RELATÓRIO PARCIAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA CNPq
ANÁLISE DOS FATORES ESTILÍSTICOS ENVOLVIDOS NA PRODUÇÃO DA FALA DE UM RAPPER EM DIFERENTES SITUAÇÕES COMUNICATIVAS
Bolsista: Rafaela Defendi Mariano RA: 082587
Orientador: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva Área: Sociolingüística
Local de Execução: Universidade Estadual de Campinas Vigência: 01 de agosto de 2009 a 31 de julho de 2010 1. RESUMO DO PLANO INICIAL
O projeto de pesquisa em desenvolvimento tem por objetivo analisar como fatores tais como a mudança de tópico discursivo e o desejo de identificar-se com o grupo ao qual pertence ou a um terceiro grupo, reforçando o lugar identitário a partir do qual o discurso é produzido (design de referência), encontram-se intrinsecamente relacionados com a mudança estilística, e como esta última, por sua vez, encontra-se condicionada tanto pelo contexto mais amplo como pelo cenário micro-conversacional (design de audiência). Para tanto, teremos como corpora a fala de um rapper (Mano Brown, líder do grupo Racionais MCs) em diferentes contextos situacionais: fala pública (discurso em um evento cultural), depoimento a uma jornalista no interior do seu carro e conversa informal entre conhecidos a respeito do rap. Esses três eventos fazem parte do conteúdo “Extra” do CD 100% Favela, assim intitulado porque foi inteiramente produzido na e pela periferia de São Paulo. O pressuposto é de que haverá marcas de variação estilística de acordo com a audiência e a proposta é analisar como há variação de tópico a partir desse fator (design de audiência) e do fato dos sujeitos quererem reforçar suas identidades sociais (design de referência). As análises serão desenvolvidas com base nas teorias de autores como Labov (2001), Bell (2001) e Finnegan e Biber (2001) sobre a questão do estilo e da variação estilística. Nossa pesquisa privilegiará o modelo desenvolvido por Bell (2001), que postula como fatores determinantes para a variação estilística o design de audiência e de referência. Em relação ao conceito de tópico, basearemos nossa pesquisa na teoria de Jubran (2006), proposta a partir da observação dos turnos de fala em textos conversacionais
As atividades propostas para o segundo semestre de 2009 foram: a) maior levantamento bibliográfico; b) transcrição de dados; c) início das análises e d) produção do presente relatório.
2. RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO SEGUNDO SEMESTRE DE 2008
2.1 Pressupostos teóricos
Sustentaram os estudos sobre estilo na sociolingüística variacionista nas décadas de
80 e 90 as teorias do design de audiência e da acomodação. Coupland (2007) busca
superá-las, apontando as limitações dessas teorias que, segundo ele, ao imporem uma
prioridade em favor de falantes ou ouvintes como alvos ou beneficiários, tornam-se
restritivas. Diz ainda que a chave da teoria do design de audiência escolhida por Bell
“implica claramente em ação motivada e estratégica” (COUPLAND, 2007, p. 78), ou seja, a ação do falante é em resposta à audiência que representa uma ação mais passiva, apesar de Bell negar e falar em “estilo responsivo”. Bell contra-argumentaria essas críticas de Coupland com respostas que estão em seu próprio texto de 2001.
