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Violência de gênero contra as mulheres na justiça restaurativa em São Leopoldo: notas sobre o campo de pesquisa no caso dos Círculos Conflitivos 1

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Violência de gênero contra as mulheres na justiça restaurativa em São

Leopoldo: notas sobre o campo de pesquisa no caso dos Círculos

Conflitivos

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Thaís da Rosa Alves (PPGCS/Unisinos)

Introdução

O presente trabalho apresenta algumas reflexões sobre o campo no qual realizo pesquisa doutoral: o projeto de justiça restaurativa implementado na Vara da Violência Doméstica e Familiar no município de São Leopoldo – RS.

A inserção no campo iniciou-se em 2018 com objetivos de aproximação às práticas restaurativas, desenvolvidas na referida Vara, nos casos que envolvem violência de gênero2 contra as mulheres. Primeiramente, havia uma escolha em trabalhar com os denominados “Círculos Reparatórios de Paz”, realizado com mulheres que passaram ou ainda se encontram em situação de violência, e que consistem, em conjunto com os círculos realizados exclusivamente com “homens autores de violência” nas práticas mais divulgadas, tanto pelo Fórum, como pela mídia, como partes da justiça restaurativa nos casos de violência de gênero contra as mulheres.

Porém, ao dar início ao campo exploratório, tomei conhecimento de uma terceira prática denominada como “Círculos Conflitivos” na qual os casais não desejam a separação e buscam o “conserto” da sua relação afetivo-amorosa.

Essa prática centraliza-se na mediação de casais e chamou a minha atenção, pois consiste em uma ação que ocorre mesmo com algumas críticas a este formato que se assemelham as discussões desenvolvidas sobre os processos de conciliação no modelo dos Juizados Especiais Criminais – Jecrims (DEBERT; BERALDO DE OLIVEIRA, 2008).

Por considerar minha prática e minha produção acadêmica como alinhadas a partir de perspectivas feministas, principalmente a partir da construção teórica em torno da violência de gênero contra as mulheres, minha primeira reação quando soube destas práticas restaurativas

1 44º Encontro Anual da ANPOCS. GT 29 – Nas Malhas da Judicialização da “Violência de Gênero” contra as

Mulheres: Etnografias. Afetos, Avanços e Retrocessos em contexto Sul-Americano.

2 Embora exista um extenso debate sobre as nomenclaturas em torno da violência praticada contra as mulheres,

neste trabalho utilizarei o termo violência de gênero contra as mulheres, pois, a utilização do termo “gênero” deixa implícito a noção relacional e de assimetrias de poder em uma relação (BERALDO DE OLIVEIRA, 2008).

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2 foram de estranhamento. Sendo assim, por considerar que o campo deve nos surpreender, resolvi me voltar para esta prática no interior da instituição criada a partir da criminalização da violência contra as mulheres com “olhos de antropóloga” ou seja, com os olhos e todos os outros sentidos treinados de um modo singular (PALMEIRA, BARREIRA, 2004).

Posto isto, neste trabalho trago algumas situações que surgiram neste período de campo conjuntamente com as questões metodológicas, para refletir acerca da temática da judicialização3 da violência de gênero contra as mulheres.

Primeiramente apresentarei uma contextualização das práticas restaurativas realizadas na Vara da Violência Doméstica e Familiar no município de São Leopoldo descritas a partir de observações realizadas no local.

Em seguida, apresentarei alguns apontamentos sobre a realização de etnografia a partir da utilização de documentos, mais precisamente, processos judiciais. Por fim, trago as considerações finais.

A justiça restaurativa na Vara da Violência Doméstica e Familiar de São Leopoldo

Desde o ano de 2005, uma parceria entre o Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), iniciou a implementação do projeto piloto denominado “Justiça para o Século 21”, no qual algumas regiões do Brasil foram contempladas inicialmente para a aplicação da justiça restaurativa nas áreas da Infância e Juventude, Jecrim, mediação comunitária e círculos restaurativos (SCHUCH, 2008).

No ano de 2016 houve a expansão do projeto de justiça restaurativa para as Comarcas de 1º Grau do Estado do Rio Grande do Sul, na qual, São Leopoldo passou a fazer parte nas seguintes áreas: Vara da Violência Doméstica, Jecrim, Juizado da Infância e Juventude, e Juizado de Execução Criminal.

