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Faltam nove para 2000 O trabalho de Alexandre Estrela na década de 90

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Faltam nove para 2000

O trabalho de Alexandre Estrela na década de 90

Inês Catarina dos Santos Apolinário

Tese orientada pelo Professor Doutor Pedro Lapa, especialmente

elaborada para a obtenção do grau de Mestre em História de Arte e

Património.

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Resumo

Alexandre Estrela tem vindo a desenvolver, entre 1990 e 2000, um percurso artístico singular, marcado pela exploração da materialidade do meio com o qual trabalha (vídeo) e o questionamento sobre a natureza percetiva da imagem. O foco da nossa investigação centra-se nas obras com que iniciou este percurso. As mesmas são enraizadas nas qualidades e possibilidades conceptuais do vídeo, uma base de trabalho pouco explorada pelos seus conterrâneos, o que proporcionou o desenvolvimento de uma linguagem visual distinta dentro do panorama da Arte Portuguesa. O interesse pelo seu trabalho durante a década de 1990, ocorre por ser este um momento adventício para o artista, e também por ser esta uma fase de transformação para a Arte Portuguesa. Tendo em consideração estes aspetos, optou-se por realizar um levantamento das referências artísticas, literárias, ensaísticas e/ou científicas a partir das quais o artista estabelece articulações na execução das obras em análise. Para tal foi realizado um inventário de todas essas obras e também das exposições apresentadas na década de 1990. Escolhemos sete trabalhos que se revelam mais significativos para uma análise aprofundada e caracterizadora da sua atividade neste período.

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Abstract

Since the beginning of his artistic career, Alexandre Estrela has been developing a unique path that is noticeable for its exploration of the materiality of the medium with which he works (video) and for its questioning of the perceptive nature of the image. The focus of our investigation will be on Estrela’s first works, meaning the ones from the 90 ́s, of which seven have been selected for detailed analysis. These are highly dependent on and exemplary of the qualities and conceptual possibilities of the video, a field very little explored by Estrela’s fellow countrymen, which led to the development of a distinctive and new expression within the panorama of Portuguese art. With this in mind, we will proceed to a selection of artistic, literary and/or scientific references that the artist may have used for executing the works in question.

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Agradecimentos

Para a minha mãe e o meu pai que sempre me apoiaram. Eles são, e sempre serão, modelos de humildade e perseverança.

Para os meus amigos que me conhecem e me ajudam quando mais preciso: Filipa Macedo, João Lourenço, Sofia Lourenço, Márcio Correia, André Correia e Daniel Lucindo.

Ao João, Joel e Ariel Pinheiro.

Aos meus amigos artistas que me motivam todos os dias para continuar a criar: Joana C. Rodrigues, João Pedro Fonseca, Rui M. Costa, André Costa, Rui del Pino Fernandes, João Borges, Miguel Sousa, Patrícia Almeida, Ana Oliveira e Daniela Fortuna.

À equipa incrível que trabalha comigo todos os dias.

Ao Professor Doutor Pedro Lapa por todo o seu acompanhamento, apoio e, sobretudo, conhecimento.

Ao Alexandre Estrela pela sua disponibilidade e simpatia.

Ao Pedro Miguel Ferrão da Costa por ter acreditado em mim quando nem eu própria era capaz de o fazer.

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Índice

2 Resumo/ Abstract/ palavras-chave 4 Agradecimentos

7 Índice de figuras

Introdução……….………..…..……. 8

1. Antes de Estrela 1.1 Film Going/ Video Going: Making distinctions ………...13

1.2 O grupo Fluxus …..……….………....…21

1.3 O Cinema Estrutural ………..25

2. Os casos portugueses ………...……. 40

2.1 Silvestre Pestana, Ângelo de Sousa, António Palolo, Fernando Calhau, Ernesto de Sousa e Julião Sarmento……....…...………..…………....….. 44

2.2 Os anos 90………...…. 53

3. Viagem ao meio: Alexandre Estrela

……….…………..….…

60

4. Análise………..………..……….……63

4.1 Câmara(1995) ……….…….64

4.2 Tv´s Back (1995)………. 68

4.3 Turquoise Hexagon Sun (1996)………72

4.4 Making a star (1996

)

………... 74

4.5 The Nails Feedback (1998)……….. 75

4.6 Sem Sol (1999)………. 78

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6 5. Considerações finais ……….………….……….…….. 83 6. Lista de referências………..………. 88 7. Anexos 7.1 As obras da década de 1990…………...………....……. 93 7.2 As exposições da década de 1990 ..………..……….. 96

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7 Índice de figuras

fig. 1- Ant Farm, Media Burn, 1975.

fig. 2- Ben Vautier, Fluxus is a pain in Art´s ass, 1994 fig. 3- Ben Vautier Regardez-moi, cela suffit, fluxfilm, 1962

fig. 4- Michael Snow, Wavelenght, 1967, (demonstração dos diferentes filtros utilizados). fig. 5- Michael Snow, Authorization, 1969.

fig. 6- Frank Stella, Jasper´s Dillema, 1962.

fig. 7- Michael Snow, Two sides to every story, 1974, (vista da obra exposta). fig. 8- Michael Snow, Two sides to every story, 1974, (esquema da peça). fig. 9- Tony Conrad, Yellow Movies, 1972-1973.

fig. 10- Tony Conrad, Sukiyaki Film, 1973. fig. 11- Fernando Calhau, Destruição, 1975.

fig.12- Ernesto de Sousa, Revolution my body #2, 1972. fig. 13- Julião Sarmento, Gnait, 1979.

fig.14- Paulo Mendes- Triunfo da Vontade- Europa 94, 1994. Fig.15 – Miguel Soares, Untitled (two), 1999.

fig. 16- Alexandre Estrela, Câmara, 1995. fig. 17- Bill Viola, Reverse Television, 1983. fig. 18- Alexandre Estrela, TV´s Back, 1995.

fig. 19- Douglas Davis, Images from the Present Tense, 1974. fig. 20- Alexandre Estrela, Turquoise Hexagun Sun, 1996. fig. 21- Alexandre Estrela, The Nails Feedback, 1998. fig. 22- Alexandre Estrela, Sem Sol, 1999.

fig. 23- Alexandre Estrela, The Waiter, 1999. fig. 24- Alexandre Estrela, Starmountain, 1995. fig. 25- Alexandre Estrela, Biovoid, 1996. fig. 26- Alexandre Estrela, It´s Rock 1997. fig. 27- Alexandre Estrela, Fusão 1995.

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8 Introdução

“A duração é o meio que possibilita o pensamento e, portanto, a duração está para a consciência, como a luz está para os olhos.”1

-Bill Viola

O vídeo é o médium que Alexandre Estrela, desde o início da década 1990 aos dias de hoje, escolhe para testar e descobrir potencialidades. Porém, quando o artista experimenta este médium pela primeira vez, o vídeo já tinha uma história significativano mundo da arte ocidental.

O ato de filmar passa por uma revolução em 1965 quando Nam June Paik, membro do grupo Fluxus, com a sua Sony Portapak, filmou a procissão do Papa Paulo VI na cidade de Nova Iorque e, nesse mesmo dia, num café, mostrou a um público as filmagens que daí resultaram.2 Chloe Aaron descreve, num artigo para a revista Art in America, o momento da aparição da câmara de vídeo portátil:

“Esta revolução é baseada num avanço radical na tecnologia. Com o que

um amador gastaria numa configuração de cinema em casa de primeira classe, a Sony agora oferece uma “portapak” – uma câmara de vídeo do tamanho de uma caixa de charutos e um gravador que não pesa mais que as Páginas Amarelas. Até meia hora de som e imagem pode ser gravada numa bobina de fita e reproduzidas imediatamente, sem necessidade de processamento laboratorial. Uma hora de fita de vídeo custa cerca de quarenta dólares e pode ser usada cinquenta vezes.”3

1 Viola, Bill, “Video Black – The Mortality of the Image”, Illuminating Video. An Essential

Guide to Video Art, ed. Doug Hall e Sally Jo Fifer (Nova Iorque: Aperture Foundation, 1990), 482.

