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Escravidão, compadrio e família em Palmas na Província do Paraná: um estudo de trajetórias de famílias cativas Daniele Weigert UFPR

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Escravidão, compadrio e família em Palmas na Província do Paraná: um estudo de trajetórias de famílias cativas

Daniele Weigert UFPR Em 1843, ano em que encontramos os primeiros registros paroquiais de casamento e batismo, o então Povoado de Palmas estava no inicio de sua ocupação, que começou apenas cinco anos antes, por pessoas vindas de Guarapuava que tinham a finalidade de tomar posse dos campos para invernagem e criação de gado.

Algumas comissões antes de 1839 foram realizadas, mas com insucesso; durante a década de 1830 foi organizada uma bandeira colonizadora comandada por José Ferreira dos Santos que tinha por finalidade tomar posse das terras dos Campos de Palmas. Pedro de Siqueira Cortes, por ter seu pedido de entrada nesta bandeira negado, comandou uma segunda bandeira com o mesmo objetivo; quando chegaram aos Campos de Palmas as duas bandeiras entrou em conflito sendo necessário à intervenção de árbitros que amenizaram a situação e proporão a divisão das terras entre os membros das duas frentes colonizadoras, dos quais alguns venderam suas partes1 e foram estabelecidas as fazendas.

Segundo Lourdes Stefanello Lago, a ocupação efetiva dos Campos de Palmas se tornou por volta de 1838 uma questão de política nacional, pois a região correspondia ao território contestado pela Argentina na questão de limites. José Ferreira dos Santos que havia firmado contrato com o governo provincial de São Paulo (que lhe deu direito de, após escolher a sua fazenda, dar posse de terras aos outros integrantes do grupo) formou sob sua chefia uma sociedade de estancieiros guarapuavanos para conquistar e povoar a região2.

Durante o período de ocupação e consolidação de Palmas como Vila, a economia estava voltada à criação de gado, em 1851 nas fazendas encontravam-se aproximadamente 36.000 animais (cavalos, bestas e gado vacum), marcando boas cifras de reprodução anual3. Em 1859 era constituída por 3 casas de negócios, 44 sítios de lavoura e 38 fazendas de criar e a população atingiu o número de 734 habitantes entre os quais o contingente escravo alcançou a cifra de1584. Em 1872 tinha aproximadamente 440 casas de morada, alcançou o total de

1 MARTINS, Romario. Bandeiras povoadoras do Paraná: povoamento dos campos de Palmas. IN: Revista do Circulo de Estudos “Bandeirantes”. Fundada em Curitiba aos 12 de setembro de 1929. Tomo 1º - n. 4. Número Commemorativo ao Centenário dos Campos de Palmas. Curitiba: Fevereiro de 1936, p.282.

2LAGO, Lourdes Stefanello. Origem e evolução da população de Palmas - 1840-1899. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Santa Catarina, 1987, p. 59-62.

3SANTOS, Eucléia Gonçalves. “Em Cima da Mula, debaixo de Deus, na frente do Inferno”: Os Missionários Franciscanos no Sudoeste do Paraná (1903-1936). Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR, 2005, p. 64. 4 Op. Cit. p. 65.

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aproximadamente 3301 habitantes sendo que a população cativa era de 2735. Assim sendo a população de Palmas teve um crescimento no período de aproximadamente 450% e a população cativa ficou em torno de 173% em um período de 13 anos.

Constatando para Guarapuava um crescimento permanente da população, durante os anos de 1828 a 1840, Fernando Franco Netto afirma que este crescimento se deve as especificidades de área de nova fronteira que acarretava em um deslocamento expressivo de indivíduos para Guarapuava6. No caso do Povoado de Palmas, que era distrito de Guarapuava, e expansão de suas fronteiras, a questão do aumento populacional foi da mesma forma marcante no período.

Neste contexto que os casais Joze e Vicencia e Bebiano e Gabriella contraíram matrimônio.

Joze e Vicencia e Bebiano e Gabriella

Joze e Vicencia casaram no Povoado de Palmas em 1852, ambos eram escravos de Estevão Ribeiro do Nascimento7 e tiveram três filhos que foram batizados de 1854 até 1856 além da neta do casal de nome Maria.