De acordo com a juíza responsável pelo projeto, a escolha por estas áreas ocorreu pela questão de que há a presença de vínculos familiares nestes tipos de infrações penais, desta forma, há uma necessidade de refazer o tecido social que fora rompido pela prática da violência. Já o funcionamento prático da justiça restaurativa se dá pelo encaminhamento dos juízes dos processos que dependendo da situação, encaminham para uma secretaria executiva que

3 Neste trabalho, compreendo a judicialização a partir dos olhares desenvolvidos por Guita Debert e Filomena

Gregori (2008) e Theophilos Rifiotis (2008; 2012; 2015). Para este grupo de autoras e autor a judicialização corresponde na ampliação do direito e consequentemente das ações estatais na regulação das sociabilidades e práticas sociais que passam a ser consideradas “problemas sociais”.

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3 seleciona os casos. Em seguida, é realizado o contato com as pessoas envolvidas que irão participar juntamente com facilitadores voluntários que receberam formação específica do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul (JORNAL NH, 2017).

Desde 2017, na Vara da Violência Doméstica e Familiar do município, ocorrem três modalidades de práticas restaurativas denominados “Círculos”: o Círculo Reparatório de Paz, realizado com mulheres que passaram ou se encontram em situação de violência; o Serviço de Atendimento com Homens Autores de Violência, realizado com os homens e, por último, os Círculos Conflitivos, realizado com os casais.

A participação nos círculos não é obrigatória e o convite é realizado pela própria juíza durante as audiências, o que corrobora a ideia de que as práticas restaurativas constituem-se, na sua idealização, em ferramentas de formação de novos sujeitos éticos (SHUCH, 2008), ou seja, considera que os participantes possam ter a liberdade de escolher fazer parte deste tipo de experiência.

Durante as minhas incursões na referida Vara como forma de me aproximar das práticas restaurativas, pude acompanhar um encontro do Círculo Reparatório de Paz e de uma audiência de encaminhamento para o Círculo Conflitivo.

Os círculos são realizados em uma sala localizada no Fórum, e os encontros são conduzidos por facilitadores de círculos restaurativos voluntários que realizaram curso de formação que, no Rio Grande do Sul, é oferecido pelo Tribunal de Justiça-TJRS. A realização do curso não exige formação anterior na área do direito, sendo aberto à comunidade.

Cada círculo possui uma metodologia diferenciada. Os Círculos Reparatórios de Paz, exclusivo para as mulheres, ocorre toda última sexta feira do mês, no turno da manhã; o Serviço de Atendimento Para Homens Autores de Violência, realizado com os homens, ocorre em uma organização da sociedade civil, a Ponto Gênero, localizada em São Leopoldo, que visa a equidade de gênero com atuação com o público masculino.

Já os Círculos Conflitivos possuem uma temporalidade diferenciada. Dividido em quatro momentos, sendo eles três pré-círculos e um círculo, a prática ocorre dependendo da disponibilidade do casal, que uma vez inseridos, devem terminar juntos o processo. A desistência da participação implica no retorno da sentença que fica “suspensa” no momento que o casal aceita participar desta modalidade de mediação, funcionando da seguinte maneira: após a primeira audiência, a juíza, a partir da sua interpretação4, pergunta se o casal gostaria de

4 Para participar dos Círculos Conflitivos o casal em questão deve esboçar a vontade de não terminar o

relacionamento, além disso, o autor não pode ser reincidente. Apenas casos envolvendo ameaça e lesão corporal leve são considerados aptos para participar dos círculos.

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4 participar do círculo. Se o casal concordar, é marcada uma nova audiência para a “leitura da sentença” e o encaminhamento para o pré-círculo que ocorre no mesmo dia.

Na segunda audiência, a juíza, juntamente com a promotora que já assina o processo para o mesmo “não subir”, ou seja, o mesmo sai da sala da audiência e não vai para o arquivo, o que só ocorre após o fim dos encontros. Participam da audiência com as “partes”, os intervencionistas e os facilitadores. Após a leitura da sentença, a juíza coloca as condições para o “Círculo Conflitivo”, suspendendo a sentença.

Os “Círculos Conflitivos” ocorrem em quatro encontros: três pré-círculos e um círculo. Nos dois primeiros círculos participam apenas o casal e os facilitadores, no terceiro pré-círculo cada um pode levar um acompanhante de sua escolha. De acordo com a juíza, na maioria dos casos, as mulheres têm como acompanhantes seus filhos, enquanto os homens levam pastores de igreja.

No último encontro, considerado o círculo em si, o casal assina um documento que fora produzido juntamente com os facilitadores durante os pré-círculos e comprometem-se a cumpri-lo. Entre os acordos, constam o comprometimento do homem em parar de beber, até mesmo situações mais peculiares, como o caso do homem que se comprometeu a se desfazer de seus passarinhos, que fora motivo da discussão que gerou a agressão.

