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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MATAN ANKAVA

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MATAN ANKAVA

Modernização não é Mole(s):

rádio e produção cultural em São Paulo, 1937-1962

Guarulhos 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MATAN ANKAVA

Modernização não é Mole(s):

rádio e produção cultural em São Paulo, 1937-1962

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História

Orientadora: Prof. Dra. Wilma Peres Costa

Guarulhos 2020

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Matan Ankava

Modernização não é Mole(s): rádio e produção cultural em São Paulo, 1937-1964

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em História do Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História

Aprovado em / / .

_______________________________________

Prof. Dra. Wilma Peres Costa (Presidente)

_______________________________________

Prof. Dra. Josiane Francia Cerasoli

_______________________________________

Prof. Dr. Marcos Francisco Napolitano de Eugenio

_______________________________________

Prof. Dra. Maria Rita de Almeida Toledo

Guarulhos, 14 de dezembro de 2020

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Agradecimentos

Devo admitir que sempre considerei como vícios formalistas seções como os

“agradecimentos”. A experiência da pesquisa me mostrou que, ao contrário, trata-se do espaço no qual podemos assumir, e abraçar, a natureza colaborativa da construção de conhecimento - um dos maiores prazeres e méritos desta atividade. Assim sendo, aproveito este momento de balanço para reconhecer a contribuição daqueles cujo nome não está impresso na capa, mas nem por isso foram menos fundamentais à concretização deste estudo:

Em primeiro lugar, à minha querida orientadora Wilma Peres Costa, que orquestrou toda esta pesquisa, com olhar minucioso, crítico e sempre acolhedor. Sua participação em transformar um “projeto de sociologia” extremamente desarticulado em uma pesquisa historiográfica de (espera-se) certa coesão foi absolutamente imprescindível.

Aos professores do PPG-História da Unifesp. Em especial, à professora Maria Rita Toledo, que acompanhou de perto a construção do trabalho, dos primeiros momentos à banca final; e ao professor Fernando Atique, cujas aulas, ensinamentos e conversas foram de grande importância. Agradeço também às professoras Joana Monteleone e Josianne Cerasoli pelas contribuições valiosas feitas nas etapas de qualificação e defesa; e ao professor Marcos Napolitano, que esteve presente nos dois momentos, com leitura atenta e ricas sugestões.

À Beatriz Savonitti, que mantém existentes o acervo pessoal e a memória de Osvaldo Moles, de importância e riqueza imensos. Foi sua generosidade de me receber em repetidas e longas sessões de catalogação e digitalização, sempre com café e carinho, que tornou possível esta pesquisa.

Ao meu caro amigo e colega Luis Gustavo, cuja presença tornou a Via Dutra espaço de reflexão e aprendizagem tão ricos quanto o campi. E ao querido BH, cujas curiosidades compartilhadas ao longo dos últimos anos são a base dos meus conhecimentos geográficos – inerentes ao trabalho.

No entrecruzamento entre o acadêmico e o social, devo os melhores – e mais alegres – contatos com a cultura brasileira à velha guarda do Basquete FFLCH. O desagrado de cair numa ordenação me previne – e/ou me poupa… – de sua listagem, mas foi com seus ilustres representantes que compartilhei minhas primeiras noitadas, ora tardes, pelos sambas, e também meus primeiros passos na pesquisa acadêmica. A reencarnação daquele time na

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quadra da Rua Major Diogo, com exímios agregados, também não poderia ficar de fora.

Dentre os amigos uspianos gradeço em particular ao Milanzão, por seu constante apoio, científico e espiritual, e à Marília, pelas inúmeras conversas sobre os sentidos e significados da cultura e de sua crítica.

Aos meus amigos da Terra Nativa, em especial a Bats, Mário, Paulin e Rita, aos quais devo muitos momentos de aprendizagem e companherismo, no escritório e no campo - e inclusive pelas ruas paulistanas.

Sob o risco de cafonice, agradeço também a minha família, dos dois lados do Atlântico, que tornou possível as vivências que deram origem à narrativa. A Eliana, uma constante interlocutora sobre o mundo, em toda a sua complexidade.

,םיירופ תועד יקוליחו תובר תוחיש לע ,לאינדל .הפיחדו דודיעב םיוולמ

ה ולאש תורמלש ,אבאל םילימ

.םירקבל תושדח רקחמה לרוגב שרדו ןיינעתה ,אורקל חילציש תודיחיה

E para a Thais, responsável por acompanhar e melhorar diariamente este trabalho em todos os seus aspectos - da narrativa ao narrador.

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“(...) o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento.

Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão”

[Machado de Assis, Esaú e Jacó]

“Cachorro tem uma vantagem: não trabalha escravizado ao relógio, como os homens. Confesso que nunca vi, nem no pulso nem no bolso do colete de um canino, essa terrível máquina inimiga em que a gente vê que está sempre atrasado. Contratei toda a matilha e dei, a cada um, uma carteira de trabalho para o caso de dúvidas com a carrocinha. E senti a miséria. A miséria de ser gente, entre tanto cachorro inteligente”

[Osvaldo Moles, O Acordador de Passarinhos, 1962]

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo investigar a trajetória profissional de Osvaldo Moles (1913-1967), centrando-se em sua atuação radiofônica, entre fins dos anos 1930 e início dos anos 1960. Produtor cultural destacado, com envolvimento em diferentes ambientes artísticos e meios de comunicação, a obra de Moles teve no rádio seu principal palco - coincidindo com o período no qual a radiodifusão atingiu seu ápice no país, evidenciado pela caracterização da época como a Era do Rádio. A reconstituição da trajetória de Moles revelou suas contribuições para o desenvolvimento da indústria radiofônica e, sobretudo, o papel que teve nos processo de massificação cultural. Mais que a cooptação, de artistas e do público, pelas forças hegemônicas, política e financeiramente, o estudo da carreira e da obra molesiana revelou o jogo complexo de projetos e interesses políticos, econômicos e culturais que agiram no seio dos principais meios de comunicação. Marcado por tensões e conciliações, este ambiente requeria que seus profissionais atendessem a demandas comerciais, mas também lhes oferecia um alcance inédito, capaz de aproximar, e envolver, as classes populares na produção cultural. Desta forma, a cultura massificada se constitui como campo polissémico, com múltiplos sentidos e significados, políticos e culturais.

Palavras-chave: Osvaldo Moles - História do Rádio - produção cultural - Cidade de São Paulo

ABSTRACT

The present work investigates the professional trajectory of Osvaldo Moles (1913- 1967), focusing on his career in the radio industry, between the late 1930s and early 1960s.

Influential cultural producer, involved with different artistic forms and means of communication, Moles' founded in the radio its main stage - coinciding with the period when broadcasting reached its peak in the country, evidenced by the characterization of the time as the Era do Radio (Radio Era). The reconstitution of Moles' trajectory revealed his contributions to the development of radio industry and, mainly, the role he played in the process of cultural massification. More than the cooptation, of artists and the public, by the hegemonic forces, the study of Moles' career and work revealed the complex set of projects and interests, political, cultural, and economic that acted within mass media. Marked by tensions and compromises, this environment required its professionals to meet commercial demands, but it also offered them an unprecedented reach, capable of involving the lower classes in cultural production. This way, mass culture forms a polysemic field, with multiple political and cultural significants.