Primeiramente, Bell (2001) afirma que a audiência não é o único fator responsável pela mudança estilística. Nos dados que ele possuía, esse fator se tornou único pelo fato dos outros fatores não variarem. Quando Bell (1984 apud BELL, 2001) analisou as falas de leitores de notícias de duas rádios neozelandesas, ele percebeu que havia variação estilística: “os leitores de notícia mudaram, em média, 20 por cento em cada acontecimento lingüístico entre as estações YA e ZB”, porém, os leitores eram os mesmos, a instituição era a mesma, a combinação dos tópicos das notícias eram muito similares (em alguns casos era lido o mesmo script), os estúdios de transmissão e gravação eram idênticos e segundo Bell (2001) “não há razão para supor que a quantidade de atenção dada à fala estivesse variando sistematicamente”. Somente a mudança da audiência podia ser tida como fator da mudança estilística no caso analisado, pois era o único fator variável entre as rádios: “a estação YA era a Rádio Nacional Neozelandesa, que tinha um público de status mais elevado em relação à estação comunitária local ZB” (BELL, 2001). Assim como Bell, nos corpora que tínhamos antes de desenvolver o projeto, observamos num projeto-piloto que havia mudanças de tópicos e mudanças de marcadores textuais de mudança ou permanência de tópico entre as três situações da fala do Mano Brown. A partir de Bell (2001), pudemos concluir que essas mudanças estavam relacionadas com a mudança da audiência (design de audiência) e também ao desejo de identificação com um terceiro grupo (design de referência
1), visto que os três eventos de fala possuem diferentes audiências: o discurso tem como audiência os moradores da favela, já que ele é feito durante o prêmio Cooperifa
2realizado em uma comunidade na zona sul de São Paulo; o depoimento à jornalista é informalmente realizado dentro do seu carro durante o trajeto entre a premiação e a casa na zona sul de São Paulo onde vai ocorrer a conversa informal entre conhecidos e por último, temos a conversa informal sobre rap numa casa da zona sul de São Paulo em que estão presentes Mano Brown, Ferréz, Negredo, Mc Yisão e outros que não foram identificados, mas que parecem pertencer a grupos de rap.
Quanto à passividade de que fala Coupland (2007), Bell (2001) diz ser o design de audiência parte de uma teoria dialógica da linguagem:
A responsividade à audiência é uma regra ativa dos falantes.
De novo, podemos comparar com a natureza essencialmente dialógica da linguagem de Bakhtin (1981:280): “O Discurso...
é orientado em direção a um entendimento que exige ‘resposta’
...Compreensão responsiva é uma força fundamental... e é além do mais uma compreensão ativa.”(...) Para alguns, falar é responder e ser respondido por alguém: “Um marcador de fala essencial (constitutivo) é sua qualidade de ser direcionada a alguém, seu endereçamento” (Bakhtin 1986:95).Considero o design de audiência, então, como parte de uma teoria dialógica da linguagem. Isto é, ouvintes bem como falantes são essenciais
1 Ou o que Coupland (2001) chama de manejo de personas.
2 A Cooperativa Cultural da Periferia (COOPERIFA), fundada pelo poeta Sérgio Vaz, produz uma série de ações culturais na periferia de São Paulo. Sua principal ação é a de promover, todas as quartas-feiras, o Sarau da Cooperifa, encontro que tem por objetivo apresentar e discutir a produção poética da periferia e de fora dela. O evento que acontece desde 2001 já resultou em livro, 'Rastilho de Pólvora- Antologia Poética do Sarau da Cooperifa'.
e constitutivos de uma natureza da linguagem não só pela forma como é feita sua produção.
Além disso, com a proposta do design de referência, Bell (2001) não separa aquilo que Coupland (2007) diz ser impossível separar: a questão das relações sociais e a questão da identidade. Ao definir o design de referência como uma mudança estilística feita pelo falante com o intuito de identificar-se mais fortemente com o próprio grupo ou com um terceiro grupo, Bell (2001) coloca a questão da identidade também em relação à audiência (e conseqüentemente em relação às questões sociais), pois essa mudança “é essencialmente uma redefinição feita pelo falante da sua própria identidade em relação a sua audiência”. Então, não como uma dicotomia, design de audiência e design de referência funcionam como um continuum em que: “Sim, nós estamos projetando nossa conversa para a nossa audiência. Mas estamos também simultaneamente modelando-a em relação a outros grupos de referência incluindo nosso próprio grupo.” (BELL, 2001). Para eliminar essa dicotomia, Bell (2001) teve de propor uma metodologia que não privilegiasse a análise quantitativa (para encontrar padrões a serem explicados pelo design de audiência), deixando as exceções para ser explicadas pelo design de referência (análise mais de cunho qualitativo). Essa metodologia consiste em análises quantitativas e qualitativas complementares. No seu estudo cujos corpora consistiam em entrevistas que mesclavam etnias (os Maori: indígenas polinésios que habitam a Nova Zelândia e os Pakeha: neozelandeses de origem européia) e gênero (homem, mulher), além da análise de dados quantitativos (quantas palavras são pronunciadas como em inglês e quantas como na língua Maori pelos informantes), Bell (2001) analisou “a pronúncia de símbolos individuais (ocorrências individuais), junto ao comentário voluntário que três dos quatro oradores ofereceram sobre o exercício, seu próprio desempenho, e as implicações sócio-culturais disto”.