2 Frieling, Rudolf, “VT ≠ TV – The Beginnings of Video Art”, Medien Kunst Interaktion

– die 60er und 70er Jahre in Deutschland, (Viena, 1997), 122.

3 Aaron, Chloe, “The Video Underground”, Art in America (may, june, 1971), 75. (tradução

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A presente dissertação tem, como premissa inicial, a análise da emergência do filme e mais tarde do vídeo, nas artes visuais. Assim, no primeiro capítulo, começamos por estabelecer as diferenças entre os dois médiuns, analisando o artigo de Douglas Davis “Film Going/Video Going: making distinctions”. No que diz respeito ao filme e a sua transformação até à sua presença nas galerias de arte, o artigo “Film and the Radical Aspiration” de Annette Michelson auxiliou na determinação do momento em que esta mudança ocorre e o porquê.

O vídeo, tal como a televisão, levanta algumas questões e problemáticas que são exploradas pelos artistas com grande entusiasmo, algo que observamos e sobre o qual refletimos. Decidimos tratar o filme e não só o vídeo, porque uma das referências, de significativa relevância nas artes visuais e, particularmente na prática artística de Alexandre Estrela, é o cinema estrutural. Daragh Reeves confirma-o, dizendo: “Alexandre Estrela é um defensor acérrimo do cinema de vanguarda e experimental.”4 É também um entusiasta na divulgação do filme e vídeo experimental: foi o responsável pelo Festival Hi8 e curador da secção portuguesa Velocidade de luz variável no Festival Márgenes 2009, em Madrid. O seu projeto Oporto5 é também prova deste entusiasmo.

O cinema estrutural surge, maioritariamente, com artistas plásticos que se viram intrigados pelo filme e as suas hipóteses como médium.

Na mesma época que o filme estrutural surge, os Fluxfilms, realizados pelos artistas do Fluxus, também são pertinentes na contextualização desta transformação e do trabalho de Estrela. O grupo ou movimento Fluxus, que é tratado no segundo capítulo deste trabalho, representa um marco na História de Arte internacional, pela sua variedade de ideias e media explorados. Uma ideia importante a reter, é a de que a maior parte dos trabalhos dos artistas deste grupo rejeita a ideia de uma arte representacional. Em vez disso, foca-se geralmente numa apresentação da realidade. Mesmo que sejam utilizados modos representacionais, como nos Fluxfilms, estes são utilizados apenas com o propósito de debilitar os princípios do ilusionismo ocidental e de impulsionar o representacional para a experiência primária dos sentidos. Esta ideia é refletida no trabalho de Alexandre Estrela.

4 Reeves, Daragh, “Se nada fizeres, o nada faz”, Meio-concreto, (Porto: Fundação de

Serralves, catálogo da exposição de Alexandre Estrela, 2013), 193.

5 Na antiga sede do Sindicato dos Marinheiros Mercantes de Portugal, em Lisboa, onde se

encontra o seu estúdio, Alexandre Estrela programa e apresenta ao longo do ano obras de autores nacionais e internacionais na área do cinema e vídeo experimental.

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Além de Nam June Paik, destacam-se entre os artistas integrantes deste grupo: George Brecht, George Maciunas, Allan Kaprow, Dick Higgins, Joseph Beuys, Yoko Ono, John Cavanaugh e Wolf Vostell.

O terceiro momento da dissertação é assim dedicado ao cinema estrutural. Este é definido, nas palavras de Peter Gidal, como “não-ilusionista. O processo de realização de um filme estrutural lida com dispositivos que resultam na desmistificação ou na tentativa de desmitificar o processo de filmagem”.6

“No filme estrutural, a imagem está para si mesma; ela torna-se não necessariamente autorreferencial, mas talvez numa existência que se materializa a si própria e tem a capacidade para construir em si uma dimensão cujo espaço e tempo que a compõe ultrapassam o universo físico e percetivo humano.”7

A noção de espaço e tempo, a perceção do espectador e o conceito de “ótica” são elementos essenciais no trabalho destes artistas e, são aprofundados conforme o desenvolvimento da nossa pesquisa, mostrando ser, também, elementos-chave nas obras de Alexandre Estrela que nos propomos discutir. Os artistas representantes do cinema estrutural, escolhidos como influências principais para o trabalho de Estrela, são Michael Snow e Tony Conrad.

Michael Snow, sobre o seu trabalho diz: “Todos os meus filmes são tentativas de controlar o tipo ou a qualidade da crença na imagem “realista”.”8 Sendo que esta descrição que Snow faz da sua obra é pertinente ao trabalho de Alexandre Estrela, selecionamos, pela relação que determinados aspetos têm, as seguintes obras: “Wavelenght” de 1966-67, “Authorization” de 1969 e “Two Sides to Every Story “de 1974.

Posteriormente, e ainda no capítulo referente às influências possíveis do cinema estrutural, abordamos o trabalho de Tony Conrad. Deste retiramos não só o seu contributo

6 Gidal, Peter, Structural Film Anthology (Londres: BFI Publishing. 1976), 1.

Na lingua original: “Structural/Materialist film attempts to be non-illusionist. The process of the film's making deals with devices that result in demystification or attempted demystification of the film process.”

7 Alagoa, Alexandre, O Vórtice Abissal- a mise en abyme e o filme estrutural, (tese de

mestrado pela Faculdade Belas Artes de Lisboa, 2017), 16.

8 Snow, Michael, “Letter from Michael Snow to Peter Gidal on the film Back and Forth”,

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no cinema estrutural, mas na arte experimental em geral. Conrad estudou matemática e envolveu-se seriamente na música. Mas acaba por colocar de lado ambas as matérias por serem, a seu ver, demasiado “aborrecidas”. Consequentemente, seguindo a influência do mundo artístico da sua geração, começou a realizar filmes experimentais, dos quais destacamos “The Flicker” de 1966-67, que se relaciona com “Blink” de John Cavanaugh, membro do Fluxus, por serem ambos do mesmo ano e terem praticamente a mesma estrutura.

O conjunto de “Yellow Movies” e a obra “Sukiyaki Film” são experiências de Conrad, que apesar de não se tratarem de filmes (pelo menos não no formato tradicional) são de extrema importância para a discussão dos limites do filme enquanto medium e na definição do propósito que tanto o filme estrutural como Alexandre Estrela partilham.

O capítulo “Os casos portugueses”, trata primeiro o trabalho desenvolvido por artistas considerados como elementos fundamentais no desenvolvimento cultural português. São artistas tidos como pioneiros pela forma como usam o filme e vídeo, a partir da década de 1970. São eles: Fernando Calhau, António Palolo, Silvestre Pestana, Ângelo de Sousa, Ernesto de Sousa e Julião Sarmento.

Numa segunda instância, refletimos sobre “Os anos 90” em Portugal, com a utilização mais predominante da tecnologia do vídeo e os resultados que surgiram com a descoberta do novo medium, notando o ambiente artístico que se fez sentir durante essa década. Dos artistas da geração de Alexandre Estrela, escolhemos alguns trabalhos que apoiam a nossa análise: Miguel Soares, Rui Toscano e, igualmente, Paulo Mendes que, apesar de se incluir num grupo algo diferente destes artistas, é responsável por organizar uma grande parte das exposições desta época que são tratadas como sendo “alternativas”. Criamos uma divisão entre este grupo e o de Fernando Calhau e Julião Sarmento, porque se os últimos são considerados pioneiros na forma como utilizam filme e vídeo, os mais recentes serão tidos como precursores de pensar os novos media de uma forma mais geral.

Para além das sete obras de Alexandre Estrela que são analisadas com mais detalhe, nomeadamente Câmara (1995), Tv´s Back (1995), Turquoise Hexagon Sun (1996), Making a star (1996), The Nails Feedback (1998), “Sem Sol” (1999) e “The Waiter” (1999), foi realizado um inventário de todas as obras e exposições realizadas durante a década de 1990.

