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Cem um tempo que nos caiba:

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Academic year: 2022

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA. SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA. Cem um tempo que nos caiba: por uma poética do suspenso em ​Onde vais, Drama-poesia?. Niterói, fevereiro de 2021..

(2) SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA. CEM UM TEMPO QUE NOS CAIBA: POR UMA POÉTICA DO SUSPENSO EM O​ NDE VAIS, DRAMA-POESIA?. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, subárea Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura. Orientador: Prof. Dr. Luis Maffei.. Niterói, fevereiro de 2021.. 2.

(3) Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor S586c. Silva, Suelen Cristina Gomes da Cem um tempo que nos caiba : por uma poética do suspenso em Onde vais, Drama-Poesia? / Suelen Cristina Gomes da Silva ; Luis Cláudio de Sant'Anna Maffei, orientador. Niterói, 2021. 113 f. : il. Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2021.m.14327620793 1. Literatura Portuguesa. 2. Tempo (Filosofia). 3. Teatro (Literatura). 4. Llansol, Maria Gabriela, 1931-2008. 5. Produção intelectual. I. Maffei, Luis Cláudio de Sant'Anna, orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título. CDD -. Bibliotecário responsável: Sandra Lopes Coelho - CRB7/3389. 3.

(4) SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA. Cem um tempo que nos caiba:. por uma poética do suspenso em Onde vais, Drama-poesia? Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Estudos de Literatura do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, subárea Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura.. A referida Comissão constituída pelos professores doutores Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira (UFF), Cinara de Araújo (UFSB) e Luis Maffei (UFF, orientador) decidiu aprovar a Dissertação. Niterói, 08 de fevereiro de 2021.. Orientador(a):________________________________________________ Luis Maffei. Primeiro(a) Examinador(a):________________________________________ Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira. Segundo(a) Examinador(a):_______________________________________ Cinara de Araújo. Profª. Dra. Luci Ruas - UFRJ (Suplente) Profª. Dra. Ida Ferreira Alves - UFF (Suplente). 4.

(5) Dedico: A meu futuro e passado. Aos meus sobrinhos Lorenzo e Carla. Ao Pietro, em memória de pirulito.. 5.

(6) AGRADECIMENTOS A Deus, pelo sopro de vida e viagem. Ao Luis Maffei, por essa correnteza suave que é seu Poema. Pela (des)orientação. Ao Bruno Praxedes, por ouvir em prosa, em apoio, enquanto eu ouço em verso. À Thaís R. Martins, ou tia Thaís, para sempre, por me ensinar a amar - a vida, a escrita, a arte, os estudos. E à sua querida mãe, pai e família. À Maria Luzia Gomes, “do lar”, e a João Vieira da Silva, lavrador, pelo rizoma que passa o sangue e a minhas irmãs e irmãos: família, a grande interrogação de afeto e força que Deus decidiu me deixar. À professora Maria Lúcia Wiltshire, por me (des)fazer ler Llansol como nunca e pelo mergulho no texto na banca, na cena, no meu poema. À professora Cinara de Araújo, também pelo mergulho de banca, e pela arte que transborda. À professora Tatiana Pequeno, pela partilha tão intensa que vem de antes e por ter sido banca. Aos meus amigos e colegas da Pós-graduação, como Michael Weirich, Christine Oliveira e Rodolpho Amaral, que fizeram tudo ser mais afetuoso ou mais radical. Às professoras Eurídice Figueiredo e Ida Alves, pelas aulas de fulgor e muitas descobertas sobre a escrita de mulheres e a literatura portuguesa. Às minhas amigas, amigos e amigues que continuaram a amizade, emanaram afeto, mesmo sem o contato assíduo. À Luisa Caron, pelos diversos momentos de parceria llansoliana. A todas as pessoas pretas, como a Gisele Monteiro, que me incentivam a continuar a caminhada, “mineiramente”, mirando o “logo ali”, como Carolina, Conceição e Lélia. A todo o corpo da Pós-graduação, por fazerem parte dos sonhos alheios. À UFF, por me receber de braços largos, desde a primeira vez que pisei em Niterói, vindo do pico de um dos morros de Cavalcante. À escola pública, por também dar a ver além da linha do horizonte. Ao CNPq, pela casa, comida e possibilidade de lavar roupa nestes 2 anos: sem elas, talvez essa dissertação não seria. E eu estaria com as luzes apagadas.. 6.

(7) Ao escrever a vida no tubo de ensaio da partida esmaecida nadando, há neste inútil movimento a enganosa-esperança de laçar o tempo e afagar o eterno. (​Ao escrever…​ Conceição Evaristo). tudo fora aliás, breve, apesar de tanto ter durado. (M.G.L.) Escrevendo, só sei dizer-lhe que acabaremos por nascer. (M.G.L.). — Por que não haverá relógio neste quarto? — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é? (​O Marinheiro.​ Fernando Pessoa) 7.

(8) Pelo começo: Se silêncio morro Se incêndio morro Com ou sem circun -flexo chão casa asa de avião sem cimento ou com limites, nunca devo então abrir a voz, saltar a boca verter meu leito em minhas palavras? Mortal é seu adjetivo inaugural. (14/08/2020). Pelo fim: Queda de um poema com sono cansado, sequer forças para abrir a boca em c maiúsculo para começar escorrega pelas folhas de bananeira querendo deixar ou deitar palavras. (05/08/2020). 8.

(9) Cem um tempo que nos caiba:. por uma poética do suspenso em ​Onde vais, Drama-poesia? Suelen Cristina Gomes da Silva. RESUMO. Esta dissertação desenvolve-se como uma possibilidade de atravessamento experimental e exploratório do livro ​Onde vais, drama-poesia? (2000), da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, buscando, no rastro do texto em presentes, a compreensão de seu movimento enquanto criador de uma poética do suspenso. Articulam-se vivências e conceitos que se colocam em expansão na fricção entre a escrita da autora e a experiência teatral, o que faz da teoria da literatura e do teatro dois campos teóricos centrais para esta análise, junto de um pensamento filosófico. No ato de atravessar os diferentes jogos da escrita, miramos, com Henri Bergson e Gilles Deleuze, na temporalidade presente com a hipótese de que seja uma desencadeadora da suspensão do texto, de uma (não) poética do suspenso e de uma jornada para o poema. Por esse tempo “passa” o poema, forma-se a imagem e permanece em deslocamento a paisagem do texto. Palavras-chave​: Maria Gabriela Llansol; poética do suspenso; suspensão; presente; poema.. 9.

(10) With-out a time where fits us:. for a poetics of the suspended in onde vais, drama-poesia? Suelen Cristina Gomes da Silva. ABSTRACT:. This master thesis presents itself as a possibility of experimental and exploratory crossing of the book Onde vais, drama-poesia? (2000), by writer Maria Gabriela Llansol, articulating experiences and concepts that are in expansion in the friction between the author’s writing and the theatrical experience. In the act of crossing, we look, with Henri Bergson and Gilles Deleuze, at the present temporality with the hypothesis that it’s a trigger of the suspension of the text, of a (not) poetics of the suspended and a journey to the poem. By this time the poem “passes”, the image is formed and remains in displacement the landscape of the text. Keywords: Maria Gabriela Llansol; poetic of suspended; suspension; present; poem.. 10.

