8 - As línguas podem
diferir sem limites e de
modos imprevisíveis?
LEF140 Prof. Maria Carlota Rosa
As línguas são diferentes em vários níveis.
Um deles é o inventário de fonemas, isto é,
de unidades sonoras distintivas.
O português, por exemplo, tal como o francês, tem as vogais em (8.1), mas, diferentemente do francês, não tem aquelas em (8.2), apresentadas, em ambos os quadros, no Alfabeto
Vogais Representação ortográfica
Representação
Fonética (IPA) Português Francês
i pi si e pê ses ε pé sait u tu sous o vô sot ɔ vó sort 8.1
Vogais
Representação ortográfica
Representação
Fonética (IPA)
Português
Francês
y
/
tu
ø
/
ceux
œ
/
soeur
Para os símbolos do IPA
http://www.internationalphoneticalphabet.org/ipa-sounds/ipa-chart-with-sounds/
Em latim clássico, por exemplo, um nome como PUER, ‘criança,
menino’, na dependência da função que exercia num enunciado,
poderia apresentar-se sob várias formas, indicativas de Caso e
Número:
puer (Nominativo e Vocativo Singular) puĕrum (Acusativo Singular)
puĕri (Genitivo Singular, Nominativo e Vocativo Plural) puĕro (Dativo e Ablativo Singular)
puĕros (Acusativo Plural) puĕrōrum (Genitivo Plural)
puĕrīs (Dativo e Ablativo Plural).
Em português, a forma de
significado equivalente,
CRIANÇA
, apresenta
distinções de Número
(criança, crianças), mas
não de Caso.
No correspondente inglês CHILD há
variação de Número (child, children) e, como refere um ser animado, CHILD participa ainda de
um sistema casual com pouquíssima variação (Quirk & Greenbaum, 1973: 96ss):
a par com o chamado Caso
Comum (child), apresenta o Caso Genitivo (child’s), forma específica apenas para o singular (Quirk & Greenbaum,
Também pode variar a ordem básica das palavras na
oração, ou ordem dos constituintes, isto é, a ordem
mais frequente e mais neutra, numa sentença
declarativa com sujeito agente humano, o objeto é
semanticamente paciente e o verbo representa uma
ação (como comer), não um estado (como amar,
Mas, apesar de tantas diferenças, é possível construir,
por exemplo, uma tipologia em relação à ordem de
constituintes.
Quando se concebe uma oração como formada de
sujeito (S), verbo (V) e objeto (O), há pelo menos seis
possibilidades lógicas para a ordem básica no nível da
oração: SOV, SVO, VSO, VOS, OVS, OSV, exemplificadas
em (8.3).
(7.3)
• SVO – português
O menino comprou sapatos
• SVO - iorubá
bàbá ra bàtá (Pulleyblank, 1990) pai comprou sapatos
• VOS –malgaxe (Madagascar)
mamaky boky ny mpianatra (Eric Potsdam)
ler livro o estudante ‘O estudante está lendo o livro’
• OVS – hixkaryana (Brasil)
kuraha yonyhoryeno bɨryekomo (Derbyshire, 1985)
tigela ele-fez-ela menino
‘O menino fez uma tigela’
• OSV – urubu (Brasil)
jaxi-rehe
jande
jaho (Kakumasu, s.d.)
jabuti-por
nós
nós-fomos
A diferença pode ser maior: há línguas que não
podem ser caracterizadas em termos de uma
ordem básica, ou que tenham uma categoria S
(Comrie, 1989b).
As línguas também diferem no vocabulário, não
apenas no tocante ao que anteriormente foi tratado
como a arbitrariedade do signo, mas também no
recorte diferente da realidade.
Um exemplo bem conhecido diz respeito aos nomes de cores: as línguas do mundo não nomeiam o contínuo de cores do espectro segundo a mesma divisão, embora
pareça haver padrões para fazê-lo.
Na década de 1960,
Berlin & Kay concluíram que, nas línguas que estudaram, os termos básicos para cores eram tomados
de um conjunto de apenas 11 nomes: preto, branco,
vermelho, amarelo, verde, azul, marrom, roxo, rosa, laranja e cinza. [....] quando apenas alguns dos
nomes de cores eram usados, essa atribuição de nomes seguiu uma hierarquia de cinco níveis:
(1) preto, branco; (2) vermelho;
(3) amarelo, verde, azul; (4) marrom;
(5) roxo, rosa, laranja e cinza.
Dessa forma, se uma língua der nome a apenas duas cores, serão preto e branco. Se der nome a três cores, serão preto, branco e vermelho. Uma quarta cor será tirada do grupo de amarelo, verde e azul. A quinta e a sexta cor também sairão desse grupo. A seleção continuará até que todas as 11 cores recebam nomes.
No século XVI, um jesuíta, o Pe.
Azpilcueta Navarro,
desincumbia-se de escrever uma gramática
sobre o tupinambá, afirmando
que lhe parecia que os índios não
tinham o suficiente para ser
descrito numa gramática, mas
apenas alguns vocábulos que
eram bem gerais.
Por volta da mesma época o Pe.
Manuel da Nóbrega chegou a
considerar os índios “tão
brutos que nem vocábulos têm”
Ambas as afirmações pressupõem que a diferença entre as línguas pode ser tamanha a ponto de ser possível encontrar uma língua sem palavras, ou sem gramática, apenas com meia dúzia de palavras que nomeariam tudo e que se combinariam sem qualquer princípio, ou uma língua
Em meados do século XX, naquela que, em sua época, talvez tenha sido a mais importante coletânea da Linguística descritiva
norte-americana − intitulada Readings in Linguistics I −, uma afirmação do editor, Martin Joos (1907-1978), se tornaria famosa e geraria a
suposição de que um linguista que sai para trabalho de campo poderia esperar qualquer coisa quanto ao que poderia encontrar: as línguas
podem “diferir entre si sem limites e de modos imprevisíveis” (Joos, 1957: 96).
A faculdade da linguagem, com que todos os seres humanos nascem, impõe limites aos sistemas linguísticos que podem vir a se
desenvolver.
São princípios geneticamente determinados que, em interação com a experiência linguística, permitirão que uma criança chegue a dominar sua língua.