Numa nota final, é importante referir que a nossa dissertação está organizada de forma a que as influências que vemos como importantes no trabalho de Alexandre Estrela

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sejam apontadas e esclarecidas, através dos vários capítulos, contudo, deve ser claro que o artista, no período que tratamos, desconhecia muitas destas referências. Ainda assim, os desenvolvimentos realizados e as qualidades que surgem com os movimentos que antecedem Estrela, ajudam-nos a entender todo um contexto e um pensamento que é herdado de geração em geração. Importa desde já também referir que se existem proximidades e influências, estas são submetidas a uma releitura que desloca certo tipo de questões inerentes às anteriores gerações para outro tipo de problematização.

O objetivo deste trabalho de investigação é, portanto, o de criar uma compreensão dos fatores que fizeram Alexandre Estrela diferenciar-se de outros artistas. Procura-se também oferecer um contributo para o debate sobre esta época na História da Arte Portuguesa e as questões que surgiram com esta nova sensibilidade estética proporcionada pela imagem em movimento.

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13 1. Antes de Estrela

“Para ele, que conhecia da imagem seus congelamentos da representação – pintura, fotografia, cinema, televisão –, o vídeo foi um choque: choque na medida em que ele se encontrou, de repente alienado. E por trás de todo o reconhecível, de toda a designação, de toda a captura, algo de obscuro que se buscava por intermédio dos filmes – outra circulação, uma capacidade desconhecida, um espaço de deslizamento, de transformações, de rastos, um tempo liberto dos constrangimentos narrativos cronológicos – então era isso: um vai-e-vem luminoso, uma varredura, uma pulsação de tramas, uma superfície pulsante.”9

1.1 Film Going/ Video Going: Making distinctions

“Pensar sobre as diferenças que existem entre filme e vídeo, é nada mais nada menos que pensar na essência de cada um.”10 É neste tom que Douglas Davis começa o seu ensaio. A diferença entre estes dois médiuns, na sua opinião, está na própria experiência do ver, e “aquilo que vemos está diretamente relacionado com o como vemos, onde e quando”.11

Ver um filme, habitualmente, envolve sair de casa e ir para um espaço que é construído com o propósito apenas de apresentar os filmes. Tal como a experiência de sair de casa para ver uma exposição num museu ou galeria, por exemplo. Este espaço é totalmente escuro, com um ecrã imenso e com uma projeção de som sincronizada. O espaço do cinema envolve-nos primeiro num manto de escuridão para depois nos atingir com a luz anestesiante do ecrã. Durante este momento, nas palavras de Douglas Davis, “impotente, a mente é atraída para longe de si mesma, para uma existência maior que a vida.” 12

Desde o século dezanove, com o crescimento de uma população capaz de comprar obras de arte para o seu espaço pessoal, peças dos museus e galerias começaram a ser cada vez mais pensadas para espaços privados, alterando assim a própria dinâmica dos espaços

9 Bellour, Raymond, “Thierry Kuntze”, catálogo da exposição da Galerie Nationale du Jeu

de Paume/ Réunion des musées nationaux, (Paris: Jeu de Paume, 1993), 89.

10 Davis, Douglas, “Film Going/ Video Going: Making distinctions”, Video Culture-A

critical Investigation (ed. John Hanhardt, Utah: Gibbs Smith Publisher, 1986), 270.

11 Ibid.

12 Davis, Douglas, “Film Going/ Video Going: Making distinctions”, Video Culture-A

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de exposição. Seja pintura, escultura ou desenho, o foco está direcionado para a peça, pedindo a nossa atenção, e assim que a obtém, a peça seguinte já nos espera com o mesmo propósito. Esse propósito está em fixar o nosso olhar para o seu interior. As obras de pintura, escultura ou desenho partilham esse objetivo com o filme.13 Contudo, apesar dessa partilha, não devemos confundir a experiência de ver filme com a de ver uma pintura, pois as duas diferem num aspeto relevante para nós. Nas palavras de Walter Benjamin, “a pintura simplesmente não está em posição de apresentar um objeto para a experiência coletiva simultânea, como era possível para a arquitetura em todos os momentos, para o poema épico no passado e para o filme no presente”.14

Por um lado, no cinema, mesmo quando está sozinho, o espetador sente uma ligação àquele momento e àquele lugar. No seu subconsciente, quando se encontra num espaço projetado com o propósito de ver filmes e o realiza, sente que pertence a um coletivo, a um público. Por outro lado, temos a experiência do vídeo. O vídeo é normalmente apresentado num ecrã pequeno (em comparação com o do cinema). A televisão é o parente mais próximo do vídeo e para pensar sobre um há que pensar sobre o outro. No entanto, visto que a discussão sobre as problemáticas da televisão, no contexto dos “média”, é algo infindável, cingir-me-ei apenas à sua superfície e aos aspetos mais relevantes para esta investigação.

A televisão separa-se em dois conceitos: “um fio que vai do médium ao média, quer dizer, por um lado uma técnica com as suas qualidades de estrutura, matéria e

13 Duve, Thierry de, Michael Snow: the deictics of experience, and beyond, Parachute, Nº

78 (avril/mai/juin 1995), 28 (tradução minha).

Sobre a experiência do observador e a sua fixação na obra, Thierry de Duve escreve o seguinte: “O monge na pintura de Caspar David Friedrich, “Monk Before the Sea” está definitivamente a experienciar algo (…) O monge está a experienciar o sublime, mas será que nós, também estamos? Não só estamos a contemplar uma pintura, e não o mar, mas também estamos a contemplar o monge que contempla o mar, e que é visto por trás. Apesar da tentativa desesperada de Friedrich de recuperar uma experiência do sublime da arte e não da natureza crua, tudo o que ele pode fazer é nos apresentar uma experiência à distância. Não nos é pedido tanto que compartilhemos a experiência do monge, mas sim se é possível ou não experienciar a experiência de outra pessoa.”

14 Benjamin, Walter,“The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction.” [1935],

Illuminations, (Ed. Hannah Arendt, Nova Iorque: Schocken Books, 1969), 98.

Versão traduzida: “Painting simply is in no position to present an object for simultaneous collective experience, as it was possible for architecture at all times, for the epic poem in the past, and for the movie today.”

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temporalidade e por outro, uma função com os seus parâmetros; a comunicação, a globalização, a informação e a ideologia” (ênfase no original).15 Os artistas do vídeo são completamente a favor do uso do primeiro conceito e, são absolutamente contra o segundo. Sendo que, em vários trabalhos de vídeo, os artistas escolhem retratar a televisão utilizando as suas qualidades como médium (estrutura, matéria e temporalidade) para exibir e debater esse outro lado demédia.

Um trabalho ilustrativo dessa atitude dos artistas, perante o lado média da televisão, é o vídeo Media Burn do grupo Ant Farm (fig. 1). Neste happening, dois manequins, vestidos de astronautas, “dirigiram” um Cadillac a toda a velocidade contra uma parede de televisões em chamas. Para além desta ação, os Ant Farm questionaram a presença difundida da televisão na vida cotidiana, ofendendo a “média” que eles próprios convidaram para cobrir o evento, que foi encenado de forma a que se assemelhasse a um lançamento espacial.

Quando assistimos televisão, o nosso foco pode ser interrompido por outra tarefa qualquer,sendo diferente do cinema que retém facilmente a atenção do espectador. Douglas Davis acredita que o vídeo tem o poder de nos fazer crer que fazemos parte de um coletivo16 ao dizer, “regularmente estou sozinho diante do ecrã, tal como posso escolher ficar sozinho perante uma pintura. No entanto, existe uma ligação sentida com algum consenso maior”.17

Apesar das suas afinidades com outros médiuns, o vídeo continua a ser algo estranho e torna-se ainda mais complicado de perceber por estar ainda em processo de mudança.

15 Parfait, Françoise, VIDEO: Un Art Contemporain, (Paris: Editions du Regard, 2001), 8.

Na lingua original: “(…) puis l´art vidéo et la télévision, c´est sans cesse se tenir sur le fil qui va du médium au “média”, c´est-à-dire d´une technique avec ses qualités (structure, matière, temporalité) à une fonction avec ses paramètres (la communication, la mondialisation, l´information, l´idéologie).”