No nosso caso, como não estamos analisando entrevistas por nós formuladas, mas eventos já “prontos”, a nossa análise qualitativa consistirá na observação dos recursos multisemióticos mobilizados pelos falantes e na descrição dos tópicos de cada situação de fala do rapper. Essa descrição contará ainda com um gráfico com a organização tópica de natureza hierárquica, procurando estabelecer o supertópico, os quadros tópicos co-constituintes e os seus subtópicos nos moldes propostos por Bentes e Rio (2006).
Também, procurarei empreender um quadro linear dos tópicos de acordo com o seu aparecimento. Esse quadro possibilitará ver mais facilmente onde há mudança e assim verificar como esta ocorre: com presença de marcadores textuais ou não.
Em relação à questão sobre estilo, cabe apontar que Coupland (2001, 2007) e Bell
(2001) convergem a respeito de que a produção do estilo é uma realização situacional
cujo intuito é obter propósitos comunicativos em relação a determinadas situações
sociais. Bell (2001) ao postular que um estilo particular está normalmente associado a m
grupo ou situação particular, traz a discussão de Irvine (2001 apud BENTES, 2006)
sobre a relação entre estilo, registro e dialeto. Irvine estudou o caso da variação
estilística em javanês e concluiu que havia um sistema estilístico de distinção que
motiva algumas das características dos estilos javaneses de fala e oferece muitos graus e
diferenciação de um estilo para o outro. A distinção, portanto, entre dialeto e registro
fica mais complexa quando se analisa o repertório de uma comunidade de fala
particular, visto que há exploração criativa de “vozes” associadas a grupos sociais. É
esta exploração criativa de “vozes” que explica a chave do estilo tanto para Bell (2001)
como para Irvine (2001 apud BENTES, 2006). Ainda em relação aos grupos sociais,
pessoas típicas desses grupos são organizadas num sistema cultural-ideológico de forma
que suas imagens ficam disponíveis como um “quadro de referência”. Então, os
indivíduos manipulam essas vozes de forma a se aproximar ou não delas de acordo com a situação e a audiência. O conceito de registro antes definido de acordo com a situação e não em elação às pessoas e grupos, define-se a gora pelas imagens culturais das pessoas juntamente com as situações. Com o conceito de dialetos sociais também pode ser pensado de acordo com os indivíduos e cenas. Por isso, podemos dizer a relação intrínseca entre registro e dialeto.
Os estudos sobre registros sempre enfocaram variedades e padrões relativamente estáveis e institucionalizados, padrões estes que inclusive eram explicitamente nomeados no interior de suas comunidades de uso, conectados com determinadas situações institucionalizadas, ocupações, etc. (por exemplo, a fala de locutores esportivos). O estilo inclui isso, mas também inclui as formas mais subliminares por meio das quais os indivíduos “navegam” entre as variedades disponíveis e tentam encenar uma representação coerente de si mesmos (...). Talvez haja uma outra diferença: enquanto dialetos e registros, pelo menos como a sociolingüística os define, apontam para o fenômeno lingüístico apenas, o estilo envolve princípios de distinção que podem se estender para além do sistema lingüístico, para outros aspectos do comportamento que estão semioticamente organizados (IRVINE, 2001 apud BENTES, 2006).
Em relação às questões sociais envolvidas nos estudos lingüísticos, cabe refletirmos sobre aquilo que Goffman (apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002) diz ser “a situação negligenciada”. E a observação de Goffman sobre os problemas dos estudos sociolingüísticos cabe à nossa pesquisa que visa analisar interações face a face.