Keywords: Osvaldo Moles - History of the Radio - Cultural Production - São Paulo City

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Lista de siglas e abreviações

API - Associação Paulista de Imprensa

AS – Alameda do Sorriso (programa radiofônico) CP – Correio Paulistano (jornal)

DN – Diário Nacional (jornal)

HLB – História da Literatura Brasileira (programa radiofônico) HM - História das Malocas (programa radiofônico)

NS – Nossa Cidade (programa radiofônico)

OCNC – O Crime Não Compensa (programa radiofônico) OM – Osvaldo Moles

UR – Universidade Record (programa radiofônico)

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Sumário

Introdução: Osvaldo Moles e o Rádio - História de objetos esquecidos p.10

o Memorial da pesquisa p.15

Capítulo I: Osvaldo Moles, primeiros esquetes (1913-1937) p.17 o Entre bairros operários e palacetes escolares: a infância de Moles p.17 o Miscelânea oligárquico-modernista: Moles e a imprensa paulsita p.22 o “Mundo dos Brinquedos” - cultivando ouvintes p.30

Capítulo II: Capítulo II – o “bomba atômico da Record” e a consolidação da

indústria radiofônica (1937-1950) p.38

o O Rádio: da telefonia à difusão p.38

o Osvaldo Moles - radialista professional p.43

o Não só amigo, nem só ouvinte - o papel da audiência p.50 o Onde todos se formam politicamente: Universidade Record p.55 o O rádio a serviço da ordem: Crime não Compensa p.64

o São Paulo no palanque: Nossa Cidade p.69

o Osvaldo Moles: “o bomba atômica da Record” p.84

Capítulo III: Osvaldo Moles na Rádio Bandeirantes (1951-1955) p.87

o (Ainda) a Era do Rádio p.87

o Sertanejos e sertanistas na modernidade: Os Sertões p.93 o O rádio ainda educa: História da Literatura Brasileira p.105

o As classes média(na)s: Alameda do Sorriso p.116

o Jornalistas do mundo, uni-vos - divulgando “a cidade que

mais cresce no mundo” p.125

o Não só de arte vive o homem: o sistema de publicidade RB-55 p.129

Capítulo IV - (Velhos) novos ofícios e grandes sínteses (1955-1962) p.132 o O Bom filho à casa torna: a segunda fase na Record p.132 o Nos bastidores do pogréssio: Histórias das Malocas p.135 o Publicitário de carteirinha: São Paulo Futebol Clube

e a Morumbi Publicidade p.149

o Enfim, um modernista legítimo - Piquenique Classe C p.156

o Um lugar todo seu? p.164

Considerações finais: Produção Cultural – entre disputas e conciliações p.166

Fontes p.170

Bibliografia p.172

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Introdução: Osvaldo Moles e o Rádio - História de objetos esquecidos

É que pobre faz assim: - compra um par de calçado só. Um irmão calça o pé direito o outro calça o esquerdo. E o dedão de fora, está sempre amarrado num pano sujo de poeira. Dona Maricota não gostava da tapeação. E intimava: ‘Seu’ Osvaldo, se esse pé não sarar até o dia 21 de abril, dou ponteirada.1

Este retrato fez parte de Piquenique Classe C, livro no qual Osvaldo Moles (1913- 1967) compilou algumas das crônicas jornalísticas que publicara durante sua carreira2. Imagem semelhante se encontra também em Recordação da Escola:

A gente ia, então, para a escola com um pé calçado e o outro descalço. Sempre com um pé calçado e o outro descalço e com o dedão amarrado num pano para fingir que estava machucado. As professoras já nem se desesperavam mais e o fato era tido como natural, bondosamente aceito. É que todas sabiam que criança pobre

divide o par de sapato com o irmão.

De sorte que ali no Grupo do Pari, todo mundo andava com um pé de fora. Só o Peixotinho é que exibia sapatos duplos, de cores marrom, amarelo, branco e azul. Mas nós, filhos de gente que não podia ter filhos, era sempre de dedão à mostra. Muitos eram tão pobres que não podiam sequer trocar o pano de fingimento.3

Os dois relatos enfatizam a experiência da pobreza, que se constitui como uma dimensão fundamental da infância do autor, que se insere entre as classes populares da capital paulista.

A infância pobre foi, de fato, uma experiência recorrente nos bairros operários, como fora o Pari na década de 1920, bairro onde Moles cresceu e estudou. Não obstante, conforme apresentamos no primeiro capítulo, as fontes mobilizadas nesta pesquisa revelam que, desde jovem, Moles conviveu intensamente junto às camadas médias e altas da sociedade paulistana. Cabe frisar que, ao contrário da aproximação das camadas pobres, essas sociabilidades pouco aparecem em suas crônicas. Ademais, quando foi lançado Piquenique, Moles já era um profissional consolidado, inclusive financeiramente.

1 MOLLES (1962, p.169)

2 Ao longo da pesquisa, encontramos diferentes variações do nome de Osvaldo Moles, alternando entre W e V, um L ou dois. Ao longo do trabalho, utilizamos a forma que consta em sua certidão de nascimento, e é também a mais comum nas fontes jornalísticas e nos roteiros. A única exceção se dá nas referências provindas de Piquenique Classe C, lançado com o sobrenome MOLLES.

3 MOLLES (1962, p.97)

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Perguntamo-nos, então: o que levou Moles a enfatizar justamente a dimensão pobre de sua infância? E, ainda, quais eram os significados deste movimento no universo da produção cultural na qual atuou Moles, e em sua trajetória profissional?

Pouco lembrado hoje, Osvaldo Moles foi um dos principais produtores culturais de São Paulo entre as décadas de 1930 e 1960. Jornalista, cronista, roteirista de cinema, compositor e publicitário, Moles foi também um dos expoentes do rádio paulista, quando este foi o principal meio de comunicação no país e um universo criativo de grande importância. A fama de Moles, nesse meio, muito deve à (re)produção, sempre humorística, de personagens e cenários do cotidiano das camadas populares da capital paulista.

Assim, a experiência “popular” na escola era apenas a ponta de um iceberg artístico:

conjunto de narrativas, transmitidas pelas principais emissoras e periódicos, no qual Moles narrava recorrentemente o mundo da plebe paulistana. O caso dos pés descalços indica que não se tratava apenas de “reportar” a realidade das classes subalternas – na condição de um observador externo –, mas que Moles procurava formular afinidades com este universo, estabelecendo certa autoridade no assunto - o que hoje poderia ser considerado como afirmação do seu “lugar de fala”.

Sem pretender afirmar ou refutar essa imagem, o que desperta nosso interesse é investigar o contexto de produção cultural no qual essa estratégia tornou-se oportuna: os sentidos por trás da (re)criação de narrativas sobre as classes populares no seio dos meios de comunicação hegemônicos; os significados presentes na aproximação entre produtor cultural e seu(s) público(s); as dinâmicas, culturais, sociais, políticas e econômicas, que conferiam validade a essas representações.