Durante o campo exploratório também pude acompanhar uma audiência de encaminhamento para o “Círculo Conflitivo”. Na ocasião, o homem e a mulher sentaram do mesmo lado da sala de audiência junto dos intervencionistas. A juíza leu o documento da sentença no qual relembrou o fato ocorrido: lesão corporal leve e ameaça. Depois da leitura a mesma passou para um novo documento, da justiça restaurativa, e leu as condições para a suspensão da sentença lida anteriormente: participação nos quatro encontros, a não desistência ou ausência, não reincidência. Caso alguma destas condições não sejam cumpridas, a sentença passa a valer, que no caso era a reclusão em regime aberto e participação no Serviço de Atendimento Para Homens Autores de Violência.

O casal da audiência era João e Maria. O caso ocorreu em 2014, João tinha “problemas com a bebida” e Maria resolveu dar uma festa, porém, proibiu que João bebesse. O mesmo ficou bravo e foi para o bar. Acabou bebendo e retornou para a casa, onde cometeu as agressões e desferiu ameaças para Maria, dizendo que a mataria.

Os dois vestiam-se com roupas simples. Ela usava uma calça jeans e uma blusa preta com brilhos e os cabelos estavam amarrados em um coque por uma piranha plástica. Ele vestia uma calça social bege e uma camisa de botões na mesma cor de um tom mais claro. Escutavam

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5 atentamente a leitura da sentença pela juíza. Após o final da leitura, a juíza questionou João sobre o que ele fez.

Juíza: Você machucou e ameaçou ela de morte, isso é muito grave, João.

João: Sim, senhora. Eu sei. Mas eu não teria coragem, não. Não tenho coragem nem de matar uma barata. Foi da boca para fora, foi a bebida.

Juíza: Você não está bebendo mais, João? João: Não, senhora.

Juíza: Que bom! Bom, então vamos dar um jeito nisso, vamos arrumar a família de vocês (Diário de Campo, 17 de out. 2018).

Novamente ela explicou como ocorreriam os círculos. Porém, uma das facilitadoras não compareceu na audiência, sendo assim, o pré-círculo do casal foi adiado para uma nova data e cabia a um dos dois procurar o Fórum para saber quando seria, já que apenas Maria possuía telefone e a mesma não sabia o seu número de cor para que a secretária do cartório ligasse com a nova data. Finalizada a audiência, ambos assinaram um documento no qual se comprometiam com os círculos. Maria assinou e João, envergonhado, falou para a intervencionista que não sabia escrever. Ela prontamente pegou na mesa da juíza uma almofada de carimbo para que o mesmo pudesse marcar o seu polegar no documento.

Nessa primeira observação, destaco algumas impressões sobre a audiência. Primeiramente a postura da juíza, após a leitura da sentença, voltou-se para João como forma de chamar a atenção do mesmo pelo fato, mesmo tendo ocorrido há alguns anos atrás, de forma a dar uma “bronca” no mesmo, pois o que ele fez era “errado”.

Neste sentido, observa-se a prática da represália por parte da juíza, prática esta comum nos casos de conciliação ocorridas ainda nos Jecrims, além da preservação familiar e a relação entre marido e mulher, como observou Marcella Beraldo de Oliveira (2008).

Outra questão é se realmente os círculos conflitivos tornam-se uma prática não obrigatória, visto que a mesma é aplicada após a leitura da sentença, ou seja, Maria e João estão cientes do que vai ocorrer se eles não terminarem o círculo. Mesmo suspensa, a palavra “sentença” e as consequências listadas pela juíza poderiam assumir um peso relevante na escolha do casal em participar dos Círculos Conflitivos.

E, por último, como se daria a atuação dos mediadores neste caso? Quais as narrativas que seriam validadas nos encontros dos círculos, visto que João é analfabeto? Se manteria uma postura educativa/punitiva como a amostra visível na audiência?

De acordo com Renata Giongo (2011), para uma mediação envolvendo casos de violência de gênero contra as mulheres ser efetiva, o casal participante deve ter conhecimento

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6 das normas de comunicação, empatia e consciência, visto que, ao contrário, a experiência da mediação poderá se tornar uma violência institucional.

Diante destas primeiras impressões levantadas pela observação da audiência de encaminhamento, outro desafio foi posto para a realização da pesquisa com os Círculos Conflitivos: a não autorização em participar como pesquisadora na realização dos encontros.

