• Nenhum resultado encontrado

Uma introdução à reflexão sobre a abordagem sociocultural da alimentação

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Uma introdução à reflexão sobre a abordagem sociocultural da alimentação"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Uma introdução à reflexão sobre a abordagem sociocultural da

alimentação

Ana Maria Canesqui

Rosa Wanda Diez Garcia

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

CANESQUI, AM., and GARCIA, RWD., orgs. Antropologia e nutrição: um diálogo possível

[online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 306 p. Antropologia e Saúde collection. ISBN

85-7541-055-5. Available from SciELO Books <

http://books.scielo.org

>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non

Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição -

Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons

Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

(2)

Uma Introdução à Reflexão sobre a

Abordagem Sociocultural da Alimentação

Ana Maria Canesqui

Rosa Wanda Diez Garcia

E s t a c o l e t â n e a r e ú n e p e s q u i s a s e reflexões q u e e l u c i d a m m ú l t i p l o s en-t e n d i m e n en-t o s a n en-t r o p o l ó g i c o s s o b r e a a l i m e n en-t a ç ã o c o m o f e n ô m e n o socioculen-tural h i s t o r i c a m e n t e d e r i v a d o . S e n d o a a l i m e n t a ç ã o i m p r e s c i n d í v e l p a r a a v i d a e a s o b r e v i v ê n c i a h u m a n a s , c o m o n e c e s s i d a d e b á s i c a e vital, ela é n e c e s s a r i a m e n -te m o d e l a d a p e l a cultura e sofre o s efeitos d a o r g a n i z a ç ã o d a s o c i e d a d e , n ã o c o m p o r t a n d o a s u a a b o r d a g e m o l h a r e s unilaterais.

N ã o c o m e m o s a p e n a s q u a n t i d a d e s d e nutrientes e calorias p a r a m a n t e r o f u n c i o n a m e n t o corporal e m nível a d e q u a d o , p o i s h á m u i t o t e m p o o s a n t r o p ó logos afirmam q u e o c o m e r e n v o l v e seleção, escolhas, ocasiões e rituais, i m b r i -c a - s e -c o m a so-ciabilidade, -c o m idéias e signifi-cados, -c o m as interpretações d e e x p e r i ê n c i a s e situações. P a r a s e r e m c o m i d o s , ou c o m e s t í v e i s , os a l i m e n t o s p r e c i s a m ser elegíveis, preferidos, s e l e c i o n a d o s e p r e p a r a d o s ou p r o c e s s a d o s p e l a culinária, e tudo isso é m a t é r i a cultural.

R e c e n t e m e n t e , C l a u d e F i s c h l e r ( 1 9 9 0 ) disse q u e , p e l o fato d e s e r m o s o n í v o r o s , a i n c o r p o r a ç ã o d a c o m i d a é s e m p r e u m ato c o m significados, funda-m e n t a l a o senso d e i d e n t i d a d e . S e as técnicas, as disponibilidades d e recursos d o m e i o , a o r g a n i z a ç ã o d a p r o d u ç ã o / d i s t r i b u i ç ã o na s o c i e d a d e m o d e r n a i m p r i -m e -m as possibilidades, c a d a v e z -m a i s a -m p l i a d a s , de p r o d u z i r e c o n s u -m i r ali-m e n t o s , c a b e à cultura definir o q u e é ou n ã o c o ali-m i d a , p r e s c r e v e r as p e r ali-m i s s õ e s e interdições alimentares, o q u e é a d e q u a d o ou n ã o , m o l d a r o g o s t o , os m o d o s d e c o n s u m i r e a própria c o m e n s a l i d a d e . A s escolhas a l i m e n t a r e s n ã o se f a z e m apenas c o m os a l i m e n t o s m a i s ' n u t r i t i v o s ' , s e g u n d o a classificação d a m o d e r n a nutrição, ou s o m e n t e c o m o s m a i s acessíveis e i n t e n s i v a m e n t e ofertados pela p r o d u ç ã o massificada. A p e s a r d a s p r e s s õ e s forjadas p e l o setor p r o d u t i v o , c o m o u m dos m e c a n i s m o s q u e

(3)

in-terferem nas decisões d o s c o n s u m i d o r e s , a cultura, e m u m sentido m a i s a m p l o , m o l d a a seleção alimentar, i m p o n d o as n o r m a s q u e p r e s c r e v e m , p r o í b e m ou p e r m i t e m o q u e c o m e r .

A s escolhas a l i m e n t a r e s t a m b é m são inculcadas m u i t o c e d o , d e s d e a infância, pelas s e n s a ç õ e s táteis, gustativas e olfativas sobre o q u e se c o m e , t o r n a n d o s e p o u c o p e r m e á v e i s à c o m p l e t a h o m o g e n e i z a ç ã o i m p o s t a p e l a p r o -d u ç ã o e pela -distribuição massifica-das. A s análises sociológicas -d o c o n s u m o , q u e f a z e m u m a i n t e r l o c u ç ã o c o m a cultura e t a m b é m se p r e o c u p a m c o m as e s c o l h a s a l i m e n t a r e s , m o s t r a r a m as c o n t r a d i ç õ e s da c u l t u r a m e r c a n t i l i z a d a : a persistência das diferenças nas estruturas d o c o n s u m o entre g r u p o s d e renda, classe, g ê n e r o e estágio d e vida, b e m c o m o a i n d i s s o l u ç ã o dos c o n s t r a n g i m e n -tos materiais e das idiossincrasias individuais.