Nesta pesquisa, a qualificação desses questionamentos passa por sua análise a partir de um objeto e uma conjuntura espaço-temporal determinada: a trajetória profissional de Osvaldo Moles, tendo como principal ambiente criativo o rádio paulistano das décadas de 1930 a 1960. Aqui, não pretendemos reconstituir a sua biografia per se; ao invés disso, buscamos explorar como ele elaborou suas práticas nos diversos meios em que atuou e, a partir de sua carreira, procuramos iluminar alguns aspectos relativos ao processo histórico de massificação cultural, conforme este se desenvolveu na capital paulista.

Quais são as contribuições que oferece o rádio como objeto de estudos? Atualmente, o rádio parece estar relegado a uma posição secundária: utilizado esporadicamente, sobretudo no carro, passou a preencher momentos “vazios” no nosso cotidiano, e a constituir experiências de escuta bastante individualizadas. Tanto entre os meios de comunicação, em

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verba e prestígio, quanto no cotidiano e imaginário coletivo, a radiodifusão tornou-se secundária – ou até menos – com relação à televisão, à internet e às redes sociais.

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Todavia, isso esse nem sempre foi o caso:

O Rádio está no táxi, falando de futebol. No boteco em que se toma o café, lá está o Rádio contando quanto pagou o Gualicho. Se vou para casa com o objetivo de encontrar ‘o bíblico e sereno sossego’, lá está o rádio ligado num musical. Lá, dentro, a moçada está ouvindo novela. Então, a gente se fecha no quarto e o rádio do vizinho, em voz bem alta, no programa de calouros, apresenta um ‘imitador’ de Vicente Celestino. Aí, a gente sai de casa, pensando que este mundo está cercado de rádio por todos os lados. Vou para a Rádio Bandeirantes, onde há sempre máquina de escrever de boca aberta... e aí de novo estou no Rádio. É o único lugar em que a gente se liberta.

Como, pois, não gostar de rádio se ele está em toda parte?4

A citação acima, proferida por Osvaldo Moles, revela uma época na qual o rádio era um aparelho praticamente onipresente, cujos conteúdos satisfaziam a todos os gostos. Sua fala não foi apenas o testemunho de algum apaixonado, nem “clubismo” de um profissional;

a historiografia também reconhece a importância que teve o rádio:

Esse veículo [o rádio] – e, até o surgimento do vídeo e do videocassete, sua sucessora, a televisão – embora essencialmente centrado no indivíduo e na família, criou sua própria esfera pública.

Pela primeira vez na história pessoas desconhecidas que se encontravam provavelmente sabiam o que cada uma tinha ouvido (ou, mais tarde, visto) na noite anterior...5

Presente em sua síntese da história ocidental contemporânea, Eric Hobsbawm – aliás, estudioso e testemunha – aponta o papel histórico do rádio, de capacidade inédita, até então, de alcançar ouvintes, aglutinar pessoas e compartilhar experiências, vivenciadas apenas através das ondas. Neste sentido, é conhecido, e emblemático, o caso do programa A Guerra dos Mundos, de 1938: irradiando a invasão de marcianos na Terra, a audição levou às ruas ouvintes em pânico; a dimensão da histeria é controversa, mas foi o suficiente para levar o caso à capa de grandes jornais e ganhar notoriedade6.

No Brasil, o cenário não foi diferente: a força deste veículo foi tamanha, que Sevcenko considerou a “Era do Rádio” como um dos marcadores temporais da coletânea de

4 Revista do Rádio, 1952\Edição 00172

5 HOBSBAWM (1995, p.195)

6 Sobre este evento, há uma vasta bibliografia, que explora os diferentes sentidos da audição e significados de sua repercussão. Ver HEYER (2003); HAYES & BATTLES (2011).

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História da Vida Privada no Brasil7. E, pouco lembrado, o país teve também um caso semelhante à Guerra dos Mundos:

Aproveitando o dia 23 de maio, a primeira semente do maior movimento cívico dos paulistas, o laureado produtor da H-9 reviveu, de modo intensamente real, todo aquele grandioso movimento que precedeu a Revolução de 1932, dentro de uma forma de reportagem, como se o acontecimento tivesse arrebentado à hora da irradiação [...]

o sucesso da irradiação foi tão grande que emissoras do Rio chegaram a noticiar que havia estourado uma revolução em São Paulo8

Ocorrido em 1954, o “laureado produtor” foi o mesmo Osvaldo Moles. Também aqui é questionável a magnitude da repercussão, mas foi o suficiente para que OM tenha sido convocado a depor no DEOPS, a fim de justificar os tumultos causados pela transmissão9. Além de sua comicidade, esses dois eventos indicam a força alcançada pela radiodifusão, e o poder que detinham as emissoras para informar, influenciar e até mobilizar a população.

No país, a radiodifusão encontrou condições particularmente propícias para seu desenvolvimento: fatores históricos, como magnitude territorial e analfabetismo, junto a novos fatores, como o desenvolvimento técnico e transformações sociais, convergiam para formar um contexto social, cultural, econômico e até político, no qual o rádio podia se expandir rápida e amplamente.

E aqui, poucos ambientes experimentaram o dinamismo desta conjuntura histórica com força semelhante à cidade de São Paulo: a “Capital do Café” já vinha experimentando um grande crescimento demográfico, econômico e urbanístico, que uma caracterização célebre comparou a “um colossal cogumelo depois da chuva”10. Nesta urbe,

A artificialidade repentina e sem raízes da riqueza cafeeira, gerando uma metrópole complexa da noite para o dia, lançou as imaginações num vazio (...) as condições locais seriam sentidas antes como embaraços do que como a base e o fim de um empreendimento coletivo.11

Sem negar as condições que deram origem a esta afirmação, a história mostrou que as décadas seguintes foram, sob diferentes aspectos, ainda mais frementes que “os frementes

7 SEVCENKO [org.] (2002)

8 O Dia, 1954. apud: CAMPOS (2014) p.206

9 Ibidem

10 SEVCENKO (1992, p.31)

11 Ibidem, p.113

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anos 20”: taxas de crescimento demográfico e espacial, industrialização, reformas urbanísticas, a posição de São Paulo no cenário nacional, todas aumentaram ainda mais nas décadas que seguiram aos anos 1920. De fato, no período contemplado pela pesquisa, o

“colossal cogumelo” tornou-se ainda maior e mais diverso, alcançando o status da “cidade que mais cresce no mundo” - como constataram frequentemente suas elites.

Perante este crescimento constante e exponencial, questionamos: quais foram os agentes e forças que conseguiram formar, a despeito de inúmeros conflitos, um centro urbano de certa integralidade e coesão? Como foram preenchidos esses “vazios”, identitários e imaginários, descritos por Sevcenko? De que forma narrativas e discursos, culturais e políticos, foram produzidos e, sobretudo, difundidos entre um tecido social cada vez mais numeroso e heterogêneo? E, considerando sua concomitância com a “Era do Rádio”, qual papel coube à radiodifusão nesses processos?

