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O PAPEL DA VÍTIMA: LITERATURA POLICIAL E HISTÓRIA

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O PAPEL DA VÍTIMA: LITERATURA POLICIAL E HISTÓRIA

Carolina Borges da Silva Luiz1 Resumo: A ficção policial é um gênero literário profundamente enraizado no imaginário coletivo e, como tal, tem suscitado pesquisas de estudiosos da cultura de massas, historiadores e críticos literários, os quais mantêm uma fortuna crítica dinâmica. Ainda assim, há um elemento imprescindível à narrativa policial que é repetidamente subestimado pela crítica: a vítima. Os paradigmas explicativos da narrativa policial apresentam-se na chave criminoso-detetive, crime-investigação, quase sempre ignorando o papel da vítima. Nossa proposta é pensar o lugar das vítimas na literatura ao mesmo tempo que considera as vítimas do devir histórico. Queremos historicizar sua representação na ficção policial, partindo da hipótese de que, desde o século XIX até os dias atuais, a narrativa histórica e a narrativa policial passaram por um processo de transformação similar, no qual há um deslocamento do interesse em direção à vítima. Sendo assim procuramos entender esse movimento e questionar se é possível afirmar que há uma relação de influência mútua entre a imagem da vítima ficcional e a percepção corrente das vítimas reais e históricas.

Palavras-chave: Literatura policial. História. Vítima.

The role of the victim: crime fiction and history

Abstract: Crime fiction is a literary genre deeply rooted in the collective imagination and, as such, has sparked research by mass culture scholars, historians and literary critics, who maintain a dynamic critical fortune. Still, there is an essential element to the crime fiction that is repeatedly underestimated by the critic: the victim. The explanatory paradigms of the crime fiction are presented in the key criminal-detective, crime-investigation, almost always ignoring the role of the victim. Our proposal is to think about the place of the victims in literature while considering the victims of historical process. We want to historicize its representation in crime fiction, based on the hypothesis that, from the 19th century to the present day, the historical narrative and the police narrative went through a similar transformation process, in which there is a shift of interest towards the victim.

Therefore, we seek to understand this movement and to ask whether it is possible to affirm that there is a relationship of mutual influence between the representation of the fictional victim and the current perception of real and historical victims.

Keywords: Crime Fiction. History. Victim.

Summer after summer has ended, balm after violence:

it does me no good to be good to me now;

violence has changed me.

Louise Glück

Louise Glück, poeta recentemente premiada com o Nobel de Literatura, invoca o mito de Perséfone, em torno do qual constrói poemas que tratam, entre outros temas, da violência sexual e de gênero. Assim como a poesia de Glück, o problema histórico que proponho tem uma forte imagem mitológica, fixada em nossa tela mental por representações diversas e

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP,) São Paulo-SP, Brasil.

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sucessivas: é a imagem da medusa. Na versão de Ovídio, século I a. C., temos uma breve narrativa da origem de Medusa. Durante um banquete, Perseu narra como matou a górgona, então um dos ouvintes pergunta “por que uma só das irmãs trazia serpentes emaranhadas nos cabelos”, ao que ele responde:

Porquanto o que queres saber merece ser relatado, ouve a resposta do que perguntaste. Belíssima, ela despertara a esperança e o ciúme de muitos pretendentes, e nada tinha mais belo que os cabelos. Conheci um homem que contou tê-la visto. O senhor do pélago a violentou, dizem, no templo de Minerva. A filha de Júpiter afastou os olhos e cobriu com a égide o casto rosto. E, para que o fato não ficasse impune, transformou os cabelos da Górgona em horríveis serpentes. Ainda agora, para aterrorizar os atônitos inimigos, ela conduz, diante do peito, as serpentes que criou (OVÍDIO, 1983, p. 85, grifo nosso).

Ou seja, Medusa é estuprada por Netuno (Poseidon). Mas a culpada é ela. Recai sobre ela a vergonha. E ela é transformada em um monstro que ninguém pode olhar sem ser petrificado. Até ser morta por um grande herói e persistir apenas como memória, símbolo no escudo de Minerva (Atena), deusa da sabedoria e também da justiça. Essa versão do mito tem dois mil anos e continua ironicamente atual. Parece que continuamos condenando as vítimas à monstruosidade.

Enquanto historiadores, temos a questão central do que “merece ser relatado”, de tempos em tempos questionamos quais objetos eleger para as pesquisas e relatos históricos.