(11) SUMÁRIO. PRÊT, TOUT LE MONDE?​............................................................................................. p. 14 CAPÍTULO 1: __ A CENA DE ESCRITA​...................................................................... p. 22 1.1. Abrindo as cortinas: jogo de cena e de escrita​.................................................... p. 22. 1.2. A cena e o presente em cena​……………….......................................................... p. 27. 1.3. A cena encena ou “​o beijo da dupla boca desse enlace".​ ..................................... p. 35. CAPÍTULO 2: NOSSO ENCONTRO-CURVA __​......................................................... p. 42 2.1. O que pode uma pergunta?.​.................................................................................. p. 42. 2.2. Por uma geografia do vivo​……………..…........................................................... p. 47. 2.3. Onde vais, nascida? [Escrita de algum si]​............................................................ p. 53. CAPÍTULO 3: __ AINDA O PRESENTE __​.................................................................. p. 67 3.1. Sentir o tempo, rasurar o cronos, montar a cena​................................................ p. 67. 3.2. Do fulgor do legente​……………………...…........................................................ p. 80. 3.3. Do percurso do poema​.……………..………........................................................ p. 89. ONDE VAIS, AFINAL? PRINCÍPIO DE CONCLUSÃO​…………………….…….. p. 100 REFERÊNCIAS​………………………………………………………………………... p. 104 Anexo 1 - ​BREVE DIÁRIO DAS BORDAS…………………………………………… p. 112. 11.

(12) LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS LLANSOLIANAS CITADAS. OVDP - ​Onde vais, Drama-Poesia? BMDT - ​Um beijo dado mais tarde CLP - ​O começo de um livro é precioso F - ​Finita FP - ​Um falcão no punho L - ​Lisboaleipzig ​(edição de 2014, contendo I e II) LC - ​O livro das comunidades SH -​ O senhor de Herbais. 12.

(13) LISTA DE POEMAS EM PERCURSO (textos de minha autoria). “Se silêncio…” - p. 8 “Queda de” - p. 8 “RJ, Niterói, 04/06/2020”​ ​ - p. 21 “Hoje, em sala de aula” - p. 103. 13.

(14) PRÊT, TOUT LE MONDE?. Nas primeiras páginas do livro que guia, em mapas rasurados, esta escrita que ora se apresenta como possibilidade de leitura, Llansol nos sobreavisa a respeito do que “quer” o poema. “O sexo de ler que quer e está certo de encontrar/ não será possessivo,/ porque libertar-se da posse é o seu movimento” (OVDP, p. 18). Temos, a partir desse querer, uma dimensão inicial do que poderá querer a escrita, o livro, ou a legência proposta pela autora: a “despossessão” de que fala Silvina Rodrigues Lopes. “A escrita de Maria Gabriela Llansol faz renascer esse espaço onde a escrita nada tem a ver com a Regra, a autoridade ou a obediência, mas com o viver mais chão, com o acompanhamento de todos os nadas que por ela participam da lucidez do desejo” (LOPES, 1988, p. 16). Com esse horizonte, nosso trabalho se apresenta como uma possibilidade de atravessamento experimental e exploratório do livro ​Onde vais, drama-poesia? (2000), de Llansol, identificando algumas das diversas cenas do presente e articulando vivências e conceitos que se colocam em expansão na fricção entre a escrita da autora e a experiência teatral. Na jornada, partimos em direção aos rastros do poema, a ver onde ou o que suspende. Entro no universo de Maria Gabriela Llansol por uma razão que só recentemente vi caracterizada pela própria autora em uma entrevista de 1977. Para ela, seu texto não é meramente uma ficção tal qual concebemos a ideia, “mas uma pulsão para o aprofundamento das fontes da alegria de viver” (LLANSOL, 2011, p. 55). Minha busca é, antes de tudo, por vida, por uma experiência do sensível que me fora negada por muitos anos (gerações) e que, agora, é meu lugar de escolha e fulgor: ao lado da poesia. Esse projeto comparece ao âmbito de pesquisa a partir de uma experiência dupla: cênica e textual ou, em outros termos, em uma via de atuação e outra de legência - a usar um termo llansoliano. Embora se desenvolva em áreas diferentes, Literatura e Teatro, essa experiência se entrecruza na perspectiva do contato e da ação proveniente desse contato. No teatro, a ação dramática se desenvolve entre ator/atriz e o espectador que, para além de espectar, precisa realizar conjuntamente o percurso da trama para que o contato aconteça e gere experiências outras no espaço e tempo nos quais ele se encontra. No encontro com a literatura ocorre algo semelhante, principalmente na experiência literária de Maria G. Llansol que foge para suas margens.. 14.

(15) Dito isto, “Prêt, tout le monde?” era a frase que, proferida por Ariane Mnouchkine, se fazia ouvir por todos os espaços da sala de ensaio, na preparação de ​As Comadres (originalmente ​Les Belles-soeurs,​ escrita por Michel Tremblay em 1965), comédia musical cuja supervisão da direção (a direção em si) foi feita pela diretora do Théâtre Du Soleil, da qual participei enquanto essa pesquisa germinava. Nem um alfinete sequer poderia estar desatento ao que viria acontecer após essa convocação à entrada em cena. E entrávamos todos. Eu, ora sendo “anja”1 pelas coxias, ora trabalhando o texto com as colegas atrizes ao lado de Ariane, ora vivendo uma fervorosa troca de personagens entre coro, Lisa e Ginette. Estreamos em Curitiba, fizemos temporadas no Rio de Janeiro e em São Paulo2. Enquanto isso, esta pesquisa era desenvolvida. Então, é com a mesma interrogação - em idioma presente na vida de Llansol - que inicio o percurso desse tecido de escrita que se desenvolverá em uma busca, antes de tudo, por vida: por uma vida em conjunto, que faça sentido. Em uma troca de dedos, o destino das palavras é o toque do leitor a folhear o trabalho que se segue. E “o texto, a novidade decisiva desse sonho […] sugere que comece pelas palavras mais simples” (OVDP, p. 114). Começaremos, então, pelas palavras “mais simples”. Foram muitos os títulos rascunhados para a dissertação ainda em projeto. Dentre eles, “​Da cena fulgor ao fulgor da cena: poética cênica da suspensão do tempo em Maria Gabriela Llansol” e “Tempos a fio à cena do presente​: poética cênica da suspensão do tempo em Maria Gabriela Llansol”. Fica explícita a busca por uma poética cênica, a partir de um olhar no/ao presente. De qualquer modo, o percurso é o mesmo: da “cena fulgor” llansoliana ao fulgor característico d​a cena de escrita e da cena de ação. As duas formas de cena se tocam, mas também se afastam, na medida em que se compreende Teatro como palavra encarnada e que a cena de escrita está inicialmente no livro e a de ação em espaços fisicamente fora dele. Nossa caminhada em direção às cenas fulgor entra em errância inspirada no prefácio “Eu leio assim este livro”, de A. Borges, para ​O livro das Comunidades (2014, p. 10): “​E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem.​ ” A multiplicidade do “Cem” que se deixa ouvir “Sem” movimentou indagações que resultaram - não como resposta, muito menos definitiva - no título que ora lhes é apresentado​. 1. “Anja/anjo” foi a forma utilizada no processo para nomear primeiramente atores/atrizes que faziam assistência de cena; depois, para atrizes que, além de estar em cena, também executavam funções como convidar o público a entrar no teatro (com toques de sino no lugar dos tradicionais três sinais de entrada), anunciar a peça e fazer assistência de produção e palco. 2 Estreando em 2019, no Festival de Curitiba, a peça fez temporadas pelo Rio de Janeiro no Sesc Ginástico, Nova Iguaçu e Quitandinha, e em São Paulo no Sesc Consolação.. 15.

