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Tradução: La Géographie en fêtes, Guy Di MÉO (Organizador) (A Geografia nas Festas) APRESENTAÇÃO

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Academic year: 2021

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Tradução: La Géographie en fêtes, Guy Di MÉO (Organizador) (A Geografia nas Festas)

APRESENTAÇÃO

O geógrafo Guy Di Méo professor da Universidade de Bordeaux desenvolve pesquisas, trabalhos e publicações voltados para a ciência geográfica numa abordagem da geografia social abrangendo os estudos territoriais e culturais. Esses estudos possibilitam análises que ampliam o pensamento e a capacidade de reflexão dentro do campo interdisciplinar.

No que tange a contribuição para o Programa de Mestrado Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais do Cerrado - TECCER – UEG a tradução de parte do livro - La Géographie en Fêtes - desse importante pesquisador vem contribuir para o aprofundamento teórico dos alunos do programa envolvidos com a temática, bem como os demais interessados em conhecer o pensamento de teórico atual voltado para uma conceituação de festa como “código sociocultural e simbólico, impresso no espaço geográfico”.

Essa tradução foi pensada primeiramente para fundamentação teórico-metodológica da tese de doutorado “Diversidade e Identidade religiosa: uma leitura espacial dos padroeiros e seus festejos em Muquém, Abadiânia e Trindade - GO” defendida em 2010 – IESA/UFG. E agora será apresenta em três partes: introdução, primeiro e segundo capítulo nas edições da Revista Plurais – UEG1.

Anápolis – Goiás, primavera de 2012. Maria Idelma Vieira D’Abadia2

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Nota do editor: as traduções foram feitas por Elisa Bárbara Vieira D’Abadia, sob a supervisão teórica da prof ª drª Maria Idelma Vieira D’Abadia.

2 Professora do curso de Geografia da UnUCSEH - Anápolis e docente do programa de mestrado

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Le géographe Guy Di Méo, professeur de L’Université de Bordeaux développe recherches, travaux et publications orientés vers la science géographique dans un rapport de la géographie sociale qu’inclut des études territoriales et culturels.

Ces études permettent des analyses que agrandissent la pensée et la capacité de reflechir dans le champs interdisciplinaire.

En ce qui concerne la contribution pour le Programme de Maîtrise

Interdisciplinaire Territoires et Expressions Culturales du Cerrado – TECCER – UEG

la traduction de la partie de ce livre – La Géographie en Fêtes – de cet important chercheur qui contribue pour l'approfondissement théorique des étudiants du programme impliqués avec la thématique, ainsi que les intéressés en connaître la pensée théorique actuel orienté vers une conceptualisation de fête comme “code socioculturel et symbolique, imprimé dans l’espace géographique”.

Cette traduction était pensée d’abord pour la échouage théorique méthodologique de la thèse de doctorat “Diversité et Identité religieuse: une lecture

spatiale des patrons et leur fêtes en Muquém, Abadiânia et Trindade-GO” défendue en

2010 – IESA/UFG. Et maintenant elle sera presente dans trois parties: introductions, premièr et seconde chapitre dans les editions de la magazine “Revista Plurais” – UEG.

Anápolis – Goiás, printemps de 2012. Maria Idelma Vieira D’Abadia

Contato: Professeur, Université de Bordeaux, UMR 5185 ADES CNRS,

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La Géographie en fêtes

(A Geografia nas Festas)

Guy Di MÉO

(

Organizador)

Introdução

Diferente dos historiadores, dos antropólogos, dos sociólogos ou etnólogos, raros são os geógrafos que prestaram atenção na festa e em seus espaços. Quando o fizeram (Claval, 1981, 1995; Frémont, Hérin, Chevalier e Renard, 1984; Rieucau, 1998...), seus trabalhos enfatizaram sobretudo o papel que realizam os agrupamentos festivos na construção e no fortalecimento das identidades locais, mais raramente regionais ou nacionais. Eles insistiram também sobre a função de regulação dos sistemas sócio-espaciais (gestão simbólica espacial dos conflitos reais ou potenciais), sobre a sacralização ou a ressacralização periódica dos lugares que gera o momento festivo. Eles enfatizaram igualmente a maneira cujas cerimônias que acompanham a festa exaltam o imaginário social. Eles descreveram de qual maneira a festa exprime uma espécie de “nós” territorializado sobre a base de espaços com aparências prosaicas. Esses espaços se encontram subitamente transcendidos por um tempo intenso da vida coletiva que ergueira suas raízes na história mais ou menos mítica dos lugares.

Esses resultados gozam de uma credibilidade suficiente para que nós os consideremos hoje como hipóteses de trabalho. Essas constituem proposições certas, mas, apesar de tudo, falsificáveis, os pontos de partida incontornáveis de uma pesquisa mais exaustiva sobre o sentido e o alcance geográfico das festas. Esse objetivo disciplinar nos conduz, desde essa introdução a tentar cercar a dimensão propriamente geográfica dos eventos festivos. Ora, essa não se manifesta jamais isoladamente, como o faria uma variável independente, O ser geográfico da festa, sua natureza de espaço-tempo específico, de evento sociocultural espacial se decai sempre como marca d’água

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de seus atributos maiores, constitutivos de sua função social. Entre esses atributos, notemos seu papel político, seu alcance ideológico (sobretudo religioso e sagrado, cultural e cosmológico) seu valor de troca socioeconômica tanto no aspecto do endogrupo territorializado quanto à abordagem de alteridade (grupos provenientes de outros territórios). Não omitamos, também não, sua instrumentalização em matéria de regulação social e territorial.

Fora dessas incontornáveis finalidades sociais, a festa constitui, do ponto de vista da geografia, uma oportunidade de primeira ordem para compreender a natureza do laço territorial. Ela permite orientar os signos espaciais pelos quais os grupos sociais se identificam aos contextos geográficos específicos que fortificam sua singularidade. A festa possui, com efeito, a capacidade de produzir os símbolos territoriais cujo uso social se prolonga muito além de seu desenvolvimento. Essa simbólica festiva qualifica e casa com os lugares, os sítios e as paisagens, os monumentos ou simples edifícios. Ela os associa em um mesmo esquema de significações identitárias. Dessa combinação geográfica de elementos simbólicos emana um sentido coletivo profundo. Ele se encontra em todos os espaços festivos que vamos estudar: os itinerários do carnaval de Pau nos velhos bairros que acolhem os mûlid-s do Cairo, os rios de Garonne no vale dos Pirineus do Josbaig... A interpretação do evento sociocultural e dos lugares específicos que o dão espaço e vida gera a substância festiva propriamente dita. Essa imbricação constitutiva contém e exprime a globalidade do sentido social da festa. Essa não exalta um dos momentos decisivos da construção social? Ele que passa, para todo grupo humano coerente, em relação privilegiada com seus lugares de vida e, além, com seus territórios.

Por outro lado sobