• Nenhum resultado encontrado

45º Encontro Anual da Anpocs. SPG30. Narrativas de si e regimes de visibilidade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "45º Encontro Anual da Anpocs. SPG30. Narrativas de si e regimes de visibilidade"

Copied!
18
0
0

Texto

(1)

1 45º Encontro Anual da Anpocs

SPG30. Narrativas de si e regimes de visibilidade

Entre uma “culpa esquisita” e um “peso na consciência”: narrativas afetivo-sexuais de evangélicas em desigrejamento

Tatiana Bezerra de Oliveira Lopes (PPGAS/UFSC) Dra. Alinne de Lima Bonetti (PPGAS/UFSC)

(2)

2 Introdução

Seguindo a epistemologia da Antropologia Feminista (MOORE, 2009) e evocando um saber localizado (HARAWAY, 1995), a presente pesquisa1 parte de uma inspiração autoetnográfica (MELLO, 2019). Mediante o exercício da reflexividade, traremos o percurso religioso e a trajetória afetivo-sexual da pesquisadora para apresentar recorrências partilhadas com as interlocutoras de pesquisa. Por meio das histórias de vida (DEBERT, 1986), a proposta é compreender como o desigrejamento, ou seja, a saída de instituições/igrejas, se perfaz nas trajetórias de jovens desigrejadas. Ao evocar a noção de saber localizado e uma escrita corporificada aspiramos que um conhecimento situado floresça.

Para tanto, iniciaremos com os relatos autoetnográficos, desde a identificação religiosa de evangélica desigrejada e as experiências afetivo-sexuais da pesquisadora como forma de apresentar o universo de pesquisa. Em sequência, recorreremos as narrativas de algumas interlocutoras do campo de pesquisa, contactadas pela etnografia virtual (HINE, 2000), no intuito de delinear os próximos passos dessa investigação.

A partir da identificação de sentimentos descritos como “culpa esquisita”2 e “peso na consciência”, durante a etapa exploratória descrita neste paper, pudemos correlacionar o percurso religioso das mulheres em questão com os sentidos que dotam suas performances e roteiros afetivo-sexuais. Como objetivos, a pesquisa em desenvolvimento espera contribuir, por um lado, para a problematização acerca dos limites e possibilidades da reflexividade e da subjetividade (BONETTI e FLEISCHER, 2007; GROSSI, 1992; GROSSI, SCHWADE, MELLO e SALA, 2018) como potentes ferramentas metodológicas. Por outro lado, pretende- se que a análise possa narrar a agência da intersecção entre gênero, sexualidade, geração e pertença religiosa nas experiências afetivo-sexuais de mulheres em desigrejamento.

Localizaremos a partir de agora o universo da pesquisa, começando por minha3 experiência enquanto evangélica desigrejada4.

1. De assembleiana à desigrejada: percurso religioso de uma evangélica/antropóloga

1 Este paper é um recorte da dissertação de mestrado da autora, em desenvolvimento no Programa de Pós- graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Profa. Dra.

Alinne de Lima Bonetti.

2 Neste paper os termos êmicos estarão entre aspas duplas.

3 Como nos explica Anahí Mello (2019), a escrita autoetnográfica se expressa a partir de uma multiplicidade de formas textuais, escritas desde o uso da primeira pessoa do singular ao manejamento das pessoas verbais no decorrer do texto, cabendo à autoria a escolha da linguagem a ser utilizada em cada etapa da escrita. Sendo assim, alternaremos as pessoas verbais em nossa escrita.

4 Por evangélica me refiro a um cristianismo protestante de modo geral. Por desigrejada, ao status de evangélica sem vínculo institucional.

(3)

3 Desperto minha memória em 1995 quando, recém-nascida, fui apresentada5 em uma igreja evangélica pentecostal, uma filial da Assembleia de Deus6 em Campo Grande – MS. Uma espécie de batismo à seco, já que nesta vertente evangélica, o batismo por imersão é destinado a adolescentes e adultos como forma de confirmar uma conversão e reforçar o pertencimento ao “corpo de Cristo”.

Desde minha apresentação, nos primeiros meses de vida, até o início da adolescência, fui assembleiana e carreguei todos os pesos que essa denominação infligia às mulheres no final do século XX e início do XXI. Em especial no se refere às vestimentas e aos dogmas de conduta.

Um exemplo: por volta de oito-nove anos, atingi a idade para deixar de usar calças durante os cultos. Não importava o frio que fizesse, deveria sempre estar de saia ou vestido (curioso que a meia calça era permitida). Foi também com essa idade, que passei a me incomodar com o fato de não poder usar brincos7.

Além do imperativo da vestimenta, nessa época passei a ter medo de Deus. Do Deus que cuida da nossa vida. Um cuidar que não é sinônimo de prezar, mas de vigiar e punir, nos termos de Michel Foucault (1999). É o deus de Cuidado olho, boca, mão e pé. O salvador do céu está olhando pra você8, canção que aconselha crianças a terem prudência com o que podem - ou não - fazer com seus corpos, pois Deus está à espreita. O que estava subentendido é que ele estaria atento a todas as nossas ações, pronto a castigá-las, caso fossem más e indecentes. Michel Foucault teria muito a dizer sobre essa música, a começar pela pedagogia sobre o sexo das crianças, que a partir do século XVIII, “passou a ser um importante foco em torno do qual se dispuseram inúmeros dispositivos institucionais e estratégias discursivas” (2018, p.33). Dentre esses dispositivos está a escola e, dentre as estratégias, o poder pastoral e as tecnologias de si.

O medo e a vigilância, acionados pelo discurso sobre o comportamento social e, sobretudo, aos prazeres da carne, imprimiram duras marcas em mim. Até meus 20 anos eu não sabia nada sobre meu próprio corpo. Foi só quando comecei a namorar que me (re)conheci.

Precisei ser guiada por outra pessoa nesse encontro comigo mesma. Antes de me relacionar com meu namorado, hoje meu marido, nunca havia me tocado. Não fazia ideia do que era ou

5 O ato de apresentar crianças remete a uma tradição judaica, ressignificada por algumas denominações evangélicas, especialmente pentecostais e neopentecostais. O ritual de consagração é feito por um pastor – geralmente homem – que dirige uma oração “ofertando” a criança a deus em uma cerimônia pública, enquanto seu nascimento é reconhecido como uma benção aos seus familiares e à comunidade na qual se insere.

