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O ENSINO POR COMPETÊNCIAS, AS RELAÇÕES COM OS SABERES E O CONTRATO DIDÁTICO

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O ENSINO POR COMPETÊNCIAS, AS RELAÇÕES COM OS SABERES E O CONTRATO DIDÁTICO

Elio Carlos Ricardo – UFSC

RESUMO - Embora a noção de formação por competências ainda não esteja bem clara, discute-se suas

potencialidades em superar o ensino por objetivos, o qual parece tratar o conhecimento como um fim em si mesmo. Em uma formação por competências o professor é o “mediador” do diálogo entre o aluno e o saber na sala de aula. Mas, essa relação continuará sob a responsabilidade do aluno em etapas posteriores à educação formal no momento em que ele mobilizar os recursos disponíveis em um outro contexto, a fim de inferir soluções.

Isso implica também colocar em perspectiva a relação didática. Ou seja, ao mesmo tempo em que a relação didática tem um espaço-tempo definido, que é a escola, terá uma dimensão espaço-temporal longa, que transcende o ambiente escolar e se situa em uma relação não-didática, onde o aluno mantém suas relações com os saberes sem a intervenção do professor. Assim, o principal propósito do contrato didático é de ampliar esse diálogo e, ao negociá-lo, já que decisões unilaterais não garantem a adesão dos alunos ao projeto de ensino, o professor terá que considerar outras variáveis, tais como: as personalidades e as relações com os saberes dos alunos, enquanto indivíduo e enquanto grupo, os saberes resultantes da transposição didática e o entorno social.

INTRODUÇÃO

As discussões sobre o ensino por competências se tornaram mais evidentes no sistema educacional brasileiro a partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, de dezembro de 1996. Outros documentos elaborados pelo Ministério da Educação também propõem um ensino orientado pela formação de competências em substituição ao ensino norteado unicamente por objetivos a serem atingidos. Essa mudança busca acompanhar uma tendência presente nas reformas de ensino de outros países.

Entretanto, parece que a compreensão do que vem a ser um ensino por competências ainda está distante do contexto escolar. E, não se trata de substituir simplesmente antigos verbos que designavam objetivos gerais e específicos pela descrição de ações aparentemente modernas, como uso de computadores, relação do assunto com o cotidiano, interdisciplinaridade e outras. Esses conceitos também carecem de compreensão, sem a qual as velhas concepções de ensino ficam mascaradas sob um discurso marcado pelo uso de termos da moda, sem de fato serem discutidos e entendidos.

Qualquer reforma de ensino teria que procurar responder aos problemas da educação, tais como: abandono escolar, formação geral inadequada às expectativas da sociedade, desinteresse dos alunos, reprovação e assim por diante. Discutir e buscar estratégias didático-pedagógicas para empreender um ensino por competências encontra maior sentido se se apresentar como alternativa possível para atender ao fracasso escolar, conforme ressalta Philippe Perrenoud (1999 e 2000). Portanto, não só a compreensão do que seria um ensino por competências, como a discussão de outros conceitos decorrentes, parece essencial. Um ensino por competências demanda uma nova transposição didática, um novo contrato didático e uma ampliação do domínio da relação didática para além da sala de aula, pois os alunos farão uso de seus recursos cognitivos, entre eles o conhecimento, em outras situações. Além disso, quando se quer uma maior adesão dos alunos ao projeto escolar muitas decisões que eram tomadas unilateralmente em um ensino dirigido por objetivos, passam a exigir uma negociação, a

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fim de que haja comprometimento e divisão das responsabilidades na construção do conhecimento.

Isso está muito relacionado ao contrato presente na relação didática. Esse contrato didático comporta vários elementos, como a divisão de responsabilidades, as regras implícitas e explícitas, a assimetria entre professor e aluno em relação aos saberes e em seus papeis na relação didática. Tais elementos terão que ser gerenciados e as variáveis decorrentes das concepções do professor, do aluno e os saberes resultantes da transposição didática oferecem um alto grau de instabilidade e dinamismo à relação. Dessa maneira, não há um contrato didático padrão, ele depende de negociações. Assim, ao buscar compreender essas múltiplas variáveis em um ensino por competências, pode-se propor a pode-seguinte questão: qual a perspectiva da relação didática em um ensino por competências e quais elementos devem ser negociados em um contrato didático?

