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Os Padres Da Igreja e a Misericordia (Misericordiosos Como o Pai) - Conselho Pontificio

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NDICE

Capa Rosto Apresentação

I - A misericórdia, o estilo de vida cristão II - Santo Agostinho: pregador da misericórdia III - Antologia

Santo Inácio de Antioquia São Clemente Romano São Policarpo de Esmirna São Justino

Santo Hilário de Poitiers São Basílio

São Gregório Nazianzeno São Cromácio

Santo Ambrósio, bispo de Milão São João Crisóstomo

São Cirilo São Máximo Isaac de Nínive

Um comentador anônimo

Antiga «Homilia sobre o Sábado Santo» Ficha Catalográfica

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A

PRESENTAÇÃO

apelo à misericórdia é o verdadeiro fio condutor que liga a história dos cristãos. É verdade que houve momentos em que alguns acontecimentos históricos ofuscaram e até eclipsaram a visibilidade da misericórdia. Guerras e conquistas territoriais, escândalos e violências várias relegaram para um canto o amor terno de Deus, sem todavia o poderem extinguir da vida da Igreja. Seria fácil mostrar como precisamente nestes períodos escuros da nossa história surgiram pessoas de incrível santidade que fizeram emergir a bondade de Deus através do testemunho da sua vida.

Conservamos a memória de santos e santas que ficaram famosos porque as instituições por eles fundadas permanecem como sinal concreto da sua caridade. Não podemos esquecer, todavia, as centenas de milhares de homens e de mulheres simples, cujo «nome está escrito no Céu» (Lc 10,20), que com a sua fidelidade quotidiana ao Evangelho mantiveram vivo o ensinamento de Cristo dando voz às várias obras de misericórdia.

Um capítulo importante desta história foi-nos deixado pelos Padres da Igreja. Quisemos criar uma breve antologia de textos sobre a misericórdia para mostrar como o tema marcou as suas vidas e os seus ensinamentos. A perspectiva ou evocação da parábola do bom samaritano encontra-se em muitos Padres como um ponto de referência constante. Uma presença importante no Ocidente é Santo Agostinho, verdadeiro cantor da misericórdia. Olhando para a cena de Jesus na cruz com o ladrão a seu lado, a quem prometeu: «Hoje estarás comigo no paraíso», Santo Agostinho comentou: «O Senhor, enquanto ele dizia: Lembra-te de mim; mas quando? Quando estiveres no teu reino, logo lhe respondeu: Prometo-te que hoje estarás comigo no paraíso. A misericórdia concedeu o que a miséria diferira» (Sermão 67,4,7).

Este instrumento pastoral divide-se em três capítulos: no primeiro, oferece-se uma introdução geral sobre o tema que evidencia como a misericórdia colhe transversalmente o ensinamento destes grandes mestres dos primeiros séculos da nossa história. No segundo capítulo, pela importância que o tema tem, encontra-se uma breve introdução a

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Santo Agostinho com alguns dos textos mais significativos da sua obra. No terceiro capítulo, por fim, recolhem-se alguns textos dos Padres da Igreja do Oriente e do Ocidente para ajudar a refletir e a rezar ao longo deste Ano Jubilar. Poderão ser facilmente utilizados na catequese, na lectio e na oração. Deles nasce uma visão que toca toda a vida do crente e que permite recuperar um verdadeiro tesouro escondido. O Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização está grato a monsenhor Enrico dal Covolo e ao padre Vittorino Grossi pelo seu contributo na elaboração deste texto. Que a sua competência e o seu esforço possam ser recompensados pelo conhecimento a que um grande número de cristãos poderá aceder em textos geralmente desconhecidos, para apoio e solidez da sua fé.

RINO FISICHELLA

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I

A MISERICÓRDIA, O ESTILO DE VIDA

CRISTÃO

O Jubileu extraordinário que terá início em 8 de dezembro de 2015, no cinquentenário do Concílio Vaticano II (1962-1965), é um grande convite para celebrar, viver e cantar a misericórdia do Pai revelada pelo Senhor Jesus e derramada em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm 5,5). De fato, o lema do Jubileu, indicado pelo Papa Francisco na Bula Misericordiae vultus, é «Misericordiosos como o Pai», isto é, cantores da

misericórdia divina com o desejo, as obras, o pensamento e toda a nossa vida, como o

foram os profetas e os santos, e todas as gerações cristãs desde as origens da Igreja. A esses cantores da misericórdia pertencem de forma especial os Padres da Igreja.

O convite a ser misericordiosos como o Pai (Lc 6,36) foi muitas vezes traduzido pelos Padres da Igreja como um convite à verdadeira perfeição, evangélica, que é vocação comum de todos os cristãos à santidade (cf. Lumen gentium, n. 5, 40). Para os Padres, na sua experiência e no seu pensamento, o convite à misericórdia e à perfeição estão intimamente unidos, porque os pastores e os doutores dos primeiros séculos do cristianismo se reconheceram sempre, e a toda a Igreja peregrina, como necessitados da bondade misericordiosa de um Deus que perdoa. Portanto, ser cristãos, ou seja, ser semelhantes a Cristo, o Homem Perfeito, é possível, e ainda mais se acolhermos a misericórdia divina e se formos pessoas de misericórdia.

Atualmente, a Igreja sente a necessidade de transmitir o Evangelho da misericórdia, e para tal os ensinamentos dos Padres e da Tradição sempre viva da Igreja são instrumentos essenciais para experimentar, contemplar e transmitir em toda a sua riqueza o mistério da misericórdia, fonte da verdadeira alegria.

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Os Padres e o confronto com o mundo antigo não cristão

O mundo cristão antigo, como se sabe, a partir da cultura bíblica e de outras do seu tempo, iniciou logo desde o princípio um confronto com a cultura do mundo pagão. A filosofia antiga dedicou-se amplamente ao tema da misericórdia, mas o juízo em relação a ela foi sempre muito controverso.

No pensamento grego mais antigo, que deixou vastos traços nos poemas de Homero, a misericórdia é considerada uma das virtudes mais nobres. Como observava Giacomo Leopardi (1798-1837) no seu Zibaldone (3095-3169), a Ilíada, por comparação com os poemas épicos seguintes, continua a interessar-nos mesmo passados «vinte e sete séculos», pelo fato «estranho e quase absurdo de Homero, em tempos ferozes, ter evocado de tal forma a compaixão no seu poema», e esta recair «quase unicamente sobre os inimigos dos gregos seus compatriotas, em favor dos quais escrevia, e que não estimavam demasiado a generosidade para com o inimigo, apreciando até a qualidade oposta» (3152s.). O poeta da Ilíada ensina o novo sentimento da compaixão ao mesmo tempo que delineia heróis que não a conhecem, e compõe por isso não somente «o mais sentimental, e até o único sentimental», entre todos os poemas épicos, mas «até o poema mais cristão» (3157, n. 2).

Com Platão (428-348 a.C.), mas ainda mais com o estoicismo, que considerava a misericórdia como uma doença da alma – aegritudo animi –, a filosofia tinha considerado a compaixão e a misericórdia semelhantes a uma fraqueza humana (cf.

Apologia 34c ss.). Para o filósofo, a compaixão e a misericórdia opõem-se a um

comportamento guiado pela razão e pela procura da justiça, que, para os antigos, era fundamentalmente uma justiça retributiva: «A cada um o que lhe pertence» (suum

cuique).

O tema da relação entre a justiça e a misericórdia atravessa todo o pensamento seguinte, até mesmo cristão, com êxitos diversos que, na época, levaram à perda do sentido autêntico da misericórdia, sobretudo no pensamento teológico, como foi notado por muitos, até mesmo em tempos recentes. O tema da relação entre a justiça e a misericórdia foi retomado vigorosamente pelo Papa Francisco na Bula de promulgação do Ano Santo (Misericordiae vultus, n. 20) e merece sem dúvida ser ainda aprofundado no decurso do Ano Jubilar, também à luz dos ensinamentos dos Padres. Isaac de Nínive

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(século VII), no final da era patrística em sentido restrito, escrevia como em síntese: «Se o misericordioso não superar a justiça, não é misericordioso» (Discursos ascéticos 4).