6 Há muitas vertentes de Assembleias de Deus espalhadas pelo território nacional, a que cresci é a Assembleia de Deus Mato Grosso do Sul, cuja sede está na capital do estado, minha cidade natal.

7 Experiência semelhante com o impeditivo do uso de brincos, foi relatada por uma de minhas interlocutoras, em seu caso, a experiência se deu em outra denominação pentecostal nos arredores de Brasília.

8 A letra completa pode ser vista aqui: https://www.letras.mus.br/mara-lima/cuidado-olhinho-o-com-que-ve/.

Acesso em: 30 ago. 2021.

(4)

4 onde ficava meu clitóris, nem sabia o prazer que ele poderia me proporcionar. Prazer? Até a palavra me parecia suja e pecaminosa. Atingi-lo me custou muito choro e angústia.

Mas voltando, aos meus 12 anos, lembro que um desentendimento entre familiares e a liderança da Assembleia de Deus, nos levou a outra igreja. Desta vez, uma neopentecostal no centro da cidade. Lá me tornei evangélica de verdade. Se antes a frequência aos cultos se dava por mera conveniência – meus pais iam, logo, eu também -, nesta igreja me engajei por conta própria, ou seja, me converti (CAMPOS e REESINK, 2014). Foi lá que me batizei, agora por imersão, e me tornei parte da membresia oficial de uma instituição evangélica.

Alguns anos depois desse trânsito religioso (ALMEIDA e MONTERO, 2001), tive acesso ao movimento Eu Escolhi Esperar (EEE)9, uma campanha cristã, não pertencente a uma denominação específica, que objetiva incentivar a “preservação sexual e integridade emocional”10 de pessoas solteiras que professam a fé cristã. Em um primeiro momento, eu os seguia apenas em suas redes sociais até que, com o convite de igrejas locais, palestras e congressos passaram a ser realizados nas principais capitais do país.

Embora minha denominação não tenha organizado nenhum evento que levou o pastor Nelson Júnior, líder do movimento, a Campo Grande, pude participar de encontros do EEE em diferentes ocasiões. Mais do que uma camiseta com um símbolo, pulseiras e chaveiros, o Eu Escolhi Esperar se tornou um ideal para mim, e, sobretudo, a certeza de que minha “santidade”

seria recompensada. Como diria uma interlocutora da minha pesquisa, “esse povo é fissurado em sexo” (nota de campo, outubro de 2020). E assim me tornei, “fissurada” em pensar sobre sexo e a fugir dele a qualquer custo.

Aos 18 anos, ingressei na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A universidade foi o lócus do meu processo de desigrejamento e o lugar onde minha vida afetivo- sexual ganhou novos contornos. Já no primeiro dia de aula, fui capturada por um grupo de universitários cristãos que desenvolviam atividades proselitistas no campus. Neste grupo, conheci meu namorado, um dos líderes do coletivo. Até então, não tinha me envolvido afetivamente com ninguém.

Como referido, minha metamorfose religiosa se deu a partir da minha entrada na universidade, período que Volney José Berkenbrock e Karen da Costa (2018) destacam como central em sua pesquisa sobre o processo de ressignificação da fé entre jovens que frequentam grupos de cristãos universitários. Para Berkenbrock e Costa, dentre os agentes desse

9 Para mais informações sobre a atuação do movimento Eu Escolhi Esperar ver Luiza Vitória Hortelan (2020).

10 EU ESCOLHI ESPERAR. Sobre. Disponível em: https://euescolhiesperar.com/sobre/ Acesso em: 12 abr. 2021.

(5)

5 movimento, estão o acesso a outros saberes, a interação com diferentes visões de mundo e o convívio com evangélicos de outras tradições. A ressignificação das crenças aconteceria mediante “crises de sentido” (p.418), quando os sujeitos são confrontados por novas realidades e passam a (re)interpretar o mundo e, consequentemente, suas práticas religiosas. O trânsito religioso aparece como um produto das ressignificações operadas. E este foi o meu caso.

Com o decorrer da minha inserção na universidade, uma série de acontecimentos e aproximações me possibilitaram rever as bases da minha fé. Envolvidos nesse processo estão os estudos de Gênero e Sexualidade e a Teologia Reformada (LOPES, 2004). Os estudos de gênero e sexualidade me alcançaram em uma disciplina optativa ofertada nas Ciências Sociais.

A partir dessa aproximação, me encontrei com o feminismo, mergulhando em leituras que partiam de uma análise interseccional, passando por discussões sobre classe, raça e identidade de gênero.

Quanto ao contato com uma teologia divergente da que eu tinha acesso, ela foi possível através da escuta de episódios de um podcast cristão11. As discussões proporcionadas por esta mídia me ajudaram a questionar minha educação evangélica neo/pentecostal. A teologia, nos levou, a mim e a meu namorado, a nos desviarmos do cristianismo que seguíamos até então e a migrarmos de nossas igrejas para uma denominação de tradição batista.

Foi também nesse período de desconstrução12, que o ideal de “namoro santo”13, que vínhamos tentando manter, sob inspiração do EEE, perdeu seu fôlego. Nos relacionávamos há quase dois anos. Dois anos marcados pela culpa da “fornicação” e pela ansiedade de permanecermos virgens até o casamento. A cada beijo demorado e abraço envolvente, eu experimentava a frustração de não conseguir cumprir o “propósito de Deus”. Me via como

“fraca” e “suja”. A angústia pelo “pecado” me dominou por muito tempo.

Na igreja batista, a concepção de cristianismo que eu e meu namorado tínhamos mudou radicalmente. Quanto mais nos aprofundávamos em outras interpretações bíblicas (em especial

11 Esse podcast propaga uma teologia cristã, orientada pelos fundamentos teórico-práticos da reforma protestante.

Sendo assim, produz um discurso crítico a Teologia da Prosperidade e a Teologia da Confissão Positiva.

12 Temos encontrado a desconstrução como uma categoria recorrente no Norte Global para definir o processo de rearranjo de crenças. David Hayward, pastor e cartunista norte-americano, ao explicar seu processo de desconstrução, nos conta ter decidido usar o termo “para descrever o processo, muitas vezes assustador, de questionar a certeza e a verdade aceita. É a erosão das crenças que herdamos e adotamos. [...] É o desmoronamento da fundação e estrutura de nossas vidas espirituais” (tradução nossa). Fonte: <

https://nakedpastor.com/blogs/news/what-is-deconstruction> Acesso em 31 ago. 2021.