No caso desse mito, é sempre a ação do herói que aparece nos repetidos relatos ou representações: Perseu mata e corta a cabeça da Medusa, esta por sua vez, quase sempre é representada já assim, decapitada.

Benjamin já nos disse “que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer” (BENJAMIN, 1985, p. 224-225), o que nos lembra que estamos sempre em disputa pela memória. Como lembraremos dos mortos? Como representamos as vítimas? Essa é uma questão que nos acompanha com frequência, contudo, a primeira vez que voltei minha atenção para essa disputa discursiva em torno da vítima, dentro do romance policial, foi ao discutir a tese de Michelly Silva. A pesquisadora estudou James Ellroy, autor best seller de literatura policial, que além de escrever romances muito sangrentos, teve em sua própria vida um trauma violento, já que sua mãe foi brutalmente assassinada quando ele tinha apenas 10

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anos. Em sua tese, Michelly Silva citava uma entrevista do autor em que ele dizia: “Meu pai dizia que minha mãe era uma bêbada e puta” (DUMAS apud SILVA, 2020, p. 97). A partir dessa fala podemos perceber como a vítima, depois de ser objeto de uma violência real (seja um estupro, sequestro, tortura ou assassinato), continua a ser objetificada no campo do discurso e muitas vezes continua sofrendo violências como essa “uma bêbada e puta”.

Desde o século XIX, a literatura tem proliferado a partir da fórmula crime a desvendar. A ficção policial é um absoluto sucesso: leitores, espectadores e jogadores interessam-se continuamente pelo processo de solucionar crimes. Avançamos no século XXI e qualquer criança conhece a fórmula. Cinema, televisão, quadrinhos, desenhos animados, jogos de tabuleiro e eletrônicos, toda mídia de entretenimento tem as suas histórias de detetive, aliás, elas são quase uma garantia de sucesso em todos os suportes: Detetive (Clue), jogo lançado em 1949, no qual temos que descobrir através da lógica quem matou, onde e como, aparece em todas as listas de jogos de tabuleiro mais populares; Scooby Doo, no qual um grupo de adolescentes desvenda crimes e mistérios, está entre os desenhos animados com maior número de temporadas, multiplicando franquias desde 1969; a série Law and Order seguiu pelo mesmo caminho, completou 20 temporadas entre 1990 e 2010 e continua crescendo através de spin-offs; Batman é considerado o detetive entre os super-heróis e se ele, de fato, não é nem super e nem detetive, temos Jessica Jones, personagem que preenche perfeitamente ambas as exigências e também migrou com sucesso para as mídias audiovisuais. O cinema bebe diretamente da fonte literária, muitos detetives foram adaptados para a sétima arte, como The Maltese Falcon, filme de 1941 baseado no romance homônimo de Dashiel Hammet, mas também há uma miríade de títulos de detetives criados exclusivamente pela indústria cinematográfica, como Chinatown (1974). No Brasil, a série infantil Detetives do Prédio Azul já está na décima terceira temporada e na produção do terceiro filme. No caso dos jogos de videogame, ao invés de citar alguns títulos de sucesso que se apresentam como games de investigação, julgamos mais significativo observar como os estudiosos dessas mídias indicam que a estrutura narrativa desses jogos deve basear-se em fórmulas literárias simples e já conhecidas: “The formula was simple: take a popular fiction

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genre, for example the detective novel, create a background story (the more stereotypical the better, since the players would need less initiation).” (ARSETH apud BERGER, 2002, p. 16- 17).

Essa breve incursão através dos diversos mundos do entretenimento serve para demonstrar como a fórmula da narrativa policial transita com imensa desenvoltura entre a grande literatura e a cultura de massas. Muitos críticos a consideram um gênero menor e, contudo, autores de reconhecida qualidade literária, testada em outros gêneros, doaram suas penas à ficção policial: Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges, Umberto Eco, Pepetela, Ricardo Piglia, Edgar Allan Poe, Rubem Fonseca, entre muitos outros.