N o v i d a d e e t r a d i ç ã o ; s a ú d e e indulgência; e c o n o m i a e e x t r a v a g â n c i a ; c o n v e n i ê n c i a e c u i d a d o - nos t e r m o s d e A l a n W a r d e (1997) - s ã o as principais a n t i n o m i a s das m o d e r n a s e contraditórias r e c o m e n d a ç õ e s q u e p r o c u r a m guiar a s e l e ç ã o d o s a l i m e n t o s e os h á b i t o s alimentares nos c o n t e x t o s sociais d o capit a l i s m o a v a n ç a d o , q u e se v e i c u l a m a c o m p a n h a d a s p o r u m capit o m m o r a l . D a m e s m a forma, ao analisar os c o n t e ú d o s das m e n s a g e n s publicitárias, d e s d e a d é c a -d a -d e 6 0 até 1990, na E s p a n h a , M a b e l G r a c i a A r n a i z ( 1 9 9 6 ) -d e s t a c a o s vários discursos: a tradição/identidade; o m é d i c o nutricional; o estético; o hedonista; o d o p r o g r e s s o e d a m o d e r n i d a d e ; d o e x ó t i c o e d a diferença. E n t r e c r u z a m - s e , p o r u m lado, os c o n s u m o s , as práticas e os valores q u e p e r m e i a m os c o m p o r t a -m e n t o s a l i -m e n t a r e s , e p o r o u t r o os discursos publicitários. A -m b o s se r e f o r ç a -m e são i m p u l s i o n a d o s r e c i p r o c a m e n t e , diante da a m p l i a ç ã o das o p o r t u n i d a d e s d e e l e i ç ã o alimentar q u e se m o s t r a m s i m u l t a n e a m e n t e plurais e contraditórias, e s p e c i a l m e n t e n a s s o c i e d a d e s capitalistas européias q u e ainda c o n v i v e m , tanto q u a n t o as l a t i n o - a m e r i c a n a s , c o m as diferenças sociais n o c o n s u m o , s e m se-r e m h o m o g ê n e a s . A c o m i d a foi e a i n d a é u m c a p í t u l o vital n a h i s t ó r i a d o c a p i t a l i s m o . M u i t o a n t e s d o s d i a s d e h o j e , o c a p i t a l i s m o p r o c u r o u p o r t o d a p a r t e transfor-m a r os a n t i g o s d e s e j o s p o r n o v o s transfor-m e i o s . A s c o transfor-m i d a s t ê transfor-m h i s t ó r i a s s o c i a i s , e c o n ô m i c a s e s i m b ó l i c a s c o m p l e x a s , diz S i d n e y Wilfred M i n t z ( 2 0 0 1 ) , e o g o s t o d o ser h u m a n o p e l a s s u b s t â n c i a s n ã o é i n a t o , forjando-se n o t e m p o e e n t r e o s i n t e r e s s e s e c o n ô m i c o s , o s p o d e r e s p o l í t i c o s , as n e c e s s i d a d e s n u t r i c i o n a i s e os significados c u l t u r a i s .

A o estudar o açúcar, esse autor levou e m c o n s i d e r a ç ã o a s u a história social, r e s s a l t a n d o q u e antes d e esse p r o d u t o ter c h e g a d o à m e s a d o o p e r a r i a d o industrial e m e r g e n t e d o século X I X , na Inglaterra, teve lugar n a f a r m a c o p é i a

(4)

m e d i e v a l , d a m e s m a forma q u e o t o m a t e , v i n d o das A m é r i c a s , foi t a m b é m r e c u s a d o pelos ingleses d u r a n t e o s é c u l o X V I I I p o r a c r e d i t a r e m ser e l e preju-dicial à s a ú d e (Wilson, 1973). O g o s t o e o paladar, e m vez d e se n a t u r a l i z a r e m , são p o r t a n t o cultivados n o e m a r a n h a d o d a história, d a e c o n o m i a , d a política e d a p r ó p r i a cultura.

S o b u m outro olhar e m a n t e n d o a p e r s p e c t i v a d e l o n g o a l c a n c e , Fischler ( 1 9 9 0 ) a i n d a nos fala d o p a r a d o x o d o o n í v o r o q u e resulta n a sua a n s i e d a d e p e r m a n e n t e : a n e c e s s i d a d e d a d i v e r s i d a d e alimentar, d e v a r i e d a d e , i n o v a ç ã o , e x p l o r a ç ã o e m u d a n ç a p a r a sobreviver, q u e c o n v i v e c o m a c o n s e r v a ç ã o n o comer, s e n d o cada alimento d e s c o n h e c i d o visto c o m o p o t e n c i a l m e n t e perigoso. O p r ó p r i o sistema culinário foi visto p o r Paul R o z i n (1976) c o m o u m p r o d u t o cultural resultante d o p a r a d o x o d o o n í v o r o a o trazer u m conjunto d e sabores peculiares à cozinha d e u m a d a d a r e g i ã o , p r o p i c i a n d o familiaridade e diversida-d e diversida-d e a l i m e n t o s .

A ênfase n a i n s e r ç ã o d a a l i m e n t a ç ã o n o s i s t e m a cultural c o m o p o r t a d o r a d e significados q u e p o d e m ser lidos e decifrados c o m o c ó d i g o t e m m i n i m i z a d o o s fatores materiais e h i e r á r q u i c o s , p r e o c u p a n d o - s e m a i s c o m a c o n t i n u i d a d e e m e n o s c o m as m u d a n ç a s , s e n d o q u e o foco n a totalidade d e s c u i d a d a diferen-ça. P o r e s s a r a z ã o , J a c k G o o d y ( 1 9 9 5 ) sugeriu q u e os esforços d e isolar o c u l t u r a l , l e v a n d o - o a s u b m e r g i r e x c l u s i v a m e n t e n o s i s t e m a s i m b ó l i c o e significante, l e v a m a s u p o r a u n i d a d e cultural, o q u e i m p e d e referências às diferenciações internas, às influências socioculturais e x t e r n a s , aos fatores h i s -tóricos e aos e l e m e n t o s m a t e r i a i s .

O fato d e a c o m i d a e o ato d e c o m e r s e r e m p r e n h e s d e significados n ã o l e v a a e s q u e c e r q u e t a m b é m c o m e m o s p o r n e c e s s i d a d e vital e c o n f o r m e o m e i o e a s o c i e d a d e e m q u e v i v e m o s , a f o r m a c o m o e l a se o r g a n i z a e se estru-tura, p r o d u z e distribui os a l i m e n t o s . C o m e m o s t a m b é m d e a c o r d o c o m a distrib u i ç ã o d a riqueza na s o c i e d a d e , o s g r u p o s e classes d e p e r t e n c i m e n t o , m a r c a -d o s p o r -diferenças, h i e r a r q u i a s , estilos e m o -d o s -d e comer, a t r a v e s s a -d o s p o r r e p r e s e n t a ç õ e s coletivas, i m a g i n á r i o s e c r e n ç a s .