1. O ENSINO POR COMPETÊNCIAS

Em um ensino por competências os investimentos e os resultados serão obtidos em médio e longo prazo, em oposição ao ensino por objetivos, no qual os passos dados são mais facilmente controlados. Isso requer uma reorientação do papel do professor e dos alunos em relação aos objetos de ensino, pois se espera que os recursos adquiridos na educação formal possam ser recontextualizados em situações-problema com as quais o aluno poderá se defrontar e terá que inserir uma solução.

Uma competência não é em si um conhecimento, mas a gestão, a integração, a mobilização de vários recursos cognitivos, entre eles os conhecimentos, para responder a um problema real, com suficiente discernimento para que as escolhas feitas e as decisões tomadas sejam as mais adequadas possíveis para a situação em questão. Nesse sentido, a formação por competências também difere do ensino pautado por objetivos, já que para este a relação dos alunos com os saberes pode ser de curta duração, muitas vezes o suficiente para que se realize uma avaliação com sucesso. Em um ensino por competências, a relação com os saberes continuará mesmo após as situações de sala de aula, uma vez que o conhecimento será um dos recursos a ser mobilizado diante de futuras situações-problema, ocasião em que se busca “apreender uma nova realidade e reduzi-la, ao menos em certos aspectos e de maneira aproximativa, a problemas que se sabe resolver” (Perrenoud, 1999, p. 25).

Em um ensino por competências os “riscos” a serem enfrentados pelo professor e alunos são maiores. Os saberes a ensinar não terão o saber acadêmico como única fonte de referência. E, as práticas sociais de referência exercerão importante papel na transposição didática empreendida. Isso sugere um prejuízo na legitimação epistemológica, já que não há amparo total no saber acadêmico, compensado com um ganho na legitimação sócio-cultural desses saberes a ensinar. Contudo, tais “riscos” possibilitam uma continuidade do processo de ensino-aprendizagem iniciado na escola e apontam para um conjunto de saberes ensinados com mais significado para o aluno.

Além disso, as situações-problema com as quais o aluno poderá se deparar em sua vida não estarão formalizadas e sistematizadas como ocorre nos exercícios de sala. Haverá uma transposição de contexto, sendo, portanto, necessário que o aluno tenha desenvoltura em lidar com os conhecimentos e experiências anteriores para se desvencilhar do problema com os recursos que tem, ou buscar novas informações e traçar novas hipóteses. Por essa razão, Philippe Perrenoud ressalta que em uma formação por competências não se trata de abandonar o ensino organizado em favor do utilitarismo, mas de buscar um equilíbrio a partir de escolhas prévias, já que não se pode

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ensinar tudo. Nesse sentido, acrescenta o autor, tornam-se pouco significativos os problemas excessivamente artificiais e descontextualizados (Perrenoud, 1999).

Esse alerta do autor serve também para a relação dos objetos de ensino com o cotidiano do aluno. É precária a concepção de que articulações em final de capítulo entre os assuntos trabalhados e o cotidiano próximo do aluno sejam suficientes para construir competências. A relação entre professor e aluno é temporária e assimétrica. Ou seja, o professor será o mediador do “diálogo” entre o aluno e o saber em sala de aula. Mas, se o que se pretende é a construção de competências, esse “diálogo” continuará sob a responsabilidade do aluno em etapas posteriores à educação formal no momento em que ele mobilizar os recursos disponíveis e inferir soluções. Isso requer do docente alguns cuidados:

Ao responder a uma pergunta, o professor tem a tentação de antecipar e responder, de antemão, a todas as perguntas que ainda não lhe foram feitas, o que transforma a resposta em uma aula. Trabalhar na construção de competências significa aceitar aportar o mínimo requerido, sabendo-se que o restante virá depois, oportunamente, de maneira mais desordenada, é verdade, porém em função de uma real necessidade. (Perrenoud, 1999, p.55)

As relações com os saberes não terminam na sala de aula e o tempo de aprendizagem se prolonga para ambientes extraclasse. Portanto, as decisões e escolhas das situações-problema ou objetos de ensino não poderão ser de responsabilidade exclusiva do professor. Será necessária uma negociação, tanto quanto a assimetria da relação didática permitir, não somente dos assuntos a trabalhar, mas também dos obstáculos de aprendizagem, das responsabilidades e da divisão dos poderes, pois estará em jogo também a adesão dos alunos ao projeto de ensino, sem a qual inviabiliza a relação didática, conforme será tratado mais adiante.

