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A regulação do uso da cannabis para fins medicinais no Brasil e em Portugal: análise compreensiva das estratégias jurídico-legais e repercussões.

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A regulação do uso da cannabis para fins medicinais no

Brasil e em Portugal: análise compreensiva das estratégias

jurídico-legais e repercussões.

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Braulio de Magalhães Santos (Universidade Federal de Juiz de Fora –

UFJF – Campus Governador Valadares)

Introdução: delineamento teórico-metodológico.

Por uma partida mais generalizante, podemos afirmar que o tema políticas sobre drogas ocupa o lugar de preocupação mais centrado nas substâncias, sobretudo pelos órgãos estatais, e muito menos no ser humano; mais como um subtema, tangencial à sombra do controle do sistema criminal e indissociado da chamada “guerra às drogas”. Especificamente sobre a cannabis, agregam-se componentes moralistas, religiosos, ideológicos, como outros, limitam possibilidades de aprofundamento necessário para refletir a complexidade exigida para tratar a questão. Entendemos ser esse debate uma “complexidade”2, como aponta Morin (2007), evitando a superficialidade para reafirmar a (complexidade) como uma palavra-problema que deve prescindir de comportamentos positivistas, imediatistas, sobretudo simplificadores que tem na separação e na redução do fatos e fenômenos sociais a produção de “fragmentos do saber científico”, excluindo as conexões entre as múltiplas áreas do conhecimento (MORIN, 2007, pg. 7).

Propomos uma análise compreensiva sobre a regulação feita por Portugal e Brasil sobre o uso da cannabis para fins medicinais. Compreensiva tal análise, pois indissociável do debate sobre os seus demais usos e possibilidades, como também as evidências de sua

1 44º Encontro Anual da ANPOCS - GT13 - Drogas, atores e sociedade.

2 Anotamos que Morin (2007) fiz que a complexidade surge quando o pensamento simplificador falha, posto que este desintegra aquela do real e, de outro lado, o pensamento complexo, além de integrar os modos simplificadores do pensamento, recusa as mutilações, reduções, unidimensões, ilusões, considera os pressupostos e suas consequências diversas, enfim permite a percepção pelos sentidos exteriores, o que é fundamental. (MORIN, 2007, p. 8)

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inerência ao debate, equivocado, com as políticas de combate às drogas, sobretudo marcadas pela natureza repressiva e punitiva, que alcança, e atua na saúde.

Cabe ressaltar os esforços das ciências sociais para compreender as relações que se estabelecem entre os vários atores na cadeia produtiva, comércio e consumo de drogas, notadamente as drogas ilegais, assim como as relações políticas e consequências econômicas, culturais, sócio-históricas, dado que se trata de uma questão complexa que perpassa o Estado nas relações e políticas internacionais até as realidades particulares de comunidades, famílias pessoas que se inserem no cultivo de tais drogas (FRAGA, 2015).

Para o que se pretende, especialmente na direção do modelo de investigação, para além da verificação dos fatos, como a construção histórica dos países em relação à temática do uso da cannabis, a estrutura institucional e política e organização disso como informação, é claro, deve ser analisado também os intervenientes e pressupostos contidos nos fatos, seus fundamentos e as consequências e desdobramentos econômicos, sociais e culturais. (ADORNO; HORHEIMER, 1985, p. 84).

O trabalho se desenvolve por um breve resgate e contextualização do tema (cannabis), com centro no seu uso, é claro, conectando com as inafastáveis vinculações com outras finalidades e outras substâncias, além dos componentes morais, éticos, sociais e culturais que se inserem.

Em seguida deslocamos a discussão centrada na ordenação normativa em cada um dos países, já apontando alinhamentos e desalinhos, discutimos elementos específicos da estrutura político-administrativa em cada país para tal regulação e as decorrentes normativas, inclusive implicações objetivas na recepção pelo arcabouço legal, segurança jurídica e estabilidade e a infraestrutura dos serviços, se existentes, e dinâmicas vigentes em cada país, quando das situações reais experimentadas por quem necessita do uso medicinal da substância.

Notadamente com o que se apresenta sobre a agenda e o debate sobre a cannabis e seus usos, considerando o que se impõe na atualidade como embargo a esse mundo melhor, a análise compreensiva se mostra adequada pois permite apontar sobre o estado atual das coisas, sobretudo, “admite nossa insatisfação em relação ao atual estado das coisas mediante a ideia imperativa do desenvolvimento que é transformação e transição para um outro estado das coisas.” (MENDES JÚNIOR; FERREIRA, 2010, p.33)

As considerações qualitativas decorrem no desenvolvimento do que se apresenta em cada país e se relaciona com a descrição de cada um destes, tendo na comparação uma técnica

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adequada já que permite ressaltar as diferenças e similaridades entre os fenômenos ou fatos investigados. (GIL, 2008, p.16/17)

2. Legislação e contexto social: construções histórico-sociais sobre drogas.

De antemão, consignamos o entendimento de certa confusão, talvez sustentada como estratégia de se ter uma agenda sobre questões de drogas, indissociada e reducionista, que não evidencia a multifatorialidade e complexidade contida, repercutindo como a expressão da irracionalidade, de não se avançar adequadamente no debate que envolve a saúde, pelo menos, especificamente sobre o uso medicinal da cannabis.

Embora seja o desafio aqui destacar apenas a cannabis e seu uso, especificamente, no esforço para afastar, temporária e metodologicamente, da famigerada política de guerra às drogas, inevitavelmente deve ser aqui registrado, mesmo que brevemente, a conformação normativa vigente, sobretudo das quais tomam parte Brasil e Portugal, considerando que propomos uma discussão da regulação jurídico-normativa, inclusive.