Emilia foi à primeira filha a ser batizada no dia três de julho de 1854 com quatro meses de idade, foram seus padrinhos Antonio Francisco e Lecidia, escrava do mesmo Estevão Ribeiro do Nascimento. Luiz foi o segundo filho a ser batizado no dia 16 de agosto de 1856, com um ano de idade, e recebeu como padrinho e madrinha o casal Luiz Antonio Berges e Gertrudes Maria Fernandes. O terceiro filho de Joze e Vicencia a ser registrado foi Claudino, que recebeu os santos óleos em quinze de dezembro de 1856 com um mês de idade, e teve como padrinhos Felisberto e Marianna escravos de Pedro Ribeiro de Souza8.

Ainda nessa família foi batizada a ingênua9 Maria, filha de Emilia, no dia cinco de dezembro de 1875, nascida em outubro daquele mesmo ano, Maria teve como padrinho

5 O Recenseamento para a Paróquia do Senhor Bom Jesus marca números diferentes, quando trata da população por sexo apresenta um total de 3028 para o total da população, para a condição jurídica (livre ou escravo) apresenta um total de 3301. IBGE. Recenseamento Geral do Brasil 1872 – Império do Brazil. Disponível em:

http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/visualiza_colecao_digital.php?titulo=Recenseamento%20 Geral%20do%20Brasil%201872%20-%20Império%20do%20Brazil&link=Imperio%20do%20Brazil# Acesso em: 12 dez. 2009, p. 98.

6 FRANCO NETTO, Fernando. População, escravidão e família em Guarapuava no século XIX. Tese de Doutorado. Curitiba: UFPR, 2005, p. 37.

7 CÚRIA DIOCESANA DE PALMAS. Livro de Registro Paroquiais de Casamentos n. 1, 1843-1885, p.3. 8 CÚRIA DIOCESANA DE PALMAS. Livro de registro Paroquiais de Batismo n. 1, 1843-1871, p. 25 verso, p. 30 verso, p. 37.

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Hypolito Cordeiro de Andrade e Maria da Incarnação10. O quadro abaixo ilustra estas informações.

Silvia Brüger observando a tendência pela escolha de padrinhos livres para filhos de escravos, em São João del Rei durante os séculos XVIII e XIX, considera que se por um lado esta característica pode ser justificada por ser as escravarias de pequeno porte, por outro também demonstra “a capacidade de circulação e ampliação dos laços de sociabilidade dos cativos”11fator que Stuart Schwartz também considera12. Para este estudo podemos considerar também estes argumentos nos casos de padrinhos escravos de outras propriedades.

Estevão Ribeiro do Nascimento, senhor deste casal, tinha em 1874, ano que foi feito seu inventário de bens, doze escravos, dos quais aparecem Luis(z) e Emilia, a faixa etária da escravaria vai de 6 a 42 anos de idade, pelas características apresentadas no inventário13 não

10

CÚRIA DIOCESANA DE PALMAS. Livro de registros de Batismo de Ingênuos da Paróquia de Palmas, 1871-1888, p. 7 verso.

11 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Compadrio de Escravos (São João del Rei – Séculos XVIII e XIX). Disponível em: http://www.rj.anpuh.org/Anais/2002/Comunicacoes/Brugger%20Silvia%20M%20J.doc Acesso em: 14 abr. 2008, p. 5.

12 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 200, p. 276-277.

13 NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA HISTÓRICA DE PALMAS (NDPH-UNICS). Relação de Inventários de Bens e Testamentos de Palmas (1859-1903), s/a.

Luiz e Jacynta Marianna/escra-va de Pedro Ribeiro de Souza Joze e Vicencia Antonio Francisco Maria da Incarnação Gertrudes Maria Fernandes/casa-da c/ Luiz A. B. Lecidia/escrava de Estevão Ribro do Nascimento Felisberto/escra-vo de Pedro Ribeiro de Souza Luiz Antonio Berges/casado c/ Gertrudes M. F. Hypolito Cordeiro d’Andrade Dominga Luiz Emilia Claudino Maria

Relações de Parentesco a partir de Joze e Vicencia

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podemos avaliar as possibilidades de apadrinhamento entre os escravos desta propriedade no período que Joze e Vicencia levaram seus filhos a pia batismal (1854-1856), o que podemos afirmar é que eles reforçaram relações no interior do grupo na escolha da madrinha de Emilia, primeira filha do casal. Em média, as escravarias de Palmas eram constituídas por 6,9 escravos14, assim podemos dizer que essa região era caracterizada por pequenas propriedades escravistas.