Essa negociação implica ainda um planejamento flexível, pois em uma formação por competências, estruturada principalmente a partir de trabalho com projetos e situações-problema, não se concebe iniciar o ano letivo sabendo exatamente o que será tratado durante todo o ano. Um problema pode demandar mais ou menos tempo do que inicialmente havia sido previsto. Os projetos têm suas exigências peculiares e uma etapa pode sugerir a revisão dos objetivos iniciais. É uma questão de tomada de decisões e escolhas, dedicando-se a situações que sejam verdadeiramente significativas. “O ideal seria dedicar mais tempo a um pequeno número de situações complexas do que abordar um grande número de assuntos que devem ser percorridos rapidamente, para virar a última página do manual, no último dia do ano letivo” (Perrenoud, 1999, p.64).

Entretanto, cabe lembrar que o equilíbrio entre situações-problema pautadas em projetos e uma progressão em currículos convencionais deve ser buscada. Isso dependerá da resposta dada à pergunta: que aluno queremos formar? Para qual sociedade? O próprio Perrenoud descreve esse debate na forma de uma questão: cabeças bem cheias ou cabeças bem feitas? As extensas listas de conteúdos, que são supostos pré-requisitos para os assuntos seguintes ou para os anos subseqüentes, sem qualquer relação com as práticas sociais, é que teriam que ser revistas.

No ensino norteado por objetivos os conhecimentos ocupam posição central, o que parece favorecer uma participação bastante individual do aluno, já que lhe bastará ouvir, anotar, memorizar e ser avaliado. Em contrapartida, em uma formação por competências o comprometimento do aluno com o projeto de ensino lhe exige mais, assim como exigirá do professor, pois todos terão que participar de um trabalho coletivo de elaboração do projeto e construção de uma solução mais adequada para o problema

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em questão, adquirindo-se não somente novos saberes como também novas competências.

Em um ensino de ciências, principalmente para o ensino médio, tanto os alunos como os professores já carregam consigo os hábitos e costumes de anos de escola e os alunos já não têm mais aquela curiosidade incansável. Desse modo, o envolvimento com a atividade de projeto é essencial. Para isso, além da escolha da situação-problema e da elaboração dos caminhos que se pretende percorrer, tais atividades terão que possuir determinada importância para o aluno e estar inseridas em uma duração que não os leve nem a resolver o problema rapidamente, nem a abandoná-lo por não vislumbrar no horizonte um fim, sem chegar a produto social algum (Perrenoud, 2000). Portanto, além da dinâmica da classe, o professor terá que lidar com a grade de horários de que dispõe, já que as atividades desenvolvidas serão retomadas em aulas posteriores, deixando-se as reflexões e o progresso conseguido a mercê de possível perda de interesse.

O professor terá, portanto, que reforçar os pontos chaves da atividade desenvolvida para que os esforços anteriores não sejam perdidos e desde o início deixar claro para os alunos que em uma formação por competências os prazos são maiores, os resultados não aparecem imediatamente. Terá que ficar claro também que “o utilitarismo não pode justificar a maior parte dos saberes ensinados e exigidos” (Perrenoud, 2000, p.38). Embora se pretenda atender a um projeto de ensino e, consequentemente, a um projeto social, caberá ao professor esclarecer que a relação com os saberes deverá prosseguir durante e após a educação formal e procurar compartilhar e suscitar uma paixão desinteressada pelo saber, pela teoria (Perrenoud, 1999 e 2000), uma vez que não se pretende formar um especialista e o processo é mais importante que o produto, ao menos enquanto escola. Assim, torna-se necessário rever a forma de conceber e negociar o contrato didático em uma formação por competências, conforme será discutido a seguir.

2. AS RELAÇÕES COM OS SABERES E O CONTRATO DIDÁTICO

Em sentido estrito, uma relação didática é constituída pela interação entre professor, aluno e determinado objeto de ensino resultado de uma transposição didática. Contudo, essa visão pode estar deixando de lado outros fatores importantes, já que o professor e os alunos apresentam relações com os saberes bastante específicas, o que acaba sendo o motor dessa relação didática, pois a torna dinâmica e única. Dessa forma, tanto o contrato didático que estará inserido nessa relação e que descreverá o conjunto de regras que a compõem, como a relação didática, ultrapassam essa perspectiva ternária.