(16) “Cem um tempo que nos caiba: por uma poética do suspenso em ​Onde vais, drama-poesia?” é, por sua vez, uma fresta por onde se percebem as i​ncertezas entre um corpo-livro que é Sem garantias e, ao mesmo tempo, com Cem possibilidades. “Que escrita quer?” (OVDP, p. 31). As possibilidades múltiplas de leitura de OVDP também são notáveis pela sua característica de ser um corpo, em si mesmo, vazado, estilhaçado para as incontáveis passagens que o povoam. São muitos os nós que embaraçam a comunidade textual de Llansol: as figuras, as cenas fulgor, os encontros inesperados entre os três sexos - o homem, a mulher e a paisagem. E, não menos importante, o nós que se refere ao contato entre escrevente, texto e legente. Dessarte, para que o tempo comporte o tempo dos nós que habitam o texto, precisará abandonar antes de tudo a forma cronológica tal qual concebemos a realidade. Esse abandono da linearidade é percebido nos diversos movimentos que o texto faz e no suspenso a que se (e nos) arremessa. Portanto, o tempo, aqui, é uma espécie de compósito da escrita; um tempo que perpassa o todo. Vemo-lo a partir de sua inscrição na construção verbal da obra, mas também concebemos o tempo como uma das estruturas por trás das vozes do texto, como instrumento da metamorfose das paisagens, das figuras e das próprias palavras. Ele é presença, movência, fuga, pergunta, é cena de escrita, é exercício de leitura e escrita diante desse livro que “está no texto, escrito em folhas A4” (OVDP, p. 265). Através de seu projeto de escrita, Llansol deixou a nós, legentes do futuro, a multiplicidade semeada em texto. Podemos sentir o “efeito de uma gestação que vem do futuro ​dar-se num num dos sexos que temos” (​idem​, p. 265). Temos um texto à mão, aos olhos, à boca - “as páginas que os leitores haveriam de tocar (como a uma pauta de música), apenas com o instrumento da sua voz” (​idem​, p. 11) - que se oferece como caminho que penetra vários caminhos possíveis; inclusive, no que concerne ao gênero literário. Essa abertura do texto llansoliano possibilita que nós, pesquisadores, tenhamos leituras de sua obra tão vastas quanto possíveis, acompanhando a vastidão de como ela mesma pode ser perspectivada - aproximada tanto de uma estrutura narrativa quanto de uma poética: do diário, da ficção, do poema e mais. Um dos questionamentos de partida em direção à suspensão no texto de Llansol é: o que coloca a escrita em suspensão? Por ora, seguimos as pistas do jogo, da fragmentação, e do tempo/temporalidade em busca de respostas. Neste cenário, nossa hipótese inicial é de que o texto alcança o suspenso através da fragmentação e da temporalidade, mais especificamente 16.

(17) pelo jogo do tempo presente do indicativo e de voz ativa. Além daquela, uma segunda interrogação de entrada foi: qual a relação da suspensão do tempo, em criação de novos espaços, da escrita de Maria Gabriela Llansol com a cena teatral e seus elementos constituintes? Concordamos com uma gama de autores que, como Augusto Joaquim (2014, p. 231) - parceiro de vida e escrita da autora -, pontuam que o domínio do texto de Maria Gabriela Llansol é “o da estética e o do pensamento”. Para compreensão destes domínios foram convocados autores que os investiguem em suas obras: o que são e como se elaboram. Somado às ideias de estética e pensamento, buscamos unir a ideia ou premissa do comportamento como um outro domínio possível da obra llansoliana. Esse terceiro domínio será expresso no capítulo 3, no momento em que abordaremos a relação da textualidade com a legência e seus possíveis frutos. Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se chama sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor treinado já conhece todos os enredos, quase só esse momento ​interessa ​à escrita. Esse momento, tornado longa sequência sustentadora da vibração explícita, é o nome de escrita. É a face escondida -- mas que me importa desvendar --, das técnicas narrativas já tradicionais” (BDMT, p. 48).. A autora demarca, no Prólogo do capítulo terceiro de ​Um beijo dado mais tarde,​ o que lhe “​interessa​” ​mais, nesse momento de reflexão a respeito da escrita em meio à sequência de cenas e recordações do dia de “hoje, 24 de Janeiro de 1988”, no qual assistira “le festin de Babette”. É uma pontual reflexão a respeito do que “importa desvendar”. A partir desta reflexão, é possível considerar que Llansol realize a ação de separar sequências, com sua escrita? Sedimentar e separar células textuais - tudo isso em busca de fulgor? É conhecido que sua textualidade não é desenvolvida por enredos, como na narrativa tradicional, mas a partir de pontos de acesso ao fulgor, o que está diretamente relacionado com a questão dos diferentes reais que a obra da autora, como um todo, propõe de existência. “Aprendi que o real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola, e se levanta” (L, p. 137). Talvez seja por isso, também, que a autora escreve “para que o romance não morra” (L, p. 125). Porque o romance, narrativa tradicional, possui vibração. E é ela - só ela que interessa. Por entre os nós textuais, nosso percurso de leitura de OVDP se dá em três capítulos, a saber: “__ A CENA DE ESCRITA”, “NOSSO ENCONTRO-CURVA __” e “__ AINDA O 17.

(18) PRESENTE __”. O primeiro capítulo é dedicado à compreensão da cena de escrita do livro e da aproximação dos conceitos, provenientes de ​práxis d​ iferentes, de cena e escrita. Para tal, no subcapítulo “​1.1 Abrindo as cortinas: jogo de cena e de escrita” s​erão trabalhados o contato entre literatura e teatro, cena de escrita e o conceito de jogo que, para a arte teatral, é estado de abertura constante. O subcapítulo “1.2 A cena e o presente em cena” seguirá com abordagens sobre a conceituação de cena, de presente no teatro e produção de presença elaborada por Hans Ulrich Gumbrecht e relacionada tanto ao fato artístico quanto ao ato de ler. Investigaremos se o presente comparece à escrita de Llansol com efeitos semelhantes aos da cena teatral. Como terceiro e último subcapítulo, “1.3 A cena encena ou ‘​o beijo da dupla boca desse enlace​”’ discorrerá sobre o que a cena llansoliana encena a partir da voz (e da sua polifonia no texto). Em OVDP, as vozes são várias e se movimentam entre discursos direto, indireto e indireto livre; a fim de uma compreensão sobre os resultados dessas movimentações no texto e sobre o estatuto da voz, nosso cerne teórico é Adriana Cavarero com suas ​Vozes Plurais.​ O capítulo segundo também será tripartido. Em “2.1 O que pode uma pergunta?” refletiremos acerca do título enquanto dispositivo de movência inicial do livro. O subcapítulo “2.2 Por uma geografia do vivo” tem como ponto de partida a busca pelo “vivo” segundo a própria Llansol: é um espaço para a compreensão de como se dão a ver, na paisagem do texto, as ideias de “vida” e “vivo”, que se constroem a partir de aparições em diferentes partes do livro. Já em “2.3 Onde vais, nascida? [Escrita de algum si]” abrimos uma reflexão sobre a cena de nascimento na obra e a possibilidade de inscrição da autora (figurativamente) ou da autora-figura no espaço do texto, tensionando a questão biográfica. Por fim, o terceiro capítulo tem seu desenvolvimento a partir de uma conceituação do presente pela filosofia, com Henri Bergson e Gilles Deleuze. Em “3.1 Sentir o tempo, rasurar o cronos, montar a cena” damos ênfase ao aspecto criativo da temporalidade presente e a uma leitura sobre as maneiras como a autora sente e rasura o tempo para a montagem da cena. “3.2 Do fulgor do legente” será o subcapítulo no qual, através do destaque e análise da recorrência de presentes no texto, intentamos uma compreensão das implicações destas colocações verbais no fluxo da escrita e no fluxo da leitura/legência. Encerrando as análises, “3.3 Do percurso do poema” é o momento em que nos debruçamos mais detidamente à ideia da existência de uma poética do suspenso em OVDP, atrelada a um detalhamento do percurso do poema no livro. 18.