Neste aspecto, é evidente no caso de Palmas que os padrinhos de filhos de escravos eram escolhidos além da escravaria que faziam parte, provavelmente pelas poucas possibilidades de padrinhos na propriedade onde viviam. Não tão evidentes foram as relações horizontais entre os escravos, a maior parte dos padrinhos e madrinhas de filhos de escravos eram livres.

Dando ênfase ao segundo argumento de Silvia Brüger, percebemos também entre os escravos de Palmas a capacidade de ampliação de laços sociais por meio de estratégias de escolhas de padrinhos exteriores a escravaria que pertenciam, tanto ao escolherem livres ou escravos.

O casal reforçou relações internas e estabeleceram relações externas com livres e escravos de outros senhores. Dos três filhos que batizaram temos dois padrinhos livres e um padrinho escravo, entre as madrinhas são duas escravas e uma livre.

Além da escolha interna a propriedade escravista que faziam parte, também estabeleceram laços de compadrio exteriores, com escravos de outros senhores através de compadre e comadre cativos de Pedro Ribeiro de Souza, e com o meio livre, pela escolha de Luiz Antonio Berges e sua esposa Gertrudes Maria Fernandes como padrinho e madrinha de Luiz que por sua vez recebeu o mesmo nome de seu padrinho15.

Para ampliar ainda mais as estratégias de escolha de padrinhos temos Maria, neta de Joze e Vicencia e filha de Emilia, recebendo como padrinho e madrinha um casal livre que possuía uma escrava16. Portanto a família formada por Joze e Vicencia estabeleceu estratégias de compadrio com o meio escravo dentro e fora da propriedade escravista a que pertenciam, e com o meio livre com pessoas que não possuíam escravos e com proprietário de cativo.

14 MENDES, Adilson Miranda. Origem e composição das fortunas na sociedade tradicional paranaense: Palmas – 1859 -1903. Dissertação de Mestrado, Curitiba: UFPR, 1989, p. 217.

15 A questão de a criança receber o mesmo nome se repete nesta família quando Emilia nomeia sua filha com o mesmo nome de sua madrinha “Maria” CÚRIA... ,1871-1888, op. cit. p. 7 verso.

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O segundo casal estudado, Bebiano e Gabriella, se casaram em 1873 e batizaram cinco filhos no período de 1874 a 1884. Quando de seu casamento foram identificados como escravos de Dona Núncia Maria Ferreira e tiveram como testemunhas Elauriano Teixeira Baptista e o Alferes Fermino Teixeira Baptista17, o ultimo sendo identificado como senhor do casal nos registros de batismo de seus filhos.

Os filhos de Bebiano e Gabriela batizados (1874-1884) são Benedito, Quirina, Sebastiana, Ignacia e José. Benedito foi batizado no dia dois de fevereiro de 1874 foram seus padrinhos Pedro e Izabel. Quirina, preta, recebeu como padrinhos João Antonio de Oliveira e sua mulher Dona Maria Núncia Ferreira (filha de Núncia Maria Ferreira) no dia nove de dezembro de 1878. Sebastiana, mulata, foi batizada em vinte um de março de 1880 teve Lauterio e Joana como padrinho e madrinha, ambos escravos. Ignacia foi batizada em 19 de janeiro de 1882, recebeu como padrinhos Antonio e Prudência também cativos. José, que recebeu o mesmo nome de seu padrinho, foi batizado em vinte de janeiro de 1884 e teve como

17 CÚRIA ..., 1843-1885, op. cit. p.41 verso.

Bebiano e Gabriella Joana/ Escrava de Fermino Teixeira Baptista Pedro D. Maria Núncia Fereira casada c/ João Antonio João Antonio de Oliveira casado c/ D. Maria Núncia Antonio/ Escrava de Fermino Teixeira Baptista

José Ferreira dos

Santos Texeira Baptista Ernestina

Prudencia/ Escrava de Fermino Teixeira Baptista Lauterio/ Escravo de Fermino Teixeira Baptista Ignacia Benedito Quirina Bastiana José Izabel

Relações de Parentesco a partir do casal Bebiano e Gabriella

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padrinho José Ferreira dos Santos (filho de Núncia Maria Ferreira) e como madrinha Ernestina Texeira Baptista18.

