Cfr. acórdãos i-21 Germany e Arcor, cons. 51; e Byankov, cons. 76. 69 Cfr. acórdãos i-21 Germany e Arcor, cons. 57; e Byankov, cons. 69. 70 Cfr. acórdão i-21 Germany e Arcor, cons. 8, 14 e 61-72.

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pelo princípio da segurança jurídica” e era contrária aos princípios da efetividade e da cooperação leal.71

IV. Em busca de solução “eurocompatível” para o artigo 168.º,

n.º 7, CPA

O art. 168.º, n.º 7, CPA insere-se no quadro da distinção operada pelo novo CPA entre as figuras da revogação e da anulação administrativas e dos respetivos regimes.72 Enquanto manifestação de administração ativa, a revogação determina

a cessação dos efeitos de um ato administrativo primário por razões de mérito, conveniência ou oportunidade, produzindo, em regra, efeitos ex nunc, ao passo que a anulação, manifestação de administração de controlo, provoca a destruição dos efeitos de um ato administrativo primário com fundamento na sua invalidade, produzindo, por regra, efeitos ex tunc73/74. A propósito desta, ficou também patente a

diferença entre anulação administrativa e anulação judicial, para as quais são fixados prazos não necessariamente coincidentes, permitindo-se, em certas circunstâncias e condições, a anulação administrativa de atos contenciosamente inimpugnáveis.75

Ora, ao regime plasmado no art. 168.º, n.º 7, CPA subjaz precisamente um caso de anulação administrativa de ato contenciosamente inimpugnável em razão do trânsito em julgado da sentença judicial que o declarou válido.

Como referido no início, a previsão da norma reporta-se exclusivamente ao direito da União:76 a anulação funda-se na desconformidade do ato administrativo

primário com as exigências que o direito da União lhe impunha. Mais por “razões pedagógicas” do que por imperativo do direito da União, pois a jurisprudência do TJ vincula por si só todos os Estados-Membros,77 parece ter sido intenção do legislador

‘transpor’ a jurisprudência Kühne. Não há, contudo, inteira coincidência entre as

71 Cfr. acórdão Byankov, cons. 14-17, 60-62 e 72-82.

72 Para uma análise crítica desta opção, cfr., remetendo para o debate doutrinário aí escrutinado,

Carla Amado Gomes, “A ‘revogação’ do acto administrativo: uma noção pequena”, in Comentários

ao novo Código de Procedimento Administrativo, coord. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves

and Tiago Serrão (Lisbon: AAFDL, 2015), 1005-1008; e Marco Caldeira, “A figura da ‘Anulação Administrativa’…”, 1036-1041.

73 Cfr. arts. 165.º e 171.º, n.os 1 e 3, CPA.

74 Cfr. Mário Aroso de Almeida, in Maria da Glória Garcia, et al., Comentários à revisão do Código do

Procedimento Administrativo (Coimbra: Almedina, 2016), 337-338.

75 Cfr. Preâmbulo do DL 4/2015, cons. 18.

76 Não existe um dever de anulação semelhante ao previsto no art. 168.º, n.º 7, CPA para as situações

que restam do foro exclusivamente doméstico. A existência de um duplo padrão, consoante seja ou não aplicável o direito da União, para o tratamento da mesma questão jurídica, não é desconhecida do ordenamento jurídico português – o art. 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas sendo, à luz de jurisprudência recente (cfr. acórdão TC n.º 363/2015, de 9 de julho, Proc. 185/15, e acórdão TJ Ferreira da Silva, 9 de setembro de 2015, Proc. C-160/14, EU:C:2015:565), paradigmático exemplo –, mas tratando-se de um resultado potencialmente atentatório do princípio da igualdade, é suscetível de alimentar o debate em torno da (in)constitucionalidade da norma do art. 168.º, n.º 7, CPA, não em relação à solução aí plasmada em si, mas em relação ao seu alcance. Questionando a constitucionalidade da norma, Paulo Otero, “Problemas constitucionais do novo Código do Procedimento Administrativo – uma introdução”, in Comentários ao novo Código de Procedimento Administrativo, coord. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves and Tiago Serrão (Lisbon: AAFDL, 2015), 23-26, e Marco Caldeira, “A figura da ‘Anulação Administrativa’…”, 1053; rejeitando qualquer problema de constitucionalidade, Fausto de Quadros, in Maria da Glória Garcia, et al., Comentários à revisão do Código do Procedimento Administrativo, 363.