16 Neste ponto inclino-me para discordar de Douglas Davis. A meu ver a prática de assistir

vídeo é individualista. Apesar de existir uma ilusão criada pela transmissão em direto, o simples facto de poder desprender-me quando me for conveniente demonstra essa falta de coletividade, visto que nada está dependente da minha presença.

17 Davis, Douglas, “Film Going/ Video Going: Making distinctions”, Video Culture-A

critical Investigation (ed. John Hanhardt, Utah: Gibbs Smith Publisher, 1986), 270. Na lingua original: “Often, I am alone before the screen, as I might choose to be alone before a painting. Yet there is a felt link to some larger consensus.”

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A solução para distinguir vídeo e filme estará provavelmente na relação entre a nossa atitude perante o ecrã. Frank Gillette expõe uma hipótese: “Por exemplo, o que faz (o vídeo) não ser filme? Parte da razão está na nossa visão, olhamos para a fonte de luz, enquanto que, com o filme, olhas com a fonte de luz. No caso da televisão, a fonte de luz e a fonte de informação são uma só” (ênfase no original).18

Já estabelecemos que a experiência do filme leva a que a mente seja iludida pela ideia de uma existência coletiva e transcendente, levando-nos a sair de casa para ir a um espaço coberto com uma aura histórica e familiar. Por outro lado, o vídeo está disponível sempre que o quisermos, é de fácil acesso. Douglas Davis usa o exemplo de quando vemos um ator de cinema na rua, e de nos ser difícil conter uma certa admiração e espanto, pois também ele contém uma aura, enquanto os artistas do vídeo lembram um vizinho.19

Um dos momentos que nos interessa abordar é o de quando o filme esquece essa necessidade de iludir e passa do espaço do cinema para o da galeria, passando a ser visto como um objeto de arte. No seu livro Film as Art, Rudolph Arnheim, afirma: “Ainda há muitas pessoas educadas que negam, fortemente, a possibilidade de que o filme possa ser arte. Dizem: “O filme não pode ser arte, pois não faz nada além de reproduzir a realidade mecanicamente.”20

Esta opinião surge de uma analogia com a pintura. O processo de pintar vive do olho e do sistema nervoso do artista. Não é um processo mecânico como o da fotografia, em que os raios de luz refletidos do objeto são recolhidos por um sistema de lentes e seguidamente

18 Gillette, Frank, Frank Gillette Video: Process and Metaprocess, (Ed. Jodson Rosenbush,

Nova Iorque: Everson Museum of Art,1973), 21.

Na lingua original: “(…) for example, what makes it not film? Part of it is that you look into the source of light, with film you look with the source of light. In television, the source of light and the source of information are one.”

19 Davis, Douglas, “Film Going/ Video Going: Making distinctions”, Video Culture-A

critical Investigation (ed. John Hanhardt, Utah: Gibbs Smith Publisher, 1986), 271. Na lingua original: “Film performers, seen on the street, carry an aura; they can overpower us, in real life. Video performers remind their public – when seen in the street—of next-door neighbors; we reach out to shake their hands instinctively.”

20 Arnheim, Rudolph, Film as Art, (EUA: University of California Press, 1957), 8.

Na lingua original: “There are still many educated people who stoutly deny the possibility that film might be art. They say, in effect: "Film cannot be art, for it does nothing but reproduce reality mechanically.”

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direcionados para uma placa sensível, onde ocorrem mudanças químicas. Mas devemos negar à fotografia e ao filme um lugar na arte somente por serem reproduções mecânicas? Sobre esta questão, temos ainda o contributo de Annette Michelson, que nos situa no momento histórico que se pretende abordar nos capítulos que se seguem. No final da década de 1920, a natureza do cinema como ofício, transformou-se radicalmente numa indústria em crescimento e altamente organizada. Os revolucionários, os aventureiros, os realizadores-produtores e os artistas haviam sido substituídos por funcionários pagos. As consequências desta mudança refletiram-se numa “dissociação da sensibilidade”21 e numa rápida propagação de limites e convenções que serviram apenas para inibir, afastar e remodelar tudo o que os grandes nomes haviam conquistado pela arte do cinema, como D. W. Griffith, Sergei Eisenstein ou Orson Welles. Os teóricos e realizadores do filme cujo talento se distinguia pelo seu experimentalismo, começaram a aperceber-se desta corrupção, resultando na desistência de maior parte deles.

De certa forma, diz-nos Michelson, a resistência que houve em relação ao som no filme veio mascarar ou refletir a hostilidade sobre a exploração do filme e o seu rápido desenvolvimento como um instrumento da cultura de massas: “A história moderna do

cinema é, ainda assim, em grande parte, construída sob essa acomodação a essas forças repressivas e corruptas da situação pós-1929.”22 Foi a rejeição destas forças e a aspiração pelo retorno à inocência e à organicidade do filme que incentiva os esforços dos realizadores independentes do filme americano vanguardista que iremos ter a oportunidade de rever.

Também sobre o surgimento da nova tecnologia do filme, nomeadamente os filmes 8mm e a sua facilidade de acesso, Annette Michelson escreve que surgiram crianças de dez anos a realizar ficções científicas nos seus quintais e que, portanto, tudo pode acontecer. E, aqui, diz a autora, encontra-se o futuro promissor do cinema, essencialmente na acessibilidade do médium. Tanto o filme como a televisão são médiuns ricos de possibilidades criativas. Contudo, também por uma questão prática, experimentar

21 Michelson, Annette, “Film and the Radical Aspiration”, Film Culture Magazine Nº42,

(Nova Iorque, 1966), 409.

22 ibid. Na lingua original: “The history of modern cinema is, nevertheless, to a large

degree, that of its accommodation to those very repressive and corrupting forces of the post-1929 situation.”

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livremente estas possibilidades continua a ser difícil. É por esta razão que o surgimento dos equipamentos portáteis de gravação de vídeo foi tão importante, algo que Rosalind Krauss descreve:

“Mais ou menos na mesma época em que Broodthaers estava a

produzir uma meditação sobre o princípio da águia, um outro desenvolvimento, com alcance indubitavelmente mais amplo, havia entrado no mundo da arte para quebrar a noção de médium/

especificidade à sua maneira. Este desenvolvimento era a portapak - uma câmara de vídeo leve e barata com monitor - e, portanto, a chegada do vídeo à prática artística, algo que exige uma outra narrativa” 23

O despertar de tantos artistas a trabalhar com o vídeo está relacionado com esta acessibilidade económica e a maneabilidade do equipamento, mas não só. Também a ideia de poder pensar pela primeira vez um médium e as suas qualidades, era algo que os artistas não podiam ignorar.

O livro de Gene Youngblood, Expanded Cinema, é tido como o primeiro a abordar o vídeo pelas suas possibilidades como médium. No mesmo, o autor reflete sobre a necessidade de um “expanded cinema” que abranja todas as novas tecnologias como efeitos especiais, arte digital, vídeo, ambientes multimédia e holografias, para que uma nova “consciência” se possa desenvolver.

Entre os artistas que Gene Youngblood considera como portadores dessa nova “consciência” estão Stan Brakhage, Michael Snow, Will Hindle, Ronald Nameth, John Schofill, Andy Warhol, Carolee Schneemann, entre outros.

Voltando à comparação de Douglas Davis, entre um ator de cinema que contém uma aura difícil de não admirar e um ator de televisão que relembra um vizinho, Gene Youngblood expõe uma hipótese do porquê desta percepção:

23 Krauss, Rosalind, Voyage On The North Sea – Art In The Age Of The Post-Medium

Condition. (Nova Iorque: Thames & Hudson Inc., 1999), 24.

Na lingua original: At about the same time when Broodthaers was producing this meditation on the eagle principle, another development, with undoubtedly wider reach, had entered the world of art to shatter the notion of medium/specificity in its own way. This was the portapak - a light/weight, cheap video camera and monitor - and thus the advent of video into art practice, something that demands yet another narrative.”