No inventário de José Ferreira dos Santos, (o já citado líder colonizador dos Campos de Palmas) esposo de Núncia Maria Ferreira que faleceu em 1868, Gabriela é identificada como sua escrava com 13 anos de idade, entre seus bens são identificados 21 escravos, contando com Gabriela, não constando Bebiano. Em outro inventário de 1883 de Maria Rosa Ferreira Baptista, filha de José Ferreira dos Santos e esposa do Capitão Fermino Teixeira Baptista, o casal Bebiano e Gabriela são identificados como seus escravos ele com 28 anos e ela com 29, entre seus bens soma-se, com eles, seis escravos19.

Como podemos observar o número de cativos que o casal conviveu e/ou conviviam possibilitava estabelecer laços pelo compadrio com o meio escravo. O casal reforçou suas relações com cativos ao escolherem três padrinhos e três madrinhas escravos, mas também tiveram como compadres dois proprietários de cativos.

A tendência geral para o período de 1843 a 1888 em Palmas é a maior escolha de livres como padrinho e madrinha, tanto para filhos legítimos (com pai é mãe casados e reconhecidos) quanto para filhos ilegítimos (com apenas a mãe reconhecida). Para esse período os padrinhos escravos, para os filhos legítimos ficaram em média entre 15% e para filhos ilegítimos ficou entre 4,5%. Ressaltemos, entretanto que o número total de padrinhos escravos para os dois casos são muito baixo, como podemos observar na tabela a seguir.

18 CÚRIA... ,1871-1888, op. cit. p. 5 verso, p.9 verso e 10, p.12, p.15, p.19 verso e 20. 1919 NÚCLEO..., s/a, op. cit.

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Levando em conta a afirmação de Denys Cuche que “A identidade existe sempre em relação a uma outra”21 poderíamos aqui falar em uma identidade cativa em oposição a livre, essa questão pode ser observada nos Registros de Batismo que diferencia filhos de cativos (sempre vinculado ao nome dos senhores) em relação a filhos de livres, mas a questão é mais complexa, se observarmos que mesmo que o pároco marque a diferença entre livres e escravos, e que realmente ela existia, a quantidade de pessoas livres escolhidas para compadres de escravos pode sugerir que estes cativos queriam se desvencilhar da identificação enquanto escravo, se vinculando a pessoas livres.

20 Ana Paula Pruner de Siqueira encontrou para este período um total de 287 registros de batismo de escravos. SIQUEIRA, Ana Paula Pruner. As relações de compadrio em terras de pecuária na segunda metade do século

XIX. Disponível em:

http://www.eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1212158059_ARQUIVO_textointegralanpuh-rs.pdf Acesso em: 19 jan. 2009. 21 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999, p.183.

Condição Jurídica dos Padrinhos e Madrinhas de Filhos Legítimos e Ilegítimos de escravos

Legítimos Ilegítimos Padrinhos Períodos** Total* Padrinhos Períodos** Total* 1843-1871 1872-1888 1843-1871 1872-1888 # % # % # % # % # % # % Livres 9 69,2 26 92,9 35 85,4 Livres 43 87,8 162 97,6 205 95,3 Escravos 4 30,8 2 7,1 6 14,6 Escravos 6 12,2 4 2,4 10 4,7 Total 13 100 28 100 41 100 Total 49 100 166 100 215 100 Madrinhas Períodos*** Total* Madrinhas Períodos*** Total* 1843-1871 1872-1888 1843-1871 1872-1888 # % # % # % # % # % # % Livres 8 72,7 25 89,3 33 84,6 Livres 39 88,6 142 92,8 181 91,9 Escravos 3 27,3 3 10,7 6 15,4 Escravos 4 9,1 5 3,3 9 4,6 Santa - - - Santa 1 2,3 6 3,9 7 3,5 Total 11 100 28 100 39 100 Total 44 100 153 100 197 100

Fonte: Registros Paroquiais de Batismo - Cúria Diocesana de Palmas-Pr

*O Total de Batismos analisados para todo o período (1843-1888) é de 25120.