Contudo, mesmo que a vítima esteja quase sempre elencada pelos críticos como um elemento central da narrativa policial, uma varredura preliminar da fortuna crítica indicou que, até hoje, ela não ocupou uma posição de destaque nos estudos sobre o tema. Na crítica corrente, o mais comum é que a insignificância da vítima seja, inclusive, apontada como traço necessário ao bom funcionamento do detetive clássico. Encontrei afirmações como essas:

“Para efeitos desta análise, a vítima é insignificante. A verdadeira história começa quando o corpo aparece, pois é quando o desconhecido se insere na narrativa e se inicia a busca pelo conhecimento.” (MALMGREN, 2010, p. 153, tradução nossa); ou “A vítima é mostrada mais como sujeito da mesa de dissecação do que como marido e pai. Uma emoção muito violenta lançada no mecanismo sutil da história de detetive abala seu funcionamento, perturbando seu delicado equilíbrio.” (SAYERS apud MISKIMMIM, 2010, p. 443, tradução nossa); e ainda:

O romance policial é escrupuloso em nos proteger da identificação com a vítima (...). A vítima é frequentemente o personagem mais repugnante de um romance policial, libertando-nos, assim, da preocupação indevida com a morte de uma pessoa, para que possamos nos concentrar na solução de um quebra-cabeça.

(HILFER, 1990, p. 6, tradução nossa)

Embora a maioria dessas predicações e prescrições citadas refiram-se ao dito “detetive clássico”, também para os outros tipos de narrativa policial, a vítima parece pouco importante.

Quando se trata de pensar as subdivisões do gênero, é inescapável referir-se a Todorov que, na década de 60, estabeleceu: “Na base do romance de enigma encontramos uma dualidade, e é ela que nos vai guiar para descrevê-lo. Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do crime e a história do inquérito.” (TODOROV, 2006, p. 96). A partir dessa

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distinção formalista entre a fábula e a trama, ele realiza a análise estrutural do gênero e propõe uma “Tipologia do romance policial”: quando a ênfase está no inquérito, trata-se do “romance de enigma”, ou policial clássico; quando a narrativa coincide com a ação e sobressai a história do crime, então, trata-se do “romance negro”, ou hardboiled; por fim, o “romance de suspense” seria uma combinação equilibrada entre os dois planos da narrativa. Assim, os paradigmas explicativos da narrativa policial apresentam-se na chave criminoso-detetive, crime-investigação, quase sempre ignorando o papel da vítima.

Vejamos, por exemplo, os contos de detetive de Edgar Allan Poe, considerado por muitos o fundador do gênero2. Em Os Crimes da Rua Morgue (1841), todas as informações acerca das vítimas, Madame L’Espanaye e sua filha são obtidas através das testemunhas, personagens que as conheciam em vida: a lavadeira, o tabaqueiro, o vizinho, o banqueiro, etc.

O mistério de Marie Rogêt (1842) foi inspirado no real assassinato da jovem Mary Cecilia Rogers, nas vizinhanças de Nova York. A emulação da realidade se faz presente, sobretudo, no modo de obter os dados sobre a vítima e o crime, pois, assim como Poe informou-se sobre o caso de Mary Rogers através da imprensa, Dupin (o detetive) também realiza sua investigação através da varredura e interpretação dos jornais parisienses. Portanto, nesse segundo caso, à lógica analítica do detetive soma-se a interpretação de texto. Dupin ensina ao seu amigo, o narrador anônimo, protótipo do sidekick3, algumas técnicas de análise do discurso, dissecando, então, não o corpo da vítima, mas os enunciados dos jornais. Desse modo, Marie Rogêt, mesmo inspirada numa vítima real, só se dá a conhecer através das contraditórias predicações jornalísticas e da leitura de Dupin. Essas vítimas não têm voz, nem profundidade e quase nenhuma relevância.

2 Embora um sem número de autores aponte Edgar Poe como precursor, obviamente há exceções. Júlio Pimentel Pinto (2019) explica a polêmica que acompanha a questão das origens da narrativa policial. Enquanto alguns críticos abandonam qualquer noção de historicidade e pretendem sugerir que o gênero se radica nos tempos do antigo testamento e ou da mitologia grega, outros, menos audaciosos, apontam as “‘crônicas do crime e de criminosos’, que circularam na Espanha, na França e na Inglaterra do final do século XVI até o XVIII, distribuídas pelas ruas na forma de almanaques e brochuras” (PINTO, 2019, Locais do Kindle 492-493) como gérmen da literatura policial. Críticos franceses como Jean Bourdier e Roger Caillois são expoentes dessa vertente.

3 A figura do sidekick, aquele que acompanha o detetive e narra o processo de investigação, é um elemento presente nas obras de Arthur Conan Doyle (Dr. Watson), Agatha Christie (Capitão Hastings), Rex Stout (Archie Goodwin), entre muitos outros.

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A vítima só existe enquanto tal através da ação dos outros, do assassino que a vitimiza, do detetive que a legitima, dos testemunhos que a definem. Ela não é um sujeito.