13 “Namoro santo” ou “namoro em santidade” é uma expressão comum entre evangélicos para definir como um relacionamento cristão deve ser. De modo geral, o namoro deve visar o casamento, ter a benção dos pais e dos líderes religiosos e “guardar a santidade”. Em outras palavras, o casal deve manter a abstinência sexual de todo tipo, desde carícias, masturbação à penetração.

(6)

6 a Teologia Feminista14), mais nos sentíamos livres para viver nossa sexualidade. Ainda assim, só conseguíamos vivê-la até certo ponto. Nossas práticas sexuais, embora tivessem ganhado um novo roteiro, ou script (GAGNON, 2012), só iam até a masturbação mútua. Foi só no quinto ano de namoro, alguns meses antes de nos casarmos, que nos sentimos em paz e seguros com nossa sexualidade.

Me tornar desigrejada se deu de forma violenta e repentina. A primeira vez que ouvi o termo “desigrejada” foi na igreja batista em que congregava. O ano era 2016 e a ocasião um culto de jovens. A pergunta que o pastor ministrante planejava responder era a de se a ideia de Deus sim, Igreja não15 condizia com a religião cristã. É evidente que a resposta foi um estrondoso “não”. Antes desse evento, nem nos meus sonhos mais molhados previa que, em menos de seis meses, estaria desigrejada.

A experiência da desconstrução, em termos de aproximação com uma militância feminista e, no caso do meu namorado, com uma teologia liberal, nos levou ao convite de que nos retirássemos da instituição. Uma medida grosseira, de expulsão conduzida, que produziu consequências dramáticas e abruptas em nossa rotina e saúde mental.

O intuito com os relatos autoetnográficos delineados aqui, foi o de situar meu percurso pessoal, de assembleiana a desigrejada, e de assumir que minha postura científica é posicionada, herdeira de uma visão parcial e localizada, sendo essa a única objetividade que acreditamos ser possível (HARAWAY, 1995). A seguir, passaremos aos caminhos que percorremos no projeto de pesquisa em curso, apresentando alguns relatos de interlocutoras a respeito da experiência do desigrejamento e de suas trajetórias afetivo-sexuais.

2. Os caminhos de pesquisa: uma trajetória em construção

Entre me tornar desigrejada e iniciar a pesquisa na temática, alguns anos transcorreram, uma história densa que não cabe aqui. Neste tópico, descortinarei as informações acessadas via levantamento bibliográfico e que nos aproximaram das discussões teóricas sobre o assunto. Em um segundo momento, descreveremos os caminhos que nos levaram as interlocutoras de pesquisa e alguns insights iniciais.

14 Ver BRANCHER, PEREIRA, FOULKES et. al (1996).

15 Em 2012 o cantor gospel Fernandinho lançou um álbum em que uma das músicas trazia o seguinte trecho: “Ser cristão é ser igreja a todo momento. Pois ele vem buscar seu povo, não um desatento. Então, se liga, sai dessa nóia de ser infiel. Soldado que luta o bom combate tem que ter quartel. Essa conversa de Deus sim, igreja não. É coisa de mente fraca, é ideia do cão”. A letra completa está disponível em: https://www.letras.mus.br/fernandinho/um- dia-em-tua-casa/ Acesso em 17 set. 2021.

(7)

7 2.1 Discursos sobre o desigrejamento no Brasil

Desde o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já havia se constatado uma expansão na categoria de evangélicos não determinados. Faustino Teixeira (2014) nos aponta que:

A dificuldade de precisão analítica na apreensão correta dos dados sobre os evangélicos deve-se, em parte, ao significativo número de fiéis evangélicos classificados na categoria de “evangélicos não determinados”. Nada menos do que 9,2 milhões de pessoas, perfazendo 21,8% de todo o contingente evangélico, num patamar que envolve 5% de toda a população brasileira. Alguns analistas os identificam como

“evangélicos genéricos” ou “evangélicos sem igreja”, indicando a afirmação de uma diversidade interna no campo evangélico, seja mediante caminhos diversificados de assunção da pertença evangélica, seja no exercício de crença fora das instituições, ou na múltipla pertença evangélica (p.39).

Ou seja, dentre os 42, 3 milhões de evangélicos no Brasil16 (IBGE, 2010) há uma brecha na compreensão de quem são os evangélicos não-determinados ou não-denominacionais. Os autoidentificados como “sem igreja”, aqui chamados de desigrejados, estão inclusos nessa categoria.

As definições para desigrejado e desigrejada variam consideravelmente, a depender de quem está falando. Para o pastor Daniel Durand, autor do livro Desigrejados (2017), o termo ressalta a natureza “pseudo-cristã” do movimento, pois, para ele, não há cristianismo sem a

“Igreja de Cristo”17. Durand acusa os desigrejados de possuírem uma “natureza baderneira”

(p.14) e de serem “produto de uma sociedade contemporânea pautada no individualismo e no relativismo” (p.16). Além disso, afirma que jovens - entre 15 e 35 anos - que saem da igreja o fazem por serem “fortemente influenciados pelo pensamento filosófico de Nietzsche” (p.37).

Quando se trata de literatura acadêmica, as definições também variam conforme o campo teórico. Em um levantamento bibliográfico inicial localizamos 12 produções18, entre artigos e dissertações, cujo enfoque são desigrejados. Nessa bibliografia, cinco trabalhos foram

16 Pesquisas mais recentes apontam um aumento significativo no número de evangélicos desde a última década. O Instituto Datafolha sugere que os fiéis evangélicos já são um terço da população, com estimativas de superarem o contingente de católicos até 2032. Fonte: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/evangelicos-podem- desbancar-catolicos-no-brasil-em-pouco-mais-de-uma-decada.shtml> Acesso em 25 fev. 2021.

17 Na crítica ao termo “desigrejado”, Daniel Durand faz referência ao conceito de Igreja em seu duplo sentido, acionando tanto a compreensão de Igreja como local de culto quanto “coletivo de cristãos”. Segundo ele: “Diante deste fato é inconcebível falar-se de cristianismo e ao mesmo tempo usar a inadequada palavra “desigrejados”

como um movimento de caráter bíblico. A simples observação do significado de igreja como coletivo de cristãos já demonstra que a palavra “desigrejados” é diametralmente oposta ao cristianismo. Em sua essência este termo seria o mesmo que isolado, afastado de qualquer cristão, o que mostra que este movimento ora estudado já nasceu de forma equivocada” (p. 10, 2017).