Brasil

Pelo alcance global enquanto tema e agenda estatal, alcança muitos, senão todos os países em alguma medida e assim, decorrem tratados que buscam agrupar ao máximo os Estados, sobretudo pela iniciativa de órgãos, organismos e agências internacionais. Registra-se que desde 1912, antes mesmo da criação da Liga das Nações (1919), até chegar ao que temos hoje com a Organização das Nações Unidas – ONU (1945), há iniciativas voltadas para o controle de drogas. Citamos a Convenção Internacional sobre o Ópio (1912)3; a Segunda Convenção Internacional do Ópio 1925; a Convenção referente à repressão do tráfico ilícito (1936), o Protocolo que submete a Controle Internacional as descobertas recentes de substâncias sintéticas (1948) e o Protocolo que regulamenta a cultura do Ópio (1953). Ainda, pela dimensão da problemática que envolve as dimensões individuais sobre consumo, dependência, mas afeta também a ordem política e econômica nos países e nas suas relações,

3 Segundo CARVALHO (2004), citando documento produzido pelo Ministro Lauro Müller, Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 1916, somente 11 países, incluindo Brasil e Portugal, aderiram(e ratificaram desde 1912), inicialmente na conclusão do texto da Convenção, sendo um processo bastante moroso por interesses diversos, sobretudo de embates entre EUA, Grã-Bretanha e Alemanha. CARVALHO, J. C. de. Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 7, n. 1, jan./jun.2014, p. 156.

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tem-se a aprovação da Convenção Única sobre Estupefacientes (1961 – ratificada em 1978), e também a nova Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas (1971).

No Brasil, convém um registro fundamental feito por CARVALHO (2014, 9. 168-169):

Um projeto que nasceu no interior do Palácio do Itamaraty em agosto de 1935 e adquiriu força nacional para se tornar a mais alta instância sobre a política brasileira de drogas: A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), que emerge, portanto, em meio ao Governo Constitucional de Getúlio Vargas, mas foi durante os anos do Estado Novo que intensificou suas ações. O Ministro das Relações Exteriores, José Carlos Macedo Soares, emitiu um ofício com data de 8 de fevereiro, endereçado ao então Ministro da Educação e da Saúde, Gustavo Capanema, em cujo título se lê: “Estupefacientes: proposta de systematização do serviço repressivo”[sic], contendo uma cópia em anexo da nota circular de 6 de dezembro de 1934, produzida pelo secretariado geral da Liga das Nações, convocando os países a ingressar na luta contra a propagação da toxicomania e contra o tráfico ilícito. 4

Especificamente sobre o Brasil, além dos necessários atos para implementar as Convenções Internacionais, tanto de 1931 como de 1936, que estava em tramitação, outros fatos determinaram a perspectiva de ação às drogas, incluso o tratamento dado a cannabis, em destaque as pressões feitas pelo EUA, ao que o Brasil se alinhou. Tanto que se tratava mais de uma relação política, econômica e, pouco menos, de saúde, que a primazia no processo de articulação de para sistematizar e executar as decisões das convenções, embora dirigidas ao Departamento Nacional de Saúde Pública, se deu a partir do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), inclusive com um espaço físico na sede deste, embora aquele estivesse contido na estrutura do Ministério da Saúde.5

Vale reforçar que o Brasil, pelo alinhamento com os EUA, embora signatário das primeiras e todas as demais Convenções Internacionais, adota a partir de então, uma postura contrária ao que defendera antes, abandonando os estudos científicos feitos, pleiteando que a maconha constasse na mesma lista do ópio, levando à proscrição no país e atuando para abolir tanto o cultivo como o consumo no país. 6

4 Idem CARVALHO, 2014, p. 168-169.

5 Nessa ocasião o Brasil fez empréstimos ao EUA, como 97% de seus produtos entravam nos EUA sem impostos, os EUA aumentaram, nessa mesma época, em 130% as exportações para o Brasil e, com tais pressões, a estruturação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE) seguiu exatamente as políticas determinadas pelos EUA. Ver BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2007. p. 290.

6 Com a Lei Seca nos EUA e o aumento gerado do consumo de cannabis, neste país difundiu-se o boato de que os crimes tinham relação com a planta, veja que coincide com a crise de 1929, e o aumento da criminalidade. Lobby da indústria petroleira e de tecidos sintéticos, que utilizavam, respectivamente os combustíveis à base de óleo de maconha e o cânhamo agiram para a criminalização da planta. Evidentemente, o Brasil seguiu os EUA.

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Em 1932, o Decreto n.º 20.930 incluiu a maconha (cannabis indica) como produto proibido, sendo seu uso restrito para doença de internação e notificação compulsória, sendo a conduta de ter consigo, em casa ou sob sua guarda, penalizada em até 9 (nove) meses de prisão. Além disso, seria crime a venda, ministração, doação, troca, cessão ou qualquer uso sem autorização, com penas de 1 (um a 5 (cinco) anos de prisão.

O governo Getúlio Vargas, com a Constituição de 1934, e a decretação da Lei de Segurança Nacional, e o decorrente estado de exceção e estado de sítio, evidentemente, menos direitos individuais e suas garantias constitucionais, repercutindo ainda mais o controle e repressão pelo Estado, resultando no Decreto-lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que previa penas ainda mais severas para o comércio não autorizado e punia, indiretamente, o ato de consumir as substâncias proscritas, prevendo pena de até 4 (quatro) anos de prisão para a conduta de ter consigo sem prescrição de uso terapêutico ou sem observância das prescrições legais.

Isso perdurou durante anos e somente na década de 1970 houve novas alterações legislativas, sendo dedutível que maior repressão marcou tal período, dada Ditadura Militar a partir de 1964. Inseriu-se a Lei nº 6.368 em 21 de outubro de 1976 que tornaram mais graves as penas tanto para as condutas interpretadas como de usuários (seis meses a dois anos), como para aquelas entendidas como de traficantes (três a quinze anos), incluindo penas para as condutas de apologia à quaisquer drogas.

