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História Da Música Européia

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Jacques Stehman

Jacques Stehman

História

História

da

da

Música

Música

Européia

Européia

das origens aos nossos dias das origens aos nossos dias

DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO, LDA. DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO, LDA.

RU

RUA BENA BENTO TO DDE FREIE FREI TAS, TAS, 362-362- 6.6. "" ——SÃO SÃO PAUPAULOLO

 Nascido

 Nascido em em Bruxelas Bruxelas em em 1912, 1912, Jacques Jacques Stehman Stehman fez fez os os seus seus estudos estudos dede música no Conservatório Real desta cidade. De 1933 a 1939 integra-se num música no Conservatório Real desta cidade. De 1933 a 1939 integra-se num grupo de

grupo de  jazz, jazz,  participa  participa nas nas atividades atividades de de um um cenáculo cenáculo literário, literário, publica publica duasduas revistas musicais, organiza recitais de piano. Terminada a guerra, retoma a revistas musicais, organiza recitais de piano. Terminada a guerra, retoma a atividade, distribuindo-se pela crítica e pela composição. Algumas das suas atividade, distribuindo-se pela crítica e pela composição. Algumas das suas obras mais conhecidas:

obras mais conhecidas: Sinfonia de Algibeira, Concerto de Piano, Suite paraSinfonia de Algibeira, Concerto de Piano, Suite para Cordas,

Cordas, música de bailado (Omúsica de bailado (O  Baile  Baile dos dos Embaixadores)Embaixadores) e de cenae de cena (Cristóvão(Cristóvão Colombo,

Colombo, de Ch. Bertin). Em 1953 é distinguido com o Prêmio Itália.de Ch. Bertin). Em 1953 é distinguido com o Prêmio Itália. Atualmente professor de Harmonia Prática no Conservatório Real de Bruxelas Atualmente professor de Harmonia Prática no Conservatório Real de Bruxelas e de História da Música na Escola Superior de Artes Decorativas e no Instituto e de História da Música na Escola Superior de Artes Decorativas e no Instituto dos Jornalistas da Bélgica, Jacques Stehman exerce também os cargos de dos Jornalistas da Bélgica, Jacques Stehman exerce também os cargos de vice- presidente da Ju

 presidente da Juventude Musical Beventude Musical Belga e da Sociedlga e da Sociedade Belga de Musade Belga de Musicologiaicologia  NA

 NA CAPA:CAPA:  A  A Tocadora Tocadora de de Alaúde-Alaúde-(Século XVI, coleção particular) -(Século XVI, coleção particular) -Maítre dês Demi-Figures.

Maítre dês Demi-Figures.

Mais detalhes sobre a figura:

Mais detalhes sobre a figura: http://eunjangdo.net/g_gallery/16/jf.htmhttp://eunjangdo.net/g_gallery/16/jf.htm

 A

 A obra obra original original foi foi Publicada em Publicada em francês francês com o com o título”Historie título”Historie de lade la  Musique

 Musique européenne” européenne” pelas pelas Êditions Êditions Gerard Gerard & & C.ie.", C.ie.", Verviers Verviers BélgicaBélgica  Maquetas

 Maquetas dos dos extratextos extratextos de de Yvan Yvan RolenRolen ** Tradução de Mana TeresaTradução de Mana Teresa  Athayde

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© 1

© 1964 964 by Édby Éditions itions Gérard Gérard ir C", ir C", Verviers (Bélgica).Verviers (Bélgica).

Todos os direitos reservados para a publicação desta obra em Português Todos os direitos reservados para a publicação desta obra em Português (Portugal e Brasil) pela

(Portugal e Brasil) pela LiLivraria Bertrand, S. A. R. L., Lisboa.vraria Bertrand, S. A. R. L., Lisboa.

 Numerosas

 Numerosas histórias histórias da da arte arte apresentam apresentam uma uma lacuna: lacuna: a a de de ignorar ignorar aa música. Por outro lado, existe outra lacuna correspondente em algumas música. Por outro lado, existe outra lacuna correspondente em algumas histórias da música, que isolam o fenômeno musical de um mundo onde, histórias da música, que isolam o fenômeno musical de um mundo onde, contudo, ele sempre permaneceu, por assim dizer, incrustado. Pois uma obra contudo, ele sempre permaneceu, por assim dizer, incrustado. Pois uma obra de arte não se deve apenas ao impulso do seu autor: este obedece, consciente de arte não se deve apenas ao impulso do seu autor: este obedece, consciente ou inconscientemente, a uma ordem social ou moral, religiosa ou estética, a ou inconscientemente, a uma ordem social ou moral, religiosa ou estética, a determinado estado das idéias que o rodeiam e que moldam a alma e a determinado estado das idéias que o rodeiam e que moldam a alma e a  fisionomia

 fisionomia de de uma uma época, época, de de que que ele ele será será simultaneamente simultaneamente testemunha testemunha ee intérprete. Músicas primitivas ou eruditas, religiosas ou profanas, antigas ou intérprete. Músicas primitivas ou eruditas, religiosas ou profanas, antigas ou modernas, todas obedecem a estas leis.

modernas, todas obedecem a estas leis.

Um dos mais eminentes musicólogos franceses, Jules Combarieu Um dos mais eminentes musicólogos franceses, Jules Combarieu (1859-1915), pôde escrever em 1913: “Porque será que em França, ainda hoje e em 1915), pôde escrever em 1913: “Porque será que em França, ainda hoje e em vinte obras assinadas por nomes ilustres, a rubrica "história da arte" apenas vinte obras assinadas por nomes ilustres, a rubrica "história da arte" apenas significa história das artes do desenho? A que lugar inferior ou estranho, a significa história das artes do desenho? A que lugar inferior ou estranho, a que ordem de estudos abandonam eles a música, esses que, após haver que ordem de estudos abandonam eles a música, esses que, após haver adaptado tal atitude, julgam poder ignorar os

adaptado tal atitude, julgam poder ignorar os músicos?”músicos?”

Verificar-se-á que meio século não introduziu qualquer alteração nesta Verificar-se-á que meio século não introduziu qualquer alteração nesta situação e que as histórias da arte permanecem divididas em compartimentos. situação e que as histórias da arte permanecem divididas em compartimentos. Foi por isso que nos pareceu útil, dentro dos limites desta pequena obra, Foi por isso que nos pareceu útil, dentro dos limites desta pequena obra, recordar os laços que, em cada época, unem a música às outras artes e à vida recordar os laços que, em cada época, unem a música às outras artes e à vida do seu tempo.

do seu tempo.

 J. S.  J. S.

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I – DEFINIÇÕES I – DEFINIÇÕES

O destino europeu da música O destino europeu da música

A história que vamos aqui evocar é a da música

A história que vamos aqui evocar é a da música européia.européia. DevemosDevemos considerar haver nisto qualquer injustiça? Não, não há; a música existe em considerar haver nisto qualquer injustiça? Não, não há; a música existe em todos os países não europeus, desde a Antigüidade, segundo duas tendências todos os países não europeus, desde a Antigüidade, segundo duas tendências freqüentemente paralelas: ou evoluciona, torna-se erudita, inspirando-se freqüentemente paralelas: ou evoluciona, torna-se erudita, inspirando-se finalmente na técnica ocidental, ou, fiel

finalmente na técnica ocidental, ou, fiel às suas tradições religiosas e populares,às suas tradições religiosas e populares,  permanece

 permanece ritual ritual e e primitiva. primitiva. Um Um povo povo não não poderia poderia renunciar renunciar a a esta esta músicamúsica tradicional sem perder a sua alma: é a fonte da sua civilização própria. Nota-se tradicional sem perder a sua alma: é a fonte da sua civilização própria. Nota-se em muitos países uma sobrevivência permanente da música tradicional (música em muitos países uma sobrevivência permanente da música tradicional (música folclórica, que os especialistas chamam “étnica”), enquanto outra música de folclórica, que os especialistas chamam “étnica”), enquanto outra música de inspiração européia liga esses mesmos países às grandes correntes artísticas inspiração européia liga esses mesmos países às grandes correntes artísticas que percorrem o mundo. O perigo reside no fato de que essa música possa que percorrem o mundo. O perigo reside no fato de que essa música possa tornar-se puramente acadêmica e impessoal, limitando-se a decalcar os tornar-se puramente acadêmica e impessoal, limitando-se a decalcar os  processos dos

 processos dos grandes compositores ocidentais. grandes compositores ocidentais. Mas o Mas o interesse mais interesse mais evidenteevidente é que esses compositores têm a possibilidade de criar uma música “erudita”, é que esses compositores têm a possibilidade de criar uma música “erudita”, impregnada de elementos tradicionais (ritmos e melodias), onde podem impregnada de elementos tradicionais (ritmos e melodias), onde podem exprimir o autêntico caracter do seu país, numa linguagem universalmente exprimir o autêntico caracter do seu país, numa linguagem universalmente compreendida e ao nível das maiores obras

compreendida e ao nível das maiores obras de arte.de arte.