18 A busca foi realizada no Catálogo de Teses & Dissertações da CAPES e no Google Acadêmico com o uso dos descritores “desigrejados”, “sem igreja” e “desinstitucionalização”.

(8)

8 produzidos pelas Ciências Sociais (FRARI, 2016; FRARI e LANZA, 2019; SANTOS, 2016, 2018a, 2018b), e os demais pelas Ciências da Religião (MACIEL, 2015; REIS, 2014; SANTOS, 2014; SIMAS, 2015) e Teologia (BILHALVA, 2020; BUENO, 2013; VIANA, 2019).

Nas Ciências Sociais, Vanderlei Frari e Fábio Lanza, apresentam o sujeito desigrejado como aquele que não consegue manter-se nas “estruturas eclesiásticas burocráticas e rígidas das igrejas” (2019, p.186), optando por experiências

intimistas e personalizadas, especialmente aquelas articuladas através de ambientes virtuais, redes sociais, movimentos transdenominacionais e ou grupos de relacionamento e estudo da Bíblia, conhecidos no contexto evangélico, como

“células” (2019, p.186).

No campo das Ciências da Religião está o único trabalho produzido por uma pesquisadora mulher. Em seu artigo, Rebecca Maciel (2015), analisa dois livros: Cristianismo Pagão de Frank Viola e George Barna (2005) e Os sem-igreja de Nelson Bomilcar (2012). O primeiro, nos termos de Maciel (2015), contém “as bases ideológicas do grupo” na busca por um

“cristianismo primitivo”. Enquanto o segundo segue um posicionamento teológico contrário ao desigrejamento, classificando os desinstitucionalizados como “amargurados”.

Os trabalhos acadêmicos produzidos na Teologia partilham da mesma linha confessional que Maciel (2015) apresenta em Bomilcar (2012) - e ao que demonstrei em Durand (2017) - no entanto, na esfera acadêmica teológica, há um discurso menos valorativo. O que significa que a defesa da institucionalidade é feita com maior cautela e uma aspiração científica. Um exemplo é Alexandre Bilhalva (2020), que declara na introdução de sua dissertação, que seu objetivo é

“confirmar a relevância da instituição Igreja e de seu futuro” (p.13).

Nesta etapa da pesquisa, também encontramos narrativas como a do projeto Desigreja19, uma “comunidade terapêutica” para quem se desvinculou de uma instituição religiosa. Em Quem são os desigrejados, segundo episódio do podcast da Desigreja (2021), há uma classificação deste segmento em 4 tipos ideais: 1) quem não se encaixa no padrão moral da igreja, em especial no que tange a orientação sexual; 2) quem não se encaixa no formato litúrgico; 3) quem não vê sentido prático na instituição e 4) quem não se sente à vontade para questionar dentro das igrejas.

19 A Desigreja é um projeto iniciado em fevereiro de 2021 por dois amigos, um pastor e um teólogo desigrejado, e atua no Twitter e Instagram promovendo discussões e acolhimento a pessoas desigrejadas. A descrição do projeto é “Porque nem sempre a instituição representa a Igreja”. Além das páginas no Twitter e Instagram, a Desigreja produz um podcast de mesmo nome.

(9)

9 A partir das múltiplas percepções sobre esse segmento, desde as pesquisas censitárias e acadêmicas ao discurso pastoral e de pertencimento, há de se dizer que a definição de quem são e por que são desigrejados revela um campo ainda em construção e permeado por controvérsias internas. Para Maria Goreth Santos (2014), é de suma importância identificar quem são os evangélicos “não denominacionais” e por que estão deixando de frequentar suas igrejas. Nossa proposta, é, portanto, perseguir esse objetivo.

2.2 Interlocutoras desigrejadas e trajetórias afetivo-sexuais

Assim como minha desconstrução teológica teve lugar na escuta de um podcast, minha entrada em campo passou pela escuta de um episódio de podcast. Produzido por jovens cristãos desigrejados e de diferentes denominações evangélicas, o 8° Choque Térmico (CT), recebeu jovens em desigrejamento, outros que passaram por esse processo e voltaram a igrejar-se e uma pastora metodista para comentar suas perspectivas pessoais sobre o assunto. Já na descrição do episódio, uma proposição nos intrigou: a de que a pandemia da COVID-19 alavancou o número de pessoas desigrejadas.

A tese defendida pelos divulgadores do CT é a de que quem estaria planejando mudar de igreja, antes do isolamento social, aproveitou o cancelamento das atividades presenciais para se distanciar de sua denominação. O grupo também comenta outras experiências possíveis no período de quarentena, dentre elas, a de pessoas que perceberam não sentirem falta de congregar em sua comunidade, ou que se afastaram por discordarem da postura política e anticientífica adotada por algumas lideranças evangélicas nesse período.

Posterior à escuta do podcast, soube através das redes sociais de integrantes do CT que uma conferência, organizada pelo coletivo e por uma igreja de Brasília, estava sendo traçada.

A Conferência Desigrejados aconteceu em outubro de 2020 e foi o espaço em que pudemos fazer contato com pessoas desigrejadas de diferentes regiões do país20. Das entrevistas empreendidas, 11 foram realizadas com mulheres e três com interlocutores homens.

O nítido recorte de gênero, com o qual nos deparamos desde este campo exploratório, pode ser explicado seguindo algumas pistas. Dentre as possibilidades, uma delas é a de que a temática - anunciada já nos primeiros contatos - pode ter provocado certo desconforto pela ideia de confidência que a sexualidade parece exigir. Ser entrevistado por uma pesquisadora mulher

20 Durante a semana da conferência, solicitei a organização do evento para divulgar meu projeto de mestrado. Com a autorização concedida, me deram um tempo de fala na programação para que convidasse pessoas desigrejadas (homens e mulheres) para participar da pesquisa. Aqueles e aquelas que se dispuseram a conversar, forneceram telefone e e-mail para contato através de um formulário Google (Google Forms).