(19) Atravessam a pesquisa os diários ​Um falcão no punho (​ 1988) e ​Finita (​ 2005), além dos títulos Um beijo dado mais tarde ​(1990), ​O começo de um livro é precioso (2003), Entrevistas (​ 2011) e ​Lisboaleipzig- O encontro inesperado do diverso e O ensaio de música (2014). Seguindo a concepção de Maria Gabriela Llansol de que sua obra é um texto de fluxo extensivo, “uma só narrativa” dividida em pedaços (LLANSOL ​in BRANCO, 1993, p. 109)3, todos estes livros nos iluminaram e iluminam os caminhos de compreensão das ideias da autora delineadas em ​Onde vais, drama-poesia?.​ Para melhor entendimento da proposta escritural da autora, contamos com o olhar de pesquisadores que destinaram e/ou destinam seu fôlego ao universo llansoliano, como Maria Lúcia Wiltshire, Cinara de Araújo, Tatiana Pequeno, Jorge Fernandes da Silveira, Érica Zíngano, João Barrento, Maria Etelvina Santos, Lúcia Castello Branco, Carolina Anglada, Maria de Lourdes Soares e Pedro Eiras. Ademais, os críticos e filósofos Roland Barthes e Maurice Blanchot. A fim de uma formulação a respeito do tempo em Llansol serão convocados Bergson e Deleuze, como mencionado. Contamos com Bergson, nessa pesquisa, também pelo “espírito de descoberta que é a primeira fonte do bergsonismo”, nas palavras de Merleau-Ponty (1991, p. 202). São convocados também autores como Eugenio Barba, Nicola Savarese, Peter Brook e Renato Ferracini, que trarão as conceituações de cena, tempo cênico, ação cênica e jogo, pertencentes à área teatral. Na abordagem das especificidades do jogo de cena e de escrita, estará presente Johan Huizinga. Para analisar as consequências da busca pelo presente em cena, que acaba por resultar em uma “presentificação”, bem como pelo presente em livro, entra no trajeto Hans Ulrich Gumbrecht com suas considerações acerca da produção de presença e das materialidades da comunicação. Renato Cohen e Paul Zumthor estão no fundamento das reflexões sobre presença e performance de leitura e de escrita, bem como performance artística voltada à cena. Importa destacar, desde já, que estamos diante de um livro começante: tem em si diferentes começos, diferentes nós construtivos, diferentes desenvolvimentos e encontros textuais. Assim como em OVDP é possível perceber trechos, cenas fulgor, frases retornando na textualidade, aqui também se verão reincidências de citações do livro interligadas em teia através do texto; cada citação, como cena fulgor, é abertura para uma amplitude de questões. ​BRANCO, Lúcia Castello. “Encontro com escritoras portuguesas.” In: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: UFMG, v. 13, n. 16, jul/dez 1993, p. 103-114. 3. 19.

(20) A pergunta do título, por sua vez, abre caminho para uma jornada de diferentes entradas. Por ser um livro onde cada detalhe é possibilidade de mergulho, optamos por indicar que OVDP é dividido em diferentes seções4, cada uma com suas subdivisões particulares, e, se tivesse um sumário, seria mais ou menos assim:. I - Onde vais, drama-poesia? (p. 7 - 38) II - Oferendas (p. 39 - 47) III - Em busca da troca verdadeira (p. 49 - 154) IV - Oferendas (p. 155 - 158) V - Apoptose (p. 159 - 182) VI - O poder de decisão (p. 183 - 279) VII - Oferendas (p. 281 - 287) VIII - Dioptrias (p. 289 - 306) Adentrei por ​Onde vais, drama-poesia? e​ , após passada a soleira, o universo-casa de habitação foi colocando suas questões à medida em que eu não sabia para onde ir. Mesmo não sabendo, perguntando ao texto “onde vais?” a todo instante, sentia os presentes e, com Llansol, comecei a sentir-pensar essa categoria tão impalpável e que totalmente nos toca: o tempo. Esta dissertação é um mergulho - ou uma respiração - para dentro e fora do livro.. 4. Considerando que o livro não é sumariado e não obedece à lógica do romance, optamos, metodologicamente, por tratar como “seções” estas divisões maiores do livro.. 20.

(21) RJ, Niterói, 04/06/2020 Na aba aberta do projeto da qualificação, digito, em vermelho, destacando do preto geral da escrita, uma reflexão sobre o que vemos e o que está a nos olhar com o huberman. [Tremo, com a perna esquerda, todo o corpo que escreve ligeiro a não deixar passar nada; tudo, porém, passa]. Paro na palavra perda; abro com os dedos correndo uma outra aba, a de crônicas, do outro drive. Abro antes uma outra aba para anotar uma narração, um poema escorrido que ouvi no escorregar da escrita que pulsa dentro. Anoto: é um poema para um filme de 1 minuto, já tenho a ideia, o como narrar e o que filmar - Mais uma ideia, você precisa fazê-la! Abro a aba de crônicas, na qual há apenas um poema cronista. E (me) escrevo. E volto ao huberman porque a qualificação foi marcada e, para hoje, ainda uma crônica precisa ser montada.. 21.

(22) CAPÍTULO 1: ____A CENA DE ESCRITA. 1.1 Abrindo as cortinas: jogo de cena e de escrita No campo semântico da interrogação - que estará conosco até o fim da jornada -, Paul Zumthor (2018, p. 19), de forma expressivamente afirmativa, levanta o questionamento que abre este primeiro capítulo: “Toda ‘literatura’ não é fundamentalmente teatro?”. Nessa perspectiva, literatura e teatro estabeleceriam entre si contatos profundos mesmo que imperceptíveis a uma primeira visada. Ainda segundo o autor, “Assistir a uma representação teatral emblematiza, assim, aquilo ao que tende - o que é potencialmente - todo ato de leitura. É no ruído da arquipalavra teatral que se desenrola esse ato, quaisquer que sejam os condicionamentos culturais” (ZUMTHOR, 2018, p. 58). Texto - principalmente o texto llansoliano - e teatro não seriam, um e outro, um encontro estético e social? Eugenio Barba e Nicola Savarese, em ​A arte secreta do ator:​ ​um dicionário de antropologia teatral,​ afirmam que, na vivência teatral, “não há sintonia entre a ação do ator e a reação do espectador” necessariamente em toda apresentação, “mas pode haver um encontro. É o efeito do encontro que decide sobre o sentido e o valor do teatro” (2012, p. 206). O encontro acontece, em ambos os casos, entre corpos, sendo um corpo a corpo com a cena ou com a linguagem: entre o corpo do ator e do público e entre o corpo da escrita de Llansol e o corpo legente. Para a escrevente que nos tornou e torna legentes, “O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro - mantém o começo prosseguindo” (CLP, p. 1). Abrindo as cortinas do texto, o leitor estará face a face com uma provocação convocatória de legência. Se faz necessário que a olhemos com cuidado. Em Maria Gabriela Llansol, a cena de escrita está em constante movência e desenvolve-se porque “é possível, em algum momento, atingir a linguagem, a língua sem impostura. É isso o que o meu texto quer” (LLANSOL, 2011, p. 48). A primeira parte (I) da primeira seção de OVDP, cujo título é o mesmo do livro, parece colocar-se como um prólogo: uma abertura inicial antes do que entendemos como a segunda abertura do texto, que acontecerá duas páginas depois, na parte II, e tratará do nascimento de uma figura da escrita responsável por acompanhar a voz em seus caminhos. Esta espécie de prólogo condensa em seu desenvolvimento, curiosamente com uma estrutura semelhante à versificação do poema, alguns aspectos recorrentes ao longo. 22.