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“A rede multimédia fez de todos nós artistas por procuração. Uma década a assistir televisão é igual a um curso de drama, escrita e filmagem ...a mística desapareceu - quase que podemos fazê-lo sozinhos. Infelizmente, muitos de nós fazemos exatamente isso: daí o excesso de talento sub-medíocre na indústria do entretenimento.”24 (ênfase no original)

Os filmes que iremos tratar nos seguintes capítulos não foram realizados por crianças nos seus quintais, mas sim por artistas que viram o potencial para explorar e utilizar o filme com outros propósitos para além dos convencionais impostos pela indústria. Estes viram o filme com outros olhos, e a nosso ver, é esta nova visão que vai mais tarde despoletar a necessidade pelo vídeo.

24 Youngblood, Gene, Expanded Cinema, (Nova Iorque: P. Dutton & Co., Inc., 1970), 58.

Na lingua original: “The intermedia network has made all of us artists by proxy. A decade of television-watching is equal to a comprehensive course in dramatic acting, writing, and filming...the mystique is gone—we could almost do it ourselves. Unfortunately, too many of us do just that: hence the glut of sub-mediocre talent in the entertainment industry.”

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20 Figura 1

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21 1.2 O grupo Fluxus

O presente capítulo, serve como introdução ao grupo Fluxus, cuja relevância e impacto, na forma como a arte passou a ser entendida e trabalhada, é, deveras, importante. O livro “Fluxus Experience”, de Hannah Higgins25, fornece uma observação pormenorizada sobre a relação entre os membros do grupo Fluxus e as suas ideologias. Revela, ainda, como essas mesmas ideologias acabaram por tornar essa relação algo complexa. George Maciunas, autoproclamado “líder do grupo”, tinha uma visão de como o grupo devia operar. Uns seguiram essa visão, algo radical, e outros acabariam por cortar relações por não concordarem com o espírito que Maciunas procurava para o Fluxus. “Os artistas [que compõem este movimento] vêm de quase todos os países industrializados, são de várias gerações, e muitos não se dão bem uns com os outros. Portanto, retratar com precisão Fluxus requer pensar numa arte que renuncia os termos normalmente definitivos de estilo, médium e sensibilidade política.”26 Nas palavras de um dos artistas deste grupo, Ben Vautier, o grupo Fluxus viria a ser “a pain in art’s ass” (fig.2), precisamente pelas divergências e conflitos gerados.

O movimento, ou melhor, a atitude Fluxus, teve o seu início na década de 1960. Artistas e compositores internacionais juntaram-se para “promover uma inundação e maré revolucionária na arte, promover a arte viva, a anti-arte”27 A produção artística de Fluxus é variada, alternando entre diferentes formatos: performances minimais, às quais chamam eventos, a óperas de grande escala, de caixas construídas com vários materiais com vários propósitos, chamadas Fluxkits, a pinturas em tela. O nosso foco incidirá sobre os Fluxfilms. Existem ao todo trinta e sete Fluxfilms, cuja duração varia entre os dez segundos e os dez minutos. Estes filmes (alguns dos quais foram feitos para serem exibidos como loops contínuos) eram mostrados como parte dos eventos e acontecimentos da vanguarda nova-iorquina.

25 Higgins, Hannah, Fluxus Experience, (California, EUA: University of California Press,

2002).

26 ibid. p.16.

27 Maciunas, George, Manifesto (1963),

Na lingua original: “promote a revolutionary flood and tide in art, promote living art, anti-art.”

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Os primeiros filmes datam de 1962, por Nam June Paik e Ben Vautier. Tal como as restantes peças de Fluxus, estes filmes celebravam o espírito satírico e efémero do grupo, sempre com a intenção de conciliar a arte com a vida quotidiana.

Um dos exemplos deste pensamento é “Regardez-moi, cela suffit”, um dos Fluxfilms realizados por Ben Vautier, em 1962 (fig. 3). O próprio título é bastante literal, visto que, durante os seis minutos do filme, o artista se encontra sentado no meio de uma praça pública sem se mexer, com pessoas à sua volta que vão tendo reações diferentes ao observá-lo. A simplicidade da ideia foi considerada suficiente pelo artista.

De 1963, o Fluxfilm “Sun in Your Head (Television Decollage)” de Wolf Vostell é um pouco mais complexo. A filosofia de Vostell era construída em torno da ideia de que a destruição está ao nosso redor e que percorre todo o século XX. O artista representava essa ideia através das suas dé-coll/ages que surgiam nas ruas, deformadas e manipuladas a partir de cartazes de lugares públicos. Tinha como objetivo refletir sobre a violência da Alemanha do pós-guerra e a sua recente descoberta do consumismo americano. “Sun in Your Head” é uma dé-coll/age em que o artista recorre a imagens já existentes da televisão. O filme é composto por sequências dessas imagens de TV, com distorções frequentes. As imagens consistem em aviões, homens e mulheres intercaladas com textos como: “silence, genius at

work” e “ich liebe dich” 28. Como nenhuma tecnologia de reprodução de vídeo estava disponível na época, Vostell, juntamente com Edo Jansen, gravou as imagens da televisão usando uma câmara de 8 mm, permitindo a edição do filme e a reprodução num projetor. O filme acabou por ser reeditado e copiado para o formato de vídeo em 1967.

Destas duas últimas obras, a de Ben Vautier e a de Wolf Vostell, retiramos duas ideias muito distintas. Na primeira, é exposta uma situação simples onde não há absolutamente nada a esconder, onde a ideia de que arte não deve ser vista como algo transcendente, mas sim como algo pertencente à vida terrestre. Na segunda, deparamo-nos com um puzzle de imagens e texto, revolucionário pela forma como utiliza o filme, que passa de algo ilusório, como já referimos antes, para uma fragmentação, neste caso da televisão e da publicidade nela presente.

28Electronic Arts Intermix, (Nova Iorque, 1997 – 2019),

https://www.eai.org/titles/sun-in-your-head-television-decollage

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Aqui o filme deve ser visto como um meio para atingir um objetivo. Não haja dúvidas de que em 1963, se Vostell tivesse acesso à tecnologia de gravação de vídeo, tê-la-ia usado. A tecnologia do vídeo em relação à do filme, tem as suas facilidades. O processo de edição, por exemplo, viria a poupar muito tempo a quem não estava interessado (caso do Fluxus) nas competências e perícias, que normalmente, pertencem ao filme tradicional, independente ou de autor.

Esta fragmentação do ilusório e a aproximação da arte à vida quotidiana é um momento de relevância para o nosso estudo sobre a obra de Alexandre Estrela. Em vários casos, Estrela decide revelar, ou pelo menos não esconder, o processo de construção do trabalho. Também é possível observar nas obras de Estrela, um espírito sarcástico semelhante ao dos artistas de Fluxus. Contudo, é de sublinhar que a preocupação do grupo Fluxus não reside especificamente na descoberta das potencialidades do médium, como é o caso de Alexandre Estrela com o vídeo.

No que toca ao desmantelamento da ilusão, esse aspeto não é próprio apenas do movimento Fluxus. Será algo percetível na obra de Estrela, mas não só. Falando metaforicamente, na expectativa de tornar o nosso próximo ponto mais claro, se colocássemos um espelho à frente de Fluxus, seria refletida uma imagem aparentemente igual, mas na sua essência completamente oposta. Essa imagem, a nosso ver, é o cinema estrutural.