Goffman diz haver um espaço de negligência nesses estudos pelo fato de não haver a situação social como cenário da pesquisa. Ele não trata aqui da falta de estudos correlacionais entre variáveis lingüísticas e variáveis sociais que parecem estar tendo um espaço privilegiado nos estudos sociolingüísticos, mas sim da falta da análise da situação social envolvida nas comunicações face a face. Essa falta torna-se negligência a partir do momento que passamos a levar em conta os múltiplos recursos semióticos como “um complexo ato humano” envolvido também no falar, visto que “a forma do gesto pode ser intimamente determinada pela órbita microecológica na qual o falante se encontra” (GOFFMAN apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002, p. 14). Isso significa que para se avaliar e interpretar a altura do som de uma afirmação deve-se saber coisas tais como: distância dos falantes, situação auditiva dos falantes, etc., ou seja, “devemos apresentar o ambiente de forma mais sistemática”. Como ele afirma:
(...) um estudioso interessado nas propriedades da fala pode se ver obrigado a olhar para o cenário físico no qual o falante executa seus gestos simplesmente porque não se pode descrever completamente um gesto sem fazer referência ao ambiente extracorpóreo no qual ele ocorre. E alguém interessado nos correlatos lingüísticos da estrutura social pode acabar descobrindo que precisa se voltar para a ocasião social toa vez que um indivíduo possuidor de certos atributos sociais se fizer presente diante de outros. Ambos os estudiosos precisam, portanto, olhar para o que chamamos vagamente de situação social. E é isso que tem sido negligenciado. (GOFFMAN apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002, p. 16)
Não significa também extrair uma tipologia de situações sociais a partir de
meras deduções estatísticas e dicotômicas (homem-mulher, mulher-mulher, homem-
homem), pois, afinal, uma interação face a face tem seus próprios regulamentos, processos e estruturas que não são somente de natureza lingüística, apesar de muitas vezes serem expressas por essa natureza e que devem ser analisados tanto como o que é dito nos turnos de fala.
Outro ponto que merece destaque em nossa abordagem é o fato das audiências, como diz Coupland (2007) terem “configurações relacionais diferentes”. Nos estudos de Bell (1984 apud BELL, 2001) a respeito da mudança estilística de leitores de notícias em rádios neozelandesas, temos uma audiência que só existe na mente dos leitores ou nos termos de Goffman (apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002) “interlocutores imaginados” (itálico do autor). No caso do estudo de Coupland (2007) a respeito da falante Sue, funcionária de uma agência de viagens que conversava com diferentes clientes (tanto face a face como pelo telefone, sobre conselhos de viagens, reservas, pagamentos, etc.), com funcionários de outras companhias de viagens e com as colegas de trabalho a respeito de assuntos profissionais e também assuntos de ordem pessoal, temos envolvida audiência face a face e também ao telefone, mas que na sua maioria são não-familiares a ela. Então, Coupland (2007, p.77-8,) diz que “Sue claramente trabalha para estabelecer um grau de aproximação e confia nesses encontros como parte de seu papel profissional, e sua mudança estilística é parte desse esforço” (minha tradução), ou seja, o estudo analisa uma audiência que está ligada ao falante pelo papel profissional e isso interfere sobremaneira na mudança estilística. Por último, Coupland (2007) cita o estudo de John Rickford e Fair McNair-Knox que analisam as entrevistas com Foxy Boston, uma adolescente de dezoito anos, americana da Califórnia e negra. A primeira entrevista é feita por Faye, a própria pesquisadora que também é negra, tem cerca de quarenta anos e é professora da Universidade de Stanford. Nessa entrevista está presente a filha de Faye, Roberta de dezesseis anos, também negra. Ambas conhecem Foxy anteriormente à entrevista. A segunda entrevista é feita por Beth, uma jovem de vinte e cinco anos, americana de origem européia (branca), graduada em Stanford e desconhecida de Foxy. À respeito dos dados obtidos, Coupland (2007, p. 66-7) diz que
“três das cinco variáveis mostram estatisticamente variação significante entre os dois contextos de fala, com alta freqüência de variantes não-padrão ou “African American- associated” ocorrendo no discurso do primeiro evento.” (tradução nossa). Nesse estudo, vemos envolvidas audiências fisicamente presentes e que se diferenciam por intimidade social pré-existente e experiência pessoalmente compartilhada (origem africana). “É o que Clark (1996) e Gumperz & Levinson (1996) chamam de conhecimento partilhado (communal common ground), o conjunto de conhecimentos, crenças e suposições partilhados por membros de uma determinada comunidade” (AZANHA, 2008).