A antropologia se interessou t r a d i c i o n a l m e n t e pelas c r e n ç a s e p e l o s c o s -t u m e s alimen-tares dos p o v o s p r i m i -t i v o s , p e l o s aspec-tos religiosos e m -torno d o s t a b u s , t o t e m i s m o e c o m u n h ã o ; p e l a s preferências e repulsas a l i m e n t a r e s , p e l o s rituais sagrados ou profanos q u e a c o m p a n h a m a c o m e n s a l i d a d e , p e l o s i m b o l i s m o d a c o m i d a , pelas classificações a l i m e n t a r e s , a l é m d e m u i t o s o u t r o s a s p e c -tos. R e c e n t e m e n t e , v e m se i n t e r e s s a n d o p e l a s cozinhas e pela culinária, q u e t r a z e m a m a r c a da cultura. A s c o z i n h a s e as artes culinárias g u a r d a m histórias, tradições, tecnologias, p r o c e d i m e n t o s e ingredientes s u b m e r s o s e m s i s t e m a s

(5)

s o c i o e c o n ô m i c o s , e c o l ó g i c o s e culturais c o m p l e x o s , cujas m a r c a s territoriais, regionais ou d e classe lhes conferem especificidade, a l é m d e a l i m e n t a r e m iden-tidades sociais ou n a c i o n a i s .

C o m o e s p a ç o h a b i t u a l m e n t e r e s e r v a d o às m u l h e r e s , m a i s d o q u e aos h o m e n s , a c u l i n á r i a i m b r i c a - s e no sistema d e d i v i s ã o e estratificação d o traba-lho, e m b o r a o s chefs e os famosos c o z i n h e i r o s sejam antigos p e r s o n a g e n s dos serviços p e s s o a i s d e n o b r e s , p a p a s , d a b u r g u e s i a e d a s elites e m geral, q u e se t r a n s f o r m a r a m a o l o n g o d o t e m p o e m n o v a s f i g u r a s e s p e c i a l i z a d a s d a g a s t r o n o m i a m e r c a n t i l i z a d a e m torno d e restaurantes sofisticados ou d e outros serviços a l i m e n t a r e s .

O r e s g a t e d a g a s t r o n o m i a e d a culinária t e m s u s c i t a d o m a i o r interesse n o c o n t e x t o d a g l o b a l i z a ç ã o , n ã o s e n d o casual, m a i s r e c e n t e m e n t e , a r e c u p e r a -ç ã o das t r a d i -ç õ e s culinárias, d e p u b l i c a -ç õ e s a r e s p e i t o - entre as quais aquelas q u e e n f a t i z a m a a n t r o p o l o g i a da a l i m e n t a ç ã o ou a história d a a l i m e n t a ç ã o e dos c o s t u m e s a l i m e n t a r e s . A s atuais r e e d i ç õ e s d e G i l b e r t o F r e y r e (1997) e d e C â -m a r a C a s c u d o ( 1 9 8 3 ) , entre outros autores, -m o s t r a -m o interesse n e s s a te-mática, a s s i m c o m o a c r i a ç ã o d e grupos d e t r a b a l h o s o b r e s i m b o l i s m o e c o m i d a nas r e u n i õ e s d a A s s o c i a ç ã o Brasileira d e A n t r o p o l o g i a , a o l a d o d o s d e b a t e s e m m e s a s - r e d o n d a s , n o s c o n g r e s s o s d e nutrição. U m l a r g o e s p e c t r o d e q u e s t õ e s a s s o c i a d a s à a l i m e n t a ç ã o p o d e r i a a i n d a ser e x p l o r a d o n e s t a b r e v e i n t r o d u ç ã o , e m b o r a as c o n s i d e r a ç õ e s tecidas a r e s -p e i t o n o s -p a r e ç a m suficientes -p a r a a r g u m e n t a r a f a v o r d e s u a a b o r d a g e m sociocultural q u e , c e r t a m e n t e , se aprofunda e se c o m p l e t a n a leitura dos vários artigos a p r e s e n t a d o s p e l o s autores c o m p o n e n t e s d e s t a coletânea. A p e s a r d a h e t e r o g e n e i d a d e d o s enfoques na a b o r d a g e m d a a l i m e n t a ç ã o c o m o m a t é r i a cultural, sob os olhares diferenciados de antropólogos, sociólogos e nutricionistas, q u e c o m u n g a m a i m p o r t â n c i a d e a b o r d á - l a d e s s a m a n e i r a , e s p e r a - s e q u e esta c o l e t â n e a p r o p o r c i o n e aos profissionais d a s a ú d e , aos cientistas sociais, aos estudiosos, p r o f e s s o r e s e interessados na a l i m e n t a ç ã o h u m a n a u m a c o m p r e e n -são d o q u a n t o ela é tributária d a cultura.

O p a r a d i g m a b i o l ó g i c o da nutrição fez u m a interlocução c o m as ciências sociais na q u a l a cultura, o e c o n ô m i c o e o social se r e d u z e m a fatores ou variá-veis s o b r e p o s t o s a u m a visão biologizante d a s d o e n ç a s e d a própria desnutri-ção, a g r e g a n d o - o s às análises, q u e n ã o a b a l a r a m a estrutura d o seu entendi-mento. Esses estudos e iniciativas contribuíram para a multidisciplinaridade sem, n o e n t a n t o , ter se c o n s t i t u í d o u m a a b o r d a g e m c a p a z d e recriar n o v a s p e r s p e c -tivas d e leituras e c o m p r e e n s ã o d o s p r o b l e m a s a l i m e n t a r e s e nutricionais c o m os q u a i s a n u t r i ç ã o se p r e o c u p a .

(6)

G e r a l m e n t e , e s t ã o m a r g i n a l i z a d a s d a f o r m a ç ã o d o s nutricionistas a i m p o r t â n c i a d a a n t r o p o l o g i a e as leituras sociológicas s o b r e a a l i m e n t a ç ã o . D e -certo a vertente social da nutrição, i n a u g u r a d a por J o s u é d e Castro, abriu flancos, n o p a s s a d o , p a r a analisar a f o m e , os seus efeitos e criar u m a a g e n d a p a r a as intervenções d e políticas nutricionais e alimentares g o v e r n a m e n t a i s q u e , e m b o -r a t -r a n s f o -r m a d a s e m sua f o -r m u l a ç ã o e i m p l e m e n t a ç ã o n o q u a d -r o das políticas sociais, a i n d a se m a n t ê m .