2.1. AS RELAÇÕES COM OS SABERES

A relação didática, entendida como a interação funcional entre professor, aluno e saber, está circunscrita em um espaço e um tempo bem definidos, ou seja, o da escola. Tanto o contrato didático, como a relação didática, são perecíveis e de curta duração. Entretanto, isso pode parecer paradoxal se entendermos que um dos objetivos da relação didática é inserir o aluno em um processo de construção de conhecimento que é bem mais longo e transcende o contexto espaço-temporal escolar, pois as relações com os saberes duram bem mais que a relação didática estabelecida (Jonnaert, 1996).

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Essas múltiplas relações com os saberes tornam o contrato didático dinâmico e único, uma vez que é ilusório pensar que em uma relação didática está presente apenas um único saber de referência. Ao contrário, esse saber é contrariado, questionado e julgado por outros saberes ou concepções, que se modificam ao longo da relação didática (Johsua, 1996). Tais transformações resultam dessas relações pessoais com os saberes e variam de classe para classe, de aluno para aluno e de professor para professor, mesmo que o saber a ensinar seja oriundo de uma mesma transposição didática e de um mesmo programa de ensino. Isso aponta para a compreensão de que “ao término de uma relação didática, nenhuma das partes mantém ainda o saber das relações idêntico àquele que desenvolveu até então” (Jonnaert, 1996, p.118)1. Ignorar essa natureza complexa das relações com os saberes é supor que existe um aluno-padrão, um professor-aluno-padrão, e um saber-padrão presente nos currículos, e até uma estratégia metodológica-padrão, que excluem os desvios entre o saber a ensinar e o que se supõe que o aluno aprende, correndo-se o risco de reforçar os obstáculos epistemológicos à aprendizagem.

Portanto, a visão reduzida da relação didática como sendo uma relação ternária entre professor, aluno e saber, embora possibilite vislumbrar sua área de interação, necessita ser compreendida em um sentido mais amplo, já que:

Cada um desses pólos simboliza uma família de variáveis: as variáveis estabelecidas pelo próprio professor, as definidas pela personalidade de cada um dos alunos em particular, mas também pelos alunos constituídos em um grupo-classe, aquelas enfim estabelecidas pelo saber ou por outro objeto de ensino e pela sua transposição didática. (Jonnaert, 1996, p.121)

O autor acrescenta ainda que qualquer análise mais profunda do funcionamento da relação didática que desconsiderar uma dessas famílias de variáveis descaracteriza essa relação. O contrato didático se define nesse ambiente de instabilidade e das múltiplas relações com os saberes, as quais, sobretudo em seu caráter implícito, darão identidade e serão o motor da relação didática. Além disso, existe uma assimetria entre professor e alunos nessa relação. As relações com os saberes variam não somente entre professor e alunos, mas entre os próprios alunos. E, não se trata apenas de uma assimetria quantitativa, mas também qualitativa, pois as responsabilidades e os papeis desempenhados por cada um na relação didática são distintos (Johsua, 1996). O professor fará suas escolhas didático-pedagógicas a partir de uma expectativa pessoal da classe e ele sabe o que irá trabalhar com os alunos, tendo, portanto, um domínio do futuro. “O aluno pode aprender; o professor pode saber o que o aluno pode aprender” (Chevallard, 1991, p.82). Essa assimetria assinala a definição das responsabilidades na gestão das relações com os saberes e se pode entender que:

A característica fundamental de uma relação didática reside possivelmente nessa existência de assimetria entre as relações que cada um mantém entre os saberes. Bem mais, o porquê dessa assimetria existir que a relação didática encontra razão de ser em um momento dado: a função da relação didática é de fazer evoluir esta relação dos saberes. (Jonnaert, 1996, p.123)

Embora alguns elementos do contrato didático sejam mais estáveis, ele comporta um jogo de regras que podem mudar, assim como as relações com os saberes, o que faz com que os papeis de cada um também se alterem ao longo da relação didática. As escolhas pedagógicas inicialmente feitas pelo professor, por exemplo, podem ser revistas diante de certas dificuldades de aprendizagem pelos alunos. As regras do

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contrato didático precisam admitir certa flexibilidade, já que ele possui uma dimensão paradoxal: diante de uma situação-problema o professor não pode explicitar tudo ao aluno, pois tira deste a oportunidade de aprender. Por outro lado, se o aluno não consegue livrar-se da situação com os instrumentos que tem, o professor terá que aceitar a contra-devolução do problema por parte do aluno (Jonnaert, 1996; Silva, 1999; Slongo, 2001).