Em nosso estudo, temos também como corpora eventos cujas audiências têm configurações relacionais diferentes e cada uma dessas configurações deve ser considerada em nossas análises. No primeiro evento, o discurso público, Mano Brown apesar de ter uma audiência fisicamente presente, faz o mesmo como Goffman propôs que ocorre aos comunicadores televisivos: “os comunicadores são pressionados a modular suas falas como se fossem dirigidas a um único ouvinte” (GOFFMAN, 1964 apud AZANHA, 2008). Isso parece revelar que os telejornais, por exemplo, tentam simular uma interação face a face, interação esta que no discurso já existe. O termo platéia se faz adequado à fala que vem da tribuna, segundo Goffman (apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002, p. 125-26), pois as platéias escutam de uma maneira “que lhes é peculiar”, pois não constituem um conjunto de companheiros de conversa e podem ter
“o direito de examinar o falante diretamente com uma franqueza que seria ofensiva
numa conversa”. Além disso, “o papel de uma platéia é o de apreciar as observações
feitas e não o de responder de forma direta”, apesar de serem testemunhas ao vivo (“co-
participantes numa mesma ocasião social”) e poderem dar sinais de concordância, atenção, etc. No segundo evento, temos uma interação face a face com apenas um
“participante endereçado e ratificado” (GOFFMAN apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002), ou seja, Mano Brown só endereça a sua fala a apenas um interlocutor, mesmo sabendo que podem estar presentes outros participantes, que são denominados por Goffman como “circunstantes”, que apesar de ratificados, não são os diretamente endereçados.
Além disso, nessa fala como será mais bem explicado adiante, não há uma divisão dos turnos de fala nos moldes convencionais, pois Mano Brown faz uso de todo o turno e deixa apenas gestos e olhares de concordância ou não para o interlocutor, caracterizando um depoimento. No terceiro evento, por sua vez, temos turnos de fala mais divididos entre os participantes que podem ser caracterizados como endereçados, apesar de nem todos participarem como falantes.
Quanto ao conceito de tópico, utilizaremos o proposto por Jubran (2006). Assim como disse Mondada (1994 apud PENHAVEL, 2006, p. 145): “A noção de tópico não dispõe de uma definição estável, situação traduzida por uma multiplicação de abordagens independentes e pela ausência de um paradigma que as unifique.” Porém, ao contrário de Mondada (1994 apud PENHAVEL, 2006), não pretendemos aqui fazer uma revisão ampliada de todas as abordagens, apenas frisar que muitas contribuíram para que a que vamos adotar surgisse e não descartamos esta importância. A noção de tópico proposta por Jubran (2006) é uma revisão da noção que o Grupo de Organização Textual-Interativa do Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF) propôs a esta unidade discursiva em Koch (1990 apud JUBRAN, 2006). Sem ainda tê-lo nesta época nomeado como tal e sem ter dado limites de extensão a ele, o conceito envolvia ainda a noção “tema”, o que fazia com que ele fosse vago e não permitia o entendimento de centração, característica que Jubran (2006) coloca ao lado da organicidade para definir tópico. Pode-se até questionar o fato da conceituação de tópico ter sido formulada a partir de um corpus constituído de textos dialogados e estarmos aplicando-o para a análise de um discurso e de um depoimento. Mas essa decisão foi tomada com base na própria colocação da autora que diz: “No entanto, se desbastada desses indícios de conversação [falava antes sobre turnos], a categoria tópica é aplicável à análise de textos de outros gêneros falados e também escritos [ver Pinheiro, 2005], uma vez que a topicalidade é um processo constitutivo do texto”, aplicação esta que não vimos na conceituação de Maynard (1980 apud SOUZA, 2006), por exemplo.