A p e s a r d e m e n o s agudas atualmente e m relação às décadas imediatas após a S e g u n d a Guerra Mundial, pobreza, miséria e fome ainda c o n v i v e m a o lado da m a i o r abundância alimentar, q u e traz outros p r o b l e m a s nutricionais c o m o a obesidade e as doenças associadas, assim c o m o os distúrbios d o c o m p o r t a m e n t o alimentar (a bulimia e a anorexia, por e x e m p l o ) , fortemente ligados à i m a g e m corporal e q u e c o n v i v e m n o quadro das desigualdades sociais e epidemiológicas reinantes e m n o s s a sociedade. O e n t e n d i m e n t o restrito d a cultura, c a r i m b a d o geralmente c o m termos c o m o 'irracionalidades' a s e r e m removidas por interven-ções q u e se c r ê e m 'racionais' ou 'científicas', n ã o c o n c e d e espaço às diferenças e às diversidades culturais q u e m a r c a m a n o s s a sociedade.

A p r i m e i r a p a r t e desta c o l e t â n e a iniciase c o m u m artigo d e r e v i s ã o b i -bliográfica, feita p o r A n a M a r i a C a n e s q u i , sobre os estudos socioantropológicos sobre a a l i m e n t a ç ã o realizados n o Brasil, p e r c o r r e n d o as d é c a d a s p a s s a d a s e a c o r r e n t e . D i s c u t e m - s e t e m a s , c o n c e i t o s e e n f o q u e s t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c o s a d o t a d o s p o r diferentes autores, e s p e l h a n d o a m u l t i p l i c i d a d e d e p a r a d i g m a s q u e c o n v i v e m entre si na a b o r d a g e m d e u m conjunto d e assuntos q u e foram p e s q u i s a d o s , tais c o m o hábitos e ideologias a l i m e n t a r e s ; p r o d u ç ã o , acesso, prá-ticas d e c o n s u m o e ideologia; o r g a n i z a ç ã o d a família, s o b r e v i v ê n c i a e práprá-ticas d e c o n s u m o alimentar; a l i m e n t a ç ã o , c o r p o , s a ú d e e d o e n ç a ; c o m i d a , s i m b o l i s -m o e i d e n t i d a d e e r e p r e s e n t a ç õ e s s o b r e o natural.

M a r i a E u n i c e M a c i e l d e s t a c a as c o z i n h a s , s i m u l t a n e a m e n t e , c o m o e x -p r e s s õ e s d a s tradições e c o n s t r u ç õ e s histórico-culturais. A s c o z i n h a s n ã o se r e s u m e m aos seus pratos e ingredientes e m b l e m á t i c o s ou específicos; a partir d a leitura d a c o m i d a c o m o l i n g u a g e m , a a u t o r a assinala q u e a c o z i n h a é c a p a z d e c o m u n i c a r as i d e n t i d a d e s d e g r u p o s sociais, é t n i c o s e religiosos; d a s r e g i õ e s e d e seus h a b i t a n t e s ou d a própria n a c i o n a l i d a d e . A s s i m , e s c r e v e a autora, " o p r a t o serve p a r a nutrir o c o r p o , m a s t a m b é m sinaliza u m p e r t e n c i m e n t o , servi-d o c o m o u m c ó servi-d i g o servi-d e r e c o n h e c i m e n t o s o c i a l " .

J u n g l a M a r i a P i m e n t e l D a n i e l e Veraluz Zicarelli C r a v o , p o r sua vez, e l u c i d a m a d i v e r s i d a d e d a s s o c i e d a d e s h u m a n a s (tribais, c a m p o n e s a s e

(7)

capita-listas), as r e g r a s e as r e l a ç õ e s sociais i m b r i c a d a s c o m o a s p e c t o s i m b ó l i c o q u e p e r m e i a m a p r o d u ç ã o , a distribuição e a c o m e n s a l i d a d e . Elas t a m b é m percor-r e m u m c o n j u n t o d e e s t u d o s etnogpercor-ráficos n a c i o n a i s , q u e m u i t o b e m e x p percor-r e s s a m a m a r c a das c o n t r i b u i ç õ e s antropológicas, p e l o m e n o s e m u m d a d o m o m e n t o d o d e s e n v o l v i m e n t o das p e s q u i s a s .

N o r t o n C o r r ê a n o s fala d a culinária ritual d o b a t u q u e n o Rio G r a n d e d o Sul. A l é m d e servir p a r a d e m a r c a r territórios r e g i o n a i s , sociais e diferenças identitárias, os alimentos servidos ritualmente n o contexto daquele culto religio-so a b a s t e c e m o s v i v o s , os m o r t o s ou as d i v i n d a d e s , i n s c r e v e n d o - s e nas rela-ç õ e s sociais. C o r r ê a m o s t r a q u e a cozinha, c o m o ' b a s e d a r e l i g i ã o ' , constitui f u n d a m e n t a l m e n t e a e s s ê n c i a e a existência d o p r ó p r i o b a t u q u e .

C a r m e m Sílvia M o r a i s Rial percorre os relatos d o s viajantes e suas in-terpretações s o b r e os c o s t u m e s a l i m e n t a r e s ; as e s p é c i e s vegetais e a n i m a i s c o m e s t í v e i s ; o seu p r e p a r o ; os sabores, o d o r e s e o s p a l a d a r e s o b s e r v a d o s ; os m o d o s d e c o m e r e beber, assim c o m o o c a n i b a l i s m o , j u n t a m e n t e c o m m u d a n ças e i n t r o d u ç õ e s d e n o v o s alimentos, m e d i a n t e o c o n t a t o c o m os c o l o n i z a d o -res. Ela n ã o se interessa a p e n a s pelos relatos e m si m e s m o s , m a s neles lê a i n t e r p r e t a ç ã o q u e t r a z i a m sobre a nossa i d e n t i d a d e , q u e a c o m i d a dos ' o u t r o s ' , e m s e n t i d o geral, foi c a p a z d e expressar, d e s p e r t a n d o r e a ç õ e s n a q u e l e s q u e a o b s e r v a r a m e c o m e n t a r a m c o m seus olhares d e e u r o p e u s .