(23) de toda trajetória de leitura do livro. São alguns deles, além do contato com o universo poético: o caráter reflexivo do próprio texto perante a linguagem, a mudança de sequências temporais, a estrutura não convencional que foge aos moldes da narrativa tradicional, o convite à legência e a união de corpos. o que advém do texto é a construção da frase; o que advém do espaço é o seu sentido; o que advém da manhã é o sentimento de perca; o que advém da noite é o recomeço da frase interrompida; assim cogitando caminhava e abri a porta que dava para o teu rosto legente. Não disse nada, a ouvir nos teus olhos o som da rua que entrava pelas janelas. Sentei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei por ele __ uniu-se a mim como o oxigênio e o hidrogênio se unem em forma de água, numa união tão rara, imponderável e banal como os nossos corpos unidos a ler __ voltaremos à imagem da água (OVDP, p. 9).. Essa é a primeira página do livro, que se faz imperativa e precisou ser citada por inteiro.. Nesse primeiro momento do texto há, segundo nossa perspectiva, um. desenvolvimento que poderia ser dividido em três momentos: 1ª meditação da figura escrevente e/ou do próprio texto e caminhada (cinco primeiras linhas - ou versos); 2ª primeiro encontro com o leitor; o texto vê o leitor, depois, fica em silêncio (da linha seis a oito); e 3ª o silêncio do texto une-se ao silêncio do leitor (da nona até a penúltima linha). São três figurações do movimento desse texto que se lança a encarar o legente e “ouvir”, através dessa relação de olhares, “o som da rua que entrava pelas janelas”. No espaço de uma complexa cena de escrita e anunciação de devires, os espaços entre os agrupamentos de texto parecem figurar como as divisas entre as mudanças de perspectivas da imagem (ou quadro) da escrita, que é repartida em microcenas da paisagem. Nessa paisagem fragmentária, os traços que enlaçam o texto entre “uniu-se a mim [...]” e “[...] unidos a ler”, além de figurarem duplamente na grafia - um no início e outro ao final desse momento da escrita -, podem também ser percebidos mediante uma outra 23.

(24) possibilidade de leitura, aberta pelo percurso textual. Nessa, lemos um só traço que se abre para passar o texto e fecha-se novamente - culminando no movimento de "selar" a união entre silêncio do texto e silêncio legente, união que é reiterada no início e no final do período, em uma transfiguração de verbo a adjetivo. A respeito do silêncio da obra na leitura, Blanchot vai dizer que: Sem dúvida, existe uma espécie de apelo, mas só pode vir da própria obra, apelo silencioso, que no ruído geral impõe o silêncio, que o leitor só escuta respondendo-lhe, que o desvia das relações habituais e o volta para o espaço junto do qual, ao permanecer aí, a leitura torna-se aproximação, acolhimento encantado da generosidade da obra, acolhimento (BLANCHOT, 2011, p. 213).. Além do acolhimento performado pelo texto, esta iniciação do livro é uma cena em desenvolvimento, "cogitando", o que revela certo caráter intrínseco ao livro: o cogito. ​Onde vais, drama-poesia? é um lugar de circularidade de pensamento de início ao fim, desde seu título. Silvina Rodrigues Lopes (1988, p. 7) diz que “As palavras vivem de serem vivas, [...] sopros onde os corpos se deslocam e se encontram. Amantes”. Nessa paisagem de escrita, o "rosto do texto" (OVDP, p. 25) encontra-se com o rosto legente. É um encontro de rostos no qual o texto vê-ouve o som da rua que entra pelas janelas; ouve “nos teus olhos” legentes. “O texto vê e não opina, não aconselha” (​idem,​ p. 185). Se não fosse assim e o texto opinasse e aconselhasse, estaríamos diante de uma camada pré-concebida do texto, com uma finalidade, o que inviabilizaria a afirmação que ressoa por toda a obra de que “o texto é sem garantias”. Ao marcar que “o texto vê uma relação amorosa, libidinal, não só degradada mas, provavelmente/​ perdida, entre os sexos humanos e o sexo da natureza” (​idem​, p. 186), a escritura llansoliana também nos sugere que vemos o texto. Nas palavras de Didi-Huberman, Talvez não façamos outra coisa, quando ​vemos ​algo e de repente somos tocados ​por ele, senão abrir-nos a uma dimensão essencial do ​olhar,​ segundo a qual olhar seria o jogo assintótico do próximo (até o contato, real ou fantasmado) e do longínquo (até o desaparecimento e a perda, reais ou fantasmados) (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 161).. No campo de visão da cena, ficamos face a face com o potencial de metamorfose da duplicidade do olhar que gera a superação do uno visual, daquele que se apresentaria como indivisível. Ainda de acordo com Didi-Huberman (2018, p. 29), “O que vemos só vale - só. 24.

(25) vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois”. Na abertura de ”Lugar 1” de ​O Livro das Comunidades ​(2014, p. 11), Llansol escreve que “havia uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre” e que desenvolvia atividades pedagógicas em uma casa “de um só quarto e de uma só janela”. Essa mulher, também figura, “tinha uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra”. Desde o primeiro livro da primeira trilogia que marca um (re)começo da obra llansoliana, os olhos já são órgãos de encontro, do fazer a dois que origina o “amor ímpar” - elaboração da autora. O percurso llansoliano de reformulação do tempo começa (na verdade, sempre (re)começa) desde o início de OVDP. O figurar em percurso do “drama-poesia” já no título e no primeiro encontro com uma escrevente nascida e por nascer - na página seguinte a esse primeiro encontro no qual a voz de enunciação abre a porta para o “rosto legente”- elaboram esse percurso. No encontro de silêncios que enxergam rostos é posta uma distância observacional, “uma reflexão sobre a distância mesma. Esta é definida como uma ‘forma espaçotemporal’ - uma ‘trama singular de espaço e de tempo’, poderíamos dizer -, uma ​forma fundamental do sentir”​ (E. STRAUSS ​apud ​DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 160). À pergunta da parte II desta primeira seção do livro, “Como? Se a voz me transformara num poema sem eu?” (OVDP, p. 14), rascunhamos outros questionamentos e, por conseguinte, possíveis respostas em aberto. A voz transformou o corpo (de escrita ou da escrita) em um poema? Que voz é essa, com esse “poder”? Através de idas e vindas por entre a (geo)grafia das páginas, pensamos em uma primeira hipótese para esse movimento: o livro é um caminho para a trajetória do poema, porque o poema é um corpo (há o corpo do poema) que “parte a imaginar” pelas ruas da cidade, as “ruas longas” que “quebram-se perdidas” (OVDP, p. 15). Da trajetória do poema e de sua possibilidade de deixar rastros de um mapa veremos mais adiante, no último capítulo. Com esta cena, entramos em um jogo que será construído a partir de sequências de cenas fulgor que seguem um caminho em completo devir. E, como bem destaca Pedro Eiras (2014, p. 195), “O jogo não é estranho ao texto llansoliano; é talvez invisível e omnipresente”. A expressão “jogo de cena”, amplamente conhecida tanto no teatro quanto na literatura, sugere a perspectiva de que cena é jogo. Por essa razão, antes mesmo de entrarmos na caracterização de cena, nos lançaremos à identificação da noção de jogo para 25.

(26) compreendê-lo enquanto um dos elementos que favorece a suspensão do texto llansoliano assim como a fragmentação e a temporalidade. O texto, no qual a narradora-enunciadora se dispõe a “ser uma criança que pára de querer brincar, e ​brinca​” (OVDP, p. 112), escorrega-se no itálico de “​brinca​” permanecendo atentamente lançado à descoberta do inesperado e caminha, porque nos revela que há sempre o caminho: “Acabadas as escadas, abriu-se a porta do jardim” (​idem,​ p. 132). De acordo com Johan Huizinga (2019, p. 5), “Encontramos o jogo na cultura como um elemento dado, existente antes da própria cultura [...]. Em toda a parte encontramos presente o jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida ‘comum’”. Sendo ele um elemento presente em toda temporalidade que acompanha o humano e “ao se reconhecer o jogo, se reconhece o espírito, pois [...] ele não é algo material” (p. 4), há relevância em considerar tal presença na escrita, principalmente em uma escrita como a de Maria Gabriela Llansol. Com um texto em constante construção de si, com certa desestabilização de categorias preexistentes e formas de experienciar as palavras, a autora convida o leitor a ser legente e “entrar” no jogo da criação de imagens, “numa certa ‘imaginação’ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)” buscando “captar o valor e o significado dessas imagens e dessa ‘imaginação’” (​idem​, p. 5). Para Blanchot (2005, p. 140), a literatura é “o perigoso poder de ir em direção àquilo que é, pela infinita multiplicidade do imaginário”. Embora, como argumenta Huizinga (2019, p. 10), o jogo “trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria”, pensamos que os resultados ou consequências do contato e interação - decerto nem sempre tangíveis - do jogo, do jogo de cena e da cena de escrita são possíveis de se identificar na experiência da “vida real”, enquanto influenciadores em potencial de formas de pensamento e ação no meio social o comportamento. Tal “influência” também se faz plausível por considerarmos o caráter expansivo da obra que proponha um jogo, como a de Llansol, de modo que venha a atingir camadas diferentes da constituição humana. “A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana" (​idem,​ p. 4). A respeito das formas que revestem a vida social, autor considera ainda que A vida social reveste-se de formas suprabiológicas, que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste último que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo. Não queremos com isso dizer que o jogo se transforma em cultura, e sim que em suas fases mais. 26.