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Figura 2

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25 1.3 O cinema Estrutural

“Sob uma enorme representação literal de um cachimbo inconfundível, Magritte escreveu “Ceci n'est pas une pipe”. E para o espectador intrigado que confunde a imagem com a realidade, ele teria dito: - Tente fumar.”29

- Leo Steinberg

O termo structural film foi primeiramente introduzido por P. Adams Sitney no final dos anos 60 (numa publicação da Film Culture30) e mais tarde, volta a ser integrado no seu livro Visionary Film31. Esta publicação acerca do cinema de Vanguarda Americano relata os novos desenvolvimentos estéticos dentro do cinema experimental. Michael Snow, Tony Conrad, Hollis Frampton, Paul Sharits e outros, começaram a introduzir novas formas de realizar e interpretar o filme experimental, formas essas distantes de, por exemplo, Gregory Markoupolos ou Stan Brakhage, que perseguiam um caminho cinematográfico baseado “numa conceção de filme como sendo, no sentido mais amplo, redentor da própria condição humana.”32 Brakhage chega a considerar a câmara como uma extensão do seu corpo, capaz de refletir as suas sensações. Esta retórica, como Annette Michelson observa, é a mesma do expressionismo abstrato. A do filme estrutural, por outro lado, irá coincidir mais com o movimento do minimalismo, algo que iremos analisar posteriormente.

P. Adams Sitney argumenta que o discurso do filme estrutural se compõe, principalmente, através do destaque das qualidades intrínsecas do próprio médium, ou seja, na condição fenomenológica do filme, no seu sentido literal e físico. O filme estrutural

29 Steinberg, Leo, “Jasper Johns: The First Seven Years of His Art”, Other criteria:

confrontations with twentieth-century art (Nova Iorque: Oxford University Press, 1974), 23 (tradução minha).

30 Sitney, P. Adams, “Structural film”, Visionary film: The American Avant-Garde., (Nova

Iorque: Oxford U.Press. 1974), 326.

31 Sitney, P. Adams, Visionary Film: The American Avant-garde, 1943-2000, (Nova Iorque:

Oxford University Press, 2002)

32 Michelson, Annette, Film and the Radical Aspiration, (Nova Iorque: Film Culture

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procura também retirar qualquer conteúdo diegético ou representativo, focando-se na qualidade material do médium e na relação espácio-temporal com o observador.

Em oposição, o cinema dominante (tenha-se como exemplo o cinema de Hollywood) transforma o médium e a montagem em algo apropriado do romance e da representação teatral. Estes filmes transportam quem o vê para uma ilusão concebida por via de histórias e personagens, que se interligam com a condição (social, política, emocional, religiosa, etc.) do espectador como indivíduo.

Ver um filme estruturalista envolve ver, ao mesmo tempo, o filme a tornar-se filme e ganhar a perceção da consciência que produziu o mesmo. Posto isto, a mente ativa do observador é necessária para o procedimento da existência do filme. Isto não significa, contudo, que no filme de Hollywood não seja necessária a mente ativa. O que acontece é que no caso do filme estrutural a atenção prestada está na materialidade do próprio filme, um aspeto que já era distintivo do filme experimental, mas que agora sofre uma afirmação mais radical. Esta e outras características do cinema estrutural são importantes de reter, pois serão novamente discutidas quando for feita a análise ao trabalho de Alexandre Estrela.

Em Visionary Film, P. Adams Sitney enumera as características de um filme estruturalista: “a posição fixa da câmara (quadro fixo do ponto de vista do espectador), o efeito flicker, a cópia em loop e a refilmagem de tela.”33 Não é regra do filme estrutural que todas estas características estejam presentes ao mesmo tempo. Conforme iremos analisando as obras, tanto de Michael Snow como de Tony Conrad, apontaremos a presença dessas particularidades e explicaremos também o seu funcionamento no filme.

Michael Snow é reconhecido internacionalmente pelos seus contributos em três âmbitos culturais: artes visuais, cinema experimental e música. Formou-se em pintura e começou a trabalhar numa firma de animação em Ontario. Durante esse período, Snow aprende os princípios do cinema e realiza o seu primeiro filme A to Z, em 1956. Grande parte dos artistas do filme estrutural vieram da pintura ou das artes plásticas. Essa plasticidade será facilmente notada nos exemplos que iremos expor aqui. Esta transição de um campo para o outro estará relacionada com um momento de mudança no filme que mostrava ser revigorante e entusiasmante para todos os que faziam arte. Era o caso, por

33 Sitney, P. Adams, “Structural film”, Visionary film: The American Avant-Garde., (Nova

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exemplo, daqueles que estavam contra o formalismo de Clement Greenberg. Este momento é descrito por Rosalind Krauss:

“Os artistas que se sentaram na escuridão daquele teatro, cujos assentos, semelhantes a poltronas, foram projetados para cortar qualquer visão periférica, de modo a que toda a atenção fosse focada na própria tela, artistas como Richard Serra, Robert Smithson ou Carl Andre estavam unidos, por assim dizer, em torno de sua profunda hostilidade à versão rígida de modernismo de Clement Greenberg e a sua doutrina da flatness.”34

Para Clement Greenberg, a qualidade de flatness (bidimensionalidade) era própria do médium da pintura. Isto significava, portanto, que esta não poderia ser tridimensional, porque a tridimensionalidade era o domínio da escultura; não poderia ser representacional, pois era o domínio da literatura; e não poderia gerar efeitos dramáticos, por ser esse o domínio do teatro35. Era também comum durante a época do expressionismo abstrato falar-se sobre o conceito de “pureza” do médium na obra. Ou falar-seja, um médium que é excecional e que não se combina com outros.

As teorias de Greenberg passaram a ser criticadas principalmente pelo seu dogmatismo e inconsistência, especialmente num ambiente no qual a teoria pós-estruturalista começava a progredir. Os artistas do cinema estrutural viriam a destacar-se nesse aspeto. Ao procurarem os limites de uma especificidade encontraram o seu enquadramento, que foi por eles também interrogado, adiando assim a resolução definitiva e dogmática da especificidade.

Martha Langford, autora do livro “Michael Snow: Life & Work”, descreve a prática de Snow: “Fosse a escrever roteiros ou a criar bandas sonoras para os seus filmes, fazendo

34 Krauss, Rosalind, Voyage On The North Sea – Art In The Age Of The Post-Medium

Condition. (Nova Iorque: Thames & Hudson Inc., 1999), 19.

Na lingua original: “The artists who sat in the darkness of that theater, the wingchair/like seats of which were designed to cut off any peripheral vision so that every drop of attention would be focused on the screen itself, artists such as Richard Serra, Robert Smithson, or Carl Andre, could be said to be united around their deep hostility to Clement Greenberg's rigid version of modernism with its doctrine of flatness”

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objetos tridimensionais para serem fotografados, ou atuar como ator ou músico para a sua câmara, Snow, sempre consciente da natureza particular de cada médium, procurou intensificar o envolvimento do espectador com uma “art and near-art experience”.”36Um dos trabalhos mais conhecidos de Snow é o filme “Wavelenght”. Terá sido filmado numa semana de dezembro em 1966, resultado de um ano de apontamentos e pensamentos. Foi editado e visto pela primeira vez em maio de 1967.

Este filme consiste numa filmagem aparentemente fixa, a uma altura elevada, no canto de uma sala, que é o próprio estúdio do artista. Durante os 45 minutos do filme, a câmara executa um zoom in contínuo em direção às janelas do lado oposto. As mesmas sugerem algum movimento no exterior, revelando alguns ruídos, desde vozes a carros em andamento. Estes ruídos são mais tarde substituídos por um som, manipulado por Snow, em que uma onda sinusoidal vai aumentando conforme o zoom da câmara se aproxima das janelas. O nosso olhar, que acompanha o da câmara, e os nossos ouvidos sobrecarregados, encontram o fim numa fotografia, a preto e branco, de ondas do mar. Com o decorrer do filme, várias ações humanas vão acontecendo. São, contudo, as mudanças na exposição da imagem, as sobreposições, o efeito flicker e as mudanças cromáticas, originadas através de filtros improvisados pelo artista, que nos são mais relevantes. Estas experiências imagéticas revelam uma preocupação por parte de Snow em explorar as possibilidades do filme como material. (fig.4).

