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EM CENA, OS HOMENS...

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Academic year: 2021

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Dossiia

EM CENA, OS HOMENS....

MARIA LUIZA HEILBORN

SERGIO CARRARA

0 presente dossiè ecoa a importancia crescente que o tema da mascu-linidade vem assumindo no ambito dos estudos sobre gOnero e sexualidade. Nos Estados Unidos ou inglaterra, o assunto ja vem ha algum tempo inspirando novos trabaihos em areas disciplinares maistradicionais, como a psicologia, a antropologla ou a hist:N*1a social. Nos Oltimos anos, nas universidadesanglo-americanas, vem sendo organizada uma nova sub-area de reflexao InterdisciplInar que, a exemplo dos

women's studies dedica-se exciusivamente ao estudo do gènero masculino. Sao os chamados men's studies'. Na Franca, intelectuais do peso de Pierre Bourdieu têm

visitado o tema em artigos e livros recentes2. No Brasil, como demonstram os artigos

reunidos nesse dossiO e em aigumas outras publicacaes, a masculinidade tambêm vem se tomando objeto de pesquisa.

Ao que parece, nesse final de mllénio, os homens- enquanto representan-tes de urn genero - vem sendo definitivamente transformados em objeto de ciOncia. 0 significado deste fato deve ser salientado, caso quelramos entrar nessa discussao sem incorrer nos perigos de uma abordagem ingenuamente positivista, para a qual os homens e a masculinidade teriam estado sempre la, apenas a espera de urn

Para uma recente avaliagdo crItica da product-10 da chamada area dos men's studies ver

CARRIGAM, Tim, CONNEL Bob e LEE, John. Toward a New Sociology of Mascuninity. In: BROD, Harry (ed.). The Making of Masculinitles: the new men's studies. Boston: Allen & Unwin, 1987; CORNWALL Andrea, eUNDISFARNE, Nancy. Introduction e Dislocating Masculinity: gender power and anthropology, In: CORNWALL A., e UNDISFARME, N. (ed.). Dislocating Masculinity - Comparative Ethnographies.

Londres e Nova Yorque: Routiedge, 1994; HARRISON, James B.. Men's Roles and Men's Lives, Signs,

winter, 1978, p. 325-337; OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a Masculinidade, Revista Estudos

Feministas, vol. 6, n. 1. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1998.

2 BOURDIEU, Pierre. La Domination Masculine. Paris: Seull, 1998 e A Dominaddio Masculina. EducacCo e Realidacie, re 20, v. 2, jul/dez 1995, p. 133-184.

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analista criativo que os abordasse. PrincIpaimente depots dos trabalhos de Michel Foucault, sabemos muito bem que o modo pelo qual os saberes clentificos constro-em seus objetos ndo é operacdo simples, nconstro-em suas conseqUinclas socials sdo sempre previsivels. Na maior parte das vezes, porèrn, a construed° de novas objetos cientificos sup6e e geralmente reforca processos de dominacOo que atingem certos grupos socials. Assim aconteceu, por exemplo, corn os loucos, os sexuaimente desviantes, as mulheres, as criancas ou os veihos, para os quais as al &alas bio-mêdicas construfram nos CrItimos duzentos anos niches disciplinares especificos, como a psiquiatria, a ginecologia, a pediatria e a gerontologia. Porém, submeter os homens - seu organismo, seu comportamento ou os valores socialmente atribuldos ao genera masculino - ao crivo da especulacdo cientifica parece ter sido tarefa bem mats complicada. Ainda no drnbito das cidnclas blornécricas, uma andrologia -enquanto ciância dos problemas que afetam os homens - nunca conquistou o mesmo grau de sistematicidade ou o mesmo prestigio acadarnico de disciplinas como a ginecologia, embora sua constituted° tenha tendo sido proposta pontual-mente ao longo desse nosso século 3. Talvez seja por isso mesmo que ainda hoje, no Brasil e em outios poises ocidentais, homens com problemas especificos aoteu sexo continuem a ser tratados por urologistas, ou seja, por especialistas de uma disciplina que é teoricamente enderecada a um indivicluo universal, a urn ser humane ndo marcado por quaisquer atributos de genera.

Contudo, a tenclència de se deixar intocado o homem parece estarsendo revertida. Ironicamente, s6 agora eles se tomam objetodaquelas clências que, mesmo sem nunca terem abordado sistematIcamente a masculinidade, desde hd muito tempo sdo denominadas de "ciéncias do homem". Na verdade, nelas, como JO apontara a critica feminista dos anos 70, o homem figurava ndo como urn objeto de reflexdo entre outros, mas como o referente implicit° de seus discursos, como o representante universal de toda a espécie humana. Esses serdo os momentos finals do percurso que levara os homens a compieta perda dos privIlêgios da universalidade? Talvez. Talvez seja tambèrn o momento em que se tome claro que tats privilógios tern seu preco, pots, se o gdnero masculino ou as sIngularidades do organism° dos homens tern sido mats dificilmente "objetificdvels" pelas diferentes ciências humanas, as solucdes para os seus problemas especificos sao por isso mesmo muito menos conhecidas.