(27) primitivas a cultura possui um caráter lúdico, que ela se processa segundo as formas e o ambiente do jogo (HUIZINGA, 2019, p. 59).. No contexto da cena do livro, “Longe de se deduzir enquanto se constrói, ele joga. O leitor não pode senão entrar no jogo, confronto gratuito e vital, em que o ser pesa com todo seu peso” (ZUMTHOR, 2018, p. 59). Pesar “com todo seu peso”, além de tudo o que pode vir a significar, significa, talvez principalmente, que há uma concretude no encontro de corpos entre texto e leitor; que o jogo tem sua materialidade garantida: um encontro para além de (ou não) metafísico. Assim como a estrutura de jogo do texto llansoliano não pressupõe fins, porque (citação recorrentemente anunciada) “o texto é sem promessa e sem garantia” (OVDP, p. 188), na experiência teatral o jogo é expressivamente semelhante: [...] ​fazer com que um espetáculo seja compreendido não é o mesmo que planejar descobertas, mas desenhar e projetar as margens ao longo das quais a atenção do espectador poderá navegar, e depois deixar que uma vida minúscula, multiforme e imprevista cresça sobre aquelas margens. Os espectadores deveriam ser capazes de afundar seu olhar nessa vida que surge e assim fazer ​suas próprias​ descobertas (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 300).. Entendemos que em Llansol não dificilmente se encontra esse intento de “desenhar e projetar as margens” para que os legentes sejam capazes de “fazer suas próprias ​descobertas” que os autores pontuam, pois sua textualidade, de acordo com a “intuição fundamental do texto” (OVDP, p. 263), se constrói ao passo que abre caminhos à legência.. 1.2 A cena e o presente em cena. A cena de escrita llansoliana, antes de se dizer o que é (se é que diretamente diz), faz movimentos de revelar, na forma de fios de textualidade, o que pode não ser. “Na clorofila não há, de facto, metáfora” (OVDP, p. 31). As últimas frases de ​Onde vais, drama-poesia?​, antes de “Serra de Sintra, 27 de Agosto de 1999” - inscrição temporal que encerra o livro -, são: “​ah! ah! Ele nasceu!/ veio rasgar a imagem da morte”​ (​idem​, p. 306). Quem “nasceu”? Podemos considerar que o nascimento, em um livro que inicia e termina com essa dinâmica, pode assumir diversas faces e intenções. De qualquer forma, novamente, quem “nasceu”? Quem emerge da novidade que o nascimento traz para “rasgar a imagem da morte”? Nasce a 27.

(28) “rapariga que temia a impostura da língua”, nasce o texto, nascem as figuras, nasce a figura narradora, também nascem o poema, o drama, o drama-poesia; nasce o livro. Em seu início, uma figura vem à luz da “existência” através do texto e é necessário que ela nasça para que o livro nasça e sua textualidade venha “rasgar a imagem da morte”, no “final” - o limite da borda do texto. Retornando algumas páginas antes desse “desfecho” que não deixa de ser uma nova abertura, a narradora - figura muito próxima da autora escrevente - destaca que “o texto não descreve o que existo/ ​rasga a imagem que trago diante de mim”​ (OVDP, p. 291). Fazendo a conexão direta e inevitável entre as passagens, ​“a imagem que trago diante de mim” seria, então, “​a imagem da morte​”? Diante de tantas perguntas que o texto nos leva a considerar - antes mesmo de respostas -, tentaremos pelo menos abrir janelas com reflexões em direção a elas nos capítulos que seguem, principalmente no segundo. Embora a parte primeira da seção VIII, intitulada “Dioptrias”, remeta intensamente a uma experiência biográfica de uma Llansol que vai à loja de óculos, que tem “53 anos” e que “treme a separação que vai ocorrer” quando “desaparecer na luz” (OVDP, p. 292), não é difícil considerar tal experiência também como textual. A idade avançada aproxima esta figura-narradora-escrevente (que dialoga com a categoria de narradora-personagem) da morte e/ou da cegueira, ambas situações que, de alguma forma, metem “medo a Gabriela” (OVDP, p. 291). Logo, a figura que perpassa os limites entre ser ficcional/narrador e vivente traz diante de si possivelmente a imagem da morte, que também pode ser uma morte figurativa aquela “em que não poderá acompanhar a minha velocidade, nem o meu ver” (​idem​, p. 292). Da cena-combate: ‘Legente, que diz o texto? Que ler é ser chamado a um combate, a um drama.” Eis o combate, a força de pulsão que provém desse chamamento: “Um poema que procura um corpo sem-eu, e um eu que quer ser reconhecido como seu escrevente. Pelo menos. Esse o ente criado em torno do qual silenciosamente gira toda a criação” (OVDP, p. 18). O lançamento do texto é, portanto, em direção ao “corpo sem-eu”, tendo no horizonte um corpo que podemos chamar “com-eu”. Esse embate enquanto jogo de forças de “eus” e, consequentemente, também de vozes, vai reverberar na arquitetura do texto como um todo. Não à toa, ao invés de um monólogo (interior ou não), o que surge diante de nossos olhos legentes - e, de certo modo, ouvintes - é uma polifonia. São muitos “eus” envolvidos e dissolvidos no tecido sulcado da escrita. Roland Barthes em seu ​Fragmentos de um discurso amoroso a​ firma que 28.

(29) A cena é como a Frase: estruturalmente não há nada que obrigue a pará-la; nenhuma imposição interna a desgasta, porque, como na Frase, uma vez dado o núcleo (fato, a decisão), as expansões são infinitamente conduzíveis. [...] A cena é, pois, interminável, como a linguagem: ela é a própria linguagem, apreendida no seu infinito, essa ‘adoração perpétua’ que faz com que, desde que o homem existe, ​isso não pare de falar​ (BARTHES, 1981, p. 38).. Destacado pelo autor, há um desejo do humano em sua relação com a linguagem de que “​isso não pare de falar​”. “Se assim não fosse, não haveria mais do que a reconstituição, não significante, de uma velharia. Escrever é amplificar pouco a pouco” (FP, p. 37). Em diversos momentos de legência, podemos observar na estrutura da escrita de Llansol - não só em OVDP -​ os núcleos constitutivos do fio que entrelaça toda a trajetória do livro (ou nós constitutivos da linguagem, como diz a autora) se caracterizando metalinguisticamente como cenas em si, as “cenas fulgor”. Ainda nesse movimento, continuam sendo cenas uma vez que “Passar da cena para a metacena não é mais do que abrir uma outra cena” (BARTHES, 1981, p. 38). Segundo a autora, o caminho, pelo qual tem os encontros com suas figuras, se desdobra “indo de cena em cena” (L, p. 137). Considerando que uma cena é uma “morada de imagens”, poderíamos dizer que o fluxo da escrevente é de “morada de imagens” a “morada de imagens”; entre paisagens. Assim começa a jornada llansoliana em ​O ​livro das comunidades,​ referido em ​Lisboaleipzig (​ L, p. 136), e continua para além de ​Onde vais, drama-poesia?​. A noção do conceito de cena pode também estar ligada mais concretamente à materialidade quando percebida pela perspectiva de realizadores teatrais. Segundo Franco Ruffini na seção “Texto e Cena” que integra o ​A Arte Secreta do Ator,​ cena seria “o conjunto de todas as especificidades humanas, técnicas, materiais, estéticas, entre outros valores, que permitem a ‘representação’ do texto em si” (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 282). É um conjunto de ação e, como se pode imaginar, não ocorre de forma solitária, pressupondo pelo menos um outro - assim como a relação entre leitura e escrita. As “cenas fulgor” são a “nova vida ficcional” dada/atribuída “às palavras e às coisas”, segundo Jorge Fernandes da Silveira (2004, p. 35). Se estas “cenas fulgor” têm, no centro de seu movimento, uma busca por vida - para além da ficção -, se faz coerente notar que, em sua razão de ser, cena é um acontecimento, ação; um recorte suspenso na realidade. Nessa conjugação llansoliana, como um organismo vivo, dotado de certa autonomia de existência na textualidade, se forma um duplo que contém em si a instância desse recorte suspenso (cena) e, 29.