Evidente incoerência, uma vez mais, posto que as Convenções Internacionais estabeleciam que deveriam os Estados-partes regularem o uso médico e científico, coibindo a comercialização não autorizada, mas o Brasil seguia na repressão das condutas, inclusive de consumo pessoal, na evidente perspectiva repressivo-punitiva, em nada médico-terapêuticas. Convém ressaltar que todos os textos internacionais deixam grande margem de atuação aos Estados para criação de leis e políticas sobre drogas, de acordo com a realidade própria e no respeito às leis internas, inclusive em nada determinando prescrições legislativas criminais, ainda não fixando obrigações de processamento pelo sistema de justiça criminal. (VIDAL, 2009, p. 67-68).7 Assim expressa, por exemplo, os artigos 3 e 4 da Convenção Contra o

Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (1988), promulgada pelo Decreto n.º 154 de 26 de junho de 1991, no Brasil.

7 Para mais detalhes sobre prescrições dos textos internacionais que não obrigam a repressão e punição como única forma de atuação do Estado, veja VIDAL, S. A regulamentação do cultivo de maconha para consumo próprio: uma proposta de redução de danos. In: NERY FILHO, A., et al. orgs. Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA; Salvador: CETAD, 2009.

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A partir da Constituição Federal Brasileira de 1988, alguns artigos (5º e 6º por exemplo) inserem o direito à saúde, à vida e a base principiológica, ética e normativa da dignidade humana, reverberando na atuação do Estado e suas políticas públicas dispostas. Pelo cenário social (re)democratizante, dialógico e participativo, vislumbrava-se abertura acadêmica, científica, social para de vez incluir o tema-agenda da cannabis em todos os seus aspectos: saúde, economia, educação, assistência e político-institucional. Porém, a falta de regulamentação, ou a regulamentação parcial, conservadora e ainda limitada por condicionantes externas aos problemas relacionais de saúde repercutem nos atrasos e anacronismos institucionais do Brasil, que afetam pacientes na saúde e o mercado.8

Fundamental aqui descrever, mesmo que brevemente, a estrutura normativa e de serviços disposta pelo Brasil quanto a regulação sobre drogas, especificamente para o caso de uso da cannabis, notadamente para os casos de importação de insumos ou medicamentos.

A estrutura estatal permanente é o Ministério da Saúde, órgão de administração direta, constante do organograma federal, subordinado e com atuação centralizada, operacionalmente dependente da personalidade jurídica do Estado (Governo Federal). De outra forma, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) se constituti de ato legislativo próprio, instituída como agência reguladora, em forma de autarquia de regime especial, regulada pela Lei n.º 9.782, de 26 de janeiro de 1999, regulamentada pelo Decreto n.º 3.029/1999, sendo órgão autônomo da Administração Pública, com patrimônio e receitas próprias, goza de independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira, realiza atribuições atípicas do Estado, exercidas de forma descentralizada.9

Em termos jurídico-normativos, a ANVISA dispõe em seu regimento interno (RDC n.º 255/2018), como instrumentos deliberativos e decisórios, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC), que se constitui em ato que expressa decisão colegiada para edição de normas sobre matérias de competência da Agência, com previsão de sanções em caso de descumprimento. (BRASIL, 2018, p. 35)

Precisamente sobre a regulação do uso da cannabis, a regulação vigente tem como ato de existência formal a veiculação por estas Resoluções, evidentemente, em consonância com

8 Estimava-se, no ano passado, que o mercado de Cannabis medicinal movimentaria cerca de 40 bilhões de dólares por ano até 2023 (SILVA SANTOS; VASCONCELOS, 2020, apud VASCONCELOS, 2019, p. 3). 9 Sobre atribuições, finalidades da ANVISA, conferir, dentre outros, os seguintes artigos:

Art. 6º A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.

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a legislação mais ampla vigente no país, especialmente sobre políticas de drogas. Assim, intransponível a relação com as prescrições legais mais amplas, para situar adequadamente.

A Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de Drogas - traz a principal regulação sobre drogas, após a Constituição Federal de 1988 e, no caso da cannabis e seu uso, convêm a citação:

Art. 2º -Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso. Parágrafo único. Pode a União autorizar o

plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas (grifos nossos) supramencionadas" (BRASIL, 2006)

Importante o grifo para evidenciar a omissão do Estado, posto que a lei restringe a iniciativa legal e a jurisdição exclusiva, pois no lapso de 2006 a 2015 nenhuma regulação proposta sobre a cannabis para fins medicinais e científicos. Ainda assim, em 2015 houve um parcial movimento com a edição da Resolução da Diretoria Colegiada–RDC n°17, de 06 de maio de 2015.10

Aqui se tem um instrumento regulador que fixa uma medida administrativa – Autorização11 – para que pessoas que necessitassem do produto pudessem buscar uma licença para importação de produto à base de cannabis, para seu uso pessoal. Mesmo intempestivamente, dado o atraso com omissões na regulação e os prejuízos causados à milhares de pacientes que careciam de tratamento adequado, pressionado por movimentos sociais, familiares de pacientes, processos judiciais, o Estado, em certa medida, sinaliza a dimensão do problema social, assumindo sua atribuição de regular, a seguir, toda a cadeia produtiva, como também isso simboliza o reconhecimento estatal (público, formal, jurídico-legal) dos benefícios do produto à saúde.

10 Essa Resolução da Diretoria Colegiada–RDC n°17/2015 “define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de canabidiol em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde”.

11 A Autorização Sanitária para Produto de Cannabis é ato administrativo autorizador para a fabricação, a importação, a comercialização, o monitoramento, a fiscalização, a prescrição, a dispensação, a fabricação e a importação de produtos com finalidade medicinal que contenham Cannabis sativa em sua formulação. Tal autorização é temporária e tem prazo de validade de cinco anos, não renováveis.