Ao tomar a ficção policial como jogo de decifração, tornou-se comum colocar em paralelo os pares escritor/leitor e criminoso/detetive. Nessa parelha, o detetive representa a razão ordenadora, que organiza e dá sentido aos acontecimentos, enquanto o criminoso representa a desordem, sendo o agente do caos.

E, assim, é fácil entender por que a ficção nos fascina tanto. Ela nos proporciona a oportunidade de utilizar infinitamente nossas faculdades para perceber o mundo e reconstituir o passado. A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente (ECO, 1994, p. 137).

Esse jogo de raciocínio literário parece ter nos condicionado a ignorar as vítimas. A considerar apenas as peças que têm poder e negligenciar aquelas massacradas por esse poder.

Contudo, minha hipótese de trabalho é que essa representação da vítima passou por transformações desde o século XIX e o objetivo do meu trabalho é mapear essas mudanças.

Arrisco dizer que essas mudanças começaram já nos primórdios do gênero. Poe começou com vítimas completamente incidentais, mas depois escreveu sobre uma vítima real, cujo nome deu título ao conto e cuja caracterização como “jovem liberal” teve forte impacto nas investigações. Depois, autores como Arthur Conan Doyle e Agatha Christie, passaram a dificultar a posição da vítima. Um estudo em vermelho (1887), primeira aparição de Sherlock Holmes, é um exemplo notável de como os cadáveres na cena do crime, nem sempre são as verdadeiras vítimas. Um dos mais famosos romances de Agatha Christie, Assassinato no Expresso do Oriente (1933), vai pelo mesmo caminho. Os dois romances têm esquemas similares: crimes cometidos na Europa são investigados pelo detetive, que revela que as vítimas são os verdadeiros vilões, pois cometeram atrocidades na América, de onde vêm os assassinos (transmutados em verdadeiras vítimas) para vingar-se. Só podemos concordar com toda a crítica precedente se aceitarmos que as vítimas eram, realmente, Drebber, Stangerson (no Estudo em Vermelho) e Ratchett/Casseti (no Assassinato no Expresso Oriente), pois eles sim fazem jus ao posto de “personagem mais repugnante” (conforme citação anterior). De fato, eram deles os corpos que compunham as cenas dos crimes, porém, toda a construção dos

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romances aponta para as verdadeiras vítimas: John Ferrier, sua filha Lucy e Jefferson Hope, no romance de Doyle; a pequena Daisy Armstrong e sua família, no romance de Christie.

Culpa e inocência, aparecem problematizados. É possível culpar Jefferson Hope e os membros e amigos da família Armstrong pelos assassinatos cometidos? É possível inocentá- los completamente, apesar da violência da vingança?

Essa perspectiva articula um problema complementar, é preciso historicizar essas representações da vítima na ficção policial. Queremos verificar se há uma relação de influência mútua entre imagem da vítima ficcional e a percepção corrente das vítimas reais e históricas. Enquanto Ricardo Piglia, ficcionista, escreve que “a vítima é o protagonista e o centro da intriga” (PIGLIA, 2010, p. 193), Paul Ricœur, filósofo da história, alerta que é preciso “se precaver contra os excessos da tendência contemporânea à vitimização”

(RICŒUR, 2007, p. 485).

Assim, o nosso problema começa a se avizinhar do discurso historiográfico. O século XIX, berço da narrativa policial é também o da disciplina histórica como a conhecemos.

Naquela época, a historiografia se fazia do ponto de vista da grande política, o devir histórico era representado como progresso e evolução, deixando povos inteiros à margem da ordem racional, iluminista e euro centrada. Os historiadores buscavam reconstituir o passado como uma cena de crime, acreditando que as fontes eram objetivas. Do mesmo modo, a ficção policial daquele século dava primazia ao detetive e à sua capacidade de restaurar a ordem através de explicações lógicas, enquanto as vítimas eram insignificantes, ou tinham seu papel reduzido a pistas oferecidas pelo cadáver. Ao longo do século XX, historiadores passaram a buscar uma história daqueles massacrados pelo processo histórico. A historiografia afastou-se da monumentalização, que fixava marcos e heróis, para preocupar-se com o “dever de memória”, uma dívida para com as vítimas do processo histórico.