Observemos a música popular espanhola ou grega, a música tradicional Observemos a música popular espanhola ou grega, a música tradicional árabe, balinesa, índia do México, chinesa ou japonesa e veremos sempre o árabe, balinesa, índia do México, chinesa ou japonesa e veremos sempre o mesmo fenômeno: ou assimilou a técnica e o espírito europeus e perdeu o seu mesmo fenômeno: ou assimilou a técnica e o espírito europeus e perdeu o seu caracter nacional, ou conservou os

caracter nacional, ou conservou os seus caracteres preservando-se da evolução.seus caracteres preservando-se da evolução. É apenas desde há cerca de cem anos, com o aparecimento das “escolas É apenas desde há cerca de cem anos, com o aparecimento das “escolas nacionais” que descobriram o folclore, que este aparece integrado na música nacionais” que descobriram o folclore, que este aparece integrado na música erudita. Mais próximo de nós, foi apenas desde há algumas dezenas de anos erudita. Mais próximo de nós, foi apenas desde há algumas dezenas de anos que compositores brasileiros, mexicanos, japoneses, negros americanos, etc., que compositores brasileiros, mexicanos, japoneses, negros americanos, etc., conseguiram misturar os mais puros elementos da sua música com os conseguiram misturar os mais puros elementos da sua música com os elementos técnicos e estéticos da nossa cultura musical, criando assim obras elementos técnicos e estéticos da nossa cultura musical, criando assim obras interessantes e novas.

interessantes e novas.

É evidente que a música folclórica, elevando-se ao nível de uma obra de É evidente que a música folclórica, elevando-se ao nível de uma obra de arte, não pode substituir o elemento funcional que existe em toda a música arte, não pode substituir o elemento funcional que existe em toda a música tradicional e que é a sua sujeição à celebração de um rito. Para citar um tradicional e que é a sua sujeição à celebração de um rito. Para citar um

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exemplo, as mais belas páginas de um Manuel de Falia são obras de arte impregnadas de um profundo caracter nacional, evocando com precisão o que é a Espanha; mas em caso algum poderiam substituir o flamenco popular, que,  pelo bater de palmas, o martelar de saltos, as melopéias e os gritos, traduz, no

estado puro, a necessidade, para bailarinos e para aqueles que os rodeiam, de ativamente exprimirem o seu ser profundo. Ainda outro exemplo: os Choros de um Villa-Lobos, no Brasil, ou a Sinfonia índia de um Carlos Chavez, no México, são estilizações de concerto, tal como as obras de Bartok ou de outros; exprimem admiràvelmente todos os caracteres genuínos de uma música tradicional, que, no entanto, continua a existir sob forma independente.

O destino da música, tal como o vamos encarar, é, portanto, europeu, porque foi a Europa que produziu esta cultura musical universal e a ensinou ao mundo. Ela substituirá, pouco a pouco, os múltiplos sistemas musicais em uso na Antigüidade por um sistema codificado que se tornará numa linguagem, e cujas convenções serão admitidas. Uma infinidade de elementos rodeia esse facto e confirma a sua força: a expansão da Igreja Cristã e, consequentemente, do seu canto; o papel de algumas grandes abadias e de algumas grandes cidades, tal como Paris, desde a Idade Média, com a sua influência que se estendeu a todo o Ocidente. A herança grega, e em seguida a romana, transmitiu-se modificada, mas foi ela que serviu de base à Europa para explorar infatigàvelmente o universo musical e estabelecer uma grande linguagem universal.

A história desta música é inseparável da história e das vicissitudes da Europa. primeiro religiosa, e separando-se depois, na Idade Média, em dois ramos bem distintos: a música de Igreja e a do povo, segue a evolução das idéias e dos gostos, exprime o estado dos espíritos em dado momento, responde às necessidades de uma sociedade (distrações, protocolo, etc), acusa as  perturbações das crises políticas ou morais.

A partir de um vasto feixe de músicas procedentes da Antigüidade Oriental, a Igreja Cristã fixará a atenção dos seus fiéis sobre uma música cantada, simples, completamente destituída de sensualismo, e que — paralelamente à expressão progressiva dessa mesma Igreja — vai por sua vez radiar, impregnar as almas, penetrar nos espíritos, moldar a inspiração musical. O lento caminhar desta música permanece ligado ao caminhar da civilização ocidental. É a partir da cantilena gregoriana que surgem as primeiras tentativas de polifonia; é por

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meio das missas e dos motetos que a linguagem musical se ornamenta e enriquece. A ciência musical evoluiu através da música religiosa; e a música religiosa transmitiu à música profana todo o seu saber.

Do robusto tronco gregoriano, que foi o primeiro a crescer, brotaram múltiplos ramos, que em seguida se desenvolveram; toda a nossa música  provém desta origem e foi principalmente na França, na Itália e na Alemanha

que se operou essa evolução.

 A essência da música

A música foi primeiro a linguagem mágica do homem primitivo, a sua invocação às divindades. Em seguida, foi ciência, como as matemáticas e a astronomia. Durante longos séculos permaneceu oração.

Finalmente, misturando-se com o mundo profano, tornou-se uma arte, um divertimento também, o que lhe trouxe considerável enriquecimento, por vezes  puramente material (uma orquestra de sonoridades sumptuosas não será necessariamente mais “rica” do que uma melodia isolada intensamente expressiva).

Mas, a partir do momento em que a música se torna arte, as leis da estética vão condicionar a sua evolução, enquanto anteriormente, desde a Antigüidade até à Idade Média, era apenas regida pelas leis da moral: com efeito, quer seja magia, quer oração, a música ritual obedece a regras éticas precisas.

Existem, portanto, duas grandes eras da música, cada uma englobando uma evolução de facetas múltiplas, no interior de um domínio bem definido: a era religiosa e a era estética. A Idade Média forma praticamente a charneira entre estas duas fases. Desde as mais rudimentares ou recuadas civilizações até à Idade Média, o homem viveu a era religiosa da música. Desde há oito séculos, vivemos a sua era estética.

Se a música é um ritual, a linguagem sagrada do homem — mas livre de qualquer referência realista, já que exprime o mundo do irracional mais direta-mente que a literatura ou a pintura —, é também um fenômeno cujos elementos devem ser conhecidos.

De que é feita a música, como se manifesta o fenômeno sonoro altamente organizado da nossa civilização e qual o seu significado? Parece oportuno, em meados do século XX, abandonar a definição de Jean-Jacques Rousseau: “A

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música é a arte de combinar os sons de forma agradável ao ouvido.” Emanando de um filósofo cujas opiniões neste domínio foram muitas vezes discutíveis, esta definição encerra a música dentro dos limites onde se reconhecem os ditames do estilo galante. Ora a “música amável” é apenas um aspecto da música em geral. Após esses convencionalismos do século XVIII, como formular uma opinião sobre um canto guerreiro da Antigüidade, uma monódia gregoriana, uma ária de Monteverdi, uma página de Beethoven, Berlioz, Strawinsky ou Bartok? Como apreciar todos esses compositores, cujo alvo não foi serem agradáveis ao ouvido”, segundo aquele critério, mas exprimir com intensidade os anseios de uma coletividade, as suas próprias paixões, ou ainda as diversas possibilidades da linguagem ou da arquitetura sonora? Foi contudo graças ao gênio de tais inovadores que o domínio da música se enriqueceu e alargou. É, portanto, impossível fecharmo-nos dentro de princípios sem dúvida claros e tranquilizadores, mas que a vida pode sempre desmentir.