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Em seguida veio a Resolução de Diretoria Colegiada – RDC N.º 262 que facilitou a importação de medicamentos à base de cannabis, pelo Sistema Único de Saúde – SUS, em um processo mais ágil quanto às barreiras alfandegárias e burocráticas para licenciamento de importação, ainda que os produtos ou bens não estivessem regularizados pela ANVISA, e decorrentes de ações judiciais para tratamento clínico de pacientes.

Portugal

Registra-se que em Portugal as drogas se tornaram um grande componente do meio social, no caso, em um país desestruturado econômica, politica e institucionalmente, já que saia de um período ditatorial, nomeadamente levado a cabo por Antonio Salazar que se notou em tal período (1934 – 1974).

Assim podemos considerar, iniciou-se uma transição democrática a partir da Revolução dos Cravos e, assim supomos, com a saída de um período repressivo, de liberdades tolhidas, em certa medida, houve certa catarse coletiva pelas liberdades individuais que se apresentaram de formas diversas pelos indivíduos, famílias, comunidade e, também, mesmo entendendo que a transição se deu para a democracia, os governos instituídos a partir de então, não tiveram a compreensão da problemática sobre drogas, implementando políticas governamentais rumo à repressão, indistintamente quanto aos traficantes e consumidores de drogas, recrudescendo leis, por sua vez, direcionando o sistema de justiça e instituições inclusas, na perspectiva de criminalização máxima, resultando, evidentemente, no encarceramento em massa.

Em um estudo descritivo e compreensivo da evolução jurídica, política e fenomenológica das drogas em Portugal entre 1970 a 2004, Dias (2007) registra que se partiu da inexistência ou insuficiências, com pouquíssimas iniciativas da década de 1960, a não ser a preocupação com o crescimento de usuários de drogas, mas o óbice de um modelo governamental pautado na insuficiência jurídico-moral, despreparo do órgãos estatais, inclusive polícias e imperfeições dos instrumentos normativo-legais. (DIAS, 2007, p. 14). A autora pondera que no início de 1970 se tinha uma política pautada na criminalização, sustentando ações generalizantes, entendendo o fenômeno como um “perigo público”, que traz danos só tecido social, à saúde pública, além de afetar negativamente a economia do país.

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Em meados da mesma década (1976), parte-se para uma leitura mais precisa do fenômeno e se fixa no segmento da juventude, relacionando este ao consumo de drogas pelas dinâmicas juvenis e peculiaridades biológicas, sobretudo psicossociais. Criaram-se o Centro de Investigação Judiciária da Droga (CIJD) e o Centro de Estudos da Juventude (CEJ), e instrumentos legais para o combate ao consumo e tráfico de drogas, notadamente com ações especiais aos jovens.

No início da década de 1980 houve ampliação de órgãos e estruturas estatais para atuação sobre drogas, voltadas para estudos, mas sobretudo intervenções em saúde e prevenção, como também no combate ao consumo e tráfico.12 Percebe-se sutil mudança de perspectiva política, de ações eminentemente criminalizadoras para um viés psicossocial, com matizes mais abrangentes do fenômeno, rompendo a visão simplista e reduzida da penalização – jurídico-penal – inserindo as dimensões da saúde, precisamente nas intervenções preventivas, em grande medida, evidentemente se mantendo potente a ação repressora e punitiva.

A partir de 1983 Portugal conheceu uma nova era de reflexão política face ao fenômeno das drogas tomando-se uma visão sociológica e institucional: o toxicodependente era encarado como um cidadão doente e que, pelo seu estilo de vida, coloca problemas de saúde pública pelo que se torna necessário motivá-lo para tratamento. Deste modo, o modelo biopsicossocial surgiu como referência dominante no período entre 1983 e 1999, marcado por uma nova tendência organizativa e estrutural na área da droga e da toxicodependência, por um lado, com a criação das estruturas do Projecto VIDA (em 1987) e do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência (em 1990) e, por outro lado, com a criação, a partir de 1999, do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência. (DIAS, 2007, p. 15)

O que se vê a partir de 1999, com a aprovação da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, foi uma reorientação de políticas setoriais relativas à droga e à toxicodependência; uma ruptura de concepção que reordenam a ação estatal ao abandono da repressão, criminalização e encarceramento, para a consideração das transformações dadas pela dinâmica sócio-histórica do estado, que exige o mesmo dinamismo das políticas públicas, no caso, demonstrando maturidade e evolução das instituições, com uma política de descriminalização do consumo de drogas.

12 Foram criados no final da década de 1970, início de 1980, os Centros de Estudos da Profilaxia da Droga (CEPD) - Norte, Centro e Sul; o Centro de Investigação e Controle da Droga (CICD); o Gabinete Coordenador do Combate à Droga (GCCD).

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Especificamente, no debate da cannabis para fins medicinais, Portugal também se referencia nas Convenções Internacionais das quais o Brasil também se obriga. Assim foi com os textos de 1912, 1925 com as Convenções Internacionais do Ópio.

O alinhamento com os tratados internacionais vigentes, ajustados também a partir dos ajustes e exigências em bloco, pela União Europeia, tinham a mesma direção nas décadas de 1980 e 1990. Porém, a partir da A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, destacam-se o Decreto-Lei n.º 15, de 22/01/1993 e Decreto Regulamentar n.º 61, de 12 de outubro de 1994.

O INFARMED13 - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, constitui-se como um instituto público de regime especial, criado por lei específica, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimônio próprio, ou seja, equivalente ao que temos no Brasil, com a ANVISA.

Também, tardiamente Portugal concedeu autorização para desenvolvimento de atividades previstas para fins medicinais. Embora admitido desde 1926, somente em 2014 e 2017 se registram as primeiras autorizações para que empresas buscasse formalizar atividades no país.