Sílvia C a r r a s c o i P o n s , a d o t a n d o a p e r s p e c t i v a socioantropológica, s u g e -re q u e sejam a b o r d a d o s os c o m p o r t a m e n t o s e as e x p e r i ê n c i a s alimenta-res c o m o m e i o s d e reconstituir os sistemas alimentares, e x p o s t o s a u m conjunto d e trans-formações, n u m m u n d o globalizado e desigual q u a n t o à distribuição da riqueza. E s s e s i s t e m a sofre, a seu ver, u m conjunto d e influências, às quais se e x p õ e m as e c o n o m i a s tradicionais c o m e s c a s s e z c r ô n i c a d e a l i m e n t o s e crise d e d i s p o -nibilidade alimentar, p a s s a n d o pelas m u d a n ç a s t e c n o l ó g i c a s e e c o l ó g i c a s na p r o d u ç ã o d e a l i m e n t o s , p o r i n t e r v e n ç õ e s sociossanitárias i n d u z i d a s p e l o s p r o -g r a m a s d e ajuda internacional e s u b m e t i d a s aos p r o c e s s o s d e industrialização, u r b a n i z a ç ã o e m i g r a ç ã o . Ela l e m b r a t a m b é m , e n t r e as m u d a n ç a s r e c e n t e s dos sistemas a l i m e n t a r e s , a crise da a l i m e n t a ç ã o nos países d e s e n v o l v i d o s , ou seja, a ' g a s t r o - a n o m i a ' , a p o n t a d a p o r C l a u d e F i s c h l e r ( 1 9 9 0 ) . O d e s e n h o d e t a l h a d o d e u m a p r o p o s t a p a r a o estudo sociocultural d a a l i m e n t a ç ã o elucida o seu p o n t o d e vista s o b r e a r e c o n s t r u ç ã o d o sistema alimentar, c o m o c o m p o n e n t e d a cultu-ra q u e serve d e g u i a pacultu-ra u m tcultu-rabalho d e c a m p o d e n a t u r e z a a n t r o p o l ó g i c a c o m intenções comparativas e interculturais. A autora p õ e entre parênteses a feitura d e u m a etnografia d a nutrição, p r o p o n d o à antropologia a c o m p r e e n s ã o e a aná-lise das propriedades social e material da alimentação e dos processos sociais e

(8)

culturais e n ã o d o s a l i m e n t o s , per si, o u d o s p r o c e s s o s m e t a b ó l i c o s , p o s t o s pela b i o m e d i c i n a e p e l a nutrição.

N a s e g u n d a parte, os autores a p r o f u n d a m a reflexão sobre os p a r a d o x o s e a s r e p e r c u s s õ e s , n a c u l t u r a a l i m e n t a r , d a s t r a n s f o r m a ç õ e s e d a i n t e r n a c i o n a l i z a ç ã o d a e c o n o m i a , d a s t e c n o l o g i a s , das finanças, d a p r o d u ç ã o cultural e m escala m u n d i a l e d o c o n s u m o n o c o n t e x t o d a globalização. Trata-se d e u m p r o c e s s o q u e c o m p o r t a a h e t e r o g e n e i d a d e e a fragmentação, n ã o s e n d o h o m o g ê n e o , c o m o parte d a literatura s o b r e a g l o b a l i z a ç ã o sugere. O s artigos d e J e s ú s C o n t r e r a s H e r n á n d e z e d e M a b e l G r a c i a A r n a i z a d m i t e m , p o r u m l a d o , o s efeitos r e l a t i v a m e n t e h o m o g e n e i z a n t e s e positivos d a g l o b a l i z a ç ã o s o -bre a m a i o r afluência alimentar, a s s i m c o m o a massificação d o c o n s u m o e a m a i o r a c e s s i b i l i d a d e alimentar, n o s países industrializados, m o v i d o s p e l o n o v o ciclo e c o n ô m i c o d o capitalismo, c o n c e n t r a d o r d o s negócios e altamente especi-alizado nas r e d e s d e p r o d u ç ã o , distribuição e c o n s u m o . Por outro lado, refletem s o b r e a g e r a ç ã o e a p r e s e r v a ç ã o d e várias c o n t r a d i ç õ e s .

C o n t r e r a s n o s fala, entre a q u e l a s m u d a n ç a s , na d e f a s a g e m entre as r e -p r e s e n t a ç õ e s a l i m e n t a r e s dos c o n s u m i d o r e s e os ritmos e a v e l o c i d a d e d a s i n o v a ç õ e s e t e c n o l o g i a s ; d o s i s t e m a d e p r o d u ç ã o e distribuição d o s a l i m e n t o s e m e s c a l a industrial, diante d o s quais os c o n s u m i d o r e s p e r m a n e c e m desconfia-d o s , i n s e g u r o s e insatisfeitos. Reflete t a m b é m s o b r e a i m p o r t â n c i a desconfia-das políticas culturais q u e t o r n a m as c o z i n h a s e suas t r a d i ç õ e s objetos d e p a t r i m ô n i o , criti-c a n d o , t o d a v i a , o s seus u s o s i d e o l ó g i criti-c o s e m e r criti-c a n t i s por m e i o d a difusão e d a r e v a l o r i z a ç ã o d e s c o n t e x t u a l i z a d a d e certas c o z i n h a s regionais, locais e n a c i o -nais. S e a a n t r o p o l o g i a s e m p r e se i n t e r e s s o u p e l a s diversidades e diferenças, p r e s t a n d o a t e n ç ã o às relações sociais e às formas culturais criadas pelas d i s -tintas s o c i e d a d e s , s u g e r e o autor q u e i n d a g u e m o s s o b r e as diferenças e o s ritmos d o p r o c e s s o d e tornar objetos d e p a t r i m ô n i o as várias tradições culturais a l i m e n t a r e s n o s diferentes p a í s e s ; s o b r e o s a g e n t e s p r o p o n e n t e s , seus p r o p ó s i -tos e as características q u e a s s u m e m e m c a d a p a í s .