(10)

10 exige um investimento social de maior peso aos homens21. Outra possibilidade a ser pensada é a de que, se as mulheres são, estatisticamente, a maioria dos evangélicos no Brasil22, logo, esse dado pode estar espelhado no contingente de desigrejados.

Para além do recorte de gênero, o marcador geracional também apareceu em nossa pesquisa de campo. Sendo assim, acreditamos que localizar a reflexão em grupos de mulheres mais jovens faça sentido tendo em vista as diferenças nas trajetórias de conversão, des- conversão e desigrejamento, traçadas pelo curso de vida. Mesmo com a descronologização da vida (DEBERT, 2010), as experiências de mulheres mais jovens com a religião evangélica, se distinguem daquelas narradas por mulheres mais velhas que buscam na religião apoio em conflitos familiares ou em casos de doenças (MACHADO e MARIZ, 1997). Delimitar a investigação às jovens evangélicas autoidentificadas como “desigrejadas” possibilitará a análise de como as experiências religiosas, anteriores ao desigrejamento, afetam os percursos afetivo- sexuais, suas performances e roteiros.

Dito isso, apresentamos o perfil das interlocutoras, mulheres cujas idades variam entre 18 a 30 anos, e suas regiões de moradia encontram-se no Sudeste (sete), Nordeste (duas) e Centro- Oeste (duas). Quanto a cor/raça, quatro se identificam como não-brancas (entre autoidentificadas como negras e pardas), enquanto sete se declaram brancas. Entre as orientações sexuais declaradas, quatro identificam-se como bissexuais e sete heterossexuais.

No que tange à educação escolar/acadêmica, apenas uma mulher, a mais jovem de 18 anos, não tem formação ou inserção universitária, todas as demais ou estão se graduando, ou tem formação no ensino superior.

A partir das interlocuções iniciais, da escuta de podcasts23 e das leituras de livros, artigos e dissertações encontradas, passamos a nos questionar sobre algumas problemáticas, as quais

21 É isso o que Paula Machado (2007) apresenta em seu relato de experiência junto a homens na periferia de Porto Alegre. A antropóloga que tecia conexões entre representações de masculinidades às decisões sexuais e reprodutivas, comenta ter tido dificuldade em estabelecer vínculos e marcar entrevistas. Dentre as negativas recebidas em campo, uma das que lhe chamou atenção foi a de que a parceira poderia não gostar. Mesmo entre aqueles com quem Paula Machado conseguiu dialogar, seu corpo - de “mulher atraente” - foi colocado como uma barreira à aproximação entre interlocutor e pesquisadora.

22 Para mais informações: ROMANO, Giovanna. Datafolha: Mulheres e negros compõem maioria de evangélicos e católicos: público feminino corresponde a 58% dos frequentadores de igrejas evangélicas e 51% de católicas;

pretos e pardos são 59% e 55% dos fiéis, respectivamente. Veja. Religião. 13 jan. 2020. Disponível em:

https://veja.abril.com.br/religiao/datafolha-mulheres-e-negros-compoem-maioria-de-evangelicos-e-catolicos/

Acesso em: 05 abr. 2021.

23 Outros episódios que tivemos acesso nesta etapa foram: Desigrejados e a Comunhão dos santos e Desigrejados do Bibotalk (2011 e 2017) e Desigrejados da Resistência Podcast (2014). Já em 2021, a temática parece estar tendo um novo ciclo de produções. Até abril de 2021, tinham sido publicados o episódio Desigrejados? do Podcast do céu? (2021), Os desigrejados estão certos! do Pastor Anderson Silva (2021), Desigrejadas do Redomascast (2021), além do início do projeto Desigreja, em fevereiro de 2021, cuja descrição o coloca como uma “rede de apoio” e “comunidade terapêutica” a pessoas desigrejadas.

(11)

11 nos importunaram durante o trabalho de campo exploratório. Tais questionamentos, suscitados pela trajetória pessoal da pesquisadora e das leituras realizadas, orientaram as conversas informais e entrevistas semiestruturadas realizadas até então. A primeira indagação pode ser descrita como: de que forma a experiência religiosa, anterior ao desigrejamento, afeta os percursos afetivo-sexuais? Seguida por: de que modo o desigrejamento abre brechas a novas concepções teológicas sobre sexualidade?

A primeira questão mostrou-se um caminho interessante a perseguir pois, dentre os relatos, notamos que as desigrejadas costumam acionar prescrições morais, apreendidas ao longo das passagens por igrejas evangélicas, como um fator de continuidade, e às vezes de ruptura, às práticas de abstinência sexual. O caso de Ana24 (24 anos, branca, heterossexual, universitária, de Vitória – ES e que esteve desigrejada por oito anos) ilustra alguns impasses em torno da sexualidade, referenciados por um grupo de interlocutoras.

Enquanto estava desigrejada, dos 11 aos 19 anos, Ana passou por período em que se sentia

“travada”, “paralisada” em seus relacionamentos por ter recebido, segundo ela, uma “educação [sexual] na base do terror”. Durante seu período de desigrejamento, conta ter iniciado sua vida sexual. Ela comenta que:

Quando começamos a ter contatos íntimos, ao mesmo tempo que era bom, eu sentia que era errado fazer. Depois ficava com certo peso na consciência. Ao longo do tempo que fui reestabelecendo minha fé e encontrei um lugar para congregar, aí mesmo que eu me sentia péssima. Com muita conversa tentamos ajustar isso na nossa vida, mas não deu. Então chegou num ponto que achei inaceitável e terminei o namoro [Entrevista concedida em 22 de outubro de 2020, grifos nosso].

O “peso na consciência” por exercer sua sexualidade fez com que Ana, ao voltar a frequentar uma igreja evangélica, escolhesse terminar seu relacionamento. Em um esforço para manter uma vida em “santidade”, tornou-se “inaceitável” permanecer em uma relação que não condizia com seu ideal de “namoro santo”. Neste ponto, a narrativa de Ana me toca de muitas formas. Como apresentei no tópico anterior, assim como ela, eu sentia esse “peso na consciência”. Na época, eu o interpretava como um aviso do “espírito santo”25. Embora eu não praticasse o sexo com penetração como Ana me descreve, terminar meu relacionamento por conta de toda a angústia que vivenciar o “pecado da fornicação” me acarretava, passou pela

24 Os nomes utilizados aqui são todos fictícios, seguindo o código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) no que tange ao direito de preservação da intimidade das populações objeto de pesquisa. Para mais detalhes, ver: http://www.portal.abant.org.br/codigo-de-etica/ Acesso em 18 abr. 2021.