(30) ao mesmo tempo, o “combustível” da suspensão (fulgor). Segundo Paul Zumthor (2018, p. 65), “a noção de enunciação leva a pensar o discurso como acontecimento”. No âmbito do teatro, acaba sendo mais facilmente notável que seja a cena um acontecimento, um momento de experiência que pode realocar os sujeitos - ator e espectador em posições diversas daquelas ocupadas sensorial e socialmente. Esse movimento acaba por deslocar um pouco a cena da ideia de uma “segunda natureza” proposta por alguns teóricos do âmbito teatral. Para Stanislávski, a cena é realmente uma ​segunda natureza, porque, assim como na natureza, não pode haver uma ação cênica fisicamente coerente que não seja também psiquicamente coerente (justificada) e vice-versa. É também uma ​segunda n​ atureza porque, ao contrário do que acontece na natureza, a coerência física e a coerência psíquica devem ser construídas através dos dois aspectos do trabalho do ator sobre si mesmo (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 63).. Há, de fato, um trabalho de preparação do atuante que deveria, supostamente, gerar essa coerência psicofísica. Entretanto, há de se ressaltar que essa coerência referida por Stanislávski não pode ser vista como um axioma, principalmente se levarmos em conta as provocações de base do teatro pós-dramático5. Nesse lugar de pensamento, Hans Thies-Lehmann afirma que “teatro significa ​tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos no ar que respiram juntos daquele ​espaço ​em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente a frente” (LEHMANN, 2007, p. 18). Para Sérgio de Carvalho, trata-se de “um modo de ​utilização d​ os signos teatrais que, ao pôr em relevo a presença sobre a representação, os processos sobre o resultado, gera um deslocamento dos hábitos perceptivos do espectador educado pela indústria cultural” (​idem,​ p. 15). A cena, seja do texto ou do palco, é lugar de ação, de concretude de escolhas frente a uma miríade de caminhos possíveis para atravessá-la ou experienciá-la. “Esses textos saberão, ou não, o que estão a fazer // a fazer? Sim, a fazer” (OVDP, p. 87). Por menor que seja o contato com o texto llansoliano, uma jornada se faz necessária para que o leitor alcance o mínimo de compreensão da textualidade, porque os textos estão constantemente “a fazer” algo ou a si mesmos. Dessa forma, dá-se início ao processo de legência tão vivificado pela autora através da própria forma da escrita. Processo esse que se assemelha tanto à participação, ativa, A obra ​Teatro pós-dramático,​ de Hans-Thies Lehmann, surge para analisar os novos modos de se pensar e fazer teatro, também engajados numa “negação estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática”, de acordo com Sérgio de Carvalho na apresentação. 5. 30.

(31) de um espectador em um espetáculo teatral quanto (quiçá mais radicalmente) em uma performance. Nas palavras de Paul Zumthor (2018, p. 65), “A performance dá ao conhecimento do ouvinte-espectador uma situação de enunciação. A escrita tende a dissimulá-la, mas, na medida do seu prazer, o leitor se empenha em restituí-la. A ‘compreensão’ passa por esse esforço”. De acordo com Eugenio Barba, Quanto mais o espetáculo permite que o espectador faça a experiência de uma experiência, mais deve conduzir também a sua atenção, para que ele não perca, na complexidade da ação presente, o sentido da direção, do passado e do futuro, a ​história,​ não como anedota ou historinha, mas como ‘tempo histórico’ do espetáculo (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 68).. No texto de Llansol esse “tempo histórico” das cenas muitas vezes aparece de maneiras diferentes, como um jogo entre tempos, o que favorece, junto da polifonia que comparece constantemente no jogo, o aspecto de “dificuldade” da linguagem, uma certa resistência. Discorreremos de forma mais aprofundada sobre esse aspecto em etapas mais à frente do percurso. Em suas aberturas, a cena é também o lugar do drama posto em corpos (ou drama em corpo) sobre um palco. Dentro da amplitude de significações possíveis da palavra, drama é, em suma, desde sua etimologia, a ação em si ou o texto para a ação. Sendo lançado à ação como fim, por sua vez, é lugar sempre começante. Como texto que é escrito objetivando sua encenação, é a estruturação textual (não necessariamente em prosa) pensada em devir-cênico, articulada para o futuro da vivência no palco. Diante disso, qual seria sua relação “original” com a poesia? Quais são as origens do poema que o aproximariam desse devir do drama? Como eram os poemas antes de nós? Não provinham da ou para a oralidade, também em devir? A relação entre literatura e teatro perpassa a noção de drama desde os gregos. Podemos dizer o mesmo em relação ao poema: a relação entre literatura e teatro está no poema desde quando os poemas eram ditos em voz alta, estabelecendo-se uma necessidade de presença e ação. Alguns diretores, em razão da necessidade de se estabelecer um contato mais profundo com o espectador, em suas atividades de olhar a cena “de fora e de dentro” e desenhá-la junto do ator, por vezes repetem insistentemente frases como a frequentemente lançada pela voz de Ariane Mnouchkine na sua preparação do elenco de ​As Comadres​: “Estejam no presente!”. De acordo com a diretora, para o ator, o essencial é 31.

(32) a​inda mais simples. É estar no presente, renunciar a tudo que ele pode ter previsto para captar em cena tudo o que lhe acontece. No instante. Para o ator e seu personagem, existe uma vida anterior, mas não existe um passado psicológico e, nem um futuro previsível. Só mesmo o presente, o ato presente. O teatro é a arte do presente” (MNOUCHKINE, 2011, p. 67).. Na preparação de um(a) ator/atriz, muitas vezes o desafio maior é esse “ainda mais simples” destacado por Ariane, descortinando-se uma complexa busca em direção à simplicidade. Estar no presente pressuporia, então, o esclarecimento de que “A presença cênica é, ao mesmo tempo, física e mental: ​sendo assim,​ existe uma mente dilatada” (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 62). De acordo com Ferracini, Existe uma metáfora bastante utilizada nos meios da arte presencial que vincula diretamente a suposta presença da atuação a uma certa “vida”. Se um ator, dançarino ou performer é potente em sua atuação diz-se, comumente, que ele está “presente” ou ainda que aquela seria uma atuação “viva”, pulsante (FERRACINI, 2013, p. 2).. Em relação de semelhança com os fluxos do texto llansoliano, que parece cavar e furar a “parede” da escrita, no momento da cena há uma incessante busca pelo vivo, por uma qualidade que rompa com a quarta parede e una atores e espectadores quase que em uma mesma energia. Ainda que em energias diferentes, a possibilidade do vivo se revela como a possibilidade do encontro profundo entre os dois. Cada tradição teatral possui uma linguagem própria para dizer se o ator, enquanto tal, funciona ou não funciona para o espectador. E para definir esse ‘funcionamento’ existem numerosos termos: no Ocidente, encontramos com frequência energia, vida ou, mais simplesmente, presença do ator (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 72).. A experiência do percurso de legência do texto llansoliano teria, por sua vez, uma semelhança talvez íntima com a experiência do momento presente no teatro, com toda a perspectiva da suspensão do espaço-tempo. Nesse sentido, seria um caminho aproximado da consideração de Maria João Cantinho a respeito da caracterização da cena fulgor. “​Desliza-se, assim, de um tempo/espaço de sucessão narrativa para um espaço fulgurizado, onde o tempo histórico e cronológico, sucessivo, é anulado, fundando o lugar, criando uma epifania, a que MGL chama ​cena fulgor”​ (CANTINHO, 2004). 32.