Conforme a música seja uma organização sonora articulada, tal como uma linguagem (frase, pontuação, ritmo, desenvolvimento de uma idéia), ou um meio intencional de provocar uma sensação, ela será intelectual ou sensorial, mas agirá sempre sobre a nossa sensibilidade. No primeiro caso, o encanto (fascinação) físico do som está sujeito a uma ordem estética e intelectual, no segundo exerce-se livremente. É evidente que esta própria liberdade se move dentro de quadros fixos. Um exemplo familiar ilustrará este fato: sabe-se que a improvisação livre e totalmente “inspirada” dos instrumentistas de  jazz se desenrola de acordo com um esquema harmônico e rítmico muito estrito. O compositor nunca se afasta desse quadro invisível, sendo este a dar a sua coerência ao discurso, que, de outra forma, seria apenas desordem e confusão.

Para esquematizar, poder-se-ia classificar numa categoria “intelectual” toda a música clássica, onde a forma impõe a sua autoridade e onde o sentimento é estilizado, trabalhado: os polifonistas do Renascimento, Bach, Haydn, Mozart, Haendel no século XVIII, um Strawinsky, um Hindemith presentemente, etc.  Na categoria “sensorial” poderíamos classificar os impressionistas, os românticos, os expressionistas e alguns dos grandes compositores do século  barroco. Acrescentar-lhe-emos o jazz, música de encantamento por excelência.

Aqui voltamos a encontrar as denominações tradicionais de apolíneo e de dionisíaco. Para ser completo, é necessário acrescentar uma categoria

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“espiritual”, abrangendo a música ritual dos povos primitivos e o canto gregoriano da liturgia católica. Aqui os elementos sensoriais e intelectuais fundem-se num só. E se o canto gregoriano, purificado, decantado é o reflexo de uma vida espiritual muito elevada, a música ritual do povo primitivo pode refletir uma mesma exigência de superação pela fé, na sua ingênua mistura de  pureza e de ação sobre os sentidos.

O que é o tom?

Antes de adquirir qualquer significado, a música é um fenômeno sonoro; foi a exploração deste fenômeno e a sua domesticação que produziram os sistemas musicais. A matéria sonora é, de início, uma vibração. Esta vibração, qualquer que seja a sua origem—corda, pele esticada, tubo produzindo sons—, transmite-se ao nosso ouvido. Este constitui um aparelho de recepção minúsculo e subtil, reagindo às freqüências (número de vibrações por segundo), que vão de cerca de 20 a 20000. Abaixo de 20 vibrações por segundo situam-se os infra-sons, acima de 20 000 os ultra-sons, que, saindo do campo de percepção do ouvido, são, portanto, inaudíveis para o homem. No ouvido interno encontra-se o órgão de Corti, receptor das vibrações, que o alcançam após terem abalado as fibras nervosas e que ele transmite ao cérebro por meio do nervo auditivo. Uma cadeia de transmissões físicas das vibrações transfor-ma-se assim em transmissões fisiológicas: efetivamente, as fibras auditivas conduzem a uma região chamada “zona auditiva” da massa cinzenta, o que explica o fato de transformarmos os sons, recebidos sob forma puramente física, em representações mentais, imagens, pensamentos, recordações, etc.  Neste fato reside a diferença entre o homem e o animal, cuja audição  permanece puramente física.

Esta explicação muito esquemática do fenômeno da audição permite compreender que a música, ou, antes da música, o simples som, atinge diretamente um dos nossos centros nervosos mais importantes e, após ter-nos comunicado uma sensação física pura, determina instantaneamente em nós, por um lado e conforme os casos, a excitação ou o entorpecimento e, por outro, os mais coerentes pensamentos ou representações, se estiver organizada segundo uma ordem intelectual ou afetiva. No caso oposto, uma música de forma e

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expressão elementares ou obsessivas provoca em nós a embriaguez física. Estas noções são conhecidas, pois todos sabem o que significa a excitação física produzida por certos trechos musicais ou, pelo contrário, a exaltação espiritual originada por outros.

Mas a recepção do fenômeno sonoro processa-se de tal forma que as mais sublimes expressões da arte mais perfeita atingem-nos primeiro sob a forma de uma simples sensação física: o gênio do homem organizou essa sensação e levou-a a participar no exercício das nossas mais elevadas faculdades. Ao analisar sucintamente o mecanismo da audição musical, observa-se que o som  passa pelo ouvido externo (condutor auditivo), o ouvido médio (tímpano e cadeia de ossículos que transmite as vibrações) e o ouvido interno (labirinto, membrana basilar, que contém 24 000 fibras que reagem às vibrações dos ossículos, e órgão de Corti, fim da transmissão). Sendo a música uma sensação física, essa sensação pode ser deleitável até ao êxtase, ou desagradável até à dor. A música tem a capacidade surpreendente de poder exercer um efeito hipnótico, eufórico ou exaltante sobre os nossos sentidos; se for violenta, pode igualmente revoltar-nos. Todo o significado da mensagem musical, até às suas mais requintadas proliferações, encontra-se contido neste fenômeno elementar; assim, a música mais requintada, tal como a mais primitiva, é um encantamento que age sobre os nossos sentidos. Num dos casos detém-se nos sentidos, no outro ultrapassa-os e subjuga-os pelo domínio do pensamento. Destes fatos depreende-se uma moral da música, e foi essa moral que alguns  povos das antigas civilizações tinham compreendido. A nossa época já não toma estes elementos em consideração na apreciação da obra musical, porque concedeu plena liberdade a obra de arte em geral, de forma a explorar a fundo todas as virtualidades humanas.

E esta sensação elementar que distingue a música da pintura ou da literatura. A emoção causada pela leitura de um .texto provém essencialmente da nossa apreciação intelectual; o mesmo sucede com a emoção provocada por uma obra  plástica. Nos dois casos a nossa sensibilidade é atingida pela beleza de expressão, o encanto da obra, mas a apreciação do nosso intelecto é indispensável para agir sobre a nossa emotividade.

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10  Nascimento de uma ordem sonora

Pitágoras, filósofo e matemático grego (582-500 a.C.), defendia a teoria de que o princípio de tudo reside nos números. Essa teoria levou-o a estudar as relações das vibrações dos sons resultantes da divisão de uma corda esticada. Descobriu assim que as principais consonâncias (oitavas e quintas) correspondiam à divisão simétrica da corda e, portanto, ao número de vibra-ções. Esta descoberta revelava uma ordem matemática inerente à altura dos sons e indicava que as relações de consonância são, antes de mais, relações matemáticas de vibrações e não um princípio puramente arbitrário de conveniência ou de gosto. Alargando o campo das suas observações, Pitágoras estabeleceu as relações que o levaram a percorrer uma escala de sons de vibra-ções cada vez mais rápidas, partindo de um som fundamental. Por outras  palavras, o total das vibrações do som fundamental, ao subdividir-se, produz

uma série de sons na direção do agudo.

Uma vez que a divisão regular de uma corda produz a oitava, a quinta e a terceira, o acorde perfeito encontra-se, portanto, contido dentro das ressonâncias naturais de um som, tal como a escala de sete sons. Assim sé explica por que razão o nosso sistema musical está construído sobre princípios matemáticos e acústicos naturais e o acorde perfeito, base do sistema, é uma realidade de ordem física. O acorde perfeito provoca uma sensação de  plenitude e de repouso; a dissonância uma impressão de tensão ou de constrangimento. A harmonia da consonância e o dramatismo da dissonância são elementos que os músicos têm largamente utilizado, e que exercem uma forte influência sobre o nosso psiquismo, as nossas reações nervosas, a nossa imaginação, constituindo um dos aspectos das relações matemáticas exatas ou imperfeitas entre vibrações diversas. A ordem sonora, a ordem musical e, por fim, a ordem estética foram, portanto, na origem, estabelecidas pela natureza.