Regressando à tradição clássica, para Aristóteles (384-322 a.C.), a compaixão não era considerada como uma virtude, apesar de ele ter dela uma concepção positiva: na sua opinião, a experiência de um sofrimento imerecido move o ânimo de quem o vê, porque um mal semelhante o poderá atingir também a ele, e isso o induz a agir, sendo solidário com quem sofre injustamente (cf. Retórica 1385 b). Para os estoicos, a emoção produzida no espírito humano pela compaixão é absolutamente inconciliável com os princípios de domínio racional dos sentimentos, com a autarquia, a ataraxia, a imperturbabilidade às quais eram chamados os seguidores da Stoá. Isto não desvaloriza que a filosofia estoica tenha apreciado largamente o exercício da clemência (clementia), da filantropia (humanitas) e da benévola disponibilidade para ajudar os outros homens (benignitas) (cf. SÊNECA, Sobre a clemência 2, 6).

Cícero (106-43 a.C.), que será algumas vezes lembrado por Santo Agostinho e por muitos outros Padres do Ocidente latino, embora empregasse a definição estoica de misericórdia-compaixão como doença da alma, nos seus escritos exprime também uma elevada consideração a respeito dos homens misericordiosos. Na oração Pro Murena, distanciando-se dos excessos do estoicismo do adversário Catão e insistindo na tradicional desconfiança romana nos confrontos do pensamento grego, critica Zenão (336-263 a.C.) e os estoicos ortodoxos, que defendiam «que o sábio nunca é movido pela compaixão, nunca perdoa um pecado a ninguém, que ninguém é compassivo, exceto o estulto e o superficial» (XXIX, 61).

De qualquer forma, estamos geralmente afastados da perturbadora mensagem evangélica de Deus que se fez homem por misericórdia, como sublinha Orígenes († 254 d.C.) de modo icástico: «O homem foi feito à semelhança da imagem dele, e por isso o nosso Salvador, que é a imagem de Deus, movido pela misericórdia para com o homem, que fora feito semelhante a Ele, vendo que, deposta a sua imagem, se revestira com a imagem do maligno […], assumindo a imagem do homem, veio para junto dele» (Homilias sobre o Gênesis 1,13,54s.).

O mesmo doutor alexandrino escreve, de modo ainda mais espantoso: «Nem sequer o Pai é impassível. Se lhe rezamos, sente piedade e misericórdia, sofre de amor e identifica-se nos sentimentos que não poderia ter, dada a grandeza da sua natureza, e por

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nossa causa suporta os sofrimentos dos homens» (Homilias sobre Ezequiel 6,6,119). Orígenes também enunciou o dogma da impassibilidade divina, mas o caso da misericórdia parece-lhe radicalmente diferente.

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A misericórdia na Sagrada Escritura e nos Padres

Na compreensão do grande mistério do amor ilimitado de Deus pelo homem, os Padres da Igreja começaram pela leitura da Sagrada Escritura, a norma da vida cristã, meditada, proclamada, celebrada e vivida na Igreja. A Escritura ocupava e ocupa um lugar absolutamente fundamental na vida da comunidade e com ela deve ser conciliado qualquer ato da sua vida, desde a liturgia à doutrina e à disciplina, em sentido coletivo e individual. Pode certamente afirmar-se que toda a vida da comunidade cristã é guiada pela interpretação da Sagrada Escritura: o seu estudo constitui na Igreja dos primeiros séculos o autêntico fundamento da cultura cristã.

No coração da mensagem transmitida pela Escritura, o Deus bíblico é definido com frequência com o binômio «paciente e misericordioso» (Sl 144), e na história da salvação é frequente que a sua bondade prevaleça sobre a destruição e sobre a punição anunciadas em razão da infidelidade dos homens. Devido a tais ameaças, incluídas nas páginas do Antigo Testamento, surgiram no âmbito etnocristão e no paulinismo extremo antijudaico algumas heresias, que contrapunham de modo muito claro o Deus do Antigo Testamento ao Pai bom revelado por Jesus. Como exemplo, lembramos a heresia dualista de Marcião de Sinope (século ii d.C.), que se tentou impor, devido aos grandes recursos à sua disposição e a ricas doações, à atenção da Igreja romana, da qual queria ultrapassar os limites. Tendo sido descoberto, Marcião foi imediatamente condenado e em 144 foi expulso da comunidade de Roma, que até lhe restituiu um donativo por ele oferecido no valor de 200.000 sestércios. Essa soma considerável teria sido útil à Igreja romana, que cedo se tinha distinguido pela sua caridade prática em favor dos pobres (egeni), como refere São Justino, que fala de coletas dominicais para ajudar os pobres. A restituição desses 200.000 sestércios terá sido especialmente difícil, mas lembra que a caridade e a

verdade são indivisíveis para a comunidade cristã, e juntas são a manifestação da

misericórdia divina.

Na tradição dos doutores católicos, como o grande mestre africano Tertuliano (ca. 155-230 d.C.) e Santo Irineu (ca. 135-200 d.C.) – um dos primeiros e maiores autores cristãos, formado na Ásia Menor e que se tornou bispo de Lião na Gália (Contra as

heresias 4,26,1) –, são, sim, sublinhadas firmemente, através de refinados instrumentos

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misericórdia divina para a humanidade. Tertuliano afirma que o Deus que se revelou a Moisés, o «Deus misericordioso e piedoso, lento para a ira e rico de amor e de fidelidade», é o mesmo «Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação» (2Cor 1,3) do Novo Testamento (Contra Marcião 5,11).

Os Padres da Igreja souberam sempre colher, até nas páginas mais difíceis e duras da Escritura judaica, com a perspicácia e a inteligência espiritual que os distingue, a revelação de Cristo que se esconde no Antigo Testamento como o tesouro no campo do Evangelho de São Mateus (13,44).

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A misericórdia como “miséria” e “coração”

Misericórdia é uma palavra latina muito antiga e, durante a sua longa história naqueles que dela fizeram experiência, adquiriu significados delicados com numerosos matizes de linguagem nos dois termos de que se compõe: “miséria” e “coração”. Nas Confissões (3,2,2), Santo Agostinho precisa que é habitual definir miséria como sofrimento próprio, enquanto o sofrer pelos outros se define como misericórdia.

Em grego, a língua do Novo Testamento, misericórdia diz-se eleos. Esta é uma palavra para nós familiar graças à invocação Kyrie eleison, pela qual suplicamos a misericórdia do Senhor. Esta, por seu lado, traduz a palavra hebraica hésèd, uma das palavras bíblicas mais belas, que sublinha a fidelidade da misericórdia de Deus por cada homem. Por tal motivo, traduz-se com frequência muito simplesmente por «amor» ou «a fidelidade do amor de Deus» pela humanidade. O grego eleos traduz também outro termo hebraico,

rahamîm, que indica uma hésèd (fidelidade no amor) cheia de emoções, significando as

entranhas do seio materno. A fidelidade de Deus à sua misericórdia era celebrada expressamente nas assembleias de oração dos israelitas ao utilizarem os Salmos 117 e 135.

A emoção misericordiosa é registrada pelos evangelistas em relação a Jesus quando se diz que «se comoveu e começou a chorar», como na Última Ceia, onde se nota que o discípulo amado apoiava a sua cabeça sobre o peito de Jesus, mas na realidade o texto afirma que apoiava a cabeça sobre as entranhas maternas do Senhor, ou sobre o seio no qual somos continuamente gerados, expresso no afeto da mãe pelo seu filho (IS 49,15).

Na parábola do Pai misericordioso, nota-se ainda que, quando o pai viu o filho que regressava a casa, comoveram-se-lhe as entranhas materno-paternais.

Como referimos anteriormente, em latim, a palavra «misericórdia» é composta por dois termos. A «miséria» exprime certa insuficiência extrema que só suplica por piedade e compaixão, uma comiseração implorada por quem se encontra em estado de grave angústia. Portanto, «miséria» refere uma indigência que ameaça a subsistência de quem se encontra em tal estado, porque é obrigado a viver nas margens da vida humana, e com dificuldade pode respirar a vida. O outro termo, ligado a este de miséria, é coração. A miséria, próxima do coração, com a raiz latina urere, que significa queimar, acaba por ser destruída como se fosse investida por um incêndio. O coração, por isso, quando sente a

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miséria presente num homem, não a julga, mas queima-a e destrói-a. E isto é a misericórdia. Quando um coração se aproxima de ti, sentes-lhe o calor, porque a tua miséria queima, e isto é o mesmo que dizer que a negatividade em que estás envolvido te faz sentir o calor de quem te abraça, de quem te quer bem porque não te deixa sentir o peso da tua miséria. Esta, de fato, já não existe: foi queimada. É o milagre produzido pelo coração misericordioso. O “coração” é o centro da zona mais íntima e mais verdadeira de cada homem. Por esse motivo, o “coração” é considerado a sede dos afetos, ou seja, dos sentimentos de alegria, de sofrimento, de amor, de serenidade ou de agitação, daquele lugar impenetrável em que se avaliam as escolhas de consciência de cada um de nós.