**Durante o Primeiro e Segundo períodos foram encontrados dois e três casos respectivamente, em que é identificado mais de um padrinho.

***Durante o Primeiro e Segundo períodos foram encontrados cinco e dez casos, respectivamente, em que não são identificadas as madrinhas, outro assento do segundo período a identificação da madrinha está impossibilitada neste mesmo período consta um assento com duas madrinhas.

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A identidade africana que poderiam acionar era suprimida desde as políticas coloniais temerosas com a possibilidade de conspirações; as famílias que poderiam perpetuar uma herança cultural africana eram escassas pela maior entrada de homens que mulheres pelo tráfico.

O desequilíbrio por sexo dos planteis, mesmo em fazendas antigas, realimentado pelo constante ingresso de recém-chegados, não impossibilitava as relações familiares, mas fazia da família e dos recursos que comumente a ela estiveram associados [...] possibilidades abertas, mas não acessíveis a todos os cativos22.

Assim, durante praticamente todo o período que vigorou o sistema escravista no Brasil, a família era mais um elemento de diferenciação que de coesão dentro de uma possível comunidade escrava. Nas sociedades africanas ser livre significava não ser estranho ao grupo e o estranho era aquele “que não cresceu dentro dos laços das relações sociais e econômicas que situam um homem em relação a todos os outros”23. “Se o estranho não é introduzido no ciclo reprodutivo, mas apenas na produção, ele não é ressocializado na sociedade de adoção, pois não estabelece nela nenhum laço de parentesco”24.

A incapacidade de ser parente é apontada por Claude Meillassoux como uma característica que aparecerá em todas as formas de escravidão, assim podemos aproximar este estudo da escravidão na África com a afirmação de Hebe Mattos sobre o Brasil “que a gestação de relações comunitárias entre os escravos, no Brasil, significou mais uma aproximação com uma determinada visão de liberdade” do que a uma formação de uma identidade étnica25. Em contraposição Manolo Florentino e José Roberto Góes afirmam que “a criação e recriação de parentesco cativo era um elemento chave do processo pelo qual se produzia o escravo”26.

22MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste Escravista Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 126.

23 MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de janeiro: Zahar, 1995, p.19.

24Op. cit. p. 27

25MATTOS, 1998, op. cit. p. 127.

26FLORENTINO, Manolo. GÓES; José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1997, p.37.

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Estes últimos autores salientam a família enquanto política senhorial para a pacificação, que em momentos de grande entrada de novos escravos nas propriedades se intensificava o estado de guerra nas senzalas.

Levando em consideração a afirmação de Stephen Gudeman e Stuart Schwartz que a escolha do padrinho, e acrescentemos do cônjuge, era determinada pelo contexto social da escravidão, e possuíam significados distintos para senhores e escravos27, pode-se afirmar que a família escrava foi, sem duvida, aproveitada pelos senhores de cativos para maximizar seus lucros e pacificar, mas para o cativo a família possibilitou certa autonomia e laços de pertencimento que se associavam a liberdade. “A família e a comunidade escrava não se afirmaram como matrizes de uma identidade negra alternativa ao cativeiro, mas em paralelo com a liberdade”28.

Ter laços parentais não é uma forma de forjar uma identidade escrava, mas de se diferenciar dos outros cativos e se aproximar da liberdade. Em relação ao casamento Cacilda Machado afirma que para os escravos o matrimonio era uma estratégia socialmente disponível para conquista da liberdade, mesmo que “nesse empenho eles se tornassem partícipes do processo de produção e reiteração das hierarquias sociais”29. Não ter vínculos parentais tornava o cativo simplesmente escravo com uma função produtiva, não eram filho/filha, pai/mãe, esposo/esposa, padrinho/madrinha ou compadre/comadre papéis que o diferenciavam, e eram fontes de significações que de certa forma remete a uma comunidade baseado em relações de parentesco30.