O campo de pesquisa: etnografia a partir dos processos judiciais

A não autorização para acompanhar os “Círculos Conflitivos” ocorreu porque este tipo de círculo constitui-se como um espaço de sigilo e privacidade, portanto, a participação de alguém de fora, como uma pesquisadora, poderia interferir, mesmo que sem a intenção, no processo de mediação, ou seja, mesmo que exercitamos como antropóloga a escuta atenta, não possuo a capacitação como mediadora necessária para participar de um Círculo, mesmo como ouvinte.

De acordo com Guita Debert (2004), quando existem impossibilidades para a realização de campo nos moldes tradicionalmente propostos pela pesquisa antropológica, tal como a observação participante, é preciso buscar outros modos de acesso.

Sendo assim, a solução encontrada para acessar estes casos e assim criar o corpus etnográfico, foi a de utilizar os processos judiciais produzidos na Vara da Violência Doméstica encaminhados para os Círculos Conflitivos e que já foram concluídos5.

Primeiramente a utilização dos processos seria uma forma de acessar os trabalhadores da justiça, visto que algumas mediadoras e mediadores dos círculos também trabalham no cartório da Vara de Violência Doméstica e Familiar, e como salienta Miriam Vieira (2011), a utilização de processos ou demais documentos oficiais, corresponde em uma estratégia de pesquisa que permite iniciar “conversas” com quem atua nestes casos, como os trabalhadores de Fóruns ou delegacias.

Porém, ao entrar em contato com a bibliografia referente a utilização de documentos e, mais precisamente, de processos judiciais, optei por focar a produção etnográfica nestes materiais.

5 De 2017 até março de 2020, 34 casos foram encaminhados para os círculos conflitivos, destes 15 foram

concluídos, 4 não deram continuidade e outros 15 estavam em andamento, somando-se no total 34 casos. A leitura dos processos iniciará por estes 15 que estão arquivados e depois será feita a seleção dos que irão compor a pesquisa doutoral.

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7 A realização de etnografias a partir de arquivos consiste em uma prática contemporânea na tradição da disciplina (CUNHA, 2004), embora a utilização de documentos não seja nenhuma novidade no campo da antropologia, o reconhecimento dos papeis como produtores de conhecimento ainda é tema de discussões carregadas de tensões, dúvidas e ansiedades (LOWENKRON; FERREIRA, 2020).

Segundo Olívia Maria Gomes da Cunha (2004), de um lado, há aqueles que consideram a etnografia de arquivo uma atividade periférica ao se remeterem às práticas da “antropologia de gabinete” já ultrapassada, bem como, a ideia de que tornar os arquivos os interlocutores principais não é o papel da antropologia e sim de outras áreas como a história, a arquivologia e a sociologia.

Este olhar de desvalorização epistemológica dos arquivos em relação a observação participante acaba por centralizar o método etnográfico e suas técnicas para assim produzir um autêntico conhecimento etnográfico legitimado no percurso na disciplina (LOWENKRON; FERREIRA, 2020).

Porém, com a virada antropológica nos anos de 1980 na qual os antropólogos voltaram-se para a própria disciplina e relativizaram muitos de voltaram-seus pontos, entre eles a noção de campo, os documentos passam a ser considerados artefatos antropológicos que possibilitam repensar a própria construção de objetos de pesquisa no campo da antropologia (LOWENKRON; FERREIRA, 2020).

Um exemplo de pesquisa etnográfica a partir de arquivos, mais precisamente, de processos judiciais foi a tese de doutorado de Adriana Vianna, na qual a autora acompanhou os processos judiciais de guarda de menores na década de 1990.

Durante a sua produção etnográfica, Vianna (2014) questionou-se sobre o quanto ter como campo processos judiciais era etnográfico e o que tais documentos poderiam produzir como mundo social. Ao refletir acerca das limitações do trabalho de campo “cara a cara com o nativo” e o campo documental, a autora observou que existem semelhanças e diferenças entre elas e que ambas constituem o fazer etnográfico (VIANNA, 2014, p. 45-46)

[...]. Semelhante porque destacam as lacunas, a sensação contínua de falta, de estarmos submetidos tanto a regimes de fala - conversas, entrevistas, depoimentos - quanto de silêncio. Coisas que não apenas não nos são ditas, seja por pessoas de carne e osso ou por pessoas de papel, mas que sequer suspeitamos ou sobre as quais podemos nos interrogar, por não termos indícios ou provocações que minimamente nos aticem a curiosidade e a capacidade de ficarmos incomodados. Distintos, porém, porque conferimos propriedades sociais muito diversas à loquacidade-silêncio de cada um desses domínios ou formas.