A união dos dois termos transforma-se, então, em «misericórdia», ou seja, no olhar amoroso cheio de compaixão, tanto de Deus como da criatura, que gratuitamente se ajoelha sobre a miséria, a socorre e a anula com o seu coração. Por esse motivo, a misericórdia nasce, vive, alimenta-se e manifesta-se no perdão e na ternura que te abraça. Viver com verdade cada dia não é senão uma peregrinação à procura do lugar do coração, essa fornalha capaz de queimar toda a miséria que produz misericórdia. A palavra «misericórdia» indica, pois, um coração humano pronto a intervir quando percebe que uma indigência pode provocar a morte de uma vida; e também indica que uma miséria, que se apoderou de alguém, está prestes a acabar, porque será queimada por um coração que a percebeu. É certo que a misericórdia do homem é limitada como o seu coração, mas a de Deus é imensa como o seu ser subsistente. A misericórdia cristã pode ser encontrada porque tem um rosto e um nome: chama-se Jesus Cristo. Nele, a misericórdia é o rosto do amor do Pai por cada criatura humana.

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A educação dos cristãos à misericórdia

Os cristãos, desde que nascem, nas exortações dos seus Pastores, são continuamente levados a ser misericordiosos, produzindo na sua vida quotidiana obras de misericórdia. No tempo dos Padres da Igreja, durante o período do catecumenato, com a oração do Pai-Nosso, eram educados para ser capazes de misericórdia. Tal educação apoiava-se na consciência do homem que nasce e vive a existência envolvido por zonas sombrias. Estas invadem todo ser humano que se encontre numa situação de dificuldade em fazer o bem, ou de pecado, como habitualmente nos exprimimos. Ao crescermos, essas zonas sombrias, nas quais se nasce, tornam-se manifestas e agressivas: o coração deixa-se seduzir, as melhores aspirações chegam-nos corrompidas, a consciência não consegue esconder à criatura humana o seu tormento, agitada como está por esse contínuo e simultâneo embaraço de valores e desvalores, de sentido do bem e do mal. Um mal-estar que, por outras palavras, pertence à vida: à vida individual como à vida social e até à vida da Igreja. Nela se congregam os homens de todas as línguas e de todos os povos, chamados pela esperança doada pela revelação da misericórdia de Deus. Graças a ela, todos podem enfrentar as dificuldades que minam uma convivência amorosa com os seus semelhantes, e também viver a esperança de um dia poderem libertar-se da espiral da tentação do mal nas suas multiformes variedades: desde a perda de significado da existência e da confiança dos outros até não suportar viver na sua presença.

A educação cristã à misericórdia, em termos de convivência, traduz-se em relações de ajuda recíproca para se libertar do mal em que quotidianamente se incorre, em não demorar mais do que necessário julgando negativamente os outros, para se relacionar com o seu semelhante vivendo de misericórdia. Se o próximo pecar em relação a nós e nós persistirmos em o julgar negativamente, estamos nos esquecendo do dom da misericórdia e, como se voltássemos a ser pagãos, pecamos também. Somente a misericórdia recíproca nos salva.

No tempo dos Padres da Igreja, todos aqueles que pediam para ser cristãos eram educados para tomar consciência de uma realidade comum que era a dificuldade com que se vem ao mundo. De tal modo eram ajudados a descobrir que eram todos pobres, porque todos partilhavam uma mesma ferida e, por conseguinte, estavam todos necessitados de uma mesma misericórdia. Quando o mal não se descarrega sobre um só,

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ele não aumenta, nem se multiplica, mas perde a sua força destruidora, torna-se limitada tal qual é na sua realidade negativa, ausência de um bem só momentaneamente ausente, mas pronto a assumir o seu lugar. Então, os homens não agem já sob as forças do mal julgando-se, odiando-se, matando-se, mas olhando-se e descobrindo-se pecadores, rezam em conjunto: «Perdoai-nos as nossas ofensas».

Na idade patrística, era tradição da Igreja de Roma não limitar a sua ação caritativa ao âmbito do seu território e à assistência a cristãos romanos em dificuldades que viviam longe da sua comunidade. Roma realizava o que Santo Inácio de Antioquia (Roma, † 107 ca.) dizia dela, ou seja, que «presidia à caridade». Dionísio de Corinto († 175 ca.), escrevendo ao Papa Sotero (166-175) sobre a tradicional solidariedade romana, afirmava: «Desde o início vós tendes o bonito hábito de beneficiar todos os irmãos, de enviar ajudas a numerosas Igrejas constituídas em cada cidade. É assim que aliviais os necessitados, mediante as vossas ajudas, que já desde os primeiríssimos tempos continuais a enviar, e socorreis com o necessário os irmãos que desfalecem nas minas. Sois romanos e guardais zelosamente as tradições dos vossos avós, os romanos: Sotero, o caríssimo bispo que tendes, não somente as manteve, mas até as desenvolveu, socorrendo com generosidade os santos nas suas necessidades» (Cf. EUSÉBIO, História eclesiástica 4,23).

Estas afirmações sobre a caridade da Igreja romana foram confirmadas por numerosos testemunhos de outras províncias do Império Romano: por exemplo, o bispo Dionísio de Alexandria (190-265 d.C.) deixou-nos um louvor ao Papa Estêvão (254-257), porque, em nome da Igreja da urbe, enviava regularmente muitas ajudas e socorros às Igrejas da Síria e da Arábia (cf. EUSÉBIO, História eclesiástica 7,5,2). As formas de solidariedade

cristã da comunidade romana e de outras cidades do império eram realmente numerosas e foram muitas vezes louvadas até por escritores pagãos, como Luciano de Samósata († depois de 180 d.C.), o imperador Juliano († 363 d.C.) e outros.

Juliano, chamado Apóstata, que conhecia bem as multiformes atividades caritativas da Igreja, quis legislá-las em âmbito pagão, paralelamente a uma revisão da religião tradicional na base da experiência cristã. Tertuliano e outros escritores antigos afirmam que a esmola, a atenção aos necessitados, aos pobres e a todas as obras de misericórdia espirituais e corporais que manifestam um coração misericordioso fazem dos cristãos homens e mulheres superiores aos pagãos (cf. Apologético 42,8).

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Apenas para oferecer uma ideia da efetiva caridade do tempo dos Padres, recordamos algumas obras que estavam ao cuidado dos bispos e das comunidades cristãs: a ajuda aos cristãos presos ou condenados nos variados lugares penais nos primeiros séculos, depois em favor dos encarcerados em geral; o resgate de numerosas prostitutas; de prisioneiros; o socorro às vítimas da usura; a sepultura para todos; o cuidado das viúvas e dos órfãos; o cuidado dos enfermos; a hospitalidade em favor dos forasteiros (uma obra de misericórdia que no Pastor de Hermas é considerada uma das características que fazem dos bispos homens santos e justos).

No livro Contra Marcião, quando Tertuliano comenta a passagem do profeta Oseias: «Quero misericórdia e não sacrifício» (6,6), aparecem constantemente estes dois sentidos da misericórdia, a recebida por Deus e a exercida pelos cristãos (cf. Contra

Marcião 2, 11,2; 13,5; 17,2; 4, 17,8; 18,9; 20,4). Em muitos autores cristãos, sinônimos

de misericórdia são também a pietas, humanitas e outros termos que têm uma tradição clássica muito antiga e rica – como já vimos no caso de Sêneca –, e que o cristianismo recuperou e ampliou. Em Lactâncio (ca. 250-317), o Cícero cristão, um culto reitor convertido e feito depois precetor da prole imperial de Constantino, a misericórdia é companheira da justiça, uma especialmente para benefício dos homens e a outra um dever para com Deus (cf. As instituições divinas 6,10). Mas seria impossível oferecer a Deus algo se Ele, primeiro, não tivesse dado tudo gratuitamente ao homem, se primeiro não tivesse amado o homem, apesar da indignidade do homem e da sua incapacidade de considerar a bondade paternal de Deus. Escreveu outro escritor anônimo do século IV, conhecido por Ambrosiaster: «Estas são as verdadeiras riquezas da misericórdia de Deus, que até mesmo quando não a procurávamos, a misericórdia foi revelada por iniciativa dele» (Comm. Ef 2,4).