 A escala, alfabeto da linguagem musical

Da divisão da corda nasce o sistema das escalas, ou seja das sucessões de sons dentro de certa ordem, mas por graus aproximados. A escala de Pitágoras (sete sons) serviu de base à instituição do nosso sistema musical, depois de

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 passar por numerosas transformações, de que as mais importantes são, em  primeiro lugar, entre a Idade Média e a Renascença, o estabelecimento  progressivo das escalas ascendentes na música profana, em oposição às escalas

descendentes da música religiosa; em seguida, no século XVIII, instituiu-se o chamado “sistema temperado”. Em poucas palavras, este sistema consiste na elaboração de uma escala na qual cada som se encontra convencionalmente fixado de acordo com um número de vibrações doravante invariável. Fixado o  padrão (o lá do diapasão que serve de referência) em 870 vibrações por

segundo (muitas orquestras utilizam presentemente um lá de 880, portanto ligeiramente mais alto), estabeleceu-se o conjunto das relações de forma a uniformizar os sons e, portanto, a reunir dois sons quase semelhantes num só:  por exemplo, dó sustenido e ré bemol, ré sustenido e mi bemol, mi sustenido e fá natural e assim por diante. Por este processo obtém-se uma escala total de doze sons (as teclas brancas e pretas do teclado totalizam doze notas), que constitui o “total cromático” do sistema, no qual os sons distam entre si de meio som — o intervalo mais claro e mais perceptível ao ouvido.

Este sistema temperado (nome que deve a sua origem ao fato de se terem “temperado” as vibrações, apertando umas e alargando outras, para as trazer às doze alturas convencionais) inspirou a João Sebastião Bach o famoso Teclado  Bem Temperado (e não cravo, como por vezes se diz), constituído por doze  prelúdios e fugas nos doze tons do sistema, que era então uma novidade.

Um tal sistema, a despeito de reduzir a extensão sonora a doze alturas bem definidas, acusa por um lado arbitrariedade e, sem dúvida, imperfeição, pois renuncia às riquezas das alturas sonoras “à margem”. Possui ele, contudo, o merecimento de simplificar o alfabeto musical, reduzindo-o a doze elementos.  Na ausência de um sistema temperado, teria sido necessário recorrer a um sistema de vinte e uma notas, cada uma destas com a sua altura exata (matematicamente nas relações de vibrações), o que não teria deixado de tornar tudo mais pesado e complicado, impedindo, por exemplo, a prática da música  polifônica ou orquestral. Além disso, pensemos no universo musical que nos

legaram os séculos a partir desta escala temperada. Confessemos que ela de forma alguma impediu o desenvolvimento da técnica e do pensamento artístico.

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Se por um instante voltarmos às escalas, notaremos que certos povos da Antigüidade, tal como os Chineses, os Hebreus e os Japoneses, utilizavam as escalas pentatônicas (de cinco sons). Presentemente estas escalas ainda existem em algumas ilhas do Pacífico. Pouco sabemos das melodias pentatônicas, transmitidas por tradição oral (sem notação). Outros povos, tal como os Gregos, utilizavam a escala de sete sons, dita diatônica (cinco tons e dois meios tons).

Agrupando os sons, cuja altura praticamente se confunde, obtém-se o sistema cromático atual. Observemos que a escala de sete sons (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) pode, neste caso, ser percorrida três vezes: em bemóis ( b). em natural e em sustenidos ( # ). Só mais tarde é que virá a ser intercalado um som intermédio entre cada um destes sons, para assim se obter a escala cromática (doze meios tons).

Os sistemas musicais da índia e da Arábia utilizam escalas que compreendem intervalos menores do que o meio tom, mas impossíveis de notar

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na nossa escrita: o “quarto de tom” existe ainda em algumas músicas  primitivas, que o utilizam inconscientemente por falta de uma organização sonora racional. Na nossa época, os compositores tentaram ressuscitar o quarto de tom e reintegrá-lo no nosso sistema musical. A experiência não podia deixar de ficar à margem, mesmo sendo de natureza a enriquecer a percepção sonora. O quarto de tom pode ser muito expressivo nas vibrações da voz ou de um instrumento, mas é necessário que um ouvido seja bastante sensível para o  perceber, o que parece provar que o sistema temperado corresponde a uma

realidade acústica.

 Note-se que o Ocidente teve o merecimento de simplificar os sistemas existentes, no intuito de torná-los universais. Esta tendência, constante nos  povos europeus, tem-se manifestado desde os primeiros séculos da nossa era,  prosseguiu na Idade Média e ainda hoje se verifica: a Europa propõe ao mundo um tipo de linguagem universal. Assim o nosso alfabeto literário, prático, espalha-se desde há séculos, ao contrário do que sucede com os complexos alfabetos orientais. Assim também o nosso sistema musical tende, desde os  primeiros séculos da era cristã, a transformar os diversos sistemas anteriores do

mundo oriental numa espécie de síntese. Empobrecida, sem dúvida, de certo modo por esta operação, a linguagem musical enriquece-se por outro lado. Por exemplo, se a instituição da “barra de compassos” (espécie de grade que, nas  partituras, marca os tempos e a sua divisão) põe termo à arte subtil e rica do

ritmo livre e matizado (característica que, nos nossos dias, o canto gregoriano ainda conserva), permite por outro lado a prática da música de conjunto, que, de outro modo, seria impossível. Mesmo a sujeição ao “tempo forte”, acento instintivo sobre cada primeiro tempo de um compasso, pode introduzir na música grandes riquezas expressivas e rítmicas. Mas todos estes fatos são a história da expansão ou da decadência de um sistema. Será possível, contudo, imaginar a impotência, a confusão e as limitações que teriam ameaçado a cultura musical, se a dispersão dos sistemas musicais se tivesse perpetuado...?

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II - AS PRIMEIRAS ERAS DA MÚSICA

 A pré-história musical

Terá existido uma música anterior a qualquer civilização? Existiu, sim, e é necessário referi-la, pois a música não surgiu subitamente um belo dia no de-curso da história. Se nada sabemos, praticamente, sobre a pré-história musical,  podemos pelo menos observar um fato: tão longe quanto possamos retroceder na história e imaginar, encontramos a música, ou pelo menos, certa música rude e sumária, cujo papel e função são já em potência o que serão ao longo dos séculos.

De tudo quanto o nosso século descobriu sobre as origens do homem e as mais rudimentares condições de vida da humanidade primitiva, sobressai que a música, assim que se manifesta, é de ordem sagrada. A música é o ritual da existência e, simultaneamente' religiosa e profana, é ela que dá à vida quotidiana o seu sentido sagrado. Os homens das eras mais recuadas, vivendo rodeados de mistérios inexplicáveis e de terrores diversos, sem recurso perante a hostilidade da natureza e os enigmas da criação, utilizam, antes mesmo de saberem falar, uma linguagem que representa um meio de comunicação com os espíritos ou com as forças que os dominam, ou ainda com as divindades que comandam essas forças.

Esta linguagem exprime a revolta ou a sujeição, a alegria ou o medo perante a vida, a morte, a doença, os fenômenos da natureza. Os homens dançam, gri-tam, batem em si próprios, pintam o rosto e o corpo, ora no intuito de conciliar a proteção dos deuses poderosos, ora de os afastar assustando-os. Desta forma aprendem o poder do ritmo e do grito, os dois elementos fundamentais de qualquer música. O encantamento, a fascinação hipnótica ou exaltante da obsessão do ritmo atingem — sem o freio dos mecanismos intelectuais — a sensibilidade dos primitivos.

Estas considerações partem de um conjunto de fatos verosímeis: a pré-história musical tem sido objetivo de investigações científicas bastante recentes e constitui um vasto capítulo da história da música. Além do caráter ritual das  primeiras manifestações sonoras, já comprovado, os instrumentos

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pré-históricos, tais como chifres, ossos, objetos percutíveis, etc., fornecem outras indicações que confirmam as primeiras.

Eis, portanto, a primeira faceta da música na aventura da humanidade: a música existe porque corresponde a uma necessidade fundamental de comunicar com o Além, com os mortos e os deuses, a uma necessidade intensa e profunda de atingir um segundo estado. Desde a sua origem, a música é,  portanto, uma linguagem superior; não é a linguagem da razão e da vida quotidiana, mas a das grandes forças misteriosas que animam o homem. Nada existe de mais necessário o que esta música, que não é luxo nem prazer, mas,  pelo contrário, a voz profunda da humanidade.

Assim é esta “pré-música” que podemos imaginar nas sociedades ainda em estado embrionário; até é possível fazermos dela uma idéia bastante exata, se observarmos o papel atribuído à música nas sociedades que ainda permanecem  primitivas nos nossos dias ou que, tendo evolucionado, conservaram contudo uma música de caráter religioso primitivo (Bali, índia, Arábia). Será, pois, lógico afirmar que a música primitiva é sempre sagrada, porque exprime essencialmente um sentimento, ou instinto, religioso.