Além de uma característica analítica do plano global do texto, o tópico se revela uma categoria interacional/colaborativa do discurso, visto que, como diz Jubran (1992 apud PINHEIRO, 2006, p. 44): “a construção tópica envolve um complexo de fatores contextuais, entre os quais as circunstâncias em que ocorre o intercâmbio verbal, o conhecimento recíproco dos interlocutores, os conhecimentos partilhados entre eles, sua visão de mundo, o background de cada um em relação ao que falam, bem como suas pressuposições”. Como interativa e discursivamente produzido, o tópico não está necessariamente materializado no texto, então, os críticos a essa abordagem dizem que a limitação do tópico e a escolha de um vocábulo que o represente se dão intuitivamente.
Essa discussão, apresentada em Pinheiro (2006), é por este solucionada quando diz que
“os traços de concernência e relevância que precisam a centração, uma das características do tópico, segundo Jubran et al. (1992), se apresentam como um critério a partir do qual o tópico pode ser identificado e depreendido.” (PINBHEIRO, 2006, p.
44)
A concernência é segundo Jubran (2006, p. 35): “relação de interdependência
entre elementos textuais, firmada por mecanismos coesivos de sequenciação e
referenciação”, ou seja, permite-nos identificar quando se está falando sobre a mesma
Quadro tópico Quadro
tópico
Subtópico Subtópico
Subtópico Subtópico
1 4
3
5
6 7
8 9
10 11
1 5
12 13
1 4
14 15
53 2
16 53 Supertópico
coisa e quando há mudança. A relevância consiste na “proeminência de elementos textuais na constituição desse conjunto referencial, que são projetados como focais”
(Jubran, 2006, p. 35), ou seja, há focalização em certos elementos textuais, o que facilita a delimitação do tópico. Destas duas propriedades da centração, podemos dizer que surge a terceira, que é a pontualização: “localização desse conjunto em determinado ponto do texto, fundamentada na integração (concernência) e na proeminência (relevância) de seus elementos” (Jubran, 2006, p. 35). Quando aplicamos tais critérios como o fez Pinheiro (2006) ao texto, podemos proceder ao seu recorte em segmentos tópicos. Apenas não concordamos e não procederemos assim quando Pinheiro (2006, p.
46) diz que: “os diferentes gêneros textuais apresentam uma extensão variada, por isso é necessário recortar uma unidade menor para analisá-los”, pois achamos que se recortarmos um trecho dos eventos a serem analisados, estaríamos prejudicando a análise da organicidade em nível hierárquico que é o nosso propósito. Por isso, mantivemos até onde pudemos ter acesso às falas originais
3.
A noção de organicidade que é a segunda propriedade dada ao tópico por Jubran (1992 apud PINHEIRO, 2006), foi inicialmente utilizada para descrever as relações intertópicas de um texto, o que se depreende que é manifestada pelas relações de interdependência tópica e pode se dar em dois planos: no plano vertical, ou seja, os tópicos podem ser descritos hierarquicamente de acordo com a abrangência que tem no texto ou no plano horizontal, que consiste na linearização dos tópicos de acordo com a ordem em que surgem no texto. Rezende (2006) nos apresenta os modelos que podem ser aplicados para se proceder a descrição hierárquica dos tópicos num texto e assim como Bentes e Rio (2006) procede à análise de acordo com o modelo de Koch (1992 apud REZENDE, 2006), que é o modelo que utilizaremos também para proceder nossa análise. O modelo pode ser assim representado:
3 Lembramos que os nossos corpora são fonte de um documentário que pressupomos haver edição.
Este modelo apresenta, como diz Rezende (2006, p. 74), “o tópico em níveis mais ou menos abrangentes e interdependentes entre si, prevendo uma organização hierárquica em camadas, de forma que a delimitação de fronteiras entre tópicos e níveis diferentes se dá segundo a abrangência do assunto em foco”. Percebemos que neste o Quadro Tópico é intermediário entre o supertópico (tópico global do texto) e os subtópicos (mais próximos da materialização). O modelo de Jubran et al. (1992 apud REZENDE, 2006) se diferencia do anterior pelo Quadro Tópico ser relacional (níveis diferentes, porém próximos e vários quadros tópicos).