A canábis medicinal ficou sempre contida no âmbito da regulação do combate à droga, não seguindo nem no plano internacional nem no plano nacional o mesmo caminho regulatório dos medicamentos em sentido próprio, nem o dos vários estatutos paralelos que sobre ele foram criados (como o estatuto dos medicamentos manipulados ou o estatuto dos medicamentos à base de plantas) 14

13 O Infarmed tem por missão regular e supervisionar os sectores dos medicamentos de uso humano e produtos de saúde, segundo os mais elevados padrões de proteção da saúde pública, e garantir o acesso dos profissionais da saúde e dos cidadãos a medicamentos e produtos de saúde de qualidade, eficazes e seguros.

São atribuições do Infarmed:

a) Contribuir para a formulação da política de saúde, designadamente na definição e execução de políticas dos medicamentos de uso humano e dos produtos de saúde, o que inclui dispositivos médicos e produtos cosméticos e de higiene corporal;

b) Regulamentar, avaliar, autorizar, disciplinar, fiscalizar, verificar analiticamente, como laboratório de referência, e assegurar a vigilância e controlo da investigação, produção, distribuição, comercialização e utilização dos medicamentos de uso humano e dos produtos de saúde, o que inclui dispositivos médicos e produtos cosméticos e de higiene corporal;

[...]

f) Monitorizar o consumo e utilização de medicamentos de uso humano e produtos de saúde; [...]

14 GAMA, João Taborda da; DELGADO, Joana Albernaz. Regulação da canábis medicinal em Portugal: mistério e proveito. In: Drogas e sociedade: estudos comparados Brasil e Portugal / organização Paulo Fraga, Maria Carmo Carvalho. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019, p. 18.

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Com as normativas em Portugal, o regime jurídico imposto determina que medicamentos que contenham cannabis sejam, simultaneamente, ao controle no regramento de medicamento e de combate à droga, pois era qualificada como uma planta, substância e/ou preparação, dependendo da forma como se apresenta, prevista e regulamentada apenas pelo Decreto-Lei n.º 15/93 e respetiva legislação complementar (vigente até 2018). 15

Mas, uma fundamental distinção do Brasil, é que em Portugal um medicamento que tenha na sua composição a cannabis não se sujeita ao mesmo estatuto da legislação de combate à droga, sendo considerado medicamento, com o regime próprio de medicamentos de uso humano. Mais precisamente, em termos jurídicos, p. ex., o medicamento Sativex, não é

cannabis. Distinguindo-se da condição de medicamento, a cannabis para fins medicinais e na

perspectiva da legislação de combate á droga pode ser apresentada de várias formas: folhas, sumidades floridas ou frutificadas, resina, óleo, sementes e os respetivos sais, não apenas como medicamento. Mais que isso, é tida como uma categoria jus-farmacológica, com regras próprias de produção, de comercialização e de prescrição médica na legislação de combate à droga.16 Vale lembrar que no Brasil, apenas se admite a importação por empresas autorizadas, a partir de extrato e óleo (industrializado), ou a granel como fitofarmacêutico, não se permitindo por nenhuma outra apresentação, para em seguida desenvolver o produto.

Embora aparente sutil, comparativamente, a distinção na regulação, mesmo com duplos controles de inspeção e condicionamentos, as premissas iniciais de separação das finalidades do uso da cannabis, mesmo que seu uso medicinal, contraditoriamente conste do âmbito do controle de drogas, não alcançando os medicamentos que a contenham em sua composição (controle de medicamentos – saúde), como se dá em Portugal, antecipa questões que afastam intervenientes que ainda hoje no Brasil limitam a questão, como as relações com o sistema penal e penitenciário, dado o viés proibicionista e punitivista, antes até, a discussão da forma de apresentação, além das condições de prescrição e ministração, sem contar os enviesamentos ideológicos, morais, religiosos, sempre associando as finalidades recreativas da cannabis, absorvendo e limitando o debate de sua finalidade medicinal. No mesmo

15 Recente alteração no Decreto-Lei 15/1999 e o Decreto Regulamentar n.º 61/1994, especialmente, com oaa inovação do Decreto Regulamentar n.º 2/2020 que traz nova alteração, permitido o uso do cânhamo, distinguindo o uso industrial do uso medicinal, inclusive. (substância extraída da cannabis). Pleo novo decreto regulamentar são atribuídas as funções de controle a entidades das áreas governativas da agricultura e da justiça relativamente ao cultivo de cânhamo que se destina a fins industriais. Destaca-se aqui, mais um caminho para se conseguir autorização para uso de algumas substâncias da cannabis, no caso, a autorização para o cultivo de cânhamo para fins industriais, previsto no n.º 4, deve ser requerida à Direção-Geral de Alimentação e Veterinária.

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cenário, indistintamente, se insere na discussão da saúde de muitos pacientes que tem urgência do uso do produto, a repressão e punição pelos desvios de condutas, quase se constituindo como um direito penal da saúde.

3. Regulação para o uso medicinal da cannabis?: análise compreensiva sobre a norma e a forma.

De modo geral, muito pela luta das famílias e de pacientes que necessitam de tratamento e tem na cannabis tal possibilidade, diante de uma legislação inadequada, no Brasil se verificam várias formas de mobilização e o uso dos recursos disponíveis para isso, como os eventos acadêmicos, as marchas e mobilizações de rua, reivindicações nos parlamentos, audiências públicas, e a judicialização de demandas para produção ou importação da cannabis para fins terapêuticos. Com isso, verificou-se não somente a pauta mais intensa junto ao órgão regulador, como significa uma agenda cada vez mais evidenciada e que merece enfrentamento e discussão em todos os espaços da sociedade.17

O cenário, então, fez com que da ANVISA fossem editadas as RDC 327/2019 e a RDC 335/2020. A primeira tratou da regulamentação dos “produtos à base de cannabis” e esta última sobre o “processo de importação do canabidiol”.

A RDC 327/2019 apresentou a categoria de “produtos à base de cannabis”, o que facilitou o registro dos produtos no país, recebendo a autorização sanitária necessária para serem vendidos em farmácias e drogarias. Em termos práticos, a morosidade de três (3) meses ou mais, agora não se verifica, pois é possível que o paciente saia da consulta médica e adquirir a medicação imediatamente.