Na gestão desse paradoxo, o professor poderá rever as regras do jogo e desencadear uma ruptura didática do contrato (Jonnaert, 1996), ou uma perturbação do contrato (Slongo, 2001), a fim de recolocar o aluno em seu ritmo de aprendizagem. Para Philippe Jonnaert esse quadro de instabilidade e multiplicidade do contrato didático aponta para uma dimensão temporal da relação didática. Inicialmente há uma dimensão temporal curta, na qual o aluno domina pouco a relação didática e suas concepções sofrem o confronto com os saberes a ensinar. As relações com os saberes são ainda muito precárias. Em uma outra dimensão temporal chamada longa, as situações didáticas passam a estar mais sob o controle do aluno e estão relacionadas à aquisição do conhecimento, ultrapassando o espaço-tempo escolar. Isso sugere que a compreensão da relação didática deve ser estendida para um sentido mais amplo que o inicialmente colocado, ou seja, o da relação entre professor, aluno e saber em um contexto escolar.

Brousseau (1986), ao diferenciar as situações didáticas em três níveis, já apontava para essa perspectiva ampliada da relação didática: as situações didáticas, a-didáticas e não-a-didáticas. A situação didática e a situação a-didática se encontram em uma escala temporal curta e compreendem as atividades realizadas sob o controle do professor. A primeira ocorre quando o aluno tem uma relação em estado inicial com os saberes e as intenções de ensinar do professor são bastante claras. A segunda existe quando o aluno insere suas aquisições anteriores ainda no seio de uma mesma disciplina e, embora o professor esteja presente, já começa a haver uma movimentação própria do aluno em relação aos saberes. E, a situação não-didática se caracteriza quando “a relação do aluno com o saber é independente da relação do mestre com o saber” (Jonnaert, 1996, p.130). Há uma inserção de suas aquisições em outras áreas e diante de problemas novos para o aluno. Paradoxalmente, o projeto da relação didática contém sua extinção; todavia “o objetivo das situações didáticas e a-didáticas é de se destruir para permitir ao aluno utilizar suas aquisições em novos contextos: em situações não-didáticas” (Idem, p.131).

2.2. O CONTRATO DIDÁTICO

A partir das idéias de Brousseau (1986), entende-se por contrato didático o conjunto de regras, em sua maioria implícitas, que se estabelece entre professor e aluno e define suas responsabilidades recíprocas em suas relações com os saberes a ensinar. A noção de contrato didático de Brousseau se constitui em excelente instrumento de análise dessa relação. E, após destacar as múltiplas relações com os saberes e ampliar a perspectiva da relação didática, pode-se colocar em cena a seguinte questão: qual seria o propósito de negociar um contrato didático inserido em um projeto de ensino?

Além das relações com os saberes, dois outros elementos precisam ser considerados na negociação de um contrato didático: a divisão das responsabilidades e o que fica implícito desse contrato. Essa negociação não terá como principal função colocar todo o implícito a mostra, pois alguns elementos da relação didática são de difícil acesso, como as relações privadas com os saberes. A negociação busca equilibrar o que permanece implícito e o que poderá ser explicitado, implicando a inexistência de

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um contrato didático igual ao outro. Desse modo, o propósito fundamental da negociação é de ampliar o espaço de diálogo entre as famílias de variáveis relacionadas ao professor, ao aluno e ao saber e reduzir as áreas de risco que surgem no momento em que uma dessas variáveis é desconsiderada (Jonnaert, 1996). Na ausência desse campo de diálogo ocorre um isolamento de uma das partes em um monólogo e os riscos de um projeto de ensino e aprendizagem fracassar aumentam.

Entretanto, aqueles elementos implícitos que se referem às relações privadas com os saberes são importantes no momento em que o professor fizer suas escolhas didático-pedagógicas, a fim de que possam garantir uma boa gestão da relação didática com atividades pertinentes. Algumas dessas representações podem ser identificadas porque pertencem ao grupo-classe e muitas regras que estão implícitas se tornam explícitas quando aquelas entram em conflito com estas. Isso pode caracterizar uma ruptura didática do contrato. Esse tipo de ruptura surge quando há necessidade de mudanças nas relações com os saberes e está relacionada ao paradoxo presente no contrato didático mencionado anteriormente. No momento em que o aluno não encontra no professor a garantia de que este conhece a chave para resolver a situação-problema em que se acha envolvido, há uma desconfiança do bom andamento da aprendizagem e uma ruptura do contrato se manifesta. Essa situação é caracterizada por Brousseau (1986) como a devolução versus a contra-devolução didática.