2.2 Sobre as transcrições
4Tínhamos o intuito nessa primeira fase da pesquisa transcrever os corpora que consistem em três eventos de fala para que as primeiras análises fossem produzidas.
Como previsto, utilizamos as normas de transcrição formuladas pelo Grupo de Pesquisa Cognição, Interação e Significação coordenado pela professora Edwiges Maria Morato (MORATO et al., 2007). O modelo se fez adequado aos nossos objetivos de analisar o tópico e sua mudança através de recursos semióticos mobilizados pelos falantes e também por meio de marcadores textuais. Esses recursos multisemióticos tais como prosódia, gestos, retórica, etc. são importantes devido ao que explica muito bem Goffman (apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002, p. 114):
No gerenciamento da tomada de turno, na avaliação da recepção através das pistas visuais dadas pelo ouvinte, na função paralinguística da gesticulação, na sincronia da mudança de olhar, na mostra das evidências de atenção (como espiada à meia distância), na avaliação do alheamento mediante evidências de envolvimentos colaterais e expressões faciais- em todas essas instâncias, é evidente que a visão é fundamental tanto para o falante como para o ouvinte.
Não pretendemos que uma transcrição que substitua o vídeo, mas que vise ao máximo a caracterização desses recursos para que a análise seja baseada neles também.
Nosso intuito também é de usar um modelo de transcrição que permita que outras análises sobre os corpora possam ser produzidas, ou seja, os corpora irão fazer parte de um maior banco de dados para o nosso grupo de pesquisa (“É nóis na fita: a formação de um registro e a elaboração de estilos no campo da cultura popular urbana paulista”) que poderá obter informações sobre recursos multisemióticos (como, por exemplo, o estilo retórico, a prosódia, os símbolos visuais etc.), concebidos como marca de estilo de determinado grupo. Em anexo, a tabela que sintetiza as normas (MORATO et al., 2007) em que basearemos nossas transcrições.
As transcrições foram feitas em formato de lista e para a identificação dos locutores em cada situação transcrita, utilizamos abreviaturas dos nomes, porém, optamos, diferentemente das normas que estamos seguindo, por fazer uma legenda (por ordem de aparição) com os nomes inteiros dos participantes que são, na sua maioria, personagens públicas. A seguir as três tabelas das legendas de cada situação transcrita:
4 Em anexo. É importante ressaltar que o presente relatório encontra-se com número excedido de páginas devido à presença das transcrições anexas.
Situação: fala pública de Mano Brown em um evento cultural
Sigla Indivíduo
MB Mano Brown
Situação: conversa dentro do carro
Sigla Indivíduo
MB Mano Brown
Situação: conversa informal entre conhecidos
Sigla Indivíduo
MB Mc Yisão
FR Ferréz
MY Mc Yisão
NG Negredo
2.3 Introdução às análises 2.3.1. Análise textual
Ao analisarmos o discurso feito por Mano Brown no dia do recebimento do Prêmio Cooperifa pelo mesmo em uma comunidade na Zona Sul de São Paulo, percebemos traços típicos de uma fala, como nos expõe Koch (1998). A começar a hesitação inicial justificada pelo fato da fala acontecer sem “rascunho”, ao contrário do que acontece na escrita. Outra justificativa, e essa de efeito persuasivo, é que a hesitação seria feita propositalmente, mostrando que o locutor, no caso Mano Brown, reflete antes de falar, sendo assim um ser consciente da fala e das suas conseqüências.