Nas últimas duas décadas, nossa relação com o tempo mudou. Antes confiante, quase arrogante, tornou-se dolorido e ansioso (...). Nosso senso de história - isto é, tanto de nossa história coletiva quanto de nossas histórias individuais - também mudou profundamente. De história de vencedores, tornou-se uma “História dos vencidos”, como previu Koselleck. O nosso olhar sobre o passado foi outrora uma celebração de dias de triunfo, quando a memória falava de grandeza e glória (...).

Hoje a gente olha para trás com o olhar ferido (...) (FASSIN e RECHTMAN, 2009.

p. 275, tradução nossa).

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Nesse novo contexto cognitivo, detetives como o comissário Salvo Montalbano (do siciliano Andrea Camilleri), o delegado Espinosa (do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza) entre outros, de Ricardo Piglia a Fred Vargas, substituem a absoluta confiança na lógica analítica pela tentativa de perceber as vítimas. Esses detetives do século XXI aprendem cotidianamente a viver num mundo caótico e contraditório, eles sabem que não serão capazes de reordenar a experiência através de esquemas lógicos a priori, eles precisam intervir na realidade que desejam compreender. Assim, a narrativa policial não se presta mais a

“reafirmar a ordem”, não fornece o conforto de sentir que o real é decifrável. Agora, pelo contrário, a investigação não satisfaz e as verdades provisórias alimentam um profundo desassossego.

Tomemos Andrea Camilleri como amostra. A noveleta A primeira investigação de Montalbano (2004) funciona na mesma chave verificada em Estudo em vermelho (de Conan Doyle) e Assassinato no Expresso do Oriente (de Agatha Christie), isto é, a verdadeira vítima que busca vingança. Porém, a primeira grande diferença é que a vingança não é bem sucedida. A jovem que busca desforra aparece como um enigma, descrita como uma estátua que intriga o investigador. A atitude suspeita de Rosanna Monaco leva a um confronto com Montalbano e ela acaba presa. A princípio ela está emudecida, depois mente, no fim, é preciso o olhar e o envolvimento do investigador para desvendá-la como vítima, a ação e o discurso da própria personagem não são capazes de legitimá-la como vitimizada, ao invés disso quase a tornam uma criminosa. Rosanna transita de vítima a suspeita, porque é incapaz de se expressar enquanto vítima.

É por isso que se pode falar de crise do testemunho. Para ser recebido, um testemunho deve ser apropriado, quer dizer, despojado tanto quanto possível da estranheza absoluta que o horror engendra. Essa condição drástica não é satisfeita no caso dos testemunhos dos que se salvaram. Uma razão suplementar da dificuldade de comunicar deve-se ao fato de que a testemunha não esteve ela mesma diante dos acontecimentos; ela não “assistiu” a eles; ela mal foi um agente, um ator; ela foi sua vítima. Como “contar a própria morte”? Pergunta Primo Levi (RICŒUR, 2007, p.

187).

Rosanna, quando tinha apenas quinze anos, fora brutalmente violentada por Giuseppe Cusumano, neto do chefe da máfia local, e desde então planejava sua vingança. “Antes de

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conseguir articular alguma palavra, Rosanna abriu e fechou a boca duas ou três vezes.”

(CAMILLERI, 2008, p. 193), quem primeiro fala o que aconteceu é Montalbano, só então ela é capaz de preencher as lacunas da narrativa dele com o horror da sua experiência. Com a ajuda de Montalbano, a jovem consegue falar o que lhe aconteceu, o que fizeram com ela e, o pior, o que a fizeram fazer4. Depois, o comissário a ajuda a obter justiça, uma justiça enviesada, aquela que foi possível, mas ainda assim justiça, e não vingança. De volta à comparação com os dois exemplos do policial clássico: Holmes não se compadece de Jefferson Hope, soluciona o caso e manda o culpado para a cadeia, onde ele morre dias depois de uma doença fatal que já o condenara antes, para conforto do leitor; Hercule Poirot, mais sensível, afirma “tendo colocado minha solução diante dos senhores, tenho a honra de desligar-me do caso…” (CHRISTIE, 1986, p. 189), além disso, ele apresenta uma versão alternativa, incriminando um assassino inexistente e livrando os verdadeiros assassinos, que ele não considera moralmente culpados, afinal, não era um assassinato, mas “a sentença da qual Casseti escapara” (idem, p. 188). Comparando os três detetives - Holmes (1887), Poirot (1933) e Montalbano (2004) - há uma escalada de envolvimento e uma crescente relativização do conceito de justiça. Porém, a mudança mais drástica é na representação dessa figura: a verdadeira vítima. Rosanna, enquanto sobrevivente e através da ajuda de Montalbano, torna- se capaz de narrar ela mesma o seu horror, psicanaliticamente isso implica a cura pela palavra, e essa cura é mais importante que a vingança ou a justiça.