Outra mudança posta é sobre o THC (tetra-hidrocanabinol), que é outra substância presente na cannabis e que tem controle mais rigoroso no Brasil, por conta de seus efeitos com potencial de dependência. Passa a ter uma distinção para produtos com até 0,2% de THC, que os médicos seguirão a receita tipo “B” e aqueles produtos receitados com níveis superiores a 0,2% (receita tipo “A”), com maior controle na autorização. Para esta receita (tipo “A”), se aplica para o caso de pacientes que já esgotaram suas opções de tratamento ou

17 Registra-se que só em 2019, a Anvisa registrou crescimento de mais de 50% em comparação com o ano anterior, chegando a um total de mais de 4,5 mil pacientes brasileiros que fazem algum tipo de tratamento com a Cannabis medicinal, um crescimento de mais de 700% em cerca de 4 anos. Ver informação completa em https://hempmedsbr.com/regulamentacao-importacao-entenda-as-resolucoes-da-anvisa-sobre-a- cannabis

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em situações irreversíveis ou terminais. Aqui temos um evidente desestímulo à autonomia técnica do médico para indicar o tratamento e a melhor forma, independente de uma ordem virtual de adequação. Talvez, muitos médicos, por receio das implicações, não farão a prescrição médica porque não se tem claro se haveria outras terapias, “antes” do tratamento com a cannabis.

Ressalte-se, ainda, que na ocasião da deliberação da ANVISA, esta RDC se deu como aprovação transitória, devendo ser revisada a cada 3 anos, como também não foi aprovada resolução sobre o plantio de cannabis no território brasileiro, mesmo que para fins medicinais e de pesquisa.

Isso repercute sobremaneira, pois a instabilidade e insegurança jurídica se instala, dado que por ser uma normativa passível de alteração ou mesmo supressão, a depender de procedimentos internos simples da Diretoria Colegiada com seus 5 diretores, por ato administrativo (e não legislativo), sem participação de outros interessados, sujeito ainda a interferências de ordem externa não técnica ou médico-sanitária. Ainda, pela impossibilidade de cultura da cannabis no país, os preços do produto ficam elevados, além de em quase nada atuar na geração de empregos ou receitas ao país.

A última regulação sobre o uso da cannabis no Brasil adveio da Resolução de Diretoria Colegiada - RDC n.º 335, de 24 de janeiro de 2020, substituindo a RDC n.º 17/2015, trazendo algumas modificações no processo de importação do canabidiol: i) prazo ampliado de 1 (um) para 2 (dois) anos a validade dos cadastros para importação; ii) criação do procurador legal, que fica autorizado a realizar a importação em nome do paciente; iii) supressão de exigências excessivas para o processo de importação (antes se exigia prescrição médica, laudo, formulário, todos em separados) e, agora, basta a apresentação da prescrição médica, contendo nome do paciente, do produto, posologia, data, assinatura e dados do profissional, inclsuive houve a unificação de sistema de serviços no Governo Federal para recebimento on line de formulários iv) desnecessidade de informar a quantidade de canabidiol, o que será detalhado apenas quando da entrada no país.

Convém, ainda, observar que se mantém a excepcionalidade na importação dos produtos e no tratamento dessa matéria, posto que a regra é a proibição tanto da produção como do comércio no Brasil. Sendo mais específico, como a importação da planta in natura ou partes dela é proibida, as empresas deverão importar tais insumos na forma de derivados

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de plantas ou fitofarmacêuticos, a granel ou como um produto industrializado pronto (óleos, extratos, para em seguida desenvolver o produto.

Em Portugal, a Lei n.º 33, de 18 de julho de 2018, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 8/2019, resultou de atuações legislativas com parâmetros bem delineados e exclusivos de prescrição médica da cannabis, garantindo discussão restrita, mas objetivamente articulada, o que também encontrou não apenas melhor tramitação no parlamento, como também melhor apropriação por parte da população. Em Portugal, o que ocorre é a “descriminalização” de todas as drogas, incluindo a cannabis, a cocaína e a heroína, tendo claro que os efeitos da não criminalização é que se tem uma conduta administrativa (contraordenamento), e não penal. Também não significa que estão legalizadas as drogas. Seu uso e posse seguem proibidos, porém, mas não há mais encarceramento para o indivíduo usuário ou dependente e sim medidas administrativas, alternativas como multas e indicações de tratamento.

Aqui também reside uma condição prévia fundamental, no nosso entendimento, que reflete sobremaneira no tratamento dado na regulação dos usos da cannabis no país. A distinção entre sistema de saúde e sistema criminal desenha melhorias em ambas as frentes, sendo que podem compatibilizarem as políticas de enfrentamento às drogas e o tratamento das pessoas usuárias de drogas.

Vale dizer também que em Portugal já se admitia a prescrição médica da cannabis para fins medicinais, embora tenham se passados décadas sem qualquer operacionalização. O mesmo se deu com o Brasil, que mesmo com sua política nacional de 2006 – Lei N.º 11.343/2006, regulamentada pelo Decreto nº 5.912/2006, somente se dedicou a regulação dessa finalidade medicinal a partir de 2015. GAMA e DELGADO (2019) acreditam que o fato de ter em Portugal empresas que desenvolviam atividades relacionadas a cannabis medicinal, adicionado pelo fato ser serem os produtos exportados para pacientes estrangeiros e disso ser de amplo conhecimento pela população, soaria incoerente o Estado negar acesso aos pacientes nacionais.