De todo modo, a correlacdo entre a emergência do genera masculino como objeto de reflexdo das ciOnclas humanas e a perda dos privilOgios socials que ate hoje a identidade de genera assegurou aos homens é corroborada por diversos trabalhos. Muitos autores véem na atual preocupacdo corn o tema o reflexo da "crise" imposta a identidade masculina a partir dos anos 60, oriunda da segunda vaga feminista e da emergOncia do movimento homossexual4. Atravês de den0nclas envolvendo violéncia dornêstica, assèclio sexual, monop011o de postos e de funcOes no mercado de trabalho, atitudes homofdbicas etc. impOs-se um malordistanciamento 3 Ver para Isso CARRARA. Mbuto a Vénus, a Luta Contra aSifilis no Brasi da Possagem doSitcuboosAnos 40. Rio de Janeiro: Fiocruz 1996.

De foto, alguns historiadores remontam tal crise aos finals do s6culo passado quando as mulheres emergem enquanto ator politico na cena pOblIca. Ver, por exemplo, MARIGUE. L'IdentItO Masculine en Crise au Toumant du Siècle. Paris: Rivages, 1987.

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frente a comportamentos evaloresque ateentao estavam amplamente naturalizados, vistos como inerentes ao corpo e ao mundo mascuiinos. A masculinidade comeca a ser entao macs claramente percebida como culturaimente especifica, variando segundo as sociedades ou, no ambito de uma mesma sociedade, segundo diferen-tes periodos de sua histarlas. A masculinidade "desconstruida" pode agora possuir tambem uma hIstarla, uma antropologia, uma sociologia.

Alem disso, e para alguns ainda como reflexo da mesma "crise", os homens comecam a se organizar, ao menos em alguns poises, em tomo da singularidade de seu genera. Alguns desses grupos de homens se revestem de urn carater quase terapeutico, procurando ajudar os seus membros a superar os confiltos que o mundo moderno coloca a sua Identidade de género. Outros apresentam urn carater redentario, reunindo homens em busca de uma masculinidade menos agresslva, mats responsavel e domestics. Nos Estados Unidos, tal movimento ja consegue arrebanhar milhares de adeptos (oriundos prIncipalmente da ciasse media bronco) em gigantescas manIfestacaes pOblIcas. Para multos, tats grupos nada macs seriam do que a resposta aganIca do "sexo forte" frente a erosao final de seus privlièglos socials. De todo modo, sua presences na cena p0blIca contribui para tornar urgente a reflexao sobre o assunto.

Em poises como o Brasil, onde tats movimentos sao bem menos expressivos, outros elementos concorrem para a importancla que o tema vem assumindo.

Cremos que uma certa agenda politica Internacional allada a nossa costumelra incorporacao de temas dos clênclas socials do moda podem explIcar o interesse que a masculinidade vem despertando no pals. 0 aparecimento desse objeto se inscreve num cenarlo do iniclo do decades de 90 quando tern lugar grandes conferenclas internacionals relativas aos dlreitos dos mutheres, que enfatizaram a necessidade de incorporar os homens como aivos de politicos de Implementacao de uma motor eqUidade entre os sexos. Essas conferenclas, que foram alêm dos interesses femininos, tratando de temas como direitos humanos, populaces°, mein amblente, tiveram o merit° de sallentar que especificamente nos questoes relativas la reproduces° e ao controie do dIfusao do epidemia HIV/Aids era premente focallzar awes sobre a populaces° masculina. Asslm, o despertar do interesse articula-se obviamente corn a possibilidade de financiamentos de pesquisas e intervencOes que coda vez macs privIleglam os Integrantes do sexo masculino como aqueies a quern se cumpre conhecer, interrogar e mesmo offeror valores e comportamentos Esse quadro parece ser o mats razoavel para elucidar o contexto de surgimento do interesse que se combinou tambern a fenamenos socials especificos e datados, entre eles a mudanca do perfil epiderniolOgico da epidemia HIV no pais corn o aumento vertiginoso do contamlnacao sexual de mulheres por intermedio de seus parceiros fixos (maridos e companheiros) e tambern peia crescente visiblildade do violencia domestIca. A an4:51ise do logics e do visa° mascullnas expressas na articulacao entre sexualidade, relacaes de gênero e organlzacao da familia tornou-se mats que nunca fundamental.

6 Memos 'ma's claramente" porque, desde os 1rabolhos plonekos de Margaret Mead, o carbter socialmente construldo dos pope's sexuals JO era discutido ao menos no ermbito do Antropologia Social.