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condições enunciadas nesse acórdão e o enunciado do art. 168.º, n.º 7, CPA; para além disso, os termos do preceito não se afiguram inteiramente compatíveis com a jurisprudência do TJ a que se reporta.

A primeira parte do preceito carece de uma primeira precisão. O dever de anulação aí previsto ocorre face a um ato administrativo julgado válido por sentença transitada em julgado proferida com base numa dada interpretação do direito da União, fundando-se numa “nova interpretação” desse direito. Não se trata, contudo, de um caso de invalidade superveniente pois, após a prática do ato, não muda o respetivo parâmetro de validade78 – o que é revelada é a correta interpretação do direito da

União à luz da qual devia ter sido praticado. Como recordou o TJ no acórdão Kühne, os órgãos administrativos nacionais devem aplicar as disposições do direito da União tal como interpretadas pelo TJ mesmo a relações jurídicas nascidas e constituídas antes de proferido o acórdão interpretativo.79 Na medida em que este produz efeitos

ex tunc, a desconformidade do ato com o direito da União é originária, referida ao momento da prática do ato, mas é supervenientemente revelada por acórdão do TJ.

Acresce que o erro de direito na interpretação e aplicação do direito da União cometido pelo órgão administrativo é reiterado depois em sede judicial – esta é também a hipótese ínsita à jurisprudência Kühne. A mesma tem, aliás, por objetivo mitigar os efeitos da ausência de reenvio prejudicial, oferecendo aos particulares nova oportunidade de fazer valer os direitos que para eles decorrem do direito da União. Contudo, e contrariamente às condições delineadas no acórdão Kühne, o art. 168.º, n.º 7, CPA não exige que a sentença que tenha julgado o ato administrativo válido tenha sido proferida em última instância, nem se refere à omissão de reenvio prejudicial – apenas exige que a sentença tenha transitado em julgado. Nessa medida, a previsão da norma é mais ampla do que hipótese ínsita à jurisprudência Kühne, ‘candidatando’ para anulação um ato administrativo tornado definitivo por sentença judicial transitada em julgado mesmo se não proferida em última instância e independentemente de ter havido reenvio prejudicial (na hipótese de ter sido retirado ou o acórdão do TJ ter sido mal acolhido).

Em contrapartida, ao impor um dever de anulação, o preceito deixa inequívoco o preenchimento da primeira condição enunciada no acórdão Kühne. Ao mesmo tempo, vai para além da solução de compromisso resultante da jurisprudência do TJ a que se fez referência. Com efeito, da mesma não resulta que do direito da União decorra uma obrigação geral de revogar/anular atos administrativos que tenham adquirido caráter definitivo após o esgotamento das vias de recurso (ou após o decurso de prazos razoáveis de recurso),80 mas apenas uma obrigação de reexame de forma

a ter em conta jurisprudência posterior do TJ à luz da qual se revelam contrários ao direito da União. Apenas no domínio dos auxílios de Estado o direito da União impõe a revogação/anulação do ato de concessão do auxílio declarado incompatível com o mercado interno e a consequente recuperação do auxílio concedido, mesmo que reguladas pelo direito interno.81 Sem que o direito da União obrigasse a tanto,

o legislador do CPA optou, contudo, por impor um dever de anulação, o que resulta inequívoco do rigor da expressão “tem o dever de anular” e reforçado pela consideração do poder discricionário de anular atribuído à Administração nos demais

78 Marco Caldeira, “A figura da ‘Anulação Administrativa’…”, 1057. 79 Cfr. acórdãos Kühne, cons. 20-22; e Kempter, cons. 34-36.