A expressão “música primitiva” indica uma música ritual constituída por cantos e ritmos baseados em motivos simples, repetidos obstinadamente, na maioria dos casos, com o fim de provocar o estado de transe. A música  primitiva, tal como a dança, está carregada de símbolos: determinado ritmo,

determinada feição melódica, ou determinado gesto, exprimem uma idéia  precisa e tornam-se sagrados pela prática. “Primitivo” não significa pobre ou sumário, pois, dentro dos seus limites, a música primitiva exprime uma grande intensidade de sentimentos e, frequentemente, uma arte sutil da melopéia e do ritmo. Em termos mais simples, esta música não é erudita nem elaborada de acordo com as leis estéticas. Pensemos na expressão “pureza primitiva” e sentir-nos-emos mais próximos da verdade.

Podemos, portanto, reter a seguinte imagem da pré-história musical: o emprego do ritmo (tambor, tanta, etc.), com o seu poder de sugestão  psicológica; o emprego do grito, de início grosseiro, em seguida cada vez mais modulado, graduado, a fim de exprimir sentimentos cada vez mais diversos; finalmente o emprego da dança, primeiro como encantamento e trepidação, transformando-se progressivamente em linguagem e arabesco.

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 A Antiguidade Oriental

Os primeiros, exemplos de que dispomos sobre a existência de uma música sujeita e integrada numa ordem social, ética ou religiosa, são os que colhemos na Antiguidade: Egito, Mesopotâmia, China, Grécia.

Treze séculos a.C., a China possui uma cultura musical. Vinte séculos a.C., o Egito utiliza uma música que consiste em cantos acompanhados por instru-mentos, em danças de luto ou de júbilo, em cantos de cerimônias diversas: adoração do Sol, banquetes rituais, colheitas, etc. Os faraós têm os seus cantores e instrumentistas. Um dignitário, espécie de mestre de capela, está incumbido de tudo quanto diz respeito aos músicos e ao emprego da música. Harpa, trombeta, flauta, címbalos e campainhas formam um repertório instrumental bastante variado.

Trinta séculos a.C., os Sumérios empregavam flautas de prata e de cana, harpas, liras; a sua música, exclusivamente religiosa, participava em todas as cerimônias e, segundo estudos muito recentes, sabe-se que a música desempenhou um papel extremamente importante na civilização sumeriana.

A história ensinou-nos que os Hebreus dedicavam considerável interesse à música; o rei David, poeta e músico, é um ilustre exemplo deste fato. Possuíam cantos de guerra e de misteres, salmos e cânticos; os seus instrumentos eram igualmente a trombeta, a flauta, a harpa e vários tipos de tambores.

Infelizmente apenas temos conhecimento deste imenso repertório musical  por meio de frescos, textos teóricos ou ornamentações de alguns achados, tais como vasos, ânforas, etc. Alguns instrumentos foram assim encontrados nos túmulos. Mas como nos falta a notação musical, este precioso patrimônio não  pode restituir a presença viva da música.

Uma das principais características da música da Antiguidade, e que sobrevive até à Idade Média, é a sua forma monódica. Nota-se, efetivamente, que nas civilizações antigas nunca se fez menção de música a várias vozes: os conjuntos vocais, instrumentais ou mistos cantam e tocam em uníssono. Pôde,  portanto, admitir-se como verosímil que a monódia, cuja existência se estendeu  por vários milhares de anos, foi o único gênero musical conhecido pelas grandes civilizações antigas, que, de resto, atingiram na sua prática um extremo requinte. Mas tal fato não significa que a música tenha sido monódica de forma

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sistemática e sem excepção. Assim, baseando-se na flauta dupla (3000 anos a.C.), capaz de emitir dois sons simultaneamente (é o caso do aulos grego), no órgão antigo (hidráulico), utilizado em Alexandria 300 anos a.C., e no qual dois tubos podiam funcionar ao mesmo tempo, e, finalmente, nas diferenças de registo vocal entre homens, mulheres e crianças, é fácil admitir que uma  polifonia rudimentar tivesse podido existir muito antes do aparecimento, na

Idade Média, da polifonia como ciência organizada. As vozes humanas de registo diferente podiam cantar a oitava, em uníssono ou ainda a outros intervalos (terceira, quinta), inconscientemente. Outras formas elementares de  polifonia podiam ter sido, por exemplo, o acompanhamento de uma nota de  baixo contínuo durante o canto; ou um tocador de lira podia entregar-se a diversas variações sobre a linha melódica do cantor: notas mais graves ou mais agudas, ritmos contrastantes, etc. Considerando, contudo, as teorias da Antiguidade, assim como a música que esta nos legou, temos de admitir que tais polifonias, verossimilmente limitadas a duas vozes, fossem utilizadas sem que tivesse surgido a idéia de estabelecer uma teoria ou de regular o seu uso. Eram sem dúvida “acidentais” e em nada prejudicavam o princípio da monódia.

Tal como na Pré-História, observa-se em todas as civilizações da Antiguidade que os acontecimentos da vida quotidiana de uma coletividade, as suas manifestações religiosas ou guerreiras, os seus múltiplos ritos são acompanhados de música. Não existe cerimônia onde ela não tenha o seu lugar. Dessa forma alcança uma importância considerável na ordem social: o seu uso não se limita à prática do canto ou de um instrumento, imas faz parte da formação moral do cidadão. Exprime os sentimentos da comunidade e não os de um indivíduo, é a linguagem do grupo que assim atinge a sua unidade espiritual. Foi confiada aos sacerdotes, aos músicos e aos poetas, que se incumbiram de traduzir o sentimento comum.

Durante estes milênios e até à Idade Média, a _ música não é considerada como uma arte; esta noção só começará a manifestar-se a partir do momento em que a música se libertará do seu papel puramente ritual. As transformações da Idade Média — aparecimento da notação musical e, em seguida, da  polifonia, o desenvolvimento da música profana e erudita, os instrumentos

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inéditos—darão à música um aspecto e um significado totalmente diferentes do que haviam sido no decurso dos séculos anteriores.

Ao descobrirmos a intensa vida musical que impregnou as civilizações não européias da Antiguidade, não podemos deixar de pensar nesse passado que continua a viver, por vezes de forma surpreendente, nos seus monumentos, frescos, desenhos, estatuária e objetos, enquanto a sua voz se extinguiu e a sua música permanece muda, manifestando-se apenas por sinais e enigmas. O único esforço que podemos fazer é decifrar esses enigmas, dar uin sentido a esses sinais e tentar imaginar, sem poder ressuscitá-la, uma música que hoje é apenas uma língua morta.

 A Antiguidade Greco-Romana

Já anteriormente evocamos a Antiguidade Greco-Romana; voltemos apenas  por alguns instantes a esse mundo, berço da música ocidental.

Grécia: tocadora de citara (cerca de 500 a.C.)

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É justo dizer que foi a Grécia que nos legou a música, visto que impôs, além do seu sistema musical pitagórico, uma poética musical que se tornou um modelo. O que foi possível reconstituir, pelos raros documentos que chegaram até nós, permite afirmar que:

1.° A música grega é essencialmente vocal; os instrumentos desempenham apenas um papel de acompanhamento.

2." A função da música é simultaneamente religiosa e social, constituindo o ritual da vida coletiva.

3.° O emprego da música encontra-se estritamente regulamentado; o sistema musical compõe-se de sete modos; cada um destes modos possui um carácter  bem determinado, cujo uso está fixado por lei.

4." A música é monódica; quando um instrumento a acompanha é em uníssono.

A escala grega é diatônica (as teclas brancas do nosso teclado). Os Gregos

conheciam igualmente o gênero cromático, que comportava intervalos menores

que o diatônico, mas apenas em determinadas alturas da escala. Se a escala é uma sucessão de notas, o modo é a maneira de dispor essas notas. Cada nota da escala dava origem a um modo diferente. Para imaginarmos a importância dos modos, lembremos que a nossa época emprega, desde a Renascença, apenas dois: o maior e o menor, o que, portanto, empobreceu as possibilidades de modificação das escalas. Os nossos modos são “ascendentes”, enquanto os modos gregos eram “descendentes”; ainda se encontram vestígios dos modos gregos nos modos de igreja, que deles são originários, bem como na música  popular espanhola ou na música árabe. A explicação deste fato é simples:

alheia ao movimento de evolução da música erudita na Europa Ocidental, a música popular ou religiosa da bacia mediterrânea, tendo conservado as suas tradições, permanece ainda hoje igual ao que era há dois mil anos, enquanto a música européia se afastava em busca de novos caminhos.