A fim de conferir maior organicidade aos debates, e considerando a importância do encadeamento diacrônico para a compreensão dos significados históricos, adotamos aqui uma exposição cronológica.

O primeiro capítulo trata da infância de Moles, nascido em 1913, até seus primeiros passos como jornalista. Marcada por uma escassez de fontes, buscamos recuperar em sua juventude ambientes e sociabilidades presentes em sua formação. Aqui, procuramos evitar a leitura teleológica destes momentos, traçando, ao invés disso, o universo sociocultural, altamente dinâmico e heterogêneo, no qual cresceu Moles.

O segundo capítulo aborda o período entre 1937-1951, no qual Moles atuou na Rádio Tupi de São Paulo, até ’41, e, em seguida, na Rádio Record. Ao longo do período, Moles produziu uma grande variedade de programas, e se tornou um dos expoentes do rádio paulista. A fim de melhor conceber este meio de comunicação, e podermos situar a produção de Moles dentro de um contexto artístico e comercial, dedicamos ao longo do capítulo atenção também para o processo de formação da radiodifusão, anterior a OM, e seu lugar na sociedade brasileira e paulistana.

Diferente dos demais, o capítulo III contempla um período bastante breve, de 1951 a 1955, quando Moles transferiu-se para a Rádio Bandeirantes. Trata-se de um dos períodos mais fecundos e significativos de sua carreira; a produção de conteúdos diversos, inclusive audições de natureza nitidamente erudita, permite refletirmos sobre os projetos radiofônicos que permeavam esta indústria, colocando em xeque a concepção do rádio como um veículo meramente diversivo e de baixo valor cultural.

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O último capítulo inicia com o retorno de Moles para a Record, em fins de ‘55, e termina na década seguinte. Este movimento inseriu o radialista também no campo da televisão, em processo de estruturação no país. Além desses meios de comunicação, foi também o período no qual OM liderou a campanha publicitária do SPFC, e ainda lançou sua coletânea de crônicas Piquenique Classe C, em 1962. Neste sentido, compreendemos estes anos como cristalizações de algumas tendências e projeções da obra molesiana, espécie de sínteses artístico-ideológica.

Diferentes conceitos atravessam essas etapas, ganhando seus contornos particulares:

as noções de indústria cultural e cultura popular, acoplando as dinâmicas de produção e recepção, das quais participam o “mercado” e os “consumidores”; as expressões do “povo”, e o grau de participação das massas e/ou das classes subalternas no debate público e no setor de comunicação; a ideia de “modernização”, com os processos culturais, sociais e econômicos que a constituem; o sentimento de paulistanidade e as imagens construídas de e em São Paulo, principalmente em sua capital, e que fundiam a releitura do passado e a projeção do futuro, num presente fortemente controverso. Estas temáticas, e outras, tiveram suas expressões e representações particulares na obra de Moles, e conduzem a nossa investigação.

Memorial da pesquisa

Apesar da riqueza e magnitude de sua produção, Osvaldo Moles é, atualmente, um sujeito muito pouco conhecido. Ao longo dos últimos três anos (2018-2020), foi irrisório o número de colegas e amigos, seja na academia ou no mundo da música popular, que tinham ouvido falar de nosso personagem. Em uma de nossas conversas, Beatriz Savonitti, sobrinha e guardiã do acervo de OM, considerou este esquecimento resultado dos esforços de Laudo Natel, figura pública importante e amigo próximo de Moles, de abafar possíveis rumores que poderiam surgir em decorrência do seu suicídio.

Quando muito, Moles é recordado como co-autor e alter-ego de Adoniran Barbosa, compositor do famoso samba Tiro ao Álvaro. Esta dissertação também teve em Adoniran, como sambista, sua porta de entrada: sua proposta original visava estudar as representações da figura do malandro no samba paulistano, como fonte para refletir sobre a difusão de

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valores “modernos”, como trabalho e progresso12. Entre as canções analisadas estava Morro do Piolho, que a priori também considerávamos como sendo mais uma composição de Adoniran. O aprofundamento da pesquisa revelou o background artístico desta música, o programa Histórias das Malocas, e seu verdadeiro compositor, Osvaldo Moles.

A consulta à hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, sobretudo ao Correio Paulistano e à Revista do Rádio, revelou a importância e vastidão da obra de Moles. No entanto, em seus primeiros momentos, o estudo encontrou, sobretudo, ausências e lacunas de material - indicativos da precariedade que caracteriza a preservação da produção radiofônica paulista. O quadro reverteu-se quando conseguimos o contato de Beatriz Savonitti, e o acesso ao acervo pessoal/familiar de Moles: conjunto de centenas de roteiros de rádio, em geral, pouco organizados. A esta descoberta seguiram-se longas horas de compilação, catalogação e digitalização deste material - tarefa que ainda se encontra incompleta, diga-se de passagem.

Com as fontes jornalísticas e os roteiros em mãos, pudemos então buscar reconstituir a trajetória de Moles, através do trânsito entre o produtor e sua produção. Esse movimento de gangorra permitiu – em certa medida – avaliar os discursos e narrativas criados por OM à luz da conjuntura social e pessoal nas quais foram transmitidos. Esse método foi adotado/construído organicamento, mas encontra respaldo nas considerações metodológicas de autores como Bourdieu13.

Durante o processo, voltaram a aparecer alguns dos debates que chamaram nossa atenção em primeiro momento: narrativas sobre a cidade de São Paulo, seus trabalhadores e boêmios, ordem e desordem, progresso e pobreza. Ficou evidente também a centralidade do rádio na trajetória profissional de Moles, e suas potencialidades para compreender todo um campo de produção cultural que se formou, no país e particularmente em São Paulo.

Buscando garantir a autonomia das fontes com relação aos conceitos, estes últimos foram “aparecendo” conforme avançamos na análise das fontes. Este movimento, consideramos, teve três resultados centrais: primeiro, algumas categorias foram reformuladas e ressignificadas à luz das fontes, gerando um debate teórico com outros trabalhos. Por

12 Esta proposta nasceu de uma pequena monografia, elaborada para o curso Formas da Canção Popular Brasileira, do professor Walter Garcia (IEB-USP), em 2016, e teve sua versão ampliada publicada posteriormente (ANKAVA, 2019).

13 Em A Economia das Trocas Simbólicas, PB formula sua crítica: “deixando-se impingir este objeto pré- construído que vem a ser o artista individual, ou então, com outros disfarces, a obra singular, a tradição positivista permanece filiada no essencial à ideologia romântica do gênio criador como individualidade única e insubstituível” (BOURDIEU, 2007, p.183). Ao contrário, defende a importância de “é necessário determinar previamente as funções de que se reveste este corpus no sistema das relações de concorrência e de conflito entre grupos situados em posições diferentes no interior de um campo intelectual que, por sua vez, também ocupa uma dada posição no campo do poder” (Ibidem, p.186)

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exemplo, a concepção da radiodifusão como mercado e, posteriormente, indústria, presente no capítulo II, ou os sentidos do “rádio educador”, que permeiam todo o trabalho. Em outros casos, o aporte teórico permitiu uma melhor apreensão das ações de Moles, enquadradas no contexto histórico e nas tradições, como na ideia da paulistanidade ou no diálogo com os modernistas. Por fim, alguns conceitos foram centrais para dotar a análise de significados que ultrapassam o caso particular. Frequentemente, essas categorias representavam chaves analíticas, que ofereceram sentidos mais profundos à análise, como no caso do lugar do produtor cultural, segundo Certeau, ou nas comunidades imaginadas, de Anderson.