M a b e l G r a c i a A r n a i z é b a s t a n t e enfática a o tratar da persistência, na afluência alimentar, das d e s i g u a l d a d e s sociais n o a c e s s o ; d a s diferenças d o c o n s u m o , s e g u n d o a b a g a g e m sociocultural d o s vários g r u p o s sociais; d a g r a n -d e v a r i a b i l i -d a -d e -d a oferta alimentar, q u e s t i o n a n -d o a h o m o g e n e i z a ç ã o e reafir-m a n d o a e x i s t ê n c i a d o s p a r t i c u l a r i s reafir-m o s locais e r e g i o n a i s , não destruídos p e l o p r o c e s s o d e g l o b a l i z a ç ã o . P a r a a autora, a a b u n d â n c i a alimentar c o n v i v e c o m : 1) a m a g r e z a rigorosa, c o m o u m n o v o p a d r ã o d a estética corporal p r o d u z i d o p o r e p a r a c e r t o s setores sociais; 2) a s e g u r a n ç a e a i n s e g u r a n ç a a l i m e n t a r e s , ou seja, os riscos reais e subjetivos; 3) o s n o v o s p r o d u t o s c o m e s t í v e i s n ã o

(9)

-identificados; 4 ) a d e s t r u i ç ã o d a a l i m e n t a ç ã o tradicional, d o s seus ciclos e ritm o s e 5) a ritm a i o r v u l n e r a b i l i d a d e d e ritm u i t o s g r u p o s sociais e dos países e ritm p o -b r e c i d o s . S e g u n d o ela, a antropologia da a l i m e n t a ç ã o m o v e - s e n u m e s p a ç o q u e lhe p e r m i t e d e s c r e v e r e analisar as m u d a n ç a s d a o r d e m social e contribuir s i m u l t a n e a m e n t e p a r a m e l h o r a r a q u a l i d a d e d e v i d a e s a ú d e das p e s s o a s , r e d u -zir as d e s i g u a l d a d e s sociais, evitar d i s c r i m i n a ç õ e s , p r e s e r v a r o m e i o a m b i e n t e , a b i o d i v e r s i d a d e , m a n t e n d o as identidades.

N a terceira parte, transpõe-se a a l i m e n t a ç ã o p a r a os diferentes e s p a ç o s - p r i v a d o s e p ú b l i c o s - nos c o n t e x t o s u r b a n o s . A n a M a r i a C a n e s q u i a p r e s e n t a u m e s t u d o c o m p a r a t i v o s o b r e a prática a l i m e n t a r c o t i d i a n a n o â m b i t o d o m é s t i -c o , r e a l i z a d o e m dois p e r í o d o s e -conjunturas m a -c r o e -c o n ô m i -c a s distintas ( 1 9 7 0 e 2 0 0 2 ) entre s e g m e n t o s d e famílias t r a b a l h a d o r a s u r b a n a s q u e h a v i a m m i g r a -d o -d o c a m p o p a r a a c i -d a -d e , n o início -d a -d é c a -d a -d e 7 0 , q u a n -d o elas foram p r i m e i r a m e n t e e s t u d a d a s , e n u m a s e g u n d a v e z , a p ó s decorridos 3 0 a n o s d e e x p e r i ê n c i a e i n s e r ç ã o n a c i d a d e . A autora e n f o c a o s g r u p o s d o m é s t i c o s , ca-r a c t e ca-r i z a n d o - o s s e g u n d o a sua c o m p o s i ç ã o , f o ca-r m a s d e i n s e ca-r ç ã o n o m e ca-r c a d o d e t r a b a l h o , ciclo d e vida e divisão sexual d o s p a p é i s familiares, a t e n t a n d o p a r a o m o d o c o m o se o r g a n i z a e se estrutura a prática a l i m e n t a r cotidiana (provisão, p r e p a r o , distribuição e c o n s u m o final d o s a l i m e n t o s ) , i n d a g a n d o s o b r e as suas m u d a n ç a s e p e r m a n ê n c i a s n a q u e l e e s p a ç o d e t e m p o e entre duas g e r a ç õ e s . V a l e n d o - s e d a etnografía, possibilita c o m p r e e n d e r r e p r e s e n t a ç õ e s e ações so-bre os u s o s e o m o d o d e c o n s u m o d o s a l i m e n t o s - c o n f o r m a n d o u m d a d o estilo d e c o n s u m o - q u e e v i d e n c i a m outras l ó g i c a s q u e d e v e m ser c o m p r e e n d i d a s pelos profissionais d a s a ú d e . O e s t u d o d e corte qualitativo ultrapassa o s d e tipo o r ç a m e n t á r i o s o b r e o c o n s u m o , q u e g e r a l m e n t e c o n s t a t a m t r a n s f o r m a ç õ e s n o p a d r ã o a l i m e n t a r nas ú l t i m a s d é c a d a s , justificadas a p e n a s pela r e n d a e p e l a e s c o l a r i d a d e , s e m c o n s i d e r a r e m a c o m p l e x i d a d e d a s práticas a l i m e n t a r e s q u e , a l é m d o a c e s s o a o c o n s u m o , c o m p o r t a m v a l o r e s , identidades, a p r e n d i z a g e m , e s c o l h a s e g o s t o s a l i m e n t a r e s , c o n f o r m a d o s n o m o d o d e vida e p e r m e a d o s p o r várias a m b i g ü i d a d e s , q u e d e n o t a m s i m u l t a n e a m e n t e tradições e m u d a n ç a s .

R o s a W a n d a D i e z G a r c i a relata p e s q u i s a s o b r e as r e p r e s e n t a ç õ e s d a a l i m e n t a ç ã o d e funcionários públicos c o m o c u p a ç õ e s administrativas q u e tra-b a l h a v a m n o c e n t r o d a c i d a d e d e S ã o P a u l o e faziam refeições n o local d e trabalho ou e m restaurantes. N o e s t u d o , e l a identifica a existência d e u m d i s c u r s o s o b r e a r e l a ç ã o entre a l i m e n t a ç ã o e s a ú d e q u e associa causas d e d o e n -ças, c o n t a m i n a ç ã o alimentar e e x c e s s o d e p e s o c o r p o r a l , aspectos q u e se arti-c u l a m e m t o r n o d e valores a s s o arti-c i a d o s a o arti-c o r p o e a o seu arti-c u i d a d o , d e j u í z o s m o r a i s s o b r e o q u e é b o m ou n ã o p a r a c o m e r e d e formas d e p e n s a r a s s e n t a d a s