A música grega, que possuía, sem dúvida alguma, um repertório muito vasto, deixou-nos pouca coisa: um fragmento de um coro para a Oréstia, de

Eurípides, dois hinos a Apoio (século n a.C.), o Hino ao Sol, de Mesomedes de

Creta, um hino cristão de Oxyrhinchos. Os Gregos possuíam igualmente um sistema de notação sumário, constituído por letras; juntamente com os escritos dos teóricos, este elemento permite reconstituir um conjunto que deve ter sido

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muito rico e do qual o canto da Igreja Cristã nos dá uma idéia, uma vez que  praticamente todo o seu repertório descende dele.

Se os documentos materiais não são numerosos, sabemos, em contrapartida, que a cultura grega deve muito à música e à sua influência sobre os costumes. Se as obras musicais são raras, sabemos que a formação moral do cidadão se apoiava na música e parece ser evidente que a espiritualidade grega foi fecundada pela música. Platão professa, na sua República, que a música deve

guiar a juventude para a beleza e a harmonia espiritual. Aristóteles preconiza a “purificação pela música”, não obstante reconhecer que esta pode ser um divertimento, como por exemplo depois do trabalho. Se os cultos de Apoio e de Dionisos têm os seus fiéis, apenas os dissolutos celebram o deus do prazer nos seus banquetes, com melodias e ritmos, cantos e danças incitando à licenciosidade. Mas ninguém se ilude e a verdade surge nos filósofos e na mitologia.

O teatro tem os seus coros e os seus intermédios instrumentais, que acompanham a tragédia; as Panateneias, festas em honra de Atenas, são dotadas de cantos e de danças nobres; os Jogos Píticos evocam a luta de Apoio e do monstro Pitão, com o auxílio de uma música descritiva. Cerimonias religiosas, cortejos, festas profanas, estes acontecimentos não se realizam sem música. Os aedos, poetas-cantores discípulos de Orfeu, subjugam a multidão com as suas grandes obras de caráter épico, acompanhadas pela cítara ou a lira.

Esta descrição conduz-nos aos instrumentos, cujo domínio é mais conhecido: além do fato de estes instrumentos terem sido frequentemente reproduzidos em efígie, encontrou-se um grande número deles. Por outro lado, é certo que o princípio da ressonância dos instrumentos foi sempre o mesmo desde as épocas mais recuadas. Os consideráveis aperfeiçoamentos introdu-zidos nos instrumentos musicais desde há alguns séculos não trouxeram qualquer modificação neste capítulo. Tão longe quanto possamos retroceder, a  percussão o sopro e a corda têm constituído os três tipos de ressonância: bater numa superfície vibrante, soprar num tubo ou ferir uma corda, são os três  processos de que o homem mais primitivo pôde ter conhecimento. Da corda

tensa nasceu a harpa, a cítara, a lira (cordas pinçadas) ou o ravanastron

(Ceilão, 5000 anos a.C.), primeiro instrumento de arco. Do tubo surgiu a siringe, a flauta, o aulos (espécie de oboé, que os Gregos consideravam como

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dionisíaco), a trombeta, a buzina, etc. Quanto à percussão, deu origem às casta-nholas, aos diversos tipos de tambores e tantas. Certos instrumentos em nada evolucionaram desde a Antiguidade, exceto nos pormenores. Outros, tais como as “madeiras” ou a família dos violinos, adquiriram novos meios técnicos desde há apenas trezentos anos.

Quando o Império Romano sucedeu às repúblicas gregas, absorveu uma grande parte da sua música e inspirou-se na ordem e na beleza helênicas. Durante muito tempo músicos gregos tomaram parte na vida artística romana, verossimilmente ensinado ou, pelo menos, introduzindo o seu exemplo e as suas tradições. Privada, contudo do espírito que comandava a sua existência e da sua antiga força espiritual, a música romana torna-se mais prosaica, mais dura, mais exterior; exaltando a glória militar e a grandeza dos césares, vulgariza-se: a tuba, a trompa, o órgão, a buzina, instrumentos de maior  potência sonora, acompanham os combates dos gladiadores.

A decadência, helênica dilui-se no poderio romano: os vestígios da música  pertencentes ao apogeu da civilização grega vêm morrer num mundo regido  por uma escala de valores diferentes. No primeiro século da nossa era, a música em Roma destina-se ao povo, música de folguedo, de circo, de dança, que se tornará rapidamente trivial ou libertina.

Em suma, ao passar da Grécia para Roma, a música degenera; perde o seu sentido e a sua nobreza. É, contudo sob esta forma que vai penetrar no Ocidente, pois será nos amplos fundos legados pelas civilizações antigas que os cristãos irão colher os cantos que lhes servirão de senha. É de resto através destes cristãos, bom como das tradições conservadas em certos meios patrícios, que poderá sobreviver uma música superior.

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Os instrumentos antigos vistos por um musicólogo do século XVIII (Ensaio sobre a Música Antiga e Moderna, de Laborde)

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III - A MÚSICA CRISTÃ

 A época gregoriana (séculos III a XI)

Posto que os informes sobre a música nos princípios do cristianismo sejam escassos, sabe-se, contudo que esta aparece associada à liturgia desde as  primeiras manifestações do ritual cristão. Acompanha os primeiros gestos

rituais do partir do pão (a ceia) e as reuniões culturais. Assim nascem os salmos monódicos, destituídos de qualquer artifício; assim a sublimação dos arrebatamentos espirituais dos participantes se exprime por meio de uma simples linha melódica cheia de sentido. Os cânticos e as longas melopéias dos  primeiros séculos da era cristã constituem uma oração cantada, cuja pureza vai acentuar-se constantemente. Originário das tradições judaicas (salmos e cânticos do Antigo Testamento), gregas e pagãs, o canto de igreja está edificado sobre os modos descendentes da Antiguidade; a sua melodia flexível alia-se ao texto segundo um ritmo livre (cantochão, oposto ao canto medido, que fará a sua aparição pelo século XIII). Na sua simplicidade, o canto de igreja representa, ao longo da história e a despeito das consideráveis transformações da música erudita, um exemplo de perfeição, de equilíbrio exato entre a expressão e os meios pelos quais se exterioriza. A melodia, ou melhor, a monódia religiosa, basta-se a si própria, sem necessidade de recorrer à harmonização ou à instrumentação; exprime, com supremo requinte, as menores graduações do texto. Assim a “oração cantada” da Igreja Cristã representa já um dos pontos culminantes da espiritualidade.

Esta liturgia das primeiras épocas, síntese de um patrimônio legado pela história, foi marcada pela personalidade de um homem: Santo Ambrósio, bispo de Milão no século IV. A música que o precede pode ser chamada música cristã primitiva. Santo Ambrósio introduziu na sua diocese antífonas e hinos vindos do Oriente, integrando na missa os modos do rito bizantino, derivados dos modos gregos, subtis e eruditos: estes impregnaram o “rito ambrosiano” de cantos vocalizados extremamente flexíveis, onde abundam os “pequenos intervalos”, que produzem uma expressão mais sensual. Esta expressão será combatida pelos neopitagoristas, que reclamam para a Igreja um canto menos “efeminado” segundo o seu critério. Os chefes da Igreja, inquietos por verem

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que os fiéis se afastam de uma liturgia que lhes é estranha (e demasiado eru-dita, acrescentam eles), tentarão regressar à aplicação dos modos gregos clássicos, isto é, diatônicos1 .

Em 387 Ambrósio efetua o batismo de Agostinho de Hipona, o futuro Santo Agostinho (354-430). Este vai propagar o salmo ambrosiano e redigir o tratado

 De Música, de grande importância para a teoria do canto de igreja e surge

como um dos primeiros grandes pensadores e teóricos do canto litúrgico.