É através deste conjunto de operações que as fontes revelaram sua maior significância, indicativas das continuidades e rupturas que caracterizaram as transformações da e na sociedade paulistana dos anos ‘30 a ‘60. Neste contexto, a capacidade do rádio de massificar uma variedade de discursos, na busca por legitimar e garantir diferentes permanências e mudanças, apresentou-se como fundamental. A atuação de Moles como produtor cultural nos levou a considerar como linha de força da pesquisa a constituição da indústria radiofônica e, sobretudo, seu papel como criador, no fio da navalha entre a massificação da cultura e a preservação de um espaço para a divulgação popular da alta cultura.

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Capítulo I – Osvaldo Moles, primeiros esquetes (1913-1937)

Entre bairros operários e palacetes escolares: a infância de Moles

Osvaldo Moles nasceu no dia 14 de março de 1913, na cidade de Santos, filho de Antônio Moles e Emilia Prisco, de família de origem italiana. É possível que Santos, principal porto de chegada da imigração italiana, tenha sido apenas um ponto no deslocamento de seus pais, já que alguns afirmam que a mudança dos Moles para São Paulo ocorreu com Osvaldo “ainda no colo de sua mãe”14.

Pouco se sabe ao certo de sua infância e adolescência; o único registro material contemporâneo de Moles que encontramos a respeito deste período situa a residência dos Moles na “Villa da Economizadora Paulista”, um conjunto residencial localizado no bairro da Luz15. A capital paulista, que experimentava um grande crescimento populacional e a formação incipiente de sua indústria, continha diferentes formas de habitações, destinadas às classes populares16.

A Economizadora foi um caso importante neste contexto: inaugurada em 1915, foi um empreendimento da Sociedade Mútua Economizadora Paulista e de Antonio Bocchini.

Representava uma espécie de “vila modelo”, tanto de planejamento arquitetônico quanto como o principal exemplo de investimento empresarial no crescente mercado imobiliário17.

14 MICHELETTI (2015, p.26)

15 Radiolar, 1951, vol.12. Pesquisas mais recentes indicam os bairros de Pari e Mooca como logradouros da família. Por sua proximidade temporal, apoiamos a versão da Economisadora; possivelmente, os equívocos têm origem nas proximidades geográficas dessas regiões, e/ou nas crônicas de Moles sobre a escola do Pari.

16 Conforme mostram os census, a população paulistana em 1900 foi de 240 mil habitantes. Em 1920, a cidade tinha 560 mil moradores, número que salta para 1,32 milhão, em 1940 (http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php, acesso em 03/11/2020). O aspecto espacial e as questões habitacional da capital paulista entre fins do XIX e primeiras décadas de XX foram objetos de diversos estudos; destacamos aqui as obras de LEMOS (1989); SEGAWA (2000); TOLEDO (2004); CERASOLI (2004)

17 Sobre a Vila Economisadora ver LEMOS (1989); VITORINO (2008).

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(Ilustração da Vila Economizadora na época de sua inauguração, reproduzido de BARBOSA, 2015, p.26.)

Além de atender à demanda habitacional, o surgimento dessas vilas visava também combater as moradias populares irregulares, que vinham difundindo-se pela cidade18. Assim, vilas como a Economizadora tinham também papel na ordenação da plebe paulistana.

Esperava-se, desta forma, garantir um melhor controle social, ao mesmo tempo em que, ironicamente, transferia-se a responsabilidade, e a autoridade, para as mãos do capital privado. Cabe ressaltar que, diferentemente da imagem idílica traçada pelos empreiteiros, a vida nessas residências não era fácil, como mostram as notícias de assaltos19, ou de enchentes20.

A origem empresarial da Economizadora a disntinguia das vilas marcadamente operárias, ou vinculadas diretamente a uma fábrica. Nestas, havia um controle social bastante rígido, que regulava o cotidiano dos trabalhadores mesmo fora da fábrica; possivelmente, a Economizadora oferecia aos seus residentes maior liberdade. Mais significativo, é possível que a vila onde residia a família Moles oferecesse um convívio sociocultural relativamente

18 “A legislação urbana – conjunto de leis e regras que orientam as transações imobiliárias na cidade – também considerava o cortiço um "caso especial". Apontava timidamente algumas restrições à sua superlotação, mas sobretudo procurava oferecer vantagens – por exemplo, isenções fiscais para os empreendedores que seguissem o modelo da “vila higiênica" (…) do ponto de vista econômico a fronteira entre "encortiçados" e "moradores de vilas" não era claramente demarcada. No entanto, do ponto de vista ideológico, ela é fundamental, opondo de um lado "perigosos marginais" e do outro "pobres trabalhadores". A fronteira é o limiar de clandestinidade: um lado é a miséria permitida, útil, explorada, o outro, a miséria ilegal, perigosa” (ROLNIK, 1988, p.5)

19 A Gazeta, 1921\Edição 04593. Em que consta que a Economizadora, junto a bairros populares, como a Barra Funda e Bela Vista, sofriam repetidos assaltos.

20 Diário Nacional, 1929\Edição 00497

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diverso, pois continha residências de padrões variados, destinados, naturalmente, a famílias de condições econômicas diversas.

Conforme mencionamos na introdução, as crônicas de Moles faziam referência aos seus estudos no Grupo Escolar do Pari. Esta informação foi corroborada por outras pesquisas21, e parece se sustentar também pela situação geográfica: essa escola ficava na rua Elisa Whitacker, a cerca de 600 metros da Vila Economizadora. Fundado em 1905, o Grupo Escolar do Pari tinha uma boa infraestrutura, incluindo pátios para recreio e teatro para eventos22.

(Fotografia do Grupo Escolar do Pari, 1909. Fonte:

http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/neh/1905-1910/1905Grupo_Escolar_do_Pari.pdf.

Acesso em 03/11/2020)

Esses aspectos são pouco recordados na literatura de Moles, que enfatiza a dimensão da pobreza material, notadamente dos alunos. Este descompasso pode ter suas motivações artísticas - aspecto da obra de OM que vamos explorar ao longo da pesquisa. Não obstante, pode ser, também, resultado do momento histórico no qual cursou a escola: em 1920 foi implementada uma reforma estadual do ensino, cuja proposta visava a ampliação do acesso à escola23.

A busca pela integração das massas ao sistema educacional dialogava diretamente com a conjuntura da época: a urbanização e o crescimento demográfico aumentaram a

21 MICHELETTI (2015)

22 Ibidem

23 CAVALIERE (2003, pp.32-33) afirma que “o carro chefe da reforma foi a reestruturação do ensino elementar de modo a garantir vagas para as crianças paulistas que ainda se encontravam fora da escola”, isso após o recenseamento escolar de 1920 revelar que apenas 30% dos jovens frequentaram a instituição.