Para os mestres da Igreja das origens, no rosto misericordioso de Cristo podemos ver a misericórdia divina em favor do homem pecador. De resto, na caridade, na misericórdia e no perdão exercidos em favor do próximo, já Orígenes convidava os seus leitores a descobrir a imagem de Deus (ORÍGENES, Princípios IV, 4,10). Santo Agostinho afirma

com frequência que o cristão pode contemplar Deus, pode descobrir a visão da Trindade, o mistério imenso que um dia será chamado a ver e a contemplar «face a face» (1Cor 13,12) somente pela efetiva caridade para com o próximo. A contemplação da Trindade obtém-se «pela caridade» (A Trindade 8,8,12).

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A missão de Jesus foi a de revelar e comunicar aos homens a plenitude do amor que é a vida de Deus, de Deus que «é Amor», como ensina São João (1Jo 4,8.16). Toda a vida de Jesus é expressão deste Amor que se dá gratuitamente, até o supremo sacrifício da Cruz. Cirilo, bispo de Alexandria, recorda que a misericórdia é um atributo da própria natureza divina e convida os seus leitores a fixar bem este pensamento na sua mente (cf.

Comentário a São Lucas. Homilia 29).

Os sinais que o Senhor Jesus realizou em favor da humanidade cansada e esgotada, dos pecadores, dos pobres, dos excluídos, dos enfermos e dos que sofrem falam-nos da misericórdia de Deus. Todos estes sinais, apresentados em muitos episódios do Evangelho, mostram como Jesus sente compaixão pelas multidões transviadas que o seguem e, preocupado com a sua miséria, as livra da fome com apenas cinco pães e dois peixes (Mt 14,13-21).

Os Padres tiveram sempre muita atenção na distinção cuidadosa dos atributos divinos e humanos do Filho de Deus. Em muitas passagens em que Jesus se mostra comovido em relação a situações penosas e de sofrimento dos seus interlocutores, revela-se a sua verdadeira humanidade, aí manifestada, e para defesa da divindade do Filho de Deus exploram o que se pode descobrir nos milagres. Em suma, a divindade que não se pode ver manifesta-se através dos sinais concretos que aparecem sob os olhos de todos, como no caso da multiplicação dos pães. Mas eles põem também em relevo a compaixão de Jesus pela multidão que o segue, a sua condescendência e entrega que o Senhor faz de si na economia da salvação. Um autor oriental do século iv escreveu: «Ele nunca foi nem ocioso nem inativo no mundo, mas sempre se empenhou a matar a fome de todos sem ganhar nada com isso» (EUSÉBIODE EMESA, Homilia 8,12).

A exegese dos Padres vê no milagre da multiplicação dos pães o sinal da chegada do Messias que alimenta o seu povo e, em sentido alegórico, os cinco pães e os dois peixes são muitas vezes respectivamente considerados o alimento do Antigo Testamento, especialmente os cinco livros da Lei (Pentateuco), e os dois peixes também seriam os Profetas e São João: é o que se pode ler, por exemplo, em Hilário de Poitiers (315-37 d.C.; cf. Comentário a São Mateus 14,19). Ambrósio (ca. 340-397 d.C.) aventura-se em alegorias ainda mais audazes (cf. Exposição do Evangelho de São Lucas 6,79-80). Também não faltam interpretações que nos remetem obviamente para o alimento eucarístico.

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O milagre da misericórdia de Cristo, comovido pela multidão esfomeada, não se esgota na multiplicação: a misericórdia recebida difunde-se e vai em benefício de quem dá sem reservas, como Cristo fez. Com efeito, ainda sobraram doze cestos de pão. O bispo Cirilo de Alexandria (370-444 d.C.) pergunta então: «E o que se deduz disto? É uma certeza clara de que a hospitalidade recebe uma rica recompensa de Deus. Os discípulos ofereceram cinco pães e dois peixes e […] acabou por ficar cada um com um cesto de pedaços que sobraram. Portanto, não existe nada que nos impeça de acolher os estrangeiros […]. Ninguém diga: “Não tenho meios adequados, o que apenas posso fazer é ridículo e não chega para tantos”. Caríssimos, acolhei os estrangeiros! Vencei toda a relutância que não leve à recompensa. O Senhor multiplicará muitas vezes o pouco que tendes para além do que se pode esperar» (CIRILO DE ALEXANDRIA, Comentário a São Lucas. Homilia 48).

Este é um desenvolvimento exegético tornado especial e dramaticamente atual pelas multidões desesperadas de migrantes que, sob os nossos olhos, tentam escapar de conflitos e misérias, aos quais somente uma justiça conjugada com a misericórdia poderá redundar num êxito positivo e duradouro.

Em virtude do seu amor compassivo e misericordioso, Jesus cura os doentes e sente compaixão pela viúva de Naim ressuscitando-lhe o filho (Lc 7,11-17). Comentando estes milagres, os Padres não se podem limitar apenas a comentar a misericórdia de Jesus que perdoa, cura e volta a dar a vida. O seu olhar é profundamente eclesial e acolhe na viúva a imagem da comunidade dos crentes estabelecida no amor de Cristo e que o difunde; como Esposa de Cristo, que se comove perante os dramas dos homens e das mulheres e se empenha em socorrer as pessoas com a graça dos sinais sacramentais, com o perdão e até com as obras de misericórdia espirituais e corporais. A mãe dolorosa pela morte do Filho é a Igreja que chora pelos pecados dos filhos que gerou no seio da pia batismal. Ela intervém por cada um de nós, como se fôssemos seus filhos únicos, e chora, escreve Santo Ambrósio, para que cada filho seu se erga ao longo do cortejo fúnebre e não conheça o sepulcro e a morte eterna (cf. Exposição do Evangelho segundo São Lucas 5,92).

Depois de ter libertado o endemoninhado de Gerasa, Jesus dá-lhe esta missão: «Anuncia tudo o que o Senhor, na sua misericórdia, fez por ti» (Mc 5, 19). Também neste caso o comentário unânime dos mestres do cristianismo antigo evidencia que,

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obtida a remissão dos pecados, é dever de todos os fiéis tornar os outros participantes dos dons recebidos e colocar-se ao serviço do Evangelho e da difusão do Reino de Deus (cf. BEDA VENERÁVEL, Comentário a São Marcos, 2).

Também a vocação de São Mateus se encontra inscrita no horizonte da misericórdia que atravessa o olhar de Jesus em direção ao cobrador de impostos. Era um olhar que perdoava os pecados daquele homem. Jesus, vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o a ele, pecador e publicano, para ser um dos Doze. O Papa Francisco – como se sabe – de tal modo se deixou impressionar por este olhar que do episódio tirou o seu mote episcopal na tradução lapidária que devemos a São Beda (672-735 d.C.). Este santo, comentando o episódio evangélico, afirma: «Jesus olhou para Mateus com amor misericordioso e escolheu-o – miserando atque eligendo» (BEDA

VENERÁVEL, Homilia 21).

Entre as muitas passagens do Evangelho comentadas pelos Padres são particularmente significativas a parábola do bom samaritano e a trilogia de Lucas da misericórdia (Lc 10,25-37; 15,1-10; 15,11-24). Na primeira, o bom samaritano da humanidade é identificado com Cristo desde os tempos de Orígenes, e o seu exemplo deve ser imitado mais com obras do que com palavras. É possível imitar Cristo, continua o doutor alexandrino, segundo o ensinamento de São Paulo: «Sede meus imitadores, como também eu o sou de Cristo» (1Cor 11,1). Para Orígenes, o Filho de Deus encoraja-nos a fazer obras de misericórdia como as que o samaritano realizou. E quando incita o seu interlocutor, dizendo-lhe: «Vai e faz o mesmo», não está falando ao doutor da Lei que o interrogara, mas a cada um de nós. Se o homem agir deste modo, então receberá a vida eterna em Cristo Jesus (cf. Homilias sobre o Evangelho de São Lucas 34,3; 34,9). Nas parábolas da ovelha perdida, da moeda encontrada e do pai misericordioso, é sublinhada a paciência misericordiosa de Deus por aquilo que se perdeu, ou seja, pelo homem pecador, e também se sublinha a alegria do Pai quando o homem é encontrado e perdoado. Toda a conversão produz alegria entre os poderes celestiais (cf. CIRILO

ALEXANDRINO, Comentário a São Lucas. Homilia 106; SANTO AMBRÓSIO, Exposição do Evangelho segundo São Lucas 7,210). Na parábola do pai misericordioso, encontra o

seu ápice a reflexão sobre a misericórdia do Pai: «Ele, o Pai» – escreveu Santo Ambrósio –, «vem ao teu encontro porque te escuta enquanto estás ainda refletindo contigo mesmo no segredo do coração… Ao correr ao teu encontro, está a presciência e no abraço, a sua

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clemência» (Exposição do Evangelho segundo São Lucas 7,229).