A devolução didática é a transferência da responsabilidade do professor para o aluno na construção do conhecimento ainda na relação didática dentro do contexto escolar. Ela precisa ser aceita pelo aluno como uma das regras do contrato didático negociado e não pode, portanto, partir de uma decisão unilateral do professor. Assim, essas rupturas didáticas passam a ser esperadas pelo aluno, colocando-o em uma situação tal que ele esteja susceptível a inovações. “Em um contexto de devolução, o professor deverá dizer ao aluno: eu me recuso em fazer meu ofício de professor para que você faça seu ofício de aluno” (Jonnaert, 1996, p.139).

No momento em que o aluno não consegue mais responder às expectativas do professor diante da situação-problema proposta, dá-se o limite da devolução e o aluno exige que o professor aceite a contra-devolução, ou seja, que ele mude de estratégia. Nesse caso, cabe ao aluno dois caminhos, segundo Philippe Jonnaert, ou ele consegue tratar da devolução e se desvencilhar da situação, ou ele reclama a contra-devolução. Isso deverá estar claro na negociação do contrato, pois se o professor pode devolver o problema, o aluno pode contra-devolver. Dessa negociação depende a adesão das partes ao projeto social de ensino, já que a divisão das responsabilidades em relação à construção do conhecimento e a colocação da relação didática na perspectiva de um tempo longo, que transcenda o contexto escolar, não podem partir unicamente do professor.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um ensino por competências o controle do processo de aprendizagem é mais difícil, pois as estratégias preferencialmente utilizadas são pautadas em projetos e em situações-problema. Isso tira do professor aquela certeza que teria no caso de um ensino por objetivos, no qual já se sabe a priori o que será trabalhado do começo ao fim do ano letivo. Entretanto, nessa perspectiva de ensino o professor parece refugiar-se em atividades de mera transmissão de um saber a ensinar presente nos livros didáticos, deixando a responsabilidade da construção do conhecimento para o aluno. A tão conhecida questão feita pelo aluno “Onde vou usar isso?” fica sem resposta. Os assuntos

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escolhidos são pré-requisitos dos anos subseqüentes, como se tivessem um fim em si mesmos.

O que se pretende em um ensino por competências é responder a essa pergunta do aluno. É garantir a ele o acesso ao saber de modo que sua relação com os saberes continue depois da escola em um permanente processo de construção, confrontação, tomada de decisões e escolhas. Para isso, o projeto de ensino tem que encontrar sua contrapartida em um projeto de aprendizagem, ou seja, a relação didática é colocada em perspectiva. Ao mesmo tempo em que a relação didática e o contrato didático são efêmeros, seus propósitos são o de fazer com que os recursos cognitivos apreendidos na escola possam ser inseridos em outros contextos, diante de situações novas, para encontrar soluções adequadas aos problemas com os quais irão enfrentar. A adesão do aluno ao projeto escolar depende de sua confiança em que a escola pode prepará-lo para as dificuldades que espera encontrar.

A compreensão da dimensão temporal longa da relação didática, cuja relação com os saberes estará mais sob o controle do aluno, e a negociação de um contrato didático que considere as rupturas didáticas (devolução versus contra-devolução) e que procure ampliar o diálogo entre as variáveis que comporta, é fundamental em um ensino por competências. Negociar um contrato didático não é explicitar todo o implícito, ao contrário, é o aluno aceitar a devolução e o professor aceitar a contra-devolução; é equilibrar o implícito e o explícito.

Ao considerar essas múltiplas variáveis presentes na relação didática, procura-se principalmente diminuir os riscos de o projeto de ensino se tornar um monólogo de quem pretende ensinar alguma coisa a alguém, e que unilateralmente decide como se dará esse processo. O refúgio em um contrato didático em que o aluno usa a lógica da resposta para se sair bem nas avaliações e todos se livrarem da relação didática sem percalços não parece ser a melhor saída. Com as discussões feitas nesse artigo sobre a noção de formação por competências de Philippe Perrenoud e de contrato didático, especialmente de G. Brousseau e de Philippe Jonnaert, espera-se contribuir para ampliar a compreensão e o debate sobre esses conceitos.

Nota:

1

as traduções das citações presentes no texto são de responsabilidade do autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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