Para Max Weber “Uma relação social denomina-se ‘relação comunitária’ quando e na medida em que a atitude na ação social [...] repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo”31.

27GUDEMAN, Stephen; SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII. IN: REIS, João José (org). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 37.

28 MATTOS, 1998, op. cit.

29 MACHADO, Cacilda. Casamento de escravos e negros livres e a produção da hierarquia social em uma área distante do trafico Atlântico (São José dos Pinhais-Pr, passagem do XVIII para o XIX). IN: FRAGOSO, João (et. al.). Nas rotas do Império. Vitória: Edufes, 2006, p. 489.

30Utilizei a expressão papéis conforme foi conceituada por Manuel Castells “Papéis são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade”. Mas considerei neste caso sua afirmação que “as identidades também possam [podem] ser formadas a partir de instituições dominantes, [mas] somente assumem tal condição quando e se os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização”. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. v. 2, São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.21-22

31 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991, p.25.

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A comunidade32 que os cativos das pequenas propriedades escravistas de Palmas buscavam criar ou reforçar estava atrelada ao parentesco não necessariamente com escravos de outros senhores ou do mesmo senhor, mas também com a população livre. Ter papéis sociais ligados ao parentesco significou fazer parte de um meio de pertinência.

A família de Joze e Vicencia ampliou as relações pelo compadrio com pessoas escravas e livres, os padrinhos escolhidos eram pouco visados entre os escravos, mas os padrinho e madrinha de Claudino realizaram manobras bastante sugestiva. Marianna, comadre do casal e madrinha de Claudino, se casou em 1874 com um homem livre de nome Felisbino José Rodrigues. Felisberto, o padrinho de Claudino, foi também de Manoel filho dos escravos Maria e Antonio, este escravo se casou em 1860 com Francisca Rodrigues de Lima livre e viúva de Joaquim Pinto, com a morte de Francisca, Felisberto que já era livre e atendia pelo nome de Felisberto Ignácio dos Santos se casou novamente em 1871, com Manuela Maria Joaquina.

Marianna e Felisberto realizaram manobras de casamento com pessoas livres, Felisberto ao que se viu nos registros paroquiais conseguiu a liberdade sendo identificado como livre, com Marianna não foi diferente, encontramos sua carta de liberdade feita em 187733, três anos após seu casamento. Marianna e Felisberto são simbólicos, ambos foram padrinho e madrinha de filhos de escravos com pai e mãe reconhecidos e também se casaram com pessoas livres e conseguiram a liberdade, por suas estratégias são exemplares que a família escrava e a ligação com pessoas livres era a forma de alcançar a liberdade.

Para Cacilda Machado a predominância de casamentos de cativos com pessoas livres em São José dos Pinhais é um argumento contundente da atividade do escravo na busca da liberdade, mesmo que acabasse produzindo diferenças. Segundo essa autora “parte da população livre era vista [...] ‘com um pé na escravidão’, e parte da população escrava [...] tinha ‘um pé no mundo dos livres’” e esta “não era a consciência das diferenças, e sim um dos mecanismos produzidos e sistematicamente acionados no esforço de criar as diferenças”34. Portanto ao estabelecerem arranjos matrimoniais e alianças pelo compadrio os escravos

32 Parece-nos pertinente para este trabalho também à noção de comunidade fornecida por Ferdinand Tönies entendida como convivência intima, familiar, exclusivista. TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e sociedade. IN: CRUZ, M. Braga da (org.). Teorias Sociológicas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p.511.

33 TABELIONATO LEINING. Livro de Notas n. 5, 1876-1879, p. 41 e verso.

34 MACHADO, Cacilda da Silva. Patriarcalismo e hierarquia social no Brasil escravista (Algumas contribuições a partir de um estudo sobre a freguesia de São José dos Pinhais). Disponível em:

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estavam se diferenciando do estereotipo ligado à escravidão35, mas ao conseguirem a liberdade eram associados com ela.