À pergunta de São Pedro sobre quantas vezes é preciso perdoar – até sete vezes? –, Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete» (Mt 18,21-22). O Senhor pensava de outra forma em relação à questão que lhe foi colocada por São Pedro, porque «Ele é a misericórdia em pessoa» (CROMÁCIO DE AQUILEIA, Comentário a São Mateus, Tratado 59,3). Hilário de Poitiers recorda que Jesus nos

ensina que devemos conceder o perdão sem medida nem conta, e que devemos pensar não em quantas vezes perdoamos, mas deixar de nos indignar contra aqueles que pecaram contra nós todas as vezes em que sentimos a necessidade de o fazer… De fato, perdoar sem medida é garantia de sermos perdoados sem medida (Comentário a São

Mateus 18,10).

O texto do diálogo entre Jesus e São Pedro é explicitado pela parábola do servo desumano (Mt 18,23-26). Ela narra como o senhor tinha perdoado uma grande dívida ao seu servo, ao mesmo tempo que este não procedera da mesma forma com outro servo que lhe devia uns pequenos trocos, enviando-o para a cadeia. Jesus fala-nos através das palavras do senhor: «Não devias também ter compaixão do teu companheiro como eu tive de ti?». E concluiu: «É assim que procederá convosco o meu Pai que está no Céu, se cada um não perdoar do fundo do coração a seu irmão» (Mt 18,33-35). O exemplo é claro como o ensinamento que dele deriva – comentou Cromácio uma vez mais (cf.

Comentário a São Mateus, Tratado 59,3): somos chamados a ser misericordiosos,

porque também para nós foi usada misericórdia. E não chega usar misericórdia para os que são amáveis. Só é verdadeiramente misericordioso aquele que tiver misericórdia do seu inimigo e lhe fizer o bem na medida em que foi escrito: «Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam» (Lc 6,27). Com efeito, Deus não apenas dá a chuva aos que lhe são fiéis, mas também aos outros, e por isso foi dito: «Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6,36).

Um autor anônimo, que se fez voz de muitos cristãos antigos, afirma: «É realmente bem-aventurado aquele tal, porque a sua misericórdia, se ele não pecou – coisa difícil para os homens – [melhor se diga: impossível, n.d.r.], o ajuda a crescer na sua justiça; mas no caso em que tenha cometido pecado, ajuda-o em vista da remissão, porque pode com confiança dizer: “Perdoai-nos as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6,12)» (Comentário anônimo a São Mateus. Homilia 9, PG 59).

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O Pai-Nosso: a oração da misericórdia

A educação cristã à misericórdia encontrou, na Antiguidade cristã, um espaço quotidiano no comentário à petição do Pai-Nosso «perdoai-nos as nossas ofensas» (Mt 6,12). A oração do Senhor (o Pai-Nosso) era utilizada, nas comunidades cristãs latinas, como síntese de catequese sobre a oração para os neobatizandos através de dois ritos: o rito da entrega da oração do Senhor ao batizando e o rito da reentrega de tal oração (em latim, os ritos da traditio-redditio orationis dominicae). O rito da entrega previa a leitura de cada petição do Pai-Nosso com uma breve explicação; o rito da reentrega era a recitação decorada do Pai-Nosso por parte do candidato.

O seu principal significado era ajudar o povo cristão a viver em união permanente com Deus nosso Pai para lhe suplicar a graça de observar as promessas batismais professadas no Credo. Em tal contexto, no âmbito da petição «perdoai-nos as nossas ofensas», educava-se o catecúmeno a viver de misericórdia. Tal oração explicitava a possibilidade de o novo candidato ao cristianismo poder sempre dirigir-se a Deus, apesar das falhas quotidianas da existência, para poder sempre recomeçar. Tal educação constituía, para os Padres da Igreja, a síntese da mensagem de Jesus. O que de fato pode esperar um coração humano, que nasceu para viver eternamente com Deus, senão uma piedade imensa pelas suas feridas sempre abertas e a misericórdia de Deus, que, cuidando das suas cicatrizes, o ajude de tal modo que possa continuar a viver?

Os comentários à petição do Pai-Nosso «perdoai-nos as nossas ofensas» (os mais conhecidos na Igreja são os de Tertuliano, Orígenes, São Cipriano e Santo Agostinho) foram escritos para que tal esperança se tornasse própria de cada crente, como de cada homem chamado à fé cristã. São Cipriano de Cartago deixou escrito: «É realmente necessário, providencial e salutar que nos seja lembrada a nossa condição de pecadores: assim induzidos a rezar pelos nossos pecados, ao mesmo tempo que pedimos perdão a Deus, também nos lembramos daquilo que somos... Quando confessamos os nossos pecados, Deus, fiel e justo, perdoa-no-los. Com isso, Ele lembra duas coisas: o dever de rezar por causa dos nossos pecados e o dever de pedir para eles o perdão através da oração. Ele proclama que o Senhor é fiel pelo perdão dos pecados, ou seja, tem fé na sua promessa porque, ao mesmo tempo que nos ensinou a rezar pelas nossas dívidas e pecados, também nos prometeu a sua misericórdia paternal e o perdão que nos oferece».

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A catequese aos neobatizandos sobre a oração do Pai-Nosso tinha em vista principalmente duas coisas: educar os neocristãos para que tomassem consciência da realidade de cada homem, totalmente necessitado de misericórdia, e da pertença à comunidade cristã, uma Igreja feita de homens que os reúne de todo o lado tal como são e os educa à misericórdia de Deus pelo homem e à misericórdia recíproca, ou seja, à esperança de uma confiança fundamentada que se pode sempre recuperar mesmo no meio de todos as falhas batismais, de qualquer natureza e gravidade.

Santo Agostinho, no sermão sobre o Pai-Nosso, encorajava os neobatizandos: «Escutai [...] tende a certeza de que tudo vos será perdoado: seja tudo o que contraíste até chegardes à vida com o pecado original, pelo que juntamente com as criancinhas correis à graça do Salvador, como tudo na vossa vida, aumentaste de mal com palavras, obras e pensamentos. Tudo vos será perdoado» (Sermão 56, 9,13).

A consciência do mal, da possível falha que cada um tem dentro de si, traduz-se na vida do cristão em relações de misericórdia e de ajuda recíproca quando se liberta do mal em que quotidianamente se incorre, não demorando mais do que necessário a julgar, vivendo, por consequência, relações de negatividade com os seus semelhantes. A misericórdia leva-nos a encontrar-nos no humano que nos une. Pela misericórdia, os homens não agem sob as forças do mal (julgando-se, odiando-se, matando-se), mas, olhando-se e descobrindo-se pecadores, rezam em conjunto: «Perdoai-nos as nossas ofensas».

A invocação da oração do Senhor «perdoai-nos as nossas ofensas» era ensinada ao catecúmeno para que a rezasse quotidianamente com a confiança de que o homem se pode sempre dirigir a Deus, porque Ele, a misericórdia, está do lado daquele que cai, ressuscitando-o de geração em geração. Na prisão do coração humano, privado de luz, desce sempre, por isso, o paternal, misericordioso e piedoso olhar de Deus que o ilumina com a sua luz, não pondo diante dele os seus pecados, mas perdoando-os, o introduz no calor do abraço da sua luz.

Portanto, os cristãos eram educados para a possibilidade quotidiana de ser perdoados, isto é, de receber um gesto de misericórdia, necessário ao homem como pão para a boca e água para matar a sede. Sem tal possibilidade, a própria liberalidade de Deus não teria sentido, porque o homem viria a encontrar-se, como explicava o catequista de Cartago, Tertuliano, aos catecúmenos, como na condição de um boi destinado ao matadouro.

