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ANDRÉ E O BAILE DE MÁSCARAS

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Academic year: 2021

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ANDRÉ E O

BAILE DE MÁSCARAS

O MUNDO DE ANDRÉ

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Capítulo 1

Um silêncio horrivelmente barulhento

Às cinco da tarde, a casa estava limpa, arrumada e em silêncio. Era um silêncio tão pouco habitual que valia por muitos gritos, risos, correrias, portas a bater, gente a entrar e a sair. Era um silêncio de chumbo. Decerto que se ouviam ruídos, porque o som nunca desaparece por completo. Nem no meio do mar. Nem nos confins do deserto. Nem no alto da mais alta montanha. Abafados pelas janelas de portadas de madeira, chegavam os sons da rua, dos quintais e logradouros vizinhos. E isto era ainda mais perturbador, porque amplificava o silêncio da própria casa. Entrava-se, e não se ouviam passos suaves de pés calçados de pantufas de pano, ou o deslizar de roldanas de roupa e assobios de água a ferver em chaleiras musicais.

Também não se ouvia o velhíssimo aparelho de telefo- nia sintonizado numa estação religiosa a murmurar terços, porque o rádio não estava na cozinha, a fazer companhia à Vicência, pois ela não se encontrava em lado algum que se visse. Tão-pouco se sentiam os odores quentes das cinco da tarde. Como se o forno não estivesse ligado a tostar bolos ou fornadas de biscoitos, porque o forno estava, realmente, desligado. Como se, sobre os bicos do fogão,

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não houvesse panelas a cantarolarem sopas saborosas e ar- rozes perfumados, porque sobre o fogão não havia panela, nem tacho algum. Na verdade, o fogão estava desligado.

O que se via era a carta sobre a mesa, onde, numa letra certinha, quase infantil, e com uma pontuação longe de perfeita, se podia ler o seguinte:

Estive a cozinhar desde as 6 horas da manhã há comida no frigorífico e na arca congeladora a roupa está lavada e passada

vou-me deitar não me acordem tenho muito sono é só isso.

Não se preocupem e não me incomodem Gosto muito de todos

Vicência

André ficou sem saber o que fazer. Até então, aquele tinha sido um dia normal. Sono, aulas, sono, apontamen- tos, trabalhos, dúvidas, fome, recreios, discussões, conver- sas, fome, jogos de bola, almoço na cantina uma porcaria de almoço, lanche trazido de casa um belo lanche. E o regresso. Tinha vindo uma parte do caminho a pé, outra de metro. Ainda não tinha autorização para usar a bicicleta na cidade, mas em menos de meia hora estava em casa, a atravessar o longo corredor, a entrar no quarto para deixar a mochila na cadeira da secretária, e o casaco no cabide atrás da porta.

A seguir, ia sempre direito à cozinha.

Tinha fome. Agora, tinha sempre fome. Tinha fome antes de comer, e pouco tempo depois de comer. O lan- che devorado na escola, a meio da tarde, era um aperi- tivo para o lanche de verdade que o esperava em casa,

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onde às horas a que chegava havia sempre cheiro a bolo ou biscoitos, torradas, chocolate quente. Ou outra coisa qualquer, deliciosa e suculenta.

Menos hoje.

Marta chegava também por esta hora. Andava numa escola próxima, a menos de dez minutos a pé de casa.

A mãe só aparecia ao fim da tarde. E o pai andava a viajar em trabalho, umas vezes por África, outras pelo Oriente, eventualmente pela Europa. Chegava a estar se- manas fora e todos sentiam imensamente a sua falta. Em contrapartida, passara a ganhar tão bem que até tinham conseguido comprar esta casa, próxima do centro, com transportes quase à porta, num bairro de prédios não muito altos, construído no princípio do século xx, com casas grandes e bem projetadas, com quintais e jardins interiores, e bonitas escadas de incêndio em ferro traba- lhado. Sendo um primeiro andar, pertencia-lhes o quintal ou jardim do prédio de quatro andares.

Não era Vila Chã, nem a quinta da bisavó Violante, mas por esses quintais escondidos da rua, separados por muro não muito altos, havia limoeiros, laranjeiras, nespe- reiras e outras árvores, à mistura com canteiros de flores para delícia dos pássaros, borboletas, abelhas e outros seres pequeninos.

Gatos silvestres, eventualmente um ou outro gato doméstico mais vadio, cruzavam os muros, e passeavam por todo o lado. Em poucos meses, Vicência criara uma horta, podara o limoeiro e a nespereira existentes, agora carregados de frutos, e semeara flores por todos os can- teiros. No verão, era o local ideal para comer, ler, jogar.

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Mas mesmo no inverno, nos dias ensolarados, era uma felicidade dispor daquela nesga de ar livre a cheirar ao campo das boas memórias de dias tão felizes.

Mas sem o pai, por muito bonita, ampla e luminosa que fosse, a casa ficava estranhamente vazia… e como a mãe tinha começado a trabalhar com um grupo de tra- dutores no outro extremo da cidade, saía normalmente de manhã e só voltava ao fim da tarde. Portanto, sem Vi- cência perto, era como se o mundo acabasse de desabar.

«tenho muito sono é só isso»

Um ruído de chaves arrancou-o dos seus pensa- mentos. Quase em bicos de pés, André foi ao encontro da irmã para lhe contar, em voz baixa, o que se estava a passar, enquanto também ela se dirija ao seu quarto para deixar a mochila e o casaco, seguindo os dois para a cozi- nha estranhamente calma.

— Sem a Vicência não é a mesma coisa — disse ela, abrindo o frigorífico e olhando para as prateleiras cheias, numa indecisão —, achas que vai morrer?

Por momentos, nenhum deles falou. Depois, André abanou a cabeça.

— Sono não é doença. Eu tenho sono muitas vezes.

— Vamos ver se ela está mesmo a dormir?

— E se ela nos vê?

— Sem a Vicência, nada é a mesma coisa — repetiu Marta, muito pensativa a espalhar manteiga no pão.

Afinal o que se passaria com Vicência?

Referências

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