Aproximemos do seu nome o de Boécio (475-526), nobre romano, autor do tratado De Institutione Musica, súmula dos conhecimentos teóricos do mundo

greco-romano. Esta obra, característica de uma tendência então espalhada, considera a música unicamente como uma ciência, dentro da tradição  pitagórica. Sabe-se que este conceito influenciará a evolução da música até à

Idade Média.

Voltemos a Santo Ambrósio, que, por sua iniciativa, difunde a liturgia ambrosiana na Gália. Ao espalhar-se, contudo, esta liturgia tem tendência a transformar-se. Na Provença, na Alemanha, na Espanha, desenvolvem-se liturgias locais, que empregam associações de modos e de línguas: com efeito, a “língua vulgar” aparece frequentemente, alterando o texto e a melodia. Pouco a pouco manifesta-se uma espécie de vasta anarquia, inconsciente, que ameaça tornar-se heresia, conduzir aos cismas e até, por fim, fazer ruir a estrutura da  própria Igreja, fragmentando-a em tantas liturgias — e depois igrejas —,

quantos ritos locais existam. A abundância de liturgias põe em jogo nada menos do que a unidade da Igreja. A ausência de notação favorece esta dispersão: o impulso vigoroso que os chefes da Igreja tentam transmitir através da Europa, perde a sua força ao chegar aos confins da cristandade, em terras longínquas onde o temperamento dos homens, o clima, os gostos, tendem a dominar. Torna-se necessário efetuar uma enérgica reforma, pois na Alemanha triunfa o ritual gelasiano, fundado por Gelaso I, e que sobreviverá até ao século IX. Em Espanha reina o rito moçárabe, associação de cantos gregos, romanos e

1 Podemos imaginar uma comparação — exacta na essência, senão no pormenor: a melodia

cromática é sensual, suaviza os contornos, é lânguida. A melodia diatónica serve melhor a expressão viril, os contornos nítidos, o sentimento são. Beethoven utiliza o diatonismo, Wagner o cromatismo.

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orientais, em uso nas comunidades cristãs misturadas com os conquistadores árabes. Este rito ainda existirá na Renascença em alguns pontos do território.

Em diversas ocasiões, Carlos Magno vê-se forçado a chamar a atenção dos  bispos para a necessidade de observância do rito romano. Uma ordem sua nesse sentido ficou célebre: Revertimini vos ad fontem sancti Gregorii, quia manifeste corruptistis cantum. (“Voltai às fontes de São Gregório, pois estais

manifestamente a corromper o canto”). Quem é este São Gregório, a quem a cristandade é solenemente convidada a referir-se? Papa no século VI, Gregório I, tal como os seus predecessores, é testemunha do desenvolvimento— rico mas inquietante—da liturgia romana, das transformações do rito ambrosiano, da vitalidade dos ritos bizantinos, célticos, moçárabes. Aplica-se então a reprimir esta enorme proliferação e a estabelecer a unidade da liturgia romana através da Europa. E é assim que o repertório do canto religioso é depurado das cantilenas de caráter oriental, que numerosos intervalos melódicos são corrigidos e se regressa a uma severa disciplina de expressão, que rejeita tudo quanto possa ser chamado lirismo. Além disso, este canto, estabelecido num tipo gradual (o Antifonário, coletânea dos cantos da Igreja romana), é imposto a toda a cristandade; enviam-se missionários a todas as dioceses, a fim de ensinar o canto de igreja.

Esta reforma, que fixa definitivamente o rito, comporta sem dúvida o perigo de impedir qualquer evolução ou enriquecimento eventuais; em contrapartida, desenvolve a intensidade da sua expressão, a sua exaltante austeridade. Foi assim que este canto, doravante chamado gregoriano, adquiriu essa simplicidade luminosa, essa gravidade apaziguadora e, talvez possamos acrescentar, essa suavidade romana que só nele se preservou enquanto desaparecia à sua volta, e graças à qual sobrevive intacto desde há treze séculos.

 Não é bem conhecida a obra verdadeira de Gregório, mas pode razoavelmente atribuir-se-lhe o merecimento da reforma do canto religioso; é lícito supor que, se não foi o único a agir nesse sentido, foi pelo menos ele que, tanto pelos seus próprios trabalhos, como pela sua autoridade, reuniu os escritos dos teóricos seus predecessores e contemporâneos.

O gregoriano iria, portanto, ser doravante o canto oficial da Igreja Cristã. Contudo, no século XIX, julgou-se necessário efetuar uma nova reforma e

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desta vez foram os beneditinos da Abadia de Solesmes, em França, que ligaram o seu nome à paciente revisão do repertório litúrgico. A  Edição Vaticano,

versão oficial do canto gregoriano após esta revisão, foi publicada em 1908. É oportuno notar que as monódias gregorianas conservam a sua pureza nos ofícios divinos dos conventos beneditinos, mas na nossa época estão harmonizadas e são acompanhadas pelo órgão na maioria das igrejas. Este sistema, de prática tão corrente que os fiéis nem reparam nele, está contudo em contradição com o espírito da monódia, que se basta a si própria. Além disso, o estilo das harmonizações encontra-se muito frequentemente em oposição com toda a estrutura modal destas monódias.

O canto gregoriano é p núcleo de toda a música ocidental: tal facto explica-se facilmente. A canção popular da Idade Média, que é anônima, tem a sua fonte na igreja, pois a vida do povo permanece estreitamente ligada à das comunidades religiosas. O povo reúne-se em volta das igrejas ou das abadias e conventos. A música sacra é a única a que ele tem acesso e é inconscientemente que ele cantarola o que ouviu nos ofícios, transformando, ornamentando, alterando ou ritmando segundo a sua fantasia os cantos rituais ou inventando melodias inspiradas nestes.

As mais antigas canções que possuímos são testemunhos surpreendentes desse mimetismo entre a melodia religiosa e a profana: assim, as canções de misteres, baseadas em ritmos funcionais (gestos de ofício, etc.), reproduzem contornos melódicos próprios do canto gregoriano. Pouco a pouco a canção separar-se-á deste completamente, mas conservará, não obstante, a escala descendente, que evoca com precisão o canto de igreja.

A primeira fase da história da música na era cristã pode situar-se entre os séculos I e X, isto é, no decurso de um período em que o canto litúrgico se estabelece, após algumas hesitações, e se torna no servidor imutável da estabilidade da Igreja. Simultânea e progressivamente desenvolve-se o canto  popular, segundo os legítimos anseios do povo, que deseja folguedos. O final desta primeira época situa-se no momento em que esses folguedos adquirem tal importância que são rejeitados pela Igreja e em que, ao mesmo tempo, os  progressos da teoria musical dão lugar, .por um lado, à notação e, por outro, ao

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 Instrumentistas egípcias tocando flauta dupla, alaúde e harpa (fresco tumular de um sacerdote de Amon, cerca de 1600-1800 a.C .;

Tipos de instrumentos gregos, no século V a.C.: o aulos, oboé duplo, era utilizado nas bacanais e nas festas profanas (taça ática)

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Começa então uma segunda fase da história da música. Verificaremos, efetivamente, que a evolução da vida social na Idade Média introduz notáveis modificações nas festas religiosas: diversos elementos profanos (cantos e danças), assim corno a língua vulgar, são integrados como intermédios nos ofícios divinos. Estes elementos vão intensificar-se até desfigurar o aspecto da cerimônia religiosa, tanto mais que não desprezam os temas de atualidade, nem os de inspiração libertina. Em breve se produz o rompimento inevitável entre estes dois gêneros inconciliáveis e a Igreja rejeita do seu seio tudo quanto é exterior à cerimonia propriamente dita. Assim regressa à pureza primitiva, restitui a missa o seu sentido real e apenas autoriza as representações profanas no adro das igrejas. Desta atitude resultará para o espetáculo profano a

 A cítara acompanhava os cantos e a poesia lírica (terracota beociana)

Vaso para refrescar, do século V a. C. A lira era o atributo da

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 possibilidade de se desenvolver livremente, provocando assim o nascimento do teatro. Estas representações, jogos, ou “mistérios”, como lhes chamavam, meio religiosos, meio profanos, ilustram, ora a Paixão, ora a história de Adão e Eva, ora qualquer outro tema tirado das Escrituras onde, por vezes, figuram alusões à crônica da época.