25 Segundo a narrativa neotestamentária, o Espírito Santo – uma das pessoas da Trindade, junto com Deus Pai e Deus Filho - é o responsável por “convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo” (Evangelho de João 16:8).

(12)

12 minha cabeça. Quais caminhos me conduziram a continuar meu namoro, a “preço do pecado”, eu não sei dizer.

Priscila (23 anos, parda, bissexual, universitária, de Rio das Ostras – RJ e desigrejada desde 2019), representa outras experiências percebidas em campo. Se para interlocutoras como Ana “ter vivido em pecado e ter negociado a minha vida com Deus por causa disso” produz uma “culpa devastadora”, mulheres como Priscila relatam uma perspectiva diferente em suas trajetórias. Após seu desigrejamento, Priscila passou por um período de questionamentos a respeito de sua não-heterossexualidade. Ela conta que

[...] as vezes vem aquela pergunta, mas será que eu que sou a doida e esses doidos que estão certos? Existe a possibilidade de ter algo de errado nisso? Ou de não ser a vontade de Deus? E quando analiso acho que isso tem muito mais a ver com um sentimento de culpa esquisita, principalmente quando penso no que ocasiona nas relações familiares e afins. Do que um incômodo por parte do espírito santo. Mas é algo que tem sido construído e desconstruído com toda certeza. Não dá pra gente fugir e nem fingir que não é afetado pelo ambiente que a gente vive e está... E não dá também pra gente não ver que isso é também uma questão de tempo e processos internos e externos que as vezes desgraçam a cabeça pra depois melhorar. E que também fazem a gente se aproximar de uma galera muito “da hora”! Parece que Deus tem uma habilidade incrível de não deixar a gente nem viúvo nem órfão mesmo [Entrevista concedida em 23 de outubro de 2020, grifos nosso].

Se perceber como uma mulher bissexual tem sido, para Priscila, um processo de

“construção e desconstrução”, que passa por reconhecer o quanto a sua não-heterossexualidade pode afetar suas relações familiares, ao mesmo tempo em que a aproxima de outras pessoas evangélicas que vivenciam um deslocamento similar. Em sua fala, ela não aciona o conceito de pecado, mas o de “culpa esquisita”, que está relacionada mais ao seu contexto social e familiar do que com sua relação pessoal com o divino.

Recorrer a terminologias como sentir-se “travada”, “paralisada”, com um “peso na consciência” ou uma “culpa esquisita” são exemplos de categorias que aparecem com dada frequência. Se para Ana, a noção de pecado justifica as afetações sentidas, no ponto de vista de Priscila, sendo o gozo “um dos prazeres criados por Deus”, não lhe faz mais sentido acionar a ideia de pecado quando se trata de explorar seu corpo e sua sexualidade.

Regressando às perguntas que nos guiaram no campo exploratório, percebemos que a segunda questão (de que modo o desigrejamento abre brechas a novas concepções teológicas sobre sexualidade?) partia de uma suposição - quase que uma convicção - um tanto precipitada.

Atrelávamos o desigrejamento à emergência imperativa de outras compreensões religiosas sobre a sexualidade, quando, em campo, nos deparamos com diferentes caminhos possíveis.

(13)

13 Com a interlocutora Ana, o desigrejamento não parece ter lhe conduzido a novas concepções teológicas sobre sexualidade, pelo contrário, mesmo fora de uma igreja evangélica ela se sentia “péssima” com suas práticas sexuais. O “peso na consciência” só a deixou quando voltou a se igrejar e a exercer sua “santidade” da forma que lhe parecia mais correta. Na experiência de Priscila, olhar para a temática da sexualidade e dos movimentos sociais e políticos, a partir de uma perspectiva socialmente engajada, foram fatores decisivos em seu processo de desigrejamento. Sendo assim, o que chamamos de “novas concepções” vieram antes da sua saída da igreja batista. O desigrejamento apenas expandiu seus incômodos e a direcionou a uma imersão nas teologias dissidentes26, possibilitando que ela passasse a perceber sua bissexualidade pela chave da “culpa esquisita” e de suas origens e implicações sociais, desvencilhando-se da noção de pecado.

Outra interlocutora que nos fez (re)pensar essa questão foi Queila (29 anos, branca, bissexual, pedagoga, de São José dos Campos – SP e desigrejada há sete anos). Quando perguntada se acredita que foi o afastamento de sua antiga igreja que a tinha conduzido a novas formas de pensar a sexualidade, ela nos contou que:

Então, não sei se foi o afastamento, mas o desmantelamento da idealização que eu tinha em relação a igreja... O certo e errado criaram outros significados quando eu precisei manter minha fé através de outras coisas que não fossem a instituição igreja e isso me fez ouvir outras formas de ver e pensar a bíblia e etc. Então, acho que não foi o afastamento da igreja, mas sim a minha forma de me relacionar com a fé [Entrevista concedida em 14 de outubro de 2020, grifos nosso].

Queila evoca em sua fala o que Luiz Fernando Dias Duarte (2005) já havia apontado em seus trabalhos, de que a subjetividade, o ethos privado, está implicado no ethos religioso. O fato de Queila ter deixado de frequentar sua igreja (de tradição batista) por conta de uma mudança de cidade, e não ter conseguido encontrar outro lugar aonde se sinta “confortável para congregar”, a orientou a uma transformação em sua fé. O que ela chama de “desmantelamento”

do que compreendia como igreja, a encaminhou a “outras coisas” que estão para além da institucionalidade. Durante nossa entrevista, ela comenta assistir cultos online, em especial da Igreja Batista de Água Branca (IBAB)27, como sendo uma dessas ferramentas de manutenção da sua fé.

26 Priscila comentou durante a entrevista estar em contato com a Teologia Negra (James CONE, 2020) e a Teologia Feminista.

27 A IBAB é considerada, por alguns setores, uma igreja “progressista”. Para mais informações ver Gustavo de Castro Patricio de Alencar (2018).

(14)

14 Nesse sentido, o que entendemos a partir do relato de Queila é que, dentre essas “outras formas de ver e pensar a bíblia”, há duas questões. Primeiro que estar desigrejada não significa estar totalmente afastada de uma sociabilidade evangélica. Ter tido acesso as interlocutoras por meio de uma webconferência interdenominacional é um exemplo disso. Além do que, outras interlocutoras, assim como Queila, comentam assistir cultos online, sendo a IBAB uma recorrência.