As palavras de Peter Gidal, em relação à produção do cinema estrutural, vêm facilitar o nosso entendimento sobre o processo do filme “Wavelenght”:

“Cada filme é um registo (não uma representação, nem uma reprodução) da sua construção. A produção de relações (filmagem para filmagem, filmagem para imagem, pixel para imagem, dissolução da imagem para pixel, etc.) é uma função básica que se encontra em direta oposição à reprodução de relações (…) Basta dizer que é aqui que se

36 Langford, Martha, Michael Snow: Life & Work, (Canada: Art Canada Institute, 2016), 7.

Na lingua original: “Whether writing scripts or creating soundtracks for his films, making three-dimensional objects to be photographed, or performing as an actor or a musician for his own camera, Snow, ever conscious of the particular nature of each medium, has sought to intensify the spectator’s involvement with art and near-art experience.”

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encontra o núcleo da questão que diferencia o filme ilusionista do filme não-ilusionista.”37

Quando o autor diz que cada filme é um registo da sua própria construção refere-se ao ato da filmagem, da edição e do processo de impressão do filme e como estas fases são tratadas, especificamente, uma por uma. O que Snow pretende com estas edições, tanto na imagem como no som, é a distinção entre o espaço do estúdio, ou seja, o nível representativo da imagem, do lado formal e o seu caráter não-representativo. Snow procura a simetria entre o espaço tridimensional ilusório e a imagem como bidimensional não-ilusória.

O zoom in que a câmara faz de forma lenta e quase despercebida à primeira instância é, a nosso ver, a ligação entre estes dois pontos. Passamos de um observador distante, que absorve o espaço e o conteúdo do mesmo, para um que fica cada vez mais perto de algo que não é percetível no início, e que acaba por se tornar na resposta. O final do filme (a fotografia das ondas) não é arbitrário. Algo que é bidimensional acaba por implicar uma continuidade espacial. A fotografia vai se tornando ela própria num novo espaço, quando acaba por se transformar no próprio enquadramento do filme.38

37 Gidal, Peter, Structural Film Anthology, (BFI Publishing., 1976), 10.

38 Michael Snow sobre Wavelenght: “Coisas acontecem dentro do espaço de Wavelenght e

coisas acontecem na filmagem do espaço de Wavelenght.” (tradução minha), citação presente no livro de Sitney, P. Adams, “Structural film”, Visionary film: The American Avant-Garde, (Nova Iorque: Oxford U.Press, 1974), 416.

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Figura 4

Outro trabalho de Snow, relevante para o estudo da obra de Alexandre Estrela, é “Authorization” de 1969 (fig.5). “Authorization” não é um filme, no sentido convencional. O artista apresenta-nos um conjunto de fotografias polaroid dispostas num retângulo marcado com fita adesiva sobre um espelho. A razão pela qual analisamos este trabalho de Michael Snow reside no facto de não ser um autorretrato fotográfico do artista, mas sim de um retrato da câmara e do ato de fotografar.

Snow delineou o retângulo no espelho para que coincidisse com o tamanho exato de duas filas de fotografias Polaroid. Seguidamente, tirou uma foto do seu reflexo e anexou a imagem instantânea a um canto do retângulo antes de tirar outra fotografia, desta vez já com o rosto parcialmente obscurecido pela Polaroid anterior. Repetiu esse processo até preencher o retângulo. Em “Authorization” podemos retirar novamente a ideia que referimos em “Wavelenght”, quando Peter Gidal diz que o filme estrutural é um registo da sua própria construção.Mesmo não se tratando de um filme, o processo é semelhante com o da construção de um filme. Imagine-se, por exemplo, os frames que compõem um filme: estes normalmente criam movimento quando alternados a uma alta velocidade. No caso de “Authorization” encontram-se estáticos. Desta forma a obra não só pode ser um registo do ato de fotografar, como também de filmar.

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Peter Gidal refere ainda que o cinema estrutural foi influenciado por dois outros movimentos artísticos: o expressionismo abstrato e o minimalismo. O expressionismo abstrato é, na verdade, pouco relevante para nós por se adequar mais ao caso de Stan Brakhage, tenha-se, porém, o exemplo da pintura “Jasper´s Dillema” de Frank Stella (fig.6). É nos difícil distinguir onde começa e acaba a tela. Stella retira a subjetividade no seu trabalho, usando apenas medições matemáticas arbitrárias, que forçam quem observa a pensar apenas na relação entre os diferentes tons de cinza e na alternância entre perspetivas. A escolha do espelho como suporte em “Authorization” faz com que a obra esteja em constante mudança e que não termine no limite do espelho. O sujeito que encara o trabalho torna-se parte dele.

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32 Figura 5 Figura 6

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Por fim, ainda de Michael Snow, importa referir a instalação “Two Sides to Every Story” de 1974 (fig.7). Uma placa de metal é pendurada no centro do espaço de exposição, onde, sobre a mesma, dois filmes em loop são projetados. Ambos mostram uma mulher que realiza uma série de movimentos entre dois operadores de câmara posicionados em lados opostos. Os filmes projetados representam as duas perspetivas dos cinegrafistas. Para quem observa a instalação só lhe é possível ver as duas perspetivas se caminhar de um lado da tela para o outro. Neste trabalho, Michael Snow desconstrói a ideia de um único ponto de vista da câmara no filme, redefinindo a cinematografia como uma experiência espacial. Nenhum dos lados da tela pode ser lido como frente ou verso; ambos são intercambiáveis. A tela de metal, ao ser explorada de um lado para o outro, inclui o observador num diálogo entre os dois diferentes pontos de vista que, no fundo, realizam a mesma ideia. As características que P. Adams Sitney refere como parte do cinema estrutural estão, novamente, presentes no trabalho de Snow: a refilmagem da tela e a cópia em loop. Esta obra de Snow é também um marco em que os artistas, que realizavam filmes dentro do white cube se distinguiram dos que realizavam filmes para a sala escura do cinema. Os seus trabalhos permitiram que uma nova geração de obras fílmicas e vídeos tivessem um lugar presente nas galerias e museus da atualidade.

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34 Figura 8

Fundamental abordar também, é a obra de Tony Conrad. Conrad mudou-se para Nova Iorque no início da década de 1960 para desenvolver uma componente artística, mais especificamente música. Acabou por integrar o grupo Dream Syndicate, que incluía também John Cale, Angus MacLise, La Monte Young, e Marian Zazeela. O grupo estava estilisticamente ligado à estética de Fluxus e ao continuum de música de ruído pós-John Cage. Conrad acaba por se afastar do grupo e, em 1966, realiza o seu primeiro filme “The Flicker”.

O efeito flicker é outra das características definidas por P. Adams Sitney. O termo traduz-se como um piscar. No fundo, o filme de Conrad trata-se de uma intercalação entre frames negros e brancos a uma velocidade em que o efeito estroboscópico é percetível. Por outras palavras, os nossos olhos não conseguem separar eventos que ocorram num intervalo de um tempo menor que 1/10 de segundo. Se uma luz (ou um frame branco) piscar numa frequência menor que 10 Hz (1/10 de segundo para cada frame branco) conseguimos fazer a distinção entre um frame branco de um negro. O filme de Tony Conrad foca-se na resposta do nosso olhar a este efeito. O artista considera a relação entre as condições psicológicas subjetivas que o efeito flicker provoca e a ideia de narrativa e conteúdo. Este acreditava que a experiência do flicker nos transporta para uma ilusão, do mesmo modo que os filmes mexem com a nossa imaginação e nos retiram da realidade para um espaço completamente psíquico.

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O efeito flicker foi testado por vários outros artistas; Peter Kubelka e o seu filme “Arnulf Rainer”, Paul Sharits com “N:O:T:H:I:N:G” e John Cavanaugh com “Blink”. Os últimos dois pertenciam ao grupo Fluxus, o que indica que alguns fluxfilms tinham alguma afinidade com o cinema estrutural, sobre o qual George Maciunas reflete em "Some Comments on Structural Film by P. Adams Sitney”.39

Ainda a respeito do efeito flicker, Hannah Higgins diz o seguinte:

“Por outras palavras, o efeito mais proeminente do flicker é o da sua

experiência como algo simultaneamente autorreflexivo – o observador é testemunha da fadiga do seu nervo ótico – este externamente ativado: o olho constitui o limite orgânico da pessoa que vê o filme num ecrã exterior. A experiência desse filme não pode ser de imediato analisada na tentativa de localizar elementos exclusivos de um ou de outro domínio; ocorre igualmente em ambos.” 40

É importante estabelecer a diferença entre “The Flicker” e “Blink” que, à primeira vista, são idênticos. O Fluxfilm # 5 e o filme de Tony Conrad foram realizados no mesmo

ano, em 1966. Por um lado, o filme de John Cavanaugh omite todas as intenções didáticas. Apenas se interessa em revelar a essência do cinema: o ritmo dos frames e a frequência em que a ilusão do filme é criada. Por outro lado, no filme de Conrad, a intermitência cria uma ilusão de continuidade como um experimento psicofisiológico de perceção. Esta experiência é reconhecida do trabalho de Michael Snow e será, novamente, no trabalho de Alexandre Estrela.