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Escreveu textualmente: «Uma vez considerada a generosidade de Deus, é agora necessário que imploremos também a sua clemência. Para que serviria o alimento corporal se, perante Ele, estivéssemos na condição de um boi destinado ao matadouro? O Senhor bem sabia que era o Único sem pecado, e foi por isso que nos exortou a rezar assim: “Perdoai-nos as nossas ofensas”».

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A misericórdia na liturgia

As orações da liturgia veiculam, durante todo o ano litúrgico e nos sacramentos administrados, a imensa misericórdia do Senhor, seja como memória dos gestos de salvação do Salvador, seja como sacramento e exemplo na vivência cristã quotidiana. De fato, a liturgia, abarcando toda a vida de Jesus Cristo desde o nascimento até a ascensão, apresenta-se como sacramento de salvação de geração em geração, como exprime São Leão Magno: «O sacramento da festa de hoje pertence aos tempos de cada fiel» (Sermão 38, 1). Portanto, desde o Papa Leão Magno, o ano litúrgico é descrito, desde o Natal ao Pentecostes, como transmissor de comunicação da salvação aos crentes, ou então “como convidando à misericórdia de Deus”. O mesmo São Leão explicava-se da seguinte forma num sermão ao povo: «Todos os dias e em todos os tempos são colocados diante de nós os sinais (signa) da bondade divina, e não há parte alguma do ano que não seja beneficiada pelos sagrados mistérios para, enquanto de todo o lado vêm ao nosso encontro ajudas em vista da nossa salvação, atendermos cada vez mais avidamente à convidante misericórdia de Deus» (Sermão 49, 1).

São Cirilo de Jerusalém também explica na sua Catequese 20: «No plano das realidades físicas, nós não estamos mortos, nem sepultados, nem crucificados nem sequer ressuscitados. Porém, representamos estes acontecimentos na esfera sacramental, e é assim que neles se produz realmente para nós a salvação. Cristo, pelo contrário, foi verdadeiramente crucificado e verdadeiramente sepultado e foi verdadeiramente ressuscitado, até mesmo na esfera física, e tudo isto foi para nós dom da graça. Assim, de fato, participamos da sua paixão e, através da representação sacramental, podemos realmente obter a salvação» (Mistagógica 2, 4-6).

Os textos da liturgia explicitam a revelação de Jesus, conservada pelo evangelista João: «Deus amou de tal forma o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna» (JO 3,16-17). Por exemplo, a liturgia

do tríduo da Semana Santa veicula a misericórdia do Salvador numa sua concentração especial, fazendo-nos participar da sua paixão. A propósito do Batismo, São Cirilo de Jerusalém explica na Catequese 20: «Nós sabemos que o Batismo, como pode libertar dos pecados e obter o dom do Espírito Santo, é também figura e expressão da Paixão de Cristo. É por isso que São Paulo proclama: “Não sabeis que todos nós, que fomos

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batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte” (Rm 6,3-4a)» (Mistagógica 2,6).

E voltamos ao Tríduo Pascal. A Quinta-Feira Santa, pelo perdão de Jesus que, na pessoa de quem preside à santa assembleia, lava, enxuga e beija os pés dos penitentes, é sinal da reconciliação que Deus dá novamente e da comunhão de fé para quem caiu em alguma falha grave de fidelidade cristã. De fato, depois de um período de penitência, na Quinta-Feira Santa, os penitentes eram readmitidos na comunidade e, com todos os outros, voltavam a participar da Eucaristia. Tratava-se de reconciliar quem tinha caído no pecado: de ter renegado ou rompido, pelo cisma ou pela heresia, a fé professada no Batismo; ou de ter cometido um homicídio (no tempo patrístico, incluía também o crime do aborto e, em algumas zonas, igualmente o crime de ter matado alguém no serviço militar); ou de ter rompido o vínculo conjugal. Conhecemos tais pecados sujeitos à penitência pública porque se conservam as listas.

O gesto de lavar os pés tocava profundamente o penitente, pelo manifesto pedido de misericórdia por parte da sua comunidade de fé, como todo participante da divina liturgia chamado a ter misericórdia de um seu irmão de fé que faltara às promessas batismais. Para todos se representava, na figura do presidente da assembleia litúrgica, a figura do humilde Jesus que se debruça sobre mim enquanto penitente, me lava, me enxuga, me põe a mão na cabeça em sinal de acolhimento, me pega na mão, me levanta, me abraça, me beija. Repete-se o gesto do Pai misericordioso do Evangelho. É como se o homem dissesse a Deus: por que é que ainda gostas de mim e me amas? E Deus, abraçando-nos, responde: «Voltaste, meu filho», enquanto enxuga as lágrimas procurando escondê-las. Sou a misericórdia. A liturgia milanesa foi de tal forma tocada pelo gesto do lava-pés que o elevou a sacramento, ou seja, fez dele um gesto de salvação deixado à comunidade cristã pelo próprio Salvador. A Quinta-Feira Santa faz memória, além disso, do gesto do dom de Jesus ressuscitado na Eucaristia, tornando-se nosso pão abençoado que nos alimenta e se torna nossa oferta espiritual, porque pão de misericórdia do coração de Cristo. O penitente estava presente na mesa de todos, que era a eucarística.

Na Sexta-Feira Santa, a comunidade dos crentes faz memória do gesto supremo de Jesus de nos doar a sua vida até morrer por nós sobre uma cruz. A cruz, de fato, é o lugar da vida onde o Pai faz nascer no Filho a misericórdia pela pobre humanidade. «Perdoa-lhes!» – orava Jesus moribundo ao Pai. – «Eles não sabem o que fazem» (Lc

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23,34), ao mesmo tempo que era ferido pela mão de todos os que amava. Toda a relação de amor deixa uma porta aberta à vulnerabilidade, ou seja, à possibilidade de ser feridos. Recordar-se, isto é, não evitar esta vulnerabilidade, é já preparar-se para o instante da misericórdia, porque fomos feitos para a vida, mesmo que, por vezes, procuremos a morte. Tudo isto é saber ceder à ternura de Cristo que, ensanguentado, na sua misericórdia vem ao meu encontro para me abraçar.

O Sábado Santo recorda a descida de Jesus aos infernos, quando o Salvador levou a sua misericórdia aos nossos pais, tomando Adão e Eva pela mão para os arrastar e a todos os outros para a vida, como está figurado na Igreja de São Salvador em Cora, em Constantinopla (Istambul). No Domingo de Páscoa, a sua misericórdia expande-se sobre toda a humanidade, como os cristãos das comunidades joaninas sintetizaram no monograma da cruz fos-zoè – a cruz é luz e vida!

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II

SANTO AGOSTINHO: PREGADOR DA MISERICÓRDIA

Santo Agostinho sentiu-se pessoalmente atingido pela misericórdia de Deus, notando que esta o seguira até mesmo quando errava longe dele. Convertendo-se ao cristianismo aos trinta e três anos de idade, escreveu as Confissões, a biografia da sua conversão, que é como um cântico de ação de graças à misericórdia de Deus, que tinha estado próxima dele até mesmo quando Agostinho se tinha afastado da religião da sua mãe, Mônica. Por tal motivo, as Confissões poderiam ter como subtítulo «A misericórdia». Num sermão ao povo, Santo Agostinho confessou como ele, tendo saído do ninho antes de saber voar, foi tocado pela misericórdia divina para ser de novo levado ao ninho. Ele escreveu cheio de comoção: «Ousava procurar [nas Sagradas Escrituras] soberbamente o que pode encontrar somente quem é humilde. Como vós sois agora felizes, com tanta serenidade, com tanta segurança aprendei, vós todos que sois ainda pequenos no ninho da fé, e recebei o alimento espiritual! Eu, pelo contrário, infeliz, pensando-me capaz de voar, abandonei o ninho e dele saí antes de saber voar. O Senhor, porém, na sua misericórdia, para que não fosse pisado pelos que passam e morresse, recolheu-me e voltou a colocar-me no ninho» (Sermão 51, 5,6).