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população citadina, e junto à industrialização remodelaram o perfil das classes populares, e as exigências impostas a elas. Em paralelo a isso, perspectivas progressistas e a ideologia nacionalista fomentaram também a difusão de novos valores e identidades, que deveriam ser incutidos em um tecido social heterogêneo e bastante fragmentado. Tratava-se, em última instância, de formar uma nação por meio do ensino24. As crônicas de Moles podem ser vistas também como relatos dos limites das propostas de universalização do ensino, que não teriam levado em conta a realidade dos novos alunos.

Em 1927, Moles segue para cursar o ensino secundário na “Escola de Commercio D.

Pedro II”25. Não se tratava de um acontecimento comum; à época, não mais que 0,5% da população brasileira frequentava o segundo grau26. Mantida pela Associação dos Empregados no Comércio de São Paulo, Pedro II era uma escola de qualidade: contava com exames de ingresso, pagamento mensal, e localizava-se num verdadeiro palacete, o Edifício Santa Helena, no Largo da Sé. A ascensão da EC Pedro II manifestou-se também no âmbito financeiro: entre 1928 e 1929, a mensalidade da instituição saltou de cinco para vinte mil réis27.

(Imagem do Edifício Santa Helena, década de 1920. Fonte: Acervo O Estado de São Paulo https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,era-uma-vez-em-sp-edificio-santa-helena,11325,0.htm Acesso em 03/11/2020)

24 Nas palavras de Carvalho (Lorenzo & Costa, 1997, p.121) “esperava-se superar o Jeca Tatu no trabalhador produtivo, tarefa da educação, concebida deterministicamente, como alteração do meio ambiente. Tratava-se de introduzir, mediado pela ação de elites esclarecidas pela campanha educacional, um novo tipo de fator determinante no que era pensado como processo necessário de constituição do povo brasileiro: a educação”.

25 Diário Nacional, 1927, ed. 00136. Cabe lembrar que, naquela época, o ensino primário tinha quatro anos, aos quais seguiam mais quatro anos de ginásio e, posteriormente, alguns ingressavam no Ensino Secundário.

Algumas crônicas de Moles (1962) fazem referência aos estudos em ginásio dirigido por padres, posição afirmada também por Micheletti (2015).

26 PIERUCCI [et al.], (2007)

27 Diário Nacional, 1928, ed. 00337; e A Gazeta, 1929, ed. 07155

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A admissão nos “estabelecimentos de técnico comercial” foi estabelecida por um decreto federal:

Para a matrícula no curso geral, o candidato deverá fazer exame de admissão das seguintes matérias: português (leitura, dictado, exercícios de sinonímia, conjugação dos verbos auxiliares e dos regulares, análise léxica), arithmetica pratica (até sistema métrico, inclusive e medidas inglesas); elementos de geographia physica e de cosmographia; noções geraes de chorographia e historia do Brasil;

instrucção moral e cívica (generalidades objectivos); desenho (a mão livre), das figuras planas; morphologia geométrica28

Em 1928, um visitante à EC Pedro II relatou que "à nossa entrada, levantaram todos imediatamente, mostrando possuir, de tal sorte, verdadeira disciplina e educação escolar”29. O fato de a escola ter um caráter técnico, "destinada à difusão do ensino profissional" através de disciplinas como datilografia30, não comprometeu a abrangência do seu currículo; no curso anexo “lecionam-se as seguintes matérias: Aritmética, Álgebra, Contabilidade, Geografia, História Pátria, Educação Cívica, Português, Inglês e Francês"31. Desta forma, o ensino oferecia uma instrução ampla e variada, que oferecia aos alunos selecionados uma via de ascensão econômica e social.

A experiência escolar foi vivenciada por Moles também fora das salas de aula, quando eleito para a diretoria do grêmio escolar, em 192932. Tratava-se de uma entidade extremamente ativa: dispunha de uma biblioteca e sala de leitura próprias, seu “departamento de educação” realizava eventos culturais, e promovia também atividades esportivas33. O Grêmio ainda promoveu diferentes ações de cunho político: em vista das comemorações da Independência, organizou uma “campanha cívica” entre os alunos. Entre as atividades estava um concurso premiado de redações - um tipo de evento que veremos diferentes vezes ao longo da trajetória de Moles34. No mês seguinte, o grupo lançou uma outra campanha "pró- resgate da dívida externa do Brasil”, através da qual pretendeu-se “obter um fundo que será oferecido como contribuição do Grêmio D.Pedro II"35.

28https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-17329-28-maio-1926-514068-republicacao- 88142-pe.html. Acesso em 03/11/2020

29 Diário Nacional, 1928 \ Edição 00337

30 Diário Nacional, 1928 \Edição 00331

31 Diário Nacional, 1928 \Edição 00337

32 Folha da Manhã, 09/02/1930.

33 A Gazeta, 1930 \ Edições 07409 e 07419

34 A Gazeta, 1930 \ Edição 07389

35 A Gazeta, 1930, ed. 07435

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Além da vertente nacionalista, a Escola de Comércio contava também com a participação de outras vozes e ideologias: nela trabalhavam figuras como o diretor Nestor Pereira Júnior, eleito presidente do Bloco Operário Camponês em 192836, e o “lente” – professor catedrático – Benedicto Siqueira Cesar, secretário do Partido Democrático37 - figuras que ajudam a perceber o dinamismo e as ideologias que permeavam a infância de Moles. Nota-se, então, a convivência, e participação ativa, de OM em círculos políticos e culturais heterogêneos e engajados.

Miscelânea oligárquico-modernista: Moles e a imprensa paulista

Em 1928, ainda estudante, Moles ingressa no mercado de trabalho, empregado na agência de publicidade A Eclética. As agências publicitárias representavam um mercado que vinha se desenvolvendo na capital paulista ao longo das primeiras décadas do século XX38:

O nível de complexidade que a economia da cidade de São Paulo atingiu demandou de seus agentes a necessidade de diferenciar suas mercadorias das que seus concorrentes ofereciam; essa necessidade estimulou a criação de um novo mercado de serviços para ao atendimento dessa demanda. E, neste ponto, verificou-se uma mudança de patamar na publicidade brasileira. O serviço de anúncios, que estava concentrado nos jornais e que também era oferecido por indivíduos intermediadores entre anunciantes e veículo – os agenciadores –, passava a ser realizado por firmas que concentravam em si os serviços de captação e redação dos anúncios39

Fundada em meados da década de 1910, por Jocelyn Bennaton e João Castaldi, A Eclética foi uma agência pioneira na capital paulista. Manteve sua importância também nas décadas seguintes, com o desenvolvimento do setor; lançava e aprimorava diferentes estratégias comerciais, com propagandas que abrangiam produtos variados, como carros e combustível, alimentos e produtos de higiene pessoal40. Em um campo que ainda não tinha formulado seus manuais e cursos de formação, alguns paradigmas da publicidade só eram acessíveis aos que dela participavam.