(10)

n a s c l a s s i f i c a ç õ e s c u l t u r a i s e s i m b ó l i c a s s o b r e a c o m i d a . U m c o n j u n t o d e c o n t r a d i ç õ e s e n t r e as f o r m a s d e p e n s a r e d e se c o m p o r t a r d i a n t e d a a l i m e n -t a ç ã o n o s m o s -t r a u m a m o b i l i d a d e e flu-tuações n o s d i s c u r s o s e n a s p r á -t i c a s q u e e s t ã o t e n s i o n a d o s p e r m a n e n t e m e n t e p o r e s c o l h a s i n d i v i d u a i s p e r c e b i d a s c o m o t r a n s g r e s s õ e s . O s o c i ó l o g o Jean-Pierre C o r b e a u d i s c o r r e s o b r e a d i m e n s ã o s i m b ó l i c a e o c u l t a d a c o m e n s a l i d a d e n o â m b i t o h o s p i t a l a r c o m b a s e n a análise d a ' s e q ü ê n -cia a l i m e n t a r ' : suas especificidades, o c o n t e x t o e a so-ciabilidade a l i m e n t a r na-q u e l e e s p a ç o . P a r a o autor, n a ' s e na-q ü ê n c i a a l i m e n t a r ' i n t e r a g e m a s p e c t o s p s i c o s s o c i o l ó g i c o s e culturais d o c o m e r c o m o s aspectos simbólicos e a p r ó p r i a p e r c e p ç ã o d o a l i m e n t o pelos c o m e n s a i s . E l e d e s t a c a seis eixos d e p e r s p e c t i v a s institucionais n a a l i m e n t a ç ã o hospitalar: a h i g i e n e , as p r o p r i e d a d e s d o s a l i m e n -t o s , o s e r v i ç o , o s a b o r d a a l i m e n -t a ç ã o , o s i m b ó l i c o e o s i m u l a c r o p r e s e n -t e s n a g e s t ã o d o s h o s p i t a i s f r a n c e s e s , m a t é r i a s d e c o n f r o n t o d e e x p e c t a t i v a s d e c o m e n s a l i d a d e dos usuários e das instituições, d e m o n s t r a n d o q u e a c o m i d a t e m efeitos n o s t r a t a m e n t o s , u m a vez q u e p o r t a m significados p a r a os a d o e c i d o s .

G é r a r d M a e s , a d m i n i s t r a d o r hospitalar, reconstitui a trajetória d a s m u -d a n ç a s n o t e m p o -d a a l i m e n t a ç ã o institucional, p o r m e i o -d e u m t e s t e m u n h o ar-g u t o d e suas t r a n s f o r m a ç õ e s n o c o n t e x t o francês: da sopa, q u e o c u p a u m l u ar-g a r histórico n e s s a trajetória, até os c a r d á p i o s m a i s recentes p r e p a r a d o s p o r chefs d e c o z i n h a . T u d o isso reflete s i m u l t a n e a m e n t e o s p r o c e s s o s d e m u d a n ç a d e valores e m r e l a ç ã o à hospitalização, a o g e r e n c i a m e n t o d o s hospitais n o p r e p a r o d a s refeições, n a p r o d u ç ã o d e c a r d á p i o s , a t u a l m e n t e influenciada p o r profis-sionais d e nutrição, e sua p e r m e a b i l i d a d e às t r a n s f o r m a ç õ e s n o estatuto d o d o e n t e - q u e p a s s o u a ser visto m a i s c o m o cliente e m e n o s c o m o p a c i e n t e .

N a quarta parte, são discutidas as p o s s í v e i s interlocuções e n t r e a n u t r i -ç ã o e a s c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s , e s p e c i a l m e n t e a a n t r o p o l o g i a . A s o r g a n i z a d o r a s fazem u m a análise d o s currículos d e cursos d e nutrição d o Brasil e d e a l g u n s p r o g r a m a s d e disciplinas p o r eles ofertadas. D e t ê m - s e s o b r e os c o n t e ú d o s d e p r o g r a m a s d e cursos d e c i ê n c i a s sociais e h u m a n a s s o b r e ali-m e n t a ç ã o , ali-m i n i s t r a d o s p o r u n i v e r s i d a d e s n o r t e - a ali-m e r i c a n a s e i n g l e s a s , c o ali-m a i n t e n ç ã o d e tecer c o m p a r a ç õ e s d e c o n t e ú d o s p r o g r a m á t i c o s e m e t o d o l o g i a s d e e n s i n o d a q u e l e s p r o g r a m a s c o m o s n a c i o n a i s , e a finalidade d e c o n t r i b u i r p a r a a d i s c u s s ã o d o m e l h o r e q u a c i o n a m e n t o d e s s a s disciplinas nos currículos d o s c u r s o s d e nutrição n a c i o n a i s . E n t r e as c o n s t a t a ç õ e s d o e s t u d o e s t ã o , p a r a a s i t u a ç ã o brasileira, a e x p a n s ã o d a i n c l u s ã o d a s c i ê n c i a s sociais e h u m a n a s n o s currículos, e m b o r a h e t e r o g ê n e a e d i s p e r s a q u a n t o aos c o n t e ú d o s , c a r g a h o r á r i a e disciplinas a p r e s e n t a d a s , o q u e p a r e c e c o n f o r m a r tensões e fragilidades n a

(11)

e x p e c t a t i v a d a p a r t i c i p a ç ã o d e s s a á r e a d e c o n h e c i m e n t o n a f o r m a ç ã o d o nutricionista. O s p r o g r a m a s internacionais analisados são m a i s específicos n o s seus c o n t e ú d o s , q u e se v o l t a m p a r a u m e x a m e m a i s focado n a t e m á t i c a d a a l i m e n t a ç ã o e d o s fatores q u e a e l u c i d a m , e x p o n d o u m a c e r v o diversificado d e p e s q u i s a s e p r e o c u p a ç õ e s b e m m a i s a m p l a s d o q u e as existentes n o Brasil.

O s d o i s a r t i g o s q u e s e s e g u e m s ã o d i r i g i d o s , r e s p e c t i v a m e n t e , a nutricionistas e a a n t r o p ó l o g o s . A m b o s a s s i n a l a m ser a c o m p l e x i d a d e d a ali-m e n t a ç ã o c o ali-m o o b j e t o d e e s t u d o o f u n d a ali-m e n t o p a r a u ali-m a a b o r d a g e ali-m interdisciplinar e t r a t a m d a s dificuldades q u e se o p e r a m n a sua a p l i c a ç ã o .