Em segundo lugar, essas “outras coisas” que não são a “instituição igreja”, são permeadas pelas subjetividades de cada pessoa. O ethos privado, como coloca Luiz Fernando Dias Duarte (2005), atravessado pela preferência pessoal de como deve ser uma comunidade “confortável”

para se congregar, ou de como as identidades sexuais podem ser vivenciadas, assim como os posicionamentos políticos e as percepções pessoais sobre o que é certo e errado, interferem na adesão ou rejeição a igrejas evangélicas e a seus preceitos morais.

Considerações finais

Autoidentificar-me como evangélica desigrejada tem sido o ponto de partida desta pesquisa. Reconheço que minha proximidade com a temática influencia o modo como transito e dialogo com minhas interlocutoras. Seguindo Marilyn Strathern (2006), assumo ter consciência dos meus métodos de interpretar o mundo e dos meus interesses na atividade descritiva. Partilho da compreensão de que o corpo da antropóloga, marcado por sua biografia, escolhas teóricas e experiências em campo, afetam sua escrita etnográfica (NASCIMENTO, 2019). Portanto, minha subjetividade é acionada a partir de um esforço de reflexividade.

Desde a primeira aproximação com o campo, tenho sido afetada (FAVRET-SAADA, 2005) por emoções e memórias que, embora esperasse encontrá-las em campo, me surpreenderam pelo modo que me impactaram. Se foi a sensação de (não)pertencimento que me levou às jovens desigrejadas, tais afetos seguem sendo percebidos e confrontados na etapa da escrita da dissertação.

O saber localizado, de inspiração epistemológica associada à antropologia feminista que proponho construir, tem como base as histórias de minhas interlocutoras e meu próprio percurso religioso e afetivo-sexual. Por meio das histórias de vida e de uma postura autoetnográfica, apresento de que modo estar sem um vínculo institucional se perfaz nas vidas cotidianas e o quanto o processo de desigrejamento modela, ou não, práticas de fé e contribui à produção das subjetividades.

(15)

15 O intuito é que a reflexão em curso, possa narrar a agência da intersecção entre gênero, sexualidade, geração e pertença religiosa na experiência das interlocutoras de pesquisa. Como indicativo, colocamos a percepção de que, na medida em que o discurso produzido pelas mulheres em contexto de desigrejamento vem sendo por nós analisado, compreendemos que os sentidos de suas (não)identificações com igrejas evangélicas sinalizam perspectivas, ora de continuidade e ora de ruptura, em torno dos dogmas tradicionais a respeito de gênero e sexualidade. Enquanto o discurso hegemônico circunscreve o exercício da sexualidade ao casamento e à heteronormatividade compulsória, algumas interlocutoras acessadas narram suas experiências acionando compreensões dissidentes na legitimação de seu percurso religioso e de suas práticas afetivo-sexuais, desvencilhando-se da ideia de pecado sexual, tão difundida no evangelicalismo popular.

Referências

ALENCAR, Gustavo de Castro Patricio de. Grupos protestantes e engajamento cultural: uma análise dos discursos e ações de coletivos evangélicos progressistas. In: Encontro Anual da Anpocs, 41., 2018, Caxambu – MG. Anais... Disponível em:

https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/41-encontro-anual-da-anpocs/gt-30/gt29- 11/10874-grupos-protestantes-e-engajamento-cultural-uma-analise-dos-discursos-e-acoes-de- coletivos-evangelicos-progressistas/file Acesso em 12 de abril de 2021.

ALMEIDA, Ronaldo de; MONTERO, Paula. Trânsito religioso no Brasil. São Paulo em Perspectiva, 15 (3), p. 92-101, 2001.

BRANCHER, Mercedes; PEREIRA, Nancy Carsoso; FOULKES, Irene. et. al. (Orgs.). ...mas nós mulheres dizemos! Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.25, 1996.

BERKENBROCK, Volney José; COSTA, Karen Aquino Rangel da. Jovens evangélicos universitários: a ressignificação da crença e da prática religiosa. Interações. Belo Horizonte, v.13, n.24, p.414-435, 2018.

BILHALVA, Alexandre Oliveira. Os “desigrejados”: estudo sobre o fenômeno da desinstitucionalização contemporânea nas igrejas evangélicas. 2020. 114f. Dissertação (Mestrado em Teologia) - Programa de Pós-Graduação em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2020.

BONETTI, Alinne; Soraya FLEISCHER. (org.). Entre saias justas e jogos de cintura.

Florianópolis: Editora Mulheres EDUNISC, 2007.

BOMILCAR, Nelson. Os sem-igreja: Buscando caminhos de esperança na experiência comunitária. São Paulo: Mundo Cristão, 2012.

(16)

16 BUENO, Sérgio Henrique de Siqueira. As igrejas midiáticas e o aumento dos sem-igreja.

Vox Faifae: Revista de Teologia da Faculdade FAIFA. Goiânia, v. 5, n. 2, 2013.

CAMPOS, Roberta; REESINK, Mísia. Conversão (In)Útil. AntHropológicas v. 25, n.1, p. 49- 77, 2014.

CONE, James. Deus dos oprimidos e teologia negra. São Paulo: Editora Recriar, 2020.

DEBERT, Guita. Problemas relativos à utilização da história de vida e história oral. In:

CARDOSO, Ruth (org.). A Aventura Antropológica: Teoria e Pesquisa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, (pp.141-156), 1986.

DEBERT, Guita. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, v. 16, n. 34, p. 49-70, 2010.

DESIGREJA #02: quem são os desigrejados? Desigreja, 14 fev. 2021. Podcast. Disponível em:

<https://open.spotify.com/episode/6jWBK7Q52k6fHBuRXd6RWK?si=S7zla3SXT9Kk9559 HXn2Jg&utm_source=copy-link> Acesso em 18 de fevereiro de 2021.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Ethos privado e justificação religiosa. Negociações da reprodução na sociedade brasileira. In: HEILBORN, Maria Luiza, et al. Sexualidade, família e ethos religioso. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 137-176.