(33) Assim como afirma Llansol “Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros” (FP, p. 55), para se chegar à presença - que é da ordem da concretude da ​práxis -​ , é necessária uma preparação integral do ator antes mesmo de se entrar em cena, no palco da cena. O nível pré-expressivo pode ser definido como aquele em que o ator constrói e dirige sua presença em cena, antes mesmo dos seus objetivos finais e dos seus resultados expressivos, e independentemente deles. Com essa definição, a ‘presença’ fica livre de qualquer conotação metafórica. É literal (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 62).. A presença do ator “é uma qualidade discreta que emana da alma, que irradia e se impõe” (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 210). É algo como uma potência energética que envolve diferentes elementos que venham a convergir para uma ação dramática ou uma performance estritamente relacionada com a temporalidade. Desse modo, o encontro se dá no presente. De acordo com Eugenio Barba e Nicola Savarese, Durante um espetáculo, o ator-dançarino ‘sensorializa’ o fluxo do tempo que, no dia a dia, é experimentado de modo abstrato (o tempo medido pelos relógios ou pelos calendários). O ritmo materializa a duração de uma ação por meio de uma linha de tensões homogêneas ou variadas. [...] Sensorialmente, os espectadores experimentam uma espécie de pulsação, uma projeção orientada para algo que muitas vezes ignoram, um fluir que varia repetidamente, uma continuidade que nega a si mesma. Ao esculpir o tempo, o ritmo faz com que ele se torne um tempo-em-vida (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 252).. Assim como no teatro “a atenção do espectador é atraída pela complexidade, pela presença ​da ação” (​idem​, p. 68), o constante chamamento que faz a escrita llansoliana em direção ao leitor vai além do que está grafado no livro como texto: “eu gostaria que o legente não temesse encaminhar-se comigo [...]” (OVDP, p. 85). Devemos considerar sempre as outras grafias - os traços longos ou curtos, as ausências que podem ser presenças de um vazio significável (ou de um vazio cheio), as vírgulas que finalizam capítulos ao invés de pontos finais: tudo significa e suspende a experiência da legência. Nesse sentido, “o súbito aparecimento de certos objetos de percepção desvia a nossa atenção das rotinas diárias em que estamos envolvidos e, de fato, por um momento, nos separa delas” (GUMBRECHT, 2010, p. 132). 33.

(34) Em sua busca por uma compreensão das coisas do mundo que vá além da perspectiva hermenêutica e metafísica, Gumbrecht aposta teoricamente na concretude relacional como possibilidade de produção de conhecimento. Em seu conhecido ​Produção de Presença​, o autor destaca: “quando falo [...] sobre a ​presença ​refiro-me principalmente a essa sensação de ser a corporificação de algo” (GUMBRECHT, 2010, p. 167). Ao discorrer sobre o que seria “um dia perfeito”, ele diz que seria o que tivesse sido preenchido por “aquele breve momento de alegria imensa que me atingiu, incluindo o meu corpo​, em determinado instante” (​idem​, p. 168). Considerando que essa potência seja “breve”, o autor afirma que Nancy foi também o primeiro a apontar para a certeza (uma certeza quase ‘prática’, fundada desde logo na experiência, mais do que uma certeza com base na dedução conceitual) de que, pelo menos nas condições atuais, e, nesse sentido, diferentemente da concepção de ‘presença real’ da teologia da Idade Média, a presença não pode passar a fazer parte de uma situação permanente, nunca pode ser uma coisa a que, por assim dizer, nos possamos agarrar (GUMBRECHT, 2010, p. 82).. São os preenchimentos físico e psíquico que compõem a presença do ator em cena e eles estão ligados, como a presença do texto, a uma concretude. Em uma concretude textual em deslocamento, a presença acompanha o fluxo da metamorfose do texto, como no caso da relação entre a narradora-escrevente e o cão Jade: “aprendemos a trocar de presença,/ ​em mim é humana,​ / ​nele sou cão​” (OVDP, p. 299). Llansol está geralmente entre filósofos e poetas e sua escrita também desenvolve voos afins a estas figuras textuais e inspiracionais. Com isso, queremos também colocar em evidência (mais do que em questão) a afinidade da autora com uma escrita poética, como um(a) poeta que escreve seu poema. Nele, podemos perceber que [...] suas imagens não nos levam a outra coisa, como acontece com a prosa, mas nos defrontam com uma realidade concreta. [...] O poeta não quer dizer; diz. Orações e frases são meios. A imagem não é meio; sustentada em si mesma, ela é seu próprio sentido. Acaba nela e começa nela. O sentido do poema é o poema em si. As imagens são irredutíveis a qualquer explicação e interpretação (PAZ, 2012, p. 116).. As múltiplas paisagens que compõem a cena de escrita da autora se colocam como irredutíveis e convidam o legente a “passar olhando” (OVDP, p. 234) e contemplar ativamente sua metamorfose. Ademais, se o poema “não nasce de uma falta” (​idem,​ p. 17), o poema, no livro, é presença. Uma presença de escrita (quando tem seu corpo grafado no texto 34.

(35) das “Oferendas”) e de rastro que passa, “dispara, na esperança de que, na manhã anunciada, seja reposta a continuidade” (OVDP, p. 15).. 1.3 A cena encena ou “​o beijo da dupla boca desse enlace​” A imagem da “dupla boca” que enseja o título desse subcapítulo sugere, de entrada, que não há apenas uma boca ou uma voz única que narraria linearmente o texto; há a “evidência da luz da voz” (OVDP, p. 209). Também de entrada deixamos o aviso de que não apenas duas vozes povoam a textualidade deste livro marcado por uma multiplicidade de vozes que enunciam, desatam e formam novos nós de linguagem. “Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de si mesma. (...) Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmurado mas confunde-se com a imensidade sussurrante” (BLANCHOT, 2011, p.47). Na perspectiva do eco, da reverberação da voz da textualidade llansoliana, retomando o texto inaugural de sua ​Geografia de Rebeldes​, a figura de enunciação aponta, em versos, que “A escrita/ era as vozes/ em coro” (LC, 2014, p. 41). Nessa escrita, a singularidade é plural. E o coro da figura narradora de OVDP é, ao menos, sua sombra. A textualidade de Llansol carrega em si diversas rupturas e lacunas a serem preenchidas ou não pela figura legente, uma vez que o vazio também é cheio de potência. Assim, é possível observar o texto llansoliano encenando ou performando esses lugares de fissura: seja por meio de interrupções, movências para a margem ou para o desconhecido, pela coexistência intercalada de vozes, a atualização da figura narradora, o vislumbramento da ação do leitor e afins. A enunciação da textualidade não se limita ao que necessariamente se encontra grafado nas páginas. É que ela fala como ausência. Onde não fala, já fala; quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio fala-se nela. O próprio da fala habitual é que ouvi-la faz parte da sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a linguagem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento (BLANCHOT, 2011, p. 47).. 35.

Referências

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