39 Maciunas, George. “Some Comments on Structural Film by P. Adams Sitney”, (Film

Culture, No. 47,1969)

40 Higgins, Hannah, Fluxus Experience, (California, EUA: University of California Press,

2002), 21.

Na lingua original: “In other words, the most striking effect of Flicker is that experience of it is simultaneously self-reflexive—the viewer witnesses the fatigue of his or her own optic nerve—and externally triggered: the eye constitutes the organic boundary of a person watching a movie shown on an external screen. Experience of the film cannot readily be dissected to locate elements exclusively in one or the other domain; it occurs equally within both.”

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Apesar da experiência percetiva, “The Flicker” não deixa de ser uma redução radical do cinema às suas propriedades mais essenciais: luz e escuridão, preto e branco, som e silêncio. Esta procura pela pureza do filme como médium remete para uma das grandes questões que atravessa o filme estrutural: a interrogação sobre a definição do médium a partir da sua materialidade. Podemos tomar como exemplos para a exploração desta questão outras peças do autor: “Yellow Movie” (1972-73) e “Sukiyaki Film” (1973). Em “Yellow Movie” (fig.9) interessava ao artista envolver o público durante uma grande extensão de tempo, quebrando os limites da duração de um filme: “Eu devia fazer um filme que pusesse de lado o filme de vinte e quatro horas do Andy Warhol. Realizarei um que dure cinquenta anos.”41 Para o qual, toda a definição de filme foi reestruturada sendo que, os "materiais normais" e os mecanismos de projeção não iriam resistir tanto tempo, o envelhecimento físico e a transformação do próprio material iriam constituir uma imagem em movimento de câmara (muito) lenta, e essas mudanças revelar-se-iam no próprio filme.

Um ano após o conjunto de “Yellow Movies”, Conrad realizou o seu “Sukiyaki Film” (fig.10). Sukiyaki é o nome de um prato japonês que é preparado à frente dos clientes e consumido de imediato. Dito isto, Conrad incorpora um filme de 16 mm na receita original de sukiyaki e, quando termina, atira o “filme” para uma tela para ser todo ele “consumido” naquele instante. É exposta, nesta obra, a ideia de filme como pura materialidade do celulóide.

Pensar sobre a especificidade do filme neste contexto envolve pensar sobre a condição agregada do médium - o meio ou suporte para o filme não é a tira de celulóide das imagens, nem a câmara que as filmou, nem o projetor que as traz à vida em movimento, nem a luz que as transmite para a tela, nem a tela em si, mas todos estes elementos juntos, incluindo a posição do público. O filme estrutural estabeleceu o ideal de produzir a unidade desse suporte diversificado numa única experiência. A correlação absoluta de todos esses aspetos seria tida como um modelo de como o espectador está intencionalmente ligado ao seu mundo. A respeito desta experiência há que notar o que Rosalind Krauss diz a respeito da “ótica”:

41 Conrad, Tony, “The Language of Less: Tony Conrad” (entrevista para o Museu de Arte

Contemporânea de Chicago, 2012)

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“Assim, pode-se argumentar que, nos anos 60, a “ótica” servia como algo mais do que apenas uma característica da arte; tornou-se um médium de arte (...) "ótica" era, portanto, uma versão completamente abstrata e esquematizada da ligação que a perspetiva tradicional havia estabelecido anteriormente entre o espectador e o objeto, mas que agora transcende os parâmetros reais do espaço físico mensurável para expressar os poderes puramente projetivos de um nível de visão pré-objetivo: "a própria visão".”42

Seguindo este conceito de “ótica” podemos argumentar que também a arte da instalação, ou como um dos membros de Fluxus, Allan Kaprow, em 1958, nomeou de “environment”, tem em conta a experiência sensorial mais ampla. O momento em que o foco do espectador estava limitado a emoldurados numa parede neutra ou em objetos isolados em pedestais, foi completamente repensado a partir de Marcel Duchamp. O espaço e o tempo passaram a ser as únicas constantes dimensionais, implicando a dissolução da linha entre arte e vida.

Um exemplo deste pensamento é o filme pós-minimalista, sobre o qual se destacaram, entre outros, Bruce Nauman e Dan Graham. Os filmes e vídeos de Bruce Nauman dos anos 1960 e 1970 estão entre as contribuições mais inovadoras. Nauman usa o próprio corpo como objeto de arte ao executar ações repetitivas de performance no seu estúdio. Ao fazê-lo explora a fenomenologia do médium, ao incluir as relações entre espaço e tempo sendo que, os gestos que realiza investigam o próprio processo de fazer arte.

Também Dan Graham começou a usar filme e vídeo na década de 1970, criando trabalhos de instalação e performance que envolvem ativamente o espectador numa investigação percetual e psicológica entre público e privado, público e intérprete,

42 Krauss, Rosalind, Voyage On The North Sea – Art In The Age Of The Post-Medium

Condition. (Nova Iorque: Thames & Hudson Inc., 1999), 26,

Na lingua original: Thus it could be argued that in the '60S, "opticality" was also serving as more than just a feature of art; it had become a medium of art (…) "Opticality" was thus an entirely abstract, schematized version of the link that traditional perspective had formerly established between viewer and object, but one that now transcends the real parameters of measurable, physical space to express the purely projective powers of a preobjective level of sight: "vision itself”.

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objetividade e subjetividade. Graham reestrutura o espaço, o tempo e o espetador com a desconstrução da fenomenologia da visão. A perceção do espectador é controlada e deslocada pelo artista através de projeções, sistemas de vigilância, espelhos e a manipulação do tempo. Para ambos artistas a relação entre artista/espectador e espaço/tempo é essencial. Dan Graham, tal como Alexandre Estrela, admite ter sido influenciado pelo cinema estrutural: “No primeiro vídeo, “Present Continuous Past”, 1974, há um elemento estruturalista, porque mostro uma relação entre o espelho, que é o momento do presente instantâneo, e o atraso no tempo do vídeo. Portanto, existe um tipo de contraste dialético. Mas eu não conhecia o movimento do cinema estrutural. A minha maior influência foi Michael Snow em Wavelength e La Région Centrale.”43O uso do espaço de exposição como peça integrante e a manipulação da perceção do observador serão aspetos a observar na obra de Alexandre Estrela.

43 Enright, Robert e Walsh, Meeka, “Dan Graham: Mirror Complexities”, (Nova Iorque:

Border Crossings Magazine, 2009),

https://bordercrossingsmag.com/article/dan-graham-mirror-complexities

Na lingua original: “In the first video piece, Present Continuous Past(s), 1974, there is a structuralist element because I’m showing the relationship between the mirror, which is instantaneous present time, and video time delay. So there is a kind of dialectic contrast. But I didn’t have any knowledge of the Structuralist film movement. My biggest influence was Michael Snow in Wavelength and La Région Centrale.”

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39 Figura 9

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40 2. Os casos portugueses

Figura 11

Este capítulo é dedicado à análise do contexto artístico nacional, antes e durante a produção de Alexandre Estrela. Trataremos alguns casos de artistas portugueses que trabalharam, com filme e vídeo, de forma precursora. Posteriormente, será realizada uma análise sobre a situação da década de 1990, observando o trabalho de alguns artistas, em alguns casos colegas de Estrela que, no nosso entender, partilham ideias aproximadas entre as suas obras.

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