N a f o r m a d e d i á l o g o entre a a n t r o p o l o g i a e a nutrição, R o s a W a n d a D i e z G a r c i a reflete s o b r e a a d o ç ã o d a d i e t a m e d i t e r r â n e a c o m o m o d e l o d e d i e t a s a u d á v e l , d e s t a c a n d o a i n a d e q u a ç ã o cultural d e transportar ou g e n e r a l i z a r u m m o d e l o dietético f u n d a m e n t a d o n u m a cultura e n u m m e i o d e t e r m i n a d o s . Tra-d u z i r e m n u t r i e n t e s , o u e m i t e n s a l i m e n t a r e s , u m m o Tra-d e l o Tra-d e Tra-d i e t a é d e s c o n t e x t u a l i z a r a sua p r o d u ç ã o , e g e r a apropriações f r a g m e n t a d a s d e alim e n t o s q u e s ã o r e i n t e g r a d o s e alim o u t r o s alim o d e l o s dietéticos, d e s c o n s i d e r a n d o -se tanto o r e s u l t a d o d e s s e rearranjo q u a n t o a própria i d e n t i d a d e c u l i n á r i a c o m o p a t r i m ô n i o d e outra cultura.

D i r i g i d o i n i c i a l m e n t e a a n t r o p ó l o g o s , o artigo d e M a b e l G r a c i a A r n a i z traz u m a d i s c u s s ã o s o b r e as p e c u l i a r i d a d e s d a a n t r o p o l o g i a d a a l i m e n t a ç ã o , na q u a l l a m e n t a o r e d u z i d o i n t e r e s s e d o s a n t r o p ó l o g o s n o seu e s t u d o ; r e v e l a as r i v a l i d a d e s entre a a n t r o p o l o g i a t e ó r i c a e a prática e a r e l e v â n c i a atribuída à primeira, e m detrimento d a s e g u n d a . A aplicação d o c o n h e c i m e n t o antropológi-c o , u l t r a p a s s a n d o as p r e o antropológi-c u p a ç õ e s e x antropológi-c l u s i v a m e n t e teóriantropológi-cas, é d e f e n d i d a p e l a autora. E l a trava t a m b é m u m d i á l o g o c o m profissionais d a área d a s a ú d e e m a i s e s p e c i f i c a m e n t e c o m o s nutricionistas, a p o n t a n d o as fronteiras d o s c a m -p o s -profissionais n a análise d e -p r o g r a m a s e -políticas d e a l i m e n t a ç ã o .

E s p e r a - s e q u e e s t a c o l e t â n e a p r e e n c h a u m a l a c u n a b i b l i o g r á f i c a e fa-cilite a a p r o x i m a ç ã o d a a n t r o p o l o g i a c o m a n u t r i ç ã o . E m b o r a a c o n s t r u ç ã o d a i n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e n ã o g o z e d o c o n s e n s o d e t o d o s o s a u t o r e s d e l a p a r t i c i -p a n t e s , a b r e m - s e -p o s s i b i l i d a d e s d e i n t e r l o c u ç ã o e n t r e os d i f e r e n t e s c a m -p o s d i s c i p l i n a r e s n o â m b i t o d a p e s q u i s a , c o m o t a m b é m e n t r e o s i n c u m b i d o s , p o r o f í c i o , d e i n t e r v e n ç õ e s n o s p r o b l e m a s i n d i v i d u a i s e c o l e t i v o s d a a l i m e n t a ç ã o e n u t r i ç ã o - i n t e r v e n ç õ e s c u l t u r a l m e n t e ajustadas d e m a n d a m p r o f i s s i o n a i s q u e p e r m a n e ç a m m a i s s e n s í v e i s à c o m p r e e n s ã o d a s d i f e r e n ç a s e d a d i v e r s i -d a -d e c u l t u r a l a l i m e n t a r -d a s p o p u l a ç õ e s o u -d a s clientelas às q u a i s se -d i r i g e m . D a m e s m a f o r m a , t e n d o e m v i s t a a i n c i p i ê n c i a , d e s a r t i c u l a ç ã o e f r a g m e n t a -ç ã o o b s e r v a d a n a a i n d a frágil p a r t i c i p a -ç ã o d a s c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s n o

(12)

e n s i n o d a n u t r i ç ã o , e s p e r a - s e a u x i l i a r n o a m a d u r e c i m e n t o d a c o n f o r m a ç ã o d o s c u r r í c u l o s , p a r t i c u l a r m e n t e n o q u e d i z r e s p e i t o à s a b o r d a g e n s s o c i o a n t r o p o l ó g i c a s d a a l i m e n t a ç ã o .

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

CASCUDO, C. História da Alimentação Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. FISCHLER, C.L'(H)omnivore. Paris: Odile Jacob, 1990.

FREYRE, G Açúcar: uma sociologia do doce com receitas de bolos e doces do Nordes-te brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

GOODY, J. Cocina, Cuisine y Clase. Barcelona: Gedisa, 1995.

GRACIA, M. Paradojas de la Alimentación Contemporánea. Barcelona: Icaria, 1996. MINTZ, S. W. Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de

Cien-cias Sociais, 16(47):31-41,2001.

ROZIN, P. The selections of food by rats, humans and others animals. In: ROSENBLATT, J. S. et al. (Eds.) Advances in the Study of Behaviour. Vol. 6. L o n d o n : London Academic Press, 1976.

WARDE, A. Consumption, Food and Taste: culinary antinomies and commodity culture. London: Sage Publications, 1997.

WILSON, C. S. Food habits: a selected annoted bibliography. Journal of Nutrition Education, 5(suppl.1):37-72, 1973.

Referências

Documentos relacionados

Em relação aos fatores de risco para ocorrência de úlcera por pressão, destaca-se que dentre os grupos de pacientes, as pessoas idosas apresentam maior risco para o

FUNDO está sujeito a risco de perda de seu patrimônio líquido em caso de eventos que acarretem o não pagamento dos ativos integrantes de sua carteira,

Anais do XI Encontro Nacional de Educação Matemática – ISSN 2178-034X Página 4 A seguir, serão apresentadas quatro situações de produção textual nas aulas de

O desempenho das funções parentais parece constituir-se como uma tarefa bastante complexa e para a desenvolverem de forma positiva os pais necessitam de dispor

Desmontaje del filtro de carbón: girar el panel de vidrio aferrándolo por la parte delantera de la campana (Fig. 12); extraer el filtro antigrasa empujando el retén hacia la

E para ajudar a responder a referida pergunta, este estudo traz a baila o objetivo que é: Investigar a influência do ensino remoto na educação superior nas Instituições de

Esta obra está sob a licença Copy Left Creative Commons – alguns direitos reservados1. CREATIVE COMMONS – O

Los Estados también deben tomar las medidas necesarias, ya sea legislativas o de otro tipo, para asegurar la realización del derecho a la salud, mediante la eliminación de los