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8 Disto, a autora nos revela que estar em campo “cara a cara” ou estar em uma sala fechada cercada por pilhas de processos não é o que definirá o “grau etnográfico” da pesquisa, pois, existem vários elementos que fazem uma etnografia que vão além do contato físico.

Ter como campo documentos, mais especificamente, processos judiciais presume em questionarmos pontos diversos, como a produção da verdade, as vidas documentadas e seus fragmentos, como carimbos, assinaturas, despachos e adiamentos. Utilizar processos é considerar que os mesmos são narrativas que produzem e sedimentam vidas concretas (VIANNA, 2014).

Voltar o olhar etnográfico para os processos possibilita a identificação dos atores centrais e suas conexões, interações e posições desiguais. Ou seja, no “silêncio” dos documentos, podemos dialogar com estes atores e “[...] sermos por eles conduzidos, seduzidos e, quem sabe, enganados (VIANNA, 2014, p. 48).

Neste mesmo percurso Laura Lowenkron e Letícia Ferreira (2020) afirmam que, a utilização de documentos nas pesquisas antropológicas deve considera-los como mediadores e que os mesmos “[...] desempenham funções tanto no controle e na coordenação de procedimentos, agentes e ações administrativas, quanto na construção de subjetividades, afetos, pessoas e relações que extrapolam universos organizacionais” (LOWENKRON; FERREIRA, 2020, p. 23).

É com este propósito de considerar os documentos como artefatos antropológicos, proposto pelas autoras citadas acima, que pretendo olhar para os processos judiciais e, consequentemente, contribuir para o debate sobre as formas de judicialização da violência de gênero contra as mulheres, desde as práticas alternativas de justiça.

Considerações finais

O combate a violência de gênero contra as mulheres consiste em uma das principais lutas dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil, tais mobilizações tornaram o tema um assunto frequente na mídia, além da conquista de espaço na agenda pública que possui uma longa trajetória de investimento com leis e políticas públicas para coibir esta forma de violência. Um importante marco dentro desta trajetória foi a promulgação da Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, que acabou adotando a violência doméstica e familiar contra as mulheres como os casos que devem ser punidos, entendendo esta como uma violência baseada no gênero, independente da orientação sexual (BRASIL, 2006).

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9 Diante das conquistas no campo dos direitos das mulheres, o debate em torno de punibilidades, práticas de justiça e mediação com enfoque na violência de gênero contra as mulheres permanece em movimento, principalmente pelos aspectos de sua judicialização.

Neste caminho, buscam-se novas formas de criar acessos à justiça, como a discussão sobre as práticas alternativas como a mediação de conflitos, como no caso da justiça restaurativa para os casos envolvendo questões familiares e, mais recentemente, questões de violência de gênero contra as mulheres.

É seguindo este percurso que o presente trabalho buscou apresentar algumas reflexões que surgiram durante incursões na Vara da Violência Doméstica e Familiar do Fórum de São Leopoldo – RS. As observações, realizadas no ano de 2018, foram realizadas com objetivo de conhecer algumas práticas da referida Vara dentro do projeto de justiça restaurativa, mais precisamente da modalidade denominada de Círculos Conflitivos.

Embora a justiça restaurativa seja considerada pelas trabalhadoras e trabalhadores do Fórum como um projeto que está em implementação desde 2017, suas modalidades, como no caso dos Círculos Conflitivos já atua na vida das pessoas e, consequentemente, produz sentidos e significados em torno dos temas de justiça, gênero, família, entre outros.

Nesse caso, busquei através destas reflexões trazidas pelo campo de pesquisa que se propõe a adentrar na temática das judicializações da violência de gênero contra as mulheres, introduzir algumas questões metodológicas, como a utilização de processos judiciais para a produção de uma etnografia, visto esta ser a única forma de acessar tais experiências no caso que pretende ser pesquisado.

Por esta razão considero que realizar uma etnografia a partir de processos judiciais consiste em acessar diferentes narrativas de dentro do Estado, representado pela instituição judicial e os diversos atores que participam destes casos, como o casal, os mediadores, a família e a religião.

Sendo assim, o desafio posto será o de considerar tais documentos para além do que está escrito, ou seja, ao invés de olhar para os documentos, direcionar o olhar, assim como assinalam Lowenkron e Ferreira (2020), através dos documentos.

Referências bibliográficas

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10 BRASIL. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Brasília-DF, 2012.

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