Cabe frisar que em Portugal, da política nacional que tem a descriminalização do porte e consumo de cannabis, inclusive, com a Lei n.º 30/2000, a normatização sobre usos e finalidades da cannabis também se deu por uma lei nacional e não por um instrumento normativo provisório e precário. Isso é fundamental porque reflete não apenas na dimensão jurídica e judiciária, com as práticas nos tribunais e interpretações e decisões voláteis e díspares, mas também traz implicações de ordem emocional e na atitude de famílias e

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pacientes que, por receios de mudanças e objeções nos procedimentos de importação dos produtos, por exemplo, com tal insegurança jurídica.

Mesmo que em Portugal haja burocracias e entraves diversos, dado que também deve ter tramitação administrativa morosa, ao menos não se tem com possível o retorno da proibição ao uso da substância, repentinamente, pois exige tramitação congressual, dada a vigência da Lei 33/2018. No Brasil, embora haja a Lei 11.343/2006, como acima citamos o seu artigo 2º e § Único, esta não descriminaliza nada; apenas afirma como regra as proibições, fixando competência do Governo Federal (União) para poder (facultativo) autorizar uso para fins medicinais ou científicos. Também, não se tem outra lei específica tratando do uso medicinal da cannabis.

Há maior estabilidade e segurança jurídica em Portugal, e mesmo com a regulamentação tardia (Lei 33/2018 e Decreto Lei 8/2019), esta se veicula como lei nacional sendo sua efetivação jurídica mais plausível e com base normativa para exigência sustentada, além do suporte dado pela lei nacional que descriminaliza o uso e porte de drogas (Lei 30/2000).

No Brasil, como dito aqui, a lei nacional vigente (Lei 11.343/2001) não dá tal suporte, ao contrário, como se vê em seu artigo 28, criminaliza condutas que se verificam para garantir tratamentos. Por isso, tramitam projetos no Congresso Nacional que pretendem a revogação desse artigo, dentre outras mudanças.18

Importante reafirmar aqui o que significa a Resolução, como ato administrativo que veiculam as mais precisas normativas sobre uso da cannabis no país (RDC 327/2019 e RDC 335/2020). Difere da lei pelo rito processual, abrangência, precisão e obrigatoriedade, dentre outros critérios. Resolução se constitui como instrumento usado na Administração Pública para dispor de assuntos internos, no caso, a ANVISA, por exemplo, com seu regimento interno (RDC n.º 255/2018).

Nestas resoluções (RDC 327/2019 e RDC 335/2020) constam, respectivamente, disposições sobre a concessão de Autorização Sanitária para fabricação, importação e outras condutas sobre a cannabis ara fins medicinais e sobre os procedimentos para a importação de

18 Na Câmara dos Deputados tramita o Projeto de Lei (PL) 399/2015 que regulamenta o plantio por meio de licença a empresas e associações de pacientes que apresentarem demanda justificada e analisada pela ANVISA e outros órgãos competentes. E, no Senado, corre o PL 514/17que altera tal artigo 28, embora não preveja sua revogação, para descriminalizar o “cultivo da Cannabis sativa para uso pessoal terapêutico, em quantidade não mais do que suficiente ao tratamento, de acordo com a indispensável prescrição médica.”

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Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.

Na mesma análise sobre segurança e estabilidade jurídica e institucional, o ato preciso de Autorização versa sobre algum requerimento no interesse de particular levado ao Estado, sendo um ato administrativo precário, dado que tem prazo definido e não se estende no tempo de modo permanente e quem detém a autorização não tem direito à continuação, podendo ser o ato revisto a qualquer tempo, e ainda é um ato discricionário, inclusive, já que pode ser revogado, por ato unilateral da ANVISA, por conveniência e oportunidade, além das exigências de adequação formal.

Outra configuração questionável é a confusão conceitual expressa na legislação em Portugal, pois a lei traz “o quadro legal para a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais, nomeadamente a sua prescrição e a sua dispensa em farmácia. (PORTUGAL, 2018, p. 1). O Decreto-Lei n.º

8/2019 separou claramente os conceitos de medicamentos, preparações e substâncias, deixando para o conceito de medicamentos, os medicamentos propriamente ditos, em cuja composição entram substâncias ativas derivadas da canábis (como o Sativex®), e descrevendo as substâncias como sendo as plantas da canábis propriamente ditas, ou partes destas, ou exsudados (retirada de líquidos) não sujeitos a tratamentos, e as preparações como sendo o resultado da sujeição de substâncias derivadas da canábis a determinados tratamentos (extração, destilação, expressão, entre outros).19

Na regulação normativa, medicamentos à base da planta cannabis seguem o regime de qualquer medicamento (DL 15/93 e legislação complementar e se sujeita a Autorização de Introdução no Mercado (AIM); a cannabis para fins medicinais é regulada pela Lei 33/2018 e DL 8/2019, basicamente a mesma referência para as preparações e as substâncias à base da planta cannabis e as preparações e substâncias ficam sujeitas a outra espécie de autorização – Autorização de Colocação no Mercado (ACM), com exigências menores, sobretudo técnico-científicas com o s testes clínicos. Ambas concedidas pelo INFARMED.

Um grande embargo à efetividade e agilidade no processamento das autorizações é que o INFARMED detém a “competência para aprovar as indicações terapêuticas consideradas apropriadas para os medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis destinadas a uso humano com fins medicinais” e, assim, a existência de uma lista de

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indicações terapêuticas consideradas apropriadas para a prescrição de preparações e substâncias à base da cannabis, sendo tal lista publicada periodicamente em revista após aprovação pelo conselho diretivo do INFARMED.

4. Considerações finais: análise (in)compreensiva de cenários atuais

De um lado, no Brasil, o receio dos profissionais médicos em prescrever o medicamento pelo receio de ter questionada sua autonomia na indicação do tratamento, que mesmo sendo o tratamento adequado, pode vir a ser questionado por não ter se esgotado outras possibilidades antes de indicar o tratamento com a cannabis. De outro, em Portugal, a limitação da autonomia se tem com o engessamento posto na lista fechada definida com as indicações terapêuticas consideradas apropriadas paras as prescrições, no caso de preparações e substâncias à base da cannabis.