80 Cfr., supra, nota 44. 81 Cfr., supra, notas 55 e 56.

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casos previstos no art. 168.º CPA.82

É legítimo questionar a imposição de um tal dever de anulação atendendo às necessidades acrescidas de segurança jurídica que se fazem sentir num caso em que, tendo o ato administrativo sido objeto de fiscalização judicial, ao caso administrativo decidido acresce a autoridade do caso julgado. Do próprio acórdão Kühne decorre que os órgãos administrativos nacionais determinam se se impõe ou não revogar/anular o ato administrativo ponderados todos os interesses públicos e privados envolvidos.83

Talvez seja esse o sentido a atribuir à ressalva inicial do art. 168.º, n.º 7, CPA pela qual à Administração se impõe o dever de anular “desde que ainda o possa fazer”. Este segmento pode, assim, ser interpretado (em termos compatíveis com o direito da União) no sentido de excluir o dever de anulação por razões de interesse público ou de proteção dos direitos e interesses legítimos dos particulares afetados, ou ainda em razão da expiração dos prazos fixados no art. 168.º CPA.84 Em particular,

admitindo-se que o admitindo-segmento destacado admitindo-se reporte aos prazos, tal deveria ter ficado mais claro da letra da lei pois, de acordo com a jurisprudência do TJ, a aplicação de um prazo fixado pelo direito interno numa situação regulada pelo direito da União deve ser “suficientemente previsível” para respeitar o princípio da segurança jurídica.85

Ainda no quadro da análise da primeira parte do preceito, coloca-se a questão de saber se o dever de anulação aí previsto se impõe igualmente quando o ato administrativo não tenha sido judicialmente impugnado e, assim, não tenha sido julgado válido por sentença transitado em julgado.86 Tal interpretação extensiva daria

cobertura a situações como aquelas em causa nos acórdãos i-21 Germany e Arcor e Byankov, para além de permitir interpretar o art. 168.º, n.º 7, CPA como expressão de uma regra geral pela qual a Administração deve, se não anular, pelo menos rever atos administrativos que, independentemente de terem sido ou não objeto de impugnação contenciosa, adquiriram caráter definitivo para ter em conta a interpretação do direito da União relevante feita posteriormente pelo TJ. A leitura conjugada daqueles dois acórdãos também revela a necessidade de atender à importância do domínio material em causa na ordem jurídica da União para ajuizar da compatibilidade com o direito da União das soluções de direito interno aplicáveis por força do princípio da autonomia procedimental, para além de sublinhar a necessidade de estas se conformarem às condições resultantes dos princípios da equivalência e da efetividade87 – coordenada

especialmente relevante considerando a segunda parte do preceito em análise. Com efeito, nos termos do art. 168.º, n.º 7, CPA, a interpretação (posterior) do direito da União que serve de fundamento para a anulação deve constar de “sentença posterior, transitada em julgado, proferida por um tribunal administrativo que, julgando em última instância, tenha dado execução a uma sentença de um tribunal da União Europeia vinculativa para o Estado português”. Esta última parte carece de uma primeira precisão, devendo ser interpretada como referindo-se à interpretação correta do direito da União que resulte de jurisprudência posterior do TJ, e não necessariamente de acórdão proferido no quadro de um processo que tenha como

82 Cfr. Marco Caldeira, “A figura da ‘Anulação Administrativa’…”, 1053. 83 Cfr. acórdão Kühne, cons. 27.

84 Referindo-se aos prazos, Rui Tavares Lanceiro, “O dever de anulação…”, 16.

85 Cfr., entre outros, acórdãos TJ Danske Slagterier, 24 de março de 2009, Proc. C-445/06,

EU:C:2009:178, cons. 30-34; e Cruz & Companhia, 17 de setembro de 2014, Proc. C-341/13, EU:C:2014:2230, cons. 57-58.