36 http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/bloco-operario-campones-boc. Acesso em 03/11/2020

37 Diário Nacional, 1928, ed. 00307

38 Sobre o desenvolvimento da indústria publicitária em São Paulo, ver DEAECTO (2000); LOTITO (2001);

SILVA (2019).

39 SILVA (2019, p.35)

40 Sobre A Eclética e sua importância no mercado de propaganda ver ABREU & PAULA (2007); QUEIROZ (2007); SILVA (2019); ROCHA & AUCAR (2019)

(25)

Moles atuou na agência por oito meses, na função de “auxiliar”41. Mesmo que fosse um simples “estagiário”, tratava-se de um ambiente rico para habitar: o universo da propaganda estava intimamente atrelado ao jornal, e n’A Eclética colaboravam figuras como Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Belmonte42. Desta forma, o jovem Moles introduziu-se no universo da publicidade, com suas linguagens e estratégias da emergente indústria da propaganda; concomitantemente, aproximou-se do caldeirão da intelectualidade paulista da Primeira República, epicentro da “República das Letras”, que tinha dado origem ao movimento modernista, tanto em suas vertentes mais revolucionárias quanto às de matiz mais moderado43. Aqui, fundem-se, pela primeira vez, uma riqueza cultural e uma projeção comercial - binômio que marcaria a trajetória de Moles.

Em 1929, saído da Eclética, Moles deu início à sua carreira jornalística, atuando como repórter no Diário Nacional44. Lançado em meados de ’27, o DN foi um jornal de grande importância, diretamente vinculado ao Partido Democrático. Nele colaboravam diversos intelectuais vinculados ao movimento modernista, como Paulo Duarte, Amadeu Amaral, Sérgio Milliet, Manuel Bandeira e Mário de Andrade45. Além de suas críticas ao PRP, é interessante mencionar alguns aspectos da linha editorial do DN: primeiro, seu direcionamento para as classes médias da cidade; segundo, seu engajamento na formação e difusão de uma “mística paulista”, em torno de valores como progresso e trabalho46.

Moles permaneceu pouco tempo nesse periódico e transferiu-se para o São Paulo Jornal, em que atuou como cronista47. Mesmo que este não tenha o significado histórico do Diário Nacional, a mudança de repórter para cronista indica um crescimento profissional, sugerindo o reconhecimento das habilidades artístico-literárias de OM.

41 ADAMI (2013, p.3)

42 ABREU & PAULA (2007, p.86)

43 Sobre a “República das Letras”, afirma CAMARGO (2001, p.107): “se a maioria dos países ocidentais elegeu a filosofia e as ciências humanas com o alvo das atenções dos segmentos cultos durante a Belle Époque, o Brasil, nessa fase teve na literatura o fenômeno de maior relevância da vida espiritual, intelectual e artística (...) torna-se então compreensível o beneplácito dos poderes à literatura, que invadia todos os domínios, incluindo as esferas políticas e administrativas.”

44 A Revista Rádio, 1952, ed. 135, afirma que essa mudança ocorreu em 1928. Todavia, MICHELETTI (2015, p.49) traz um documento, em papel timbrado, de fevereiro de 1929, que parece indicar a interrupção, nesta data, do emprego de OM na Eclética - o que sugere um ingresso posterior de Moles no DN.

45 Sob diferentes prismas, o modernismo é um tema altamente estudado. Para nossa pesquisa, foram de grande valia os estudos sobre o papel social/político que coube ao movimento e seus participantes, sua importância e seus limites. Ver, por exemplo: LAFETÁ (1974); MICELI (1979); LAHUERTA (in: LORENZO & COSTA, 1997); CANDIDO (2011).

46 Sobre o Diário Nacional ver PRADO (1986); ADDUCI (2001). Para uma abordagem mais geral da imprensa paulista do período, ver CAPELATO (1988, 1991).

47 Revista Rádio, 1952, ed. 135; SACCHETTA, prefácio, in: MOLLES (1962)

(26)

Nos primeiros anos da década de 1930, não se sabe ao certo quando, Moles se mudou para o Nordeste. Esta incerteza é instigante, pois incide sobre a participação, ou não, de OM na chamada “Revolução de 1932”. No acervo pessoal de Moles, encontra-se uma listagem sumária de suas atividades, elaborada posteriormente, em 1955, na qual consta sua participação como voluntário na campanha paulista. No entanto, seu principal biógrafo considera incerta esta participação, que aliás não é confirmada por nenhuma outra fonte impressa, nem pelos jornais do período48. Possivelmente, a lista foi uma tentativa de Moles reescrever seu passado, forjando relações ainda mais íntimas com a Rádio Record - sua

“casa” profissional e importante aliada das forças paulistas de ‘32.

No Nordeste, OM ingressou no jornal Estado da Bahia, periódico que fazia parte dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Moles parece desenvolver ainda algumas atividades paralelas, como sugere sua palestra em um centro universitário de Salvador, intitulada “a tísica e os poetas nacionais”49. Assim sendo, talvez possamos relacionar a passagem de Moles pelo Nordeste com a transformação do modernismo de projeto “estético”

para “ideológico”, ocorrida nos anos ’30, e que contava com a difusão, pelo país, dos ideários modernistas, e da crescente atenção dos seus adeptos para com o Nordeste.

Em 1934, Moles se encontrava novamente em São Paulo, trabalhando agora no Correio Paulistano50. O ingresso de personagens de formação liberal no aparato perrepista, na década de 1930, é interpretado, costumeiramente, como evidência da desilusão experimentada em relação ao regime varguista, o qual não correspondia às expectativas da intelectualidade progressista51. Não obstante, cabe recordar que, já nos anos ’20, diferentes membros do movimento modernista haviam colaborado no CP; tratava-se de indivíduos com posicionamentos políticos e ideológicos variados, como Menotti del Picchia, Plínio Salgado e até Oswald de Andrade.

Vê-se, então, que no jogo político da República, e no amplo leque ideológico do modernismo, havia argumentos diferentes para sustentar instrumentos e cargos variados e em constante ressignificação. E, independentemente da inclinação política, a oportunidade de

48 MICHELETTI, ibidem.

49 Jornal de Recife, 1933\Edição 00187

50 Lançado em 1854, tornou-se o porta-voz do Partido Republicano Paulista (PRP): tamanha era a afiliação, que o CP foi forçado a interromper sua circulação entre 1930-1934, por sua oposição à chamada Revolução de 1930;

no ato de sua reinauguração, do qual participou Moles, uma das impressoras foi batizada com o sugestivo nome

“Nove de Julho”… Correio Paulistano, 1934\Edição 24127

51 Sobre o afastamento da intelectualidade paulsita progressista e o regime varguista, afirma Capelato (1991, pp.61-62): “segundo os liberais paulistas, o poder tirânico persistia numa nova versão. O almejado fortalecimento da esfera pública politicamente orientada não ocorrera e o espaço de visibilidade, debate e participação permanecia reduzido”.

(27)

colaborar em um jornal de tamanha solidez e tradição certamente foi interessante para o jovem jornalista.