Resulta, em Portugal, desde então, o surgimento de negócios que comercializam produtos de cannabis como usando a estratégia proteção contra o controle punitivo do Estado de veicular tal venda como sendo produto para suplementação alimentar, mas de fato adquiridos pelas pessoas para terapêuticas. Além da falta de certificação formal pelos órgãos estatais, fica a dúvida quanto à eficácia do produto, para a finalidade de tratamento, embora não se destine a tal.

Como é exigida a prescrição médica para aquisição de produtos de cannabis medicinal, limitando à lista fechada permitida pelo INFARMED, além de ser exigido também que tal receita seja aviada em uma farmácia ou drogaria; esta lista de indicações é muito restrita em termos de doenças e afecções que poderiam ser tratadas com a cannabis. Ainda, há exigência adicional que os estabelecimentos busquem uma licença especial junto ao INFARMED para que possa comercializar produtos derivados de cannabis para uso terapêutico.

Fato é que em Portugal, nas farmácias e drogarias, não se tem encontrado produtos para venda, alegando-se que as empresas não tem se interessado em requer autorização Autorização de Introdução no Mercado (AIM) de seus produtos, no país. Algumas empresas estrangeiras informam que o mercado português não é atrativo, pois além da burocracia junto a INFARMED para as autorizações e licenças, pelas próprias restrições com lista fechada de

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indicações terapêuticas a serem feitas por estas, e não pelos médicos, não sabem se terão seus produtos prescritos pelos médicos ou se poderão ser vendidos, daí o desinteresse.

Com isso, tem havido também busca por outras formas de acessarem tais produtos, como a comercialização virtual em lojas que não se conhecem ou não dispor de registros regulares (dentro e/ou fora do país), nem mesmo garantem as certificações terapêuticos dos produtos, gerando não apenas a insegurança no aspecto legal, pois podem ser tais situações tidas como tráfico de entorpecentes, como a insegurança médico-farmacológica e sanitária, por desconhecer origem e processo dos medicamentos ou produtos.

No Brasil, desde 2014 era permitido o uso pessoal de produtos com canabidiol através de pedido excepcional de importação, inclusive chegando a exclusão da substância no rol de proibidas passando a substâncias controladas, em 2015. Com a Resolução de Diretoria Colegiada - RDC n.º 66/201620 passou a se admitir a importação de produtos à base de CBD e THC, para fins medicinais, embora nada sobre o plantio para produção industrial ou individual tenha sido tratado, impedindo o acesso de muitos ao tratamento pelos custos do tratamento. Também, nada mudou com a RDC 327/2019 que também ficou omissa sobre o autorização para o plantio, e embora tenha permitido a aquisição dos produtos para produção no país, estes são importados (pois se proíbe o cultivo interno) e os preços finais do produto também restringem o acesso ou impedem o tratamento, por esta via.

Ocorre que muitas pessoas interessadas, movimentos, universidades e empresas seguem na busca de medidas pela via legislativa, mas com os entraves que essa via apresenta, os meios judiciais figuram como opções efetivas. Reunidas em associações, interessados como pacientes e familiares, além de juristas tem obtido permissão junto ao Judiciário para realizar pesquisas e fornecer medicamentos para os pacientes associados, além de realizarem estudos e pesquisas. Com isso, garantem o acesso a preços mais adequados a realidade dos pacientes, bem como se apoiam na mobilização por outras frentes.21 Além das associações,

20 Por decisão judicial proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0090670-16.2014.4.01.3400, proposta pelo Ministério Público Federal no Distrito Federal e deferida pelo juiz Marcelo Rebello Pinheiro, da 16ª Vara/DF, a RDC altera o art. 61 e inclui adendos nas Listas “E” e “F2” do Anexo I da Portaria SVS/MS nº 344/98, bem como altera o art. 3º e revoga os artigos 5º e 6º da RDC 17/2015, passando a permitir a prescrição médica e a importação, por pessoa física, de produtos que contenham as substâncias Canabidiol e THC em sua formulação, exclusivamente para uso próprio e para tratamento de saúde.

21 Citamos algumas que são responsáveis por vários remédios judiciais para que haja a produção Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis (Apepi); Ama+me: Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal; Cannativa – Associação de Estudos sobre Canabis; Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace); SBEC – Sociedade Brasileira de Estudos da

Cannabis; Acuca – Associação Cultural Cannábica de São Paulo; Associação Cannab – Associação para

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muitas medidas judiciais - habeas corpus preventivos - tem sido promovidos, diretamente pelos pacientes ou familiares, pelas Defensorias Públicas ou por advogados particulares constituídos, para importação, cultivo e produção de plantas e extração de óleo para o tratamento de diversas doenças. Mas, sem certezas de êxito dadas as decisões diferentes, inclusive com argumentos não científicos ou meramente formais.22

O quê se esperar do futuro passa pelo “não esperar”. As omissões históricas ilustram violações de direitos, não apenas práticas comumente vistas na Administração Pública, a se justificarem como aceitáveis por conjecturas administrativas e gerenciais. Passa pelo aprendizado social, pela articulação institucional e pela dotação estrutural dos espaços decisórios pra, de vez, instituir uma agenda definitiva, progressista e progressiva a ocupar todos os espaços para discussão e aprofundamento. Passa pela instituição de uma gramática democrática que alcance a complexidade do debate sobre a cannabis.

Referências

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22 Segue tramitando no Supremo Tribunal Federal – STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5708), em apreciação do Recurso Extraordinário 635.659, e que propõe revogar o artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 – Lei de Drogas (11343/2006) – e que está com julgamento pendente, contando com 3 votos favoráveis, até então. Mas, como dito antes, também tramitam projetos legislativos que também propõem alterações nessa mesma lei.

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FRAGA, P. e CARVALHO, M. C. (orgs.) Drogas e sociedade: estudos comparados Brasil e Portugal - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019.

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