Das pessoas livres que Joze e Vicencia estabeleceram compadrio não se pode identificar parentesco com o proprietário do casal, para Bebiano e Gabriella este tipo de relação foi marcante. Dos livres que foram escolhidos como compadres de Bebiano e Gabriella dois padrinhos e uma madrinha são cunhados de Fermino Teixeira Baptista, senhor do casal, e genro e filhos da antiga proprietária, Dona Núncia Maria Ferreira, dos escravos todos são da mesma propriedade escravista. Pedro e Izabel, que não é identificado o sobrenome, podem ser um casal de escravos com estes nomes de propriedade de Dona Núncia Maria Ferreira, que batizaram dois filhos36 e são identificados no inventario de bens de José Ferreira dos Santos37, portanto pertenceram para a mesma propriedade escravista de Gabriella e continuaram sobre posse da mesma família senhorial.

Neste caso as relações de compadrio parece reforçarem relações paternalistas pela escolha de compadres da família senhorial, mas nenhum dos padrinhos dos filhos de Bebiano e Gabriella foi diretamente o senhor. Segundo Silvia Brüger se era interessante para os senhores utilizar o compadrio como reforço de seu domínio, para os escravos, se aproximar da família senhorial por meio do parentesco ritual, poderia lhes proporcionar melhores condições no cativeiro e mais chances de conquistar a alforria38.

Para Bebiano e Gabriella nos parece que os esforços da família senhorial de reforçar seu domínio e do casal de alcançar a liberdade foram realidades concretas, além de estarem vinculados a família do senhor pelo compadrio estes escravos receberam a liberdade com a condição de servirem a seu senhor e a seus herdeiros pelo tempo de três anos contando a data da carta que é de 1884, mas recebendo em troca alimento vestuário e cem mil reis anuais.

Do casal Joze e Vicencia a família foi da mesma forma o meio de se aproximar da liberdade, que veio para Vicencia viúva com 36 anos de idade em 187139.

Conclusão

35 Segundo Hebe Mattos as “relações comunitárias, forjadas sobre a base da família e da memória geracional, antes que conformar uma identidade escrava comum, engendraram para alguns [...] a possibilidade de se distinguir frente ao estereotipo mais comumente associado à escravidão (a falta de laços, o celibato, os castigos físicos e o trabalho coletivo)” MATTOS, 1998, op. cit. p. 126-127.

36 Laura em 1871 e Generoso em 1874. CÚRIA... , 1843-1871, op. cit. p. 47. CÚRIA... , 1871-1888, op. cit. p. 5 verso.

37 NÚCLEO..., s/a, op. cit. 38 BRÜGGER, 2008, op. cit. p. 13.

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A família escrava, por meio de varias manobras, buscava a aliança pelo parentesco, e ser parente significou para o cativo não ser apenas escravo; o papel que desempenharam pela maternidade e paternidade ou pelo compadrio significou ser reconhecido como parente e fazer parte de uma rede de pertencimento. Mesmo que para a família senhorial os vínculos estabelecidos pelo compadrio com os seus escravos pudessem representar um reforço do domínio senhorial; para os escravos estes vínculos com a família do senhor poderia ser uma estratégia para melhorar sua condição, tendo em vista o significado do compadrio enquanto aliança e proteção40.

E, por fim, a comunidade a que pertenciam os cativos aqui analisados não estava somente ligada a origens étnicas ou com a escravidão41, e, sim, estava relacionada ao parentesco e por meio dele buscava a liberdade.

40 GUDEMAN, SCHWARTZ, 1988, p. 47.

41 Partindo da idéia que “Nem sempre o fato de algumas pessoas terem em comum determinadas qualidades ou determinado comportamento ou se encontrarem na mesma situação implica uma relação comunitária (...) Pode ocorrer que, devido à limitação do commercium e connubium imposta pelo mundo circundante, cheguem a encontrar-se numa situação homogênea, isolada diante desse mundo circundante. Mas, mesmo que reajam de maneira homogênea a essa situação, isto ainda não constitui uma relação comunitária; tampouco esta se produz pelo simples “sentimento” da situação comum e das respectivas conseqüências” (WEBER, 1991, op. cit, p.26) podemos inferir que mesmo estando legalmente na mesma condição os escravos destes casos reforçavam relações comunitárias de parentesco não necessariamente vinculado à escravidão.

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