A época gregoriana encontra-se mais ou menos contida entre o século III e o século XI. Mas no momento em que, sob o impulso das forças profanas, a missa se dilata desmedidamente e se torna ela própria meio profana, no momento em que ocorre a separação entre a oração e os divertimentos que tinham tentado associar-se-lhe, nesse momento termina a época gregoriana, isto é, a longa sucessão de séculos durante os quais o estilo gregoriano dominara a arte musical.

Quando se examina a história deste período, verifica-se que a música escapou à regra geral da evolução que marca tanto o destino dos homens como o das suas criações artísticas. A que atribuir esta fixidez? Ao fato de a música, sendo essencialmente religiosa, ritual, atingir plenamente o seu fim ao  participar na oração. Estranha à vida do século, não é afetada pelas leis da evolução: no exterior, os homens agitam-se e a vida transforma-se; no seio da Igreja, a música permanece contemplação e adoração.

Mas esta imobilidade vai terminar no século XI; associada ao ritmo da vida e às aspirações dos homens, a música profana vai, de certo modo, “recuperar o atraso”, seguir o movimento das idéias, responder à poesia e à pintura.

Haverá doravante uma música religiosa e uma música profana e esta última dividir-se-á em breve em música popular e em música erudita. Estes três tipos, gerados em graus diversos pelo canto gregoriano, constituem toda a música desde há dez séculos.

 A notação musical

Um dos problemas mais árduos que o homem teve de resolver na história da música foi o da notação. Foram necessários séculos de pesquisas para encontrar uma forma de fixar por meio de um sistema de escrita os dois dados fundamentais de uma notação musical: a altura e a duração dos sons. Tais  pormenores, que nos parecem simples, representaram durante muito tempo

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uma incógnita para os investigadores. Ora a música padeceu certamente desta falta de notação, visto que o essencial das criações musicais da Antiguidade caiu no esquecimento e que, por outro lado, tal ausência alterou, sem dúvida numa medida por vezes considerável, cantos deformados pela tradição oral.

Os Gregos e os Romanos designavam as notas por meio de letras do alfabeto. A Índia e a China empregavam igualmente uma notação, mas deve observar-se que nenhum sistema antigo pôde impor-se à Europa, uma vez que a escala modal de sete notas e os intervalos utilizados nas melodias nada tinham de comum com os sistemas musicais antigos e orientais. Julga-se que Boécio foi o primeiro a designar os sons estabelecidos por Pitágoras por meio de letras latinas, substituindo assim as letras gregas usadas até então.

Contudo desenvolveu-se um sistema, cujos primeiros documentos se situam cerca do século VII. Este sistema, inteiramente empírico, baseava-se na analogia entre o ouvido e a vista e iria tentar “desenhar” a linha melódica com o auxílio de linhas e de pontos, reproduzindo os seus contornos com maior ou menor fidelidade. Impreciso na origem, iria, ao aperfeiçoar-se, dar nascença à nossa escrita musical e revelar-se apto a notar a música nos seus múltiplos  pormenores. Este sistema é a notação neumática. Os neumas consistiam numa

espécie de taquigrafia, correndo por cima do texto religioso e indicando, pelas diversas formas dos sinais utilizados, as subidas, descidas, ornamentos e  paragens do canto. Efetivamente, a única utilidade dos neumas, nesta fase tão  primitiva, era a de auxiliar a memória do cantor na igreja. Mas iriam desenvolver-se de forma inesperada; nas abadias e nos mosteiros, os clérigos  procuravam infatigavelmente um processo para dar forma a este velho sonho:

fixar no papel um fenômeno de pura imaterialidade como o som, com as suas  particularidades secundárias. Tantos esforços não foram vãos: surgiu a idéia de

dispor os neumas em volta de uma linha traçada ao longo do texto, encontrando-se o primeiro som da melodia fixado sobre esta linha. Desta forma  precisava-se a identificação dos intervalos. Depois traçaram-se duas linhas de referência, em seguida três e, finalmente, quatro; sobre e entre estas linhas (o seu afastamento designava o intervalo de terceira) dispunham-se os neumas, doravante muito mais precisos quanto à altura. As quatro linhas (chamadas “pauta”) permaneceram associadas à escrita do cantochão de igreja, enquanto a

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música profana utiliza a pauta de cinco linhas, dada a extensão da escala sonora que percorre.

Estando a altura dos sons praticamente definida pelo sistema de linhas (com um som sobre cada linha e um som entre cada uma destas, os sete sons da escala eram notados sobre quatro linhas e três entrelinhas), tornava-se ainda necessário indicar a duração destes sons. Diferentes formas convencionais forneceram uma primeira apreciação. Foi assim que se elaborou pro-gressivamente um sistema de sinais em forma de quadrados ou de losangos, dispostos sobre e entre as linhas, cada um representando um som. A sua dimen-são, a maneira de agrupá-los ou de lhes associar um traço vertical, indicavam uma série de durações diferentes. No século XIII surge a notação  proporcional, estabelecida a partir da notação quadrada. Temos aqui um

exemplo, que nunca mais se modificará, da escrita musical utilizada para os cantos da missa gregoriana; será apenas por intermédio da música profana que esta escrita evolucionará ainda para a notação redonda, a pauta de cinco linhas e as divisões binárias dos valores das notas (uma semibreve vale duas .mínimas, ou quatro semínimas, ou oito colcheias, ou dezasseis semicolcheias, etc.).

Dois teóricos da Idade Média deixaram os seus nomes ligados à história da notação musical: o monge Hucbaldo (840-930), professor, autor do tratado

 De Harmonia Institutione, que verosimilmente estabeleceu a pauta de quatro

linhas; e o beneditino italiano Guido d'Arezzo (980?-1050), que efetuou um importante trabalho de fixação das cantilenas litúrgicas e passa por ter completado a pauta de quatro linhas. Foi ele também que atribuiu aos sons os seus nomes definitivos, mas de uma maneira inesperada, onde o acaso desempenhou um papel; sucede que o canto de um hino a São João Baptista é concebido em “escada”, o que quer dizer que cada verso começa num grau mais alto que o precedente.

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 A progressão da notação musical entre os século X e XV:

1. Neumas franceses do século X — 2. Notação de um canto litúrgico na  pauta, no fim do século XII — 3. Página de cantochão de um livro de missa do

século XIII, pauta de quatro linhas  — 4-Antifonario do século XV, com notação proporcional, pauta de cinco linhas.

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Fragmento com neumas do manuscrito 239 de Laon, Metz, escrito por volta de 930.

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Pauta de 4 linhas

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O texto é o seguinte: Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Sancte Johannes, o que significa:

“A fim de permitir que ressoem nos corações as maravilhas das tuas ações, absolve o erro dos lábios indignos do teu servo, ó São João.”

Sucede também que o primeiro verso ut queant laxis começa pela nota

tradicionalmente chamada C, segundo o hábito adquirido no momento do

aparecimento dos neumas, e que designava os sons fixos da escala sonora pelas sete primeiras letras do alfabeto. O hino a São João começa, portanto, por C:

Chamar-Ihe-ão Ut. O segundo_começa por D, chamar-lhe-ão, e assim por

diante. Restam dois pontos que se torna necessário explicar: Por que motivo a denominação assim elaborada compreende dois nomes, Ut epara a mesma

nota? Porque o primeiro verso começa sobre Ut e o regresso do Ut, oito graus

mais acima, recai sobre a oitava deste som, onde o cantor termina dizendo “Domino”. De onde provem o nome Si para o sétimo grau? Das iniciais Sancte

Johannes, o J confundindo-se com o I.

Eis portanto, a escala de sete notas estabelecida a partir do som Ut. Este

desnível de duas notas em relação à escala antiga de Lá  (A) estabelece

simultaneamente o tipo de escala maior em Dó, tal como a conhecemos hoje. Por meio de uma série de modificações subtis e pelo emprego de graus elevados ou abaixados, o sentido (“tonal” vai desenvolver-se durante a Idade Média e fazer recuar pouco a pouco o sentido “modal”, que havia prevalecido desde a Antiguidade, e se conservará no canto de igreja.

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A música tonal, a escala ascendente, embriões de todo o nosso sistema musical  profano, abrirão caminho mercê dessas descobertas e teorias, que alargarão as

fronteiras que limitavam a música desde há cerca de dez séculos.

Guido d'Arezzo e um discípulo (miniatura do século XII)

Referências

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