86 Colocando a questão, Marco Caldeira, “A figura da ‘Anulação Administrativa’…”, 1054. 87 Cfr., supra, nota 70.

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‘parte’ o Estado português, como uma ação por incumprimento ou um reenvio prejudicial da iniciativa de um tribunal português.88

Para além disso, o preceito coloca aqui um filtro,89 incompatível com o direito da

União, à aplicação da jurisprudência do TJ: a Administração apenas fica constituída no dever de anulação se a correta interpretação do direito da União resultante de jurisprudência posterior do TJ for ‘executada’ (acolhida/recebida) em sentença proferida por um tribunal administrativo português decidindo em última instância e entretanto transitada em julgado. Duas vias são equacionáveis – a referida sentença ora seria proferida no âmbito de um processo que envolva o ato administrativo em causa, ora no âmbito de outro processo que, envolvendo outras partes, convoque o quadro jurídico ao abrigo do qual aquele foi praticado. A primeira é suscetível de ser concretizada através do recurso extraordinário de revisão,90 mas o resultado do

mesmo acaba por inutilizar a anulação administrativa prevista no art. 168.º, n.º 7, CPA. Em todo o caso, nenhuma delas é compatibilizável com o direito da União.91

Não só tornam excessivamente difícil ou praticamente impossível ao particular exercer os direitos que para ele decorrem do direito da União, mas principalmente fazem depender a vinculação da Administração à interpretação do direito da União pelo TJ de intermediação judicial quando, como aliás recordado no acórdão Kühne, cabe às autoridades administrativas dos Estados-Membros assegurar o respeito pelo direito da União tal como interpretado, com efeitos ex tunc, pelo TJ.92

Por outras palavras, a segunda parte do preceito esquece que a jurisprudência do TJ integra por si só o bloco de juridicidade que vincula as administrações públicas nacionais enquanto administração funcionalmente europeia. Basta, pois, à Administração (oficiosamente) ou ao particular93 invocar, para efeitos da anulação

prevista no art. 168.º, n.º 7, CPA, o acórdão do TJ que, posteriormente ao trânsito em julgado da sentença que julgou o ato administrativo válido, esclareça o sentido e o alcance que ao direito da União relevante devia ter sido atribuído desde a sua entrada em vigor.

V. Considerações finais

O legislador procurou no art. 168.º, n.º 7, CPA fazer eco à jurisprudência do TJ relativa ao reexame de atos administrativos nacionais definitivos cuja desconformidade com o direito da União decorre de jurisprudência posterior do TJ. Para além de outros problemas de interpretação colocados pela redação pouco feliz do preceito, é ao condicionar a anulação a uma intermediação judicial que o mesmo se revela incompatível com o direito da União. Em todo o caso, enquanto direito da

88 Rui Tavares Lanceiro, “O dever de anulação…”, 17. 89 Ibid, 18.

90 Com o fundamento previsto no art. 696.º, f), CPC, aplicável no âmbito do contencioso

administrativo por força do art. 154.º, n.º 1, CPTA. Para uma análise crítica do preceito à luz do direito da União, cfr. Maria José Rangel De Mesquita, O Regime da Responsabilidade Civil

Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia (Coimbra: Almedina,

2009), 73-92.

91 Como explica Rui Tavares Lanceiro, “O dever de anulação…”, 18-22. 92 Cfr. acórdão Kühne, cons. 20-22.

93 A iniciativa particular do pedido de reexame resulta claramente da jurisprudência Kühne que,

recorde-se, oferece aos particulares nova possibilidade para fazer valer os direitos que para eles decorrem do direito da União em caso de não cumprimento da obrigação de reenvio prejudicial aquando da prolação da sentença por força da qual o ato administrativo se tornou definitivo.

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União vertido em direito nacional, a norma do art. 168.º, n.º 7, CPA não é apenas exemplo da permeabilidade do direito administrativo interno face ao direito da União, mas também acentua o sentido de lealdade que deve nortear a Administração Pública portuguesa nas suas vestes de administração funcionalmente europeia: na aplicação da solução aí plasmada, o seu sentido de lealdade está dirigido também, senão prioritariamente, para a ordem jurídica da União, a ser assimilada de acordo com os critérios que lhe são próprios. Só a prática administrativa e jurisdicional, contudo, permitirá aferir com mais acuidade o real impacto desta positivação na lei geral do procedimento administrativo de obrigações decorrentes do direito da União, especialmente da jurisprudência do TJ.

Referências

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