Santo Agostinho apercebeu-se de que Deus se dá a conhecer precisamente na misericórdia: «Deus expande a sua misericórdia sobre aqueles que o conhecem e a sua justiça sobre os retos de coração; expande a sua misericórdia não só pelos que já o conhecem, mas também para que o conheçam; não expande a sua justiça com a qual justifica o ímpio por serem retos de coração, mas para que também sejam retos de coração» (O Espírito e a letra 7,11).

O bispo de Hipona, tomando consciência de que a misericórdia pertence a qualquer homem quer como necessidade, quer como capacidade não alienável, falou dela em todos os seus escritos, sempre e cada vez que se apresentava a oportunidade, particularmente no seu comentário aos cento e cinquenta Salmos, aos quais recorria continuamente. Falava da misericórdia de Deus e da misericórdia do homem, nunca

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saciado de receber piedade. Como bispo, explicou aos seus fiéis a misericórdia que perdoa e a misericórdia que socorre a necessidade do pobre dando, como intelectual que era, uma atenção especial à misericórdia pelo esforço de quem procura brechas de verdade para poder continuar a viver, «obrigado» – como Santo Agostinho disse de si mesmo – «a fazer caminho através de sendas intrincadas e obscuras» (A Trindade I, 3,6). O homem intelectual, por causa de certos «remorsos da razão», como ele chama aos raciocínios dos quais não consegue sair, vive muitas vezes nas trevas do erro, sempre na esperança daquele raio de luz que, para ele, é a misericórdia. Santo Agostinho era um intelectual e, como tal, experimentou as falsidades que a razão gosta de arranjar e o esforço de alcançar os enganos dos pseudoargumentos. «Quanto são preferíveis» – deixou escrito nas Confissões – «as fábulas dos mestres de escola e dos poetas àqueles devaneios! [...] Através daqueles degraus fui atraído até os abismos infernais, febricitante, atormentado pelo ardor da verdade, e tu, meu Deus, reconheço-o, tiveste misericórdia de mim quando ainda não te conhecia. Ao mesmo tempo que te procurava [...] Tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima e mais acima do que a minha parte mais elevada» (Confissões 3, 6,11).

A propósito da misericórdia que se deve ter para com os intelectuais, que infelizmente caem no engano da razão, Santo Agostinho deixou escrito a propósito de um pedido de condenação contra ele dirigido pelos intelectuais maniqueus: «Somos duros convosco [aqui dirige-se aos maniqueus, intelectuais cristãmente desviados, daquele tempo], vós que não sabeis com que esforço se tem de encontrar a verdade, e como dificilmente se evitam os erros... Quantos gemidos são necessários para chegar a entender, ainda que minimamente [...] como são duros convosco os que nunca foram enganados pelo erro [...] mas eu, pelo meu lado, não o posso ser» (Contra a letra do fundamento 2-3).

Na escola de Santo Agostinho, que foi literalmente tocado pela experiência da misericórdia de Deus e influenciou os seus contemporâneos, pode compreender-se mais profundamente a riqueza contida na palavra “misericórdia”. Nela, o bispo de Hipona vê contido todo o cristianismo de Jesus e o dos cristãos. Com a palavra «coração», ele indica o homem, o homem na sua existência concreta, orientado ou não para a realização do seu ser. Para Santo Agostinho, o homem identifica-se com o seu coração, ou seja, «com o seu amor», como precisou na Cidade de Deus. Não é o homem das abstrações conceptuais dos filósofos, mas o homem como existência histórica vivente, filho da

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herança de Adão e da graça de Cristo. Para Agostinho, colocar-se o problema do coração humano é o mesmo que colocar-se o problema do homem enquanto tal; e não só. Indagar no coração do homem equivale a deitar um olhar na profundidade do seu mistério que só se atinge na misericórdia. Nos seus discursos ao povo como nos seus escritos, Santo Agostinho é literalmente arrebatado pelas expressões da Escritura que descrevem o homem como uma profundidade cujo coração é um abismo. Por tal motivo, muitos estudiosos do pensamento agostiniano veem na palavra «coração» o termo-chave de toda a sua filosofia e teologia.

Segundo este santo bispo, o coração é o homem no seu íntimo mais profundo, é como a casa do homem, a sala secreta onde ele gosta de habitar, de repousar e de se entreter. É o ângulo onde o homem gosta de conversar com o homem, na eterna procura de colher uma palavra sobre si próprio: quem é, de onde vem, para onde vai, onde se pode encontrar com o seu Deus. Mas descer ao coração, àquele ângulo secreto de nós mesmos, é querer descer a um abismo profundo aonde nunca ninguém desceu nem poderá descer. Permanece de fato impenetrável ao próprio homem o seu coração. Todavia, Santo Agostinho, embora permanecendo perante o coração humano como diante de um sacrário, percebe que o homem quer olhar para dentro dele e procura o caminho para aí chegar, a luz para aí penetrar. Tal luz vem-lhe da fé pela qual Deus penetra o abismo da profundidade do coração humano. Ao seu olhar tudo é visível, qualquer profundidade revela as suas partes mais remotas. O homem percebe então que, para lançar um olhar para o mais profundo de si mesmo, deve olhar para dentro de si com a luz de Deus, ou seja, com a sua misericórdia. Ele descobre que Deus leva em si o segredo do mistério do coração do homem e que colocou no seu coração a sua demora. De fato, com a sua presença, Deus cura o coração contrito, acolhe a oferta do coração humilde e o homem toma consciência daquela voz que Deus escuta, daquela pureza de coração onde Deus é visto e «encontra aquele Deus do qual afastar-se é cair, ao qual dirigir-se é ressurgir, no qual permanecer é ser salvos, ao qual regressar é renascer, no qual habitar é viver» (Solilóquios I, 1,3).

Por saber que a miséria é conatural ao homem desde o nascimento, trazendo em si aquela rebelião contra Deus dos progenitores da humanidade, que o coloca nos seus dias numa condição habitual de miséria, sempre exposto ao perigo de se enganar e de morrer, grávido de indigência abissal, nele determina uma permanente condição de mendicidade.

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Ele só espera que algum coração perceba e não o deixe morrer. A sede do seu coração é, por isso, a misericórdia pela sua debilidade congênita nunca inteiramente conhecida, essa misteriosa debilidade que envolve de medo inconsciente as batidas do pulsar do coração do homem. Quando a misericórdia invade o coração, o homem vê que, naquele momento, Deus está nele presente e sai de si mesmo: aproxima-se de Deus, dos outros e do seu próprio mistério. A misericórdia torna-se, assim, juntamente com a verdade e com a graça de Cristo, um dos caminhos através dos quais Deus se aproxima do mundo humano nas suas raízes mais profundas. Em Cristo, os três caminhos encontram-se, permitindo ao homem que se aproximou de Cristo que os caminhos de Deus possam converter-se em caminhos do homem.

Santo Agostinho, no seu comentário aos Salmos, deixou a síntese mais vasta, atraente e fascinante da experiência da misericórdia. Esta se manifesta na consolação que leva ao coração humano: sentes-te socorrido, sentes-te salvo, ela enche-te de uma doçura interior que te arranca as lágrimas. É uma misericórdia que Deus nunca consegue guardar, por isso ela encontra-se difusa como chuva fecundante no meio de todas as gentes e idades do homem. Melhor dizendo, o tempo da vida humana é propriamente o tempo da misericórdia de Deus. Graças a tal misericórdia, há uma ponte entre Deus e o homem, nunca sujeita à quebra total temporal. De fato, Deus tem misericórdia do justo e do pecador, está sempre perto de quem tem o coração contrito e não abandona a si mesma a fragilidade humana em perigo de se desintegrar.

Por esse motivo, a pregação da Igreja tem como seu sujeito específico a misericórdia divina. O homem é levado a pedir a Deus misericórdia, e até a exigi-la. E pela misericórdia Deus faz-se devedor do homem, que se torna piedoso cobrador da sua misericórdia. A misericórdia do homem para com o seu semelhante nasce, na consciência cristã, da experiência do dom da misericórdia recebida de Deus. Por ela, o homem junta-se a qualquer outro homem não excluindo nunca ninguém, e não discutindo o tempo nem a oportunidade de socorro. Com a misericórdia, o homem aprende a sentir-se unido a outro homem, não por vínculos de nascimento e de sangue, mas pela misericórdia. Santo Ambrósio, o mestre de Santo Agostinho, escreveu: «O que nos faz próximos uns dos outros não é a parentela, mas a misericórdia» (Exposição sobre o Evangelho de São

Lucas 7,84). Da ligação à misericórdia, que une os homens com vínculos novos, nascem

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quando não tem nada para dar ao pobre, dá-lhe o seu amor; o seu coração sente-se unido àquele que jaz na miséria. Em tal experiência, o homem conhece do seu semelhante a melhor parte, aquela humanidade não desfigurada pelo mal e, no seu semelhante, reconhece e recupera a sua própria humanidade.