Um recurso bastante freqüente no discurso de Brown é o paralelismo. Tal repetição favorece a argumentação, porém, no caso como é feita repetidas vezes com as mesmas idéias e com frases quase que proverbiais faz com que vejamos o discurso como variante popular
5. Variante essa, no entanto, que é adequada, afinal, o discurso é feito a interlocutores que partilham da variante popular ao falarem. Isso contribui para a proximidade entre o locutor e os interlocutores, que se sentem unidos pela mesma variante lingüística. Outra forma de fixar tal intimidade são as perguntas retóricas, como o uso do “né?”. Tal expressão é usada, assim como outras do registro dos manos como
5 A questão de registro popular pode ser melhor vista em Bentes (2009).
“tá ligado?”, “morô?”, para prender a atenção dos interlocutores, criando um discurso em que há participação interativa dos ouvintes, mesmo que em respostas dadas através de olhares e de outras pistas que demonstram concordância ou não como o movimento da cabeça.
Outro recurso também usado por Mano Brown em sua fala é a exemplificação.
Isso faz com que haja facilitação da compreensão das idéias que o locutor quer passar.
Essa exemplificação se dá de modos diferentes nos três eventos: no discurso, Mano Brown exemplifica como se estivesse contando seu próprio cotidiano, começando com
“muitas vezes”, “às vezes”; enquanto na conversa sobre rap, a exemplificação ocorre através de vocábulos como: “tipo assim”, “ó”, etc. Há apenas uma exemplificação com o uso de “por exemplo”. Ao mesmo tempo que a exemplificação facilita a compreensão das idéias no discurso, há fortalecimento da persuasão, pelo fato de se mostrar exemplos da realidade dos interlocutores: a favela. Também tal aproximação se dá através de vocábulos como: “a gente”, “nós”, “na minha quebrada”, etc. Nesse contexto, a fala de Brown se diferencia da fala sobre hip-hop em ambiente mais fechado, pois enquanto no discurso, ele parece querer demonstrar sua relação com a favela como se fizesse parte dela; na fala com os amigos, ele fala da favela como uma referência externa a ele, provando assim que há diferenciação de referência com a mudança de audiência.
Como foi já mencionado, a fala é um evento não-planejável, porém pode se dizer que há um continuum de tal planejamento, assim como há um continuum de classificação de um evento de fala ou escrita que vai do registro mais formal até o mais popular. No caso de um discurso, por exemplo, o planejamento é maior, principalmente porque a natureza interacional é diferente de um evento de fala entre amigos, como já foi mencionado com a afirmação de Goffman (apud RIBEIRO E GARCEZ, 2002) a respeito. Nesse evento, por exemplo, há co-produção, por isso há turnos de fala em que os participantes negociam e esperam pelo momento adequado de falar, não havendo como respeitar todo um possível planejamento feito anteriormente. Há, então, planejamento e a verbalização simultaneamente.
Na conversa que Mano Brown tem dentro do carro e a conversa com seus amigos, devido ao não-planejamento, há mais repetições, visto que, essas repetições são mais uma forma de ter tempo para planejar a fala seguinte e menos um recurso argumentativo, nesses casos. Percebe-se também menos concordância verbal e nominal em comparação ao discurso. Isso pode ser explicado pelo fato da mudança da audiência
6.
Outra característica presente na conversa é falta de separação entre a fala do próprio locutor e a fala ou opinião daquele que ele está mencionando, como pode ser observado nesse exemplo: “os cara ah mais cê tem que falá que:: mais xx eu falei mano”. Essa presença da fala do outro está muito forte tanto na conversa dentro do carro como na conversa entre amigos, nesta em maior evidência devido aos tópicos que são na sua maioria a respeito da sociedade e sua opinião.
Outro traço marcante da fala e presente nos eventos analisados é o maior número de perguntas retóricas (“tá ligado?”, “né mano?”, “entendeu?”). Esse traço é típico numa conversa devido à presença da negociação de turnos de fala em que as perguntas retóricas reforçam, em sua maioria, que o turno pode ser tomado pelos interlocutores. A mudança da audiência influencia também no tipo de marcadores textuais e de conectivos. No discurso, temos uma maior presença de “né”, e “certo?” como recursos importantes no auxílio do processamento on line do texto que está sendo falado (KOCH, 1998) e também a presença do conectivo “e” e algumas ocorrências do
6 Para melhores análises de concordância e léxico, ver Bentes (2009).