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AI6rn da "arise mascullna" e das novas agendas feministas ou de luta contra a AIDS, ao contexto de emergOncla do gènero masculino como objeto de reflexao deve ser agregada a prOpria dlnarnica do campo de estudos de genera. Nele, o desiocamento da 6nfase do universofeminlno ou dos sexualmente desvlantes para os sistemas ou hlerarquias de g6nero em sua totalldade supunha eJa preparava a incorporagao a anal's° do terra da masculinidade. E na medida em que os estudos se sucedem fica coda vez macs claro ser impassive! falar em masculinidade sem qualquer adjetivo. Ha masculindades. Ao menos no mundo ocidental, o modelo do homem burguös bem comportado, cumpridor de seus deveres para corn a familia e o Estado, convive de forma tensa corn o modelo romantic° do aventureiro solitario, avesso aos lagos familiares e pronto tanto para as agruras dos campos de batalha6, quanta para as delicias dos bordOis e dos bares. A masculinidade que se encena no escritario entre nuvens de fumaga de inCimeros charutos, opoe-se aquela outra que se manifesto ao ar livre, no esporte, no safari, no acampamento dos escoteiros, no turismo ecolOgico ou nas expedigOes clentificas. Contra o homem "tradicionar de poucas palavras, principalmente quando se trata de falar sabre si mesmo, insurge-se o homem "moderno" que, nos divas dos psicanalistas, vem insurge-se adestrando nas sutilezas dos jogos verbais. Ha tamb6m a masculinidade que se constral como parOdia nas boates freqUentadas por homens e mulheres homossexuais.

Al6m de revelarem a existOncia de diversos (e as vezes divergentes) modelos de masculinidade em uma mesma sociedade, os estudos de genera propaem que se estude tambern o modo pelo qual as diferentes hierarquias socials (de genera, classe, raga ou idade) incidem umas sobre as outras, modulando-se mutuamente. Nesse sentido, os atributos de gönero se constroem tambern de maneira situacional. Assim, muitos dos comportamentos que historicamente foram atribuidos as mulheres (emotividade exacerbada, misticismo, falta de auto-controle, sugestibilidade etc.) serviram tambórn para qualificar os homens pertencentes a povos e ragas em situacao colonial. A masculinidade de um Indiana que se afirma frente ao colonizador ingl6s nao é a mesma que se afirma frente a urn outro Indiana. Do mesmo modo, uma das dificels tarefas dos homens que envelhecem em nossas sociedades 6 a de refazer sua identidade de genera frente a perda de vórios dos atributos que continuam a definir a masculinidade hegemanica (capacidade para o trabalho, forgo fisica, porOncia sexual). Enfim, ao analista vem se impondo nao so a tarefa de descrever os diferentes modelos de mascullnidade existentes em diferentes contextos e situagOes socials, mas a de entender as relagOes sociolOgicas e histaricas que mantérn umas cam as outras e as condigOes que possibilitam, em coda momenta e lugar, a hegemonia de algum desses modelos sabre os outras.

Os textos reunidos nesse dossi6 tratam de duos searas distintas da exper1-6ncia social de homens. De urn lado, dois artigos, ode Leal e ode Heilborn abordam atraves de material etnograflco os vinculos entre prâticas sexuais, valores acerca da sexualidade e da reproducao, produgao do genera masculino e formas de organi-6 Para uma andiltse dos aspectos relativos ao man* da violencia e da forca fisica nos nomes, ver NORBERT, Elias. Os Alemäes - a luta pelo poder e a evolucOo dos habitus nos sêculos XIX e )0( Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, a propOsito do que ele design como ethos guerreiro.

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zaedio da familia e da conjugalidade. Leal apresenta os resultados de uma pesquisa qualitative, que obteve tratamento estatistico dos dodos obtldos °troves de entre-vistas realizadas corn cerca de 100 homens, de verlas idades, moradores de quatro vitas (favelas) na cidade de Porto Alegre. 0 trabaiho arrola as concepeOes sobre reproduce:to, concepeOes sobre aborto e preferencia por certas prditicas sexuals, contrastanclo-as corn a maneira como tats temas stio pensados por muiheres oriundas da mesma Inseredio social. J6 o officio A Primelra VezNunca se Esquece trate da entrada na vide sexual adults por parte de homens de diferentes insereOes socials. Nele, busca-se investigar de que modo a carreira afetivo-sexuaL como uma des dimensOes datrajetOrla de vide, é elucidative des tensOes inerentes 6 construed° da identldade de genero masculine. Considerando que a Iniciativa a urn atributo culturaimente destinado aos homens na relecOo entre os dois sexos, a andlise reveia quetanto no cortejar quanto na maneira como a concebida a iniciaedo sexual como urn aprendizado tecnico este em Jogo a capacidade dos sujeitos ern preencher tats requisitos de maneira satisfatOria. Nesse sentido, o homem timid° aparece como uma especie de Vilma estrutural des relaedies de genera De outro ludo, o artigo de Carvalho enfoca a experiencia masculine em uma profisselo feminine, a educaedo. Temos aqui uma situaedo de reversdio da hlerarquia de genero: homens que precisam elaborar de maneira malsou menoscongruente uma *escolha" profissional que os lance em urn domfnio des muiheres. A seleedio desses artigos pare compor o Dossie Masculinidade da Estudos Feministas acompanha os temas privileglados de andillse e urn certa tendência que esteve presente nos primeiros esforcos de desvendamento do mundo femlnino: der voz a temas e lugares tidos como invisfvels.

Referências

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