Como conclusão, a misericórdia é, para Santo Agostinho, uma das maiores mediações que permite ao homem conhecer-se a si mesmo, o mistério da própria humanidade que o liga aos seus semelhantes e o une a Deus. A compaixão adquire por isso também uma valência antropológica. Ela dá uma indicação para se compreender quem é o homem. Posta ao lado da verdade e da liberdade, a misericórdia constitui para Santo Agostinho o eixo da compreensão cristã do homem. Ele sentiu a misericórdia como um bem comum, de todos; como um bem do homem do qual, se dela é privado, é depauperado do seu bem que é a relação com Deus e com o seu semelhante. Por isso, a quem lhe pedia o que desejava, Santo Agostinho respondia que a sua esperança era poder cantar eternamente e com todos a infinita misericórdia de Deus, especialmente com todos aqueles com quem tinha partilhado a existência. A oração, que encerra o livro d’As duas

almas contra os maniqueus, sintetiza de modo admirável o seu pensamento/proposta

antropológica sobre a misericórdia: «Ó Deus grande, ó Deus onipotente, ó Deus bondade suprema, prostro-me suplicante perante ti, escuta a minha oração. Agora que experimentei a tua misericórdia, não permitas que aqueles com quem vivi desde a minha meninice, como se tivéssemos um só coração, sejam separados de mim no culto a ti devido» (I, 5.24).

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Textos escolhidos

Sobre o significado do termo

Desejo transmitir-vos, queridos fiéis, alguns pensamentos sobre o valor da misericórdia. Por muito que tenha experimentado que estejais disponíveis para toda a boa obra, é todavia necessário que sobre este argumento vos faça um sermão bastante empenhado. Vamos a isso: o que é a misericórdia? Não é outra coisa senão encher o coração de um pouco da miséria [dos outros]. A palavra «misericórdia» deriva da dor que se sente pelo «miserável». Há duas palavras contidas nesse conceito: miséria e coração. Quando o teu coração é tocado e atingido pela miséria dos outros, então isso é misericórdia. Prestai atenção, portanto, meus irmãos: todas as boas obras que fazemos na vida estão verdadeiramente relacionadas com a misericórdia. Por exemplo: se tu deres pão a quem tem fome, dá-lho com a participação do coração, não com chalaça, para evitar tratar um homem semelhante a vós como se fosse um cão. Portanto, quando fizeres um ato de misericórdia, comporta-te [assim]: se deres um pão, procura sentir-te participante da pena de quem tem fome; se deres de beber, participa da pena de quem tem sede; se deres roupa a alguém, partilha a pena de quem não tem o que vestir; se deres hospitalidade, partilha a pena de quem é peregrino; se visitares um enfermo, procura sentir pena por quem está doente; se fores a um funeral, sente o luto; e se levares a paz aos litigantes, pensa no afã de quem tem uma contenda. Se amarmos a Deus e ao próximo, não podemos fazer nada sem sentir pena no coração (Sermão 358A).

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A misericórdia no falar

Com a língua rezamos a Deus, com ela propiciamo-lo, com ela louvamo-lo, com ela, bem harmonizados, cantamos a Deus, com ela todos os dias usamos de misericórdia ao falar com os outros ou ao darmos conselhos… Pensai no seguinte: Coloquei um freio na

minha boca, até que o ímpio esteja em frente de mim. À tua frente está um impudente

que te insulta, diz coisas do outro mundo. Coloca um freio na tua boca. Disse: Vigiarei

sobre os meus caminhos para não pecar com a língua. Deixa-o dizer. Tu escuta e está

calado. Uma de duas: ou ele diz a verdade ou diz mentiras. Se disser a verdade, é por causa de ti. E talvez isto seja misericórdia, porque, quando tu não quiseres ouvir o que fizeste, Deus, que tem cuidado de ti, através do outro diz-te o que fizeste, para, pelo menos confundido pela vergonha, ires finalmente à procura de remédio. E nesse caso nunca pagues o mal com o mal. Porque não sabes quem é que te fala por meio de alguém. Por isso, se alguém te envergonhar ao dizer-te algo que fizeste, reconhece teres encontrado misericórdia ou pensando que já te tinhas esquecido ou concluindo que isso te foi dito para te envergonhares... Não penses parecer santo se ninguém te puser à prova. Serás santo quando não te perturbares perante os insultos, quando sentires pena por quem te ofende, quando não te preocupares por aquilo que sofres, mas lamentares quem te fizer sofrer. Tudo isto é misericórdia. Lamentas-te porque ele também é teu irmão, porque é teu membro. Ele virou-se contra ti, atormenta-se e fica doente. Não te alegres por ele se sentir mal. Mas alegra-te por teres a tua consciência tranquila. Quanto ao resto, sente pena. Porque também tu és homem. E isto é misericórdia de Deus. Assim o Senhor, com a sua misericórdia usual, nos concederá, pelas vossas orações, poder aprofundar (como falar, como reagir), porque isto é muito difícil. Repara que agora é Deus Pai que te fala: «Eu te digo, ó alma que eu formei, ó homem que eu criei, eu te digo: és um ser finito. Que significa ser finito? Significa ser ferido. Mas eu enviei-te alguém que te procurasse, enviei-te alguém que caminhasse contigo, enviei-te alguém que te perdoasse. Ele caminhou com os pés e perdoou com as mãos. Por isso, quando se levantou após a ressurreição, mostrou as mãos, o lado e os pés: as mãos, com que concedeu o perdão dos pecados; os pés, com que anunciou a paz aos marginalizados; o lado, de onde brotou o preço dos redimidos». Portanto, em resumo, o fim da lei é

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Mas eis que o teu fim já te foi dado a conhecer. E como foi que se conheceu? O teu fim foi pobre, o teu fim foi humilde, o teu fim foi esbofeteado, o teu fim foi escarnecido, contra o teu fim foram ditos falsos testemunhos. E eu pus um freio à minha boca até

que o ímpio esteja à minha frente. Ele para ti se fez caminho. Quem disser permanecer em Cristo, deve comportar-se como Ele se comportou. Ele é o caminho. Agora

caminhamos, não temos medo, não nos perdemos. Não caminhamos fora da estrada. Porque foi dito: Puseram obstáculos sobre o meu caminho, armadilharam-me o

caminho. Eis então a misericórdia: para que tu não caias nas armadilhas, tens como

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A doçura da misericórdia

Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia. Explica a causa pela qual deve

ser escutado: porque a misericórdia de Deus é doçura. Mas não seria mais lógico dizer: Escuta-me, Senhor, a fim de que para mim seja doce a tua misericórdia? Por que motivo diz: Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia? Já sublinhou por outras palavras a doçura da misericórdia do Senhor quando, no meio da tribulação, dizia:

Escuta-me, Senhor, porque sofro. E verdadeiramente, dizendo: Escuta-me, Senhor, porque sofro, explica a causa pela qual implora ser escutado. Mas ao homem que jaz no

meio da tribulação não pode não parecer doce a misericórdia de Deus. Da doçura da misericórdia de Deus notai o que noutro lugar diz a Escritura: Como a chuva no

sequeiro, assim brilha a misericórdia de Deus na tribulação. Aqui fala em brilho; ali

diz doce. O pão não poderia ser doce se não fosse precedido pela fome. Portanto, quando o Senhor permite ou faz com que nós nos encontremos na tribulação, também então é misericordioso. Não nos nega o alimento, mas acende-nos o desejo. Por que, então, diz agora: Escuta-me, Senhor, porque é doce a tua misericórdia? Escuta-me sem mais acrescentar: encontro-me numa tribulação tão grande que é doce para mim a tua misericórdia. Por isso tu diferias a tua ajuda para que me fosse doce. Ora bem, agora já não há mais atrasos: a minha tribulação chegou ao extremo; a medida do sofrimento está cheia. Venha, portanto, a tua misericórdia para me beneficiar. Escuta-me, Senhor, porque

é doce a tua misericórdia. Segundo a multidão das tuas misericórdias olha para mim,

Referências

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