É deste periódico a primeira fonte que leva a assinatura de Moles: uma carta coletiva contra o ataque sofrido pelo jornalista Apparicio Torelly - mais conhecido como “Barão de Itararé”. Conhecido por sua veia satírica, Torelly foi sequestrado e agredido ao sair de sua casa, no dia 19/10/1934. De acordo com o jornal carioca A Nação:

O atentado é considerado como uma revanche no sentido de ridicularizar o Sr. Apporely [outro apelido comum de Torelly, M.A]

que vinha movendo uma campanha insultuosa contra a Marinha no

‘Jornal do Povo’, periódico de orientação comunista. Os autores do atentado, pelas informações que obtivemos, pertencem à Marinha52

Não obstante, o CP publicou uma carta que traz um outro olhar sobre o acontecimento: nela os “intelectuais abaixo assinados (...) de diferentes tendências, credos e cores políticas”, alertaram que “a gravidade extrema do atentado está no fato de se verificar ao mesmo tempo em que se desencadeia uma brutal reação contra os mais elementares direitos das classes trabalhadoras, vítimas das mais revoltantes violências”53. Desta forma, o abaixo assinado desloca o foco da tensão particular, entre Torelly e a Marinha, estendendo-o da defesa da liberdade de expressão à defesa dos direitos das camadas subalternas.

Entre os signatários da carta encontram-se figuras eminentes como Tarsila do Amaral, Caio Prado Jr. e Mário Pedrosa. Sua composição e, sobretudo, a carga política atribuída ao acontecimento são mais uma evidência do distanciamento entre a intelligentsia paulista e Vargas. Vale ressaltar – como faz A Nação – que Torelli aproximava-se nessa época do Partido Comunista do Brasil (PCB). Parece crível supor que o CP tivesse poucas afinidades, seja com o próprio Torelly, seja com as causas das classes trabalhadoras; ao invés, podemos perceber aqui a efervescência política que caracterizava a imprensa paulista da época, e na qual Moles vinha afirmando suas posições.

É também no Correio Paulistano que Moles conheceu sua colega Maria de Lourdes de Oliveira Ramos, mais conhecida como Anita Ramos, com quem viria a se casar54. Neste

52 A Nação, 1934\Edição 00545. Motivação semelhante para o ataque encontra-se também Diário de Notícias 1934\Edição 02406.

53 Correio Paulistano, 1934\Edição 24108

54 Nascida em Franca, em uma família de profissionais liberais, mudou-se para a Capital em meados dos anos

‘30. Em seguida ingressou no CP, como crítica cinematográfica e redatora da “Página Feminina” do jornal -- seção pioneira nos periódicos do país. Foi demitida do periódico em 1937 e abandonou o jornalismo depois de breve atuação no Diário da Noite.

(https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19830130-33098-nac-0036-999-36-not/busca/Anita+Ramos, acesso em 28/04/2020.

(28)

periódico, Moles colaborou como repórter e cronista; sua produção abrange desde crítica literária até cobertura de eventos comerciais - heterogeneidade que sugere uma posição incipiente e pouco especializada.

A primeira produção significativa de sua autoria remete ao dia 25/01/1936, quando Moles redige o texto da capa do jornal, celebrando o aniversário da cidade de São Paulo:

55

Como mostra a imagem, a página apresenta uma ilustração central intitulada

“Anchieta catequizando uma indígena”, emoldurada por retratos de diferentes bandeirantes.

O texto se inicia com uma ambientação

Naquele tempo o vento brincava livremente nos grotões, nas entradas, nas cafurnas da serra. E havia manhãs carregadas de gorjeios e anoiteceres pejados de sons em surdina. O sol, um pintor acadêmico, andava a salpicar de amarelo a floresta. E a vida era livre e alegre como escravo alforriado, sem bola de chumbo no tornozelo;

sem a visão, nas noites náufragas de sono, do chicote, do rabo de tatú, dos feitores mulatos.

Somente, por vezes, o altiplano inda virgem era turbado pelo bater do atabaque e o tan-tan do urutan, e os velhos pajés com os olhos saltados, cansados, de ver sangue vermelho como crepúsculos, a jorrar nas batalhas ferozes, com o corpo coberto de cicatrizes.56

55 Correio Paulistano, 1936\Edição 24594

56 Ibidem

(29)

Aqui, a descrição é marcada pela mescla entre a exaltação da natureza e a violência humana. Esta se dá especificamente entre os indígenas, e contra os escravos. Seguindo a construção do cenário, Moles situa temporalmente a narrativa na chegada dos portugueses ao Planalto Paulista:

Um dia, manhã de janeiro (...) no topo da serra surgem homens brancos (...) e, entre eles, o de olhos azuis, vestindo sotaina bem preta, Anchieta... o apóstolo que trazia mel de abelha na voz. Fez plantar a primeira cruz e disse a primeira missa. Estava fundado o São Paulo magnífico. O berço de heróis.57

Esta parte estabelece relação direta com a imagem central, e nela o jornalista – aqui, praticamente um poeta – abre mão da veracidade histórica, em prol da dramatização e da exaltação da figura de Anchieta, que também coroa a imagem central. A passagem (re)produz um imaginário a respeito da fundação do Colégio Jesuíta - considerado como marco inaugural da cidade. Resgatava-se assim o papel dos jesuítas, e sobretudo Anchieta, como pioneiros do contato com os indígenas e da ocupação europeia da região58.

Na sequência, Moles avança em sua cronologia:

E depois, lá de terras distantes, vieram Banzó e Changô [sic]. Suas almas infelizes andam ainda dançando no oceano esmeraldino dos cafezais.

E a estrada real do Tietê, suas águas espelhantes de audácia, viram partir, à frente de bandeiras, Fernão Dias, Borba Gato e Paschoal Moreira! - seus olhos brilhantes em busca de esmeraldas rasgavam o sertão, e desbravavam matas, e fundavam povoações, espalhando, na terra das promessas, a semente da civilização.

E as águas do Tietê tranquilas das bandeiras, e as águas do Tietê, que espalharam audácias, viram morrer de dor, suportando a desgraça, o mais paulista de todos os paulistas.59

Aqui, notamos primeiramente a menção ao negro, novamente marcado pela violência da escravidão. É interessante apontar que as duas menções aos negros são as únicas a romper com a linearidade temporal da narrativa, o que constitui a escravidão como fenômeno paralelo à história da cidade. Este movimento é particularmente interessante por tratar-se de uma narrativa sobre São Paulo, onde a presença negra foi significativamente menor que em

57 Ibidem

58 A exaltação dos jesuítas e de José de Anchieta tem suas origens no século XVIII, por setores ligados à Igreja e à Monarquia (FERRETTI & CAPELATO, 1999). O dia 25/01 é considerado aniversário da capital desde início dos setecentos (https://leismunicipais.com.br/a/sp/s/sao-paulo/lei-ordinaria/1912/150/1492/lei-ordinaria-n-1492- 1912-dispoe-sobre-a-carta-regia-de-24-de-julho-de-1711-e-considera-feriado-o-dia-25-de-

janeiro?q=25%20de%20janeiro). Acesso em 03/11/2020

59 Correio Paulistano, 1936\Edição 24594

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