DURAND, Daniel. Desigrejados. Clube dos autores, 2017.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 27º edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

FRARI, Vanderlei. A cultura gospel e a desinstitucionalização do sujeito religioso:

investigação com os “desigrejados” evangélicos de londrina. 2016. 139f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de pós-graduação em Ciências Sociais –Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.

FRARI, Vanderlei; LANZA, Fábio. (Des)igrejados e novas perspectivas de sociabilidade religiosa. In: VIII Seminário Internacional Práticas Religiosas no Mundo Contemporâneo (UEL-UBI), 2019, Londrina. Anais... Londrina: UEL, p. 186 – 204, 2019.

GAGNON, John. Os roteiros e a coordenação sexual da conduta. In: GAGNON, John. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Garamond universitária, 2012.

Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1227> Acesso em 10 de julho de 2020.

GROSSI, Miriam Pillar. (org.) Trabalho de campo e subjetividade. Florianópolis: Publicação do Grupo de Estudos de Gênero e Subjetividade, 1992.

(17)

17 GROSSI, Miriam; SCHWADE, Elisete; MELLO, Anahí; SALA, Arianna. (Org.). Trabalho de campo, ética e subjetividade. Tubarão-SC: Editora Copiart e Florianópolis-SC: Editora Tribo da Ilha, 2018.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu. Campinas, (5), p. 07-41, 1995.

HORTELAN, Luiza Vitória Terassi.“Na contramão do mundo”: gênero, amor e sexualidade no movimento evangélico Eu Escolhi Esperar. 2020. 163f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.

LOPES, Augusto Nicodemus. Educação teológica reformada: motivos e desafios. Fides Reformata. São Paulo, v. 9, n.2, p.11-27, 2004.

MELLO, Anahí Guedes de. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019.

186F. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

MACHADO, Maria das Dores Campos. Representações e relações de gênero nos grupos pentecostais. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 13, n.2, p. 387-396, 2005.

MACHADO, Paula Sandrine. Entre homens: espaços de gênero em uma pesquisa antropológica sobre masculinidade e decisões sexuais e reprodutivas. In: BONETTI, Alinne; FLEISCHER, Soraya. (org.) Entre saias justas e jogos de cintura. Florianópolis, Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres, EDUNISC, p.155 -184, 2007.

MACIEL, Rebecca Ferreira Lobo Andrade. Cristãos sem igreja: um olhar a partir da contemporaneidade. SACRILEGENS. Juiz de Fora, v.12, p.88-99, 2015.

MOORE, Henrietta. Antropología y Feminismo. 5ª ed. Barcelona: Ediciones Cátedra, 2009.

NASCIMENTO, Silvana. O corpo da antropóloga e os desafios da experiência próxima. Revista de Antropologia, v. 62 n. 2: 459-484, 2019.

REIS, Allan Nilton dos. “Não entrei em crise com Deus”: a desinstitucionalização da religião na ótica de ex-alunos(as) de teologia evangélica. 2014, 205f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Programa de pós-graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

SANTOS, Douglas Alessandro Souza. “O sacerdócio universal dos crentes”: a trajetória de evangélicos não institucionalizados no Brasil. In: 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2016, João Pessoa. Anais... p. 1 – 9, 2016.

SANTOS, Douglas Alessandro Souza. “Não-determinados”?: a pulverização evangélica e o problema metodológico do Censo Brasileiro. Diversidade Religiosa, João Pessoa, v. 8, n. 1, p.

03-23, 2018a.

(18)

18 SANTOS, Douglas Alessandro Souza. Os Desigrejados: um caso de reconfiguração religiosa entre os evangélicos brasileiros no contexto da modernidade radicalizada. 2018. 182f.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2018b.

SANTOS, José Wellington dos. Trânsito religioso e o sujeito da fé: motivações para a prática do trânsito religioso entre os sem religião que se afirmam evangélicos. 2014. 120f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Programa de pós-graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

SANTOS, Maria Goreth. Os limites do censo no campo religioso brasileiro. Comunicações do ISER, v. 69, p. 18-33, 2014.

SIMAS, Marcos Rodrigues. Igreja-líquida: fenômeno de uma nova forma de religiosidade cristã-evangélica, observada no site Genizah. 2015. 154f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Programa de pós-graduação em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.

STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade Melanésia. Campinas: Editora Unicamp, 2006.

TEIXEIRA, Faustino. Campo religioso em transformação. In: CUNHA, Cristina Vital da;

MENEZES, Renata de Castro. Religiões em conexão: números, direitos, pessoas. Rio de Janeiro: Comunicações do ISER, n.69, 2014, p. 34-45.

URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. Ponto Urbe, v.11, p. 1-13, 2012.

VIOLA, Frank; BARNA, George. Pagan Christianity: The Origins of Our Modern Church Practices. Present Testimony Ministry, 2005.

VIANA, Damião Nogueira et al. Análise dos desigrejados na cidade de Manaus focado na zona sul. 2019. Disponível em:

<http://www.repositorioinstitucional.fbnovas.edu.br/handle/prefix/347> Acesso em 10 de julho de 2020.

Referências

Documentos relacionados

“Essa oficina para mim, por enquanto ´e a melhor oficina do Projeto, tanto para os alunos que ficam muito motivados, quanto para n´os professores, pois vemos um brilho nos olhos

Este trabalho, seguindo o método Design Science Research, fez uma revisão da literatura, uma análise bibliométrica e o estudo de uma empresa para encontrar os elementos da

De acordo com o Instituto Ethos (2013), a GRI foi criada com o objetivo de aumentar o nível de qualidade dos relatórios de sustentabilidade. O conjunto de diretrizes e indicadores da

O Serviço de Pediatria e a Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais e Pediátricos do Hospital Geral de Santo António foram contemplados com equipamento, mobiliário e roupa de

A TRALI pode ser traduzida como lesão aguda pulmonar relacionada à transfusão ou edema agudo de pulmão não-cardiogênico. Deve-se à transferência passiva de altos títulos

As viagens tinham como principal razão: principal razão: as peregrinações/ culto dos lugares as peregrinações/ culto dos lugares

Nesse sentido, o presente trabalho busca, partindo de um referencial teórico construído sobre a interpretação da atuação política das Forças Armadas no Brasil historicamente;

Os estudos realizados pela Rede de Pesquisa em Turismo Religioso no Nordeste Brasileiro abarcam um retrato das tensões políticas, econômicas e sociais que têm