Estranhamente, seus olhos [de Rosanna] pareciam menos negros e profundos.

Antes, eram um poço escuro e lamacento, em cujo remoto interior se podiam imaginar até venenosas serpentes rastejantes. Agora podiam ser fitados sem desconforto. Ou, pelo menos, com o desconforto de cair agradavelmente dentro deles. (CAMILLERI, 2008, p. 196).

Amiúde, a violência modifica as vítimas, a ponto de torná-las monstruosas. Olhar para a vítima é doloroso e incômodo, mas necessário. O indizível precisa ser dito e para isso parece ser imprescindível uma atitude de ativa compreensão do outro, ouvinte, observador ou leitor.

4 No diálogo revelador do trauma de Rosanna, ela afirma “Não foi pelo que Cusumano me fez.”, questionada por que então queria vingar-se, ela responde: “Pelo que ele me fez fazer” (CAMILLERI, 2008, p. 193). Nessa fala ecoa a síndrome do sobrevivente ou “secondary guilt syndrome”, a culpa sentida pelo que foi preciso fazer para sobreviver a um evento extremo e que foi amplamente estudada no caso dos judeus sobreviventes do Holocausto, muitos dos quais acabaram cometendo suicídio. (WEISZ, 2015). Ver também Primo Levi (1988).

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Contudo, esse olhar compreensivo não é a regra. Muito distante disso, somos condicionados a evitar a dor e, por isso, desviamos o olhar. Sayers estava miseravelmente certa, a “violenta emoção” da vítima, que pode nos levar a olhar para ela como para um ente querido, pode desestabilizar o romance policial, prejudicar seu equilíbrio perfeito. Parece, contudo, que muitos dos atuais autores do gênero estão decididos a romper esse equilíbrio e desestabilizar o leitor, rompendo o automatismo de desviar o olhar e negligenciar o sofrimento alheio.

Referências

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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rounet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CAMILLERI, Andrea. A primeira investigação de Montalbano. Tradução: Joana Angélica.

Rio de Janeiro: Record, 2008.

CHRISTIE, Agatha. Assassinato no Expresso do Oriente. Tradução: Archibaldo Figueira.

Rio de Janeiro: Record, 1986.

DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Tradução: Rosaura Eichenberg. Porto Alegre: L&PM, 1998.

ECO, Umberto. “Protocolos ficcionais”. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo:

Cia. das Letras, 2006. (p.123-47).

FASSIN, Didier & RECHTMAN, Richard. The Empire of Trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Translated by: Rachel Gomme. Princeton: Princeton University Press, 2009.

GLÜCK, Louise. Averno. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2006. (Edição do Kindle) HILFER, Tony. The Crime Novel: A Deviant Genre (Monographs in International Studies).

University of Texas Press. Edição do Kindle, (1ª edição, 1990).

MALMGREN, Carl. “The Pursuit of Crime: Characters in Crime Fiction”. In: RZEPKA, Charles J. and HORSLEY, Lee (Edited by). A companion to crime fiction. Blackwell companions to literature and culture: Oxford, 2010. (pp. 152-163)

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MISKIMMIN, Esme. “Dorothy L. Sayers (1893 – 1957)”. In: RZEPKA, Charles J. and HORSLEY, Lee (Edited by). A companion to crime fiction. Blackwell companions to literature and culture: Oxford, 2010. (pp. 438-449)

OVÍDIO. As metamorfoses. Tradução de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983.

PIGLIA, Ricardo. Alvo Noturno. Tradução: Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

PINTO, Júlio Pimentel. A pista & a razão: Uma história fragmentária da narrativa policial. (Peixe-elétrico Ensaios). e-galáxia. Edição do Kindle, 2019.

POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. Tradução: Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François.

Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

SILVA, Michelly Cristina da. Um lugar escuro: pesadelo, trauma e obsessão no Quarteto de Los Angeles, de James Ellroy. 2019. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006.

WEISZ, George M. “Secondary Guilt Syndrome May Have Led Nazi-persecuted Jewish Writers to Suicide.” Rambam Maimonides medical journal vol. 6,4 e0040. 26 Oct. 2015:

Disponível em:

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4624084/#b2-rmmj-6-4-e0040. Acesso em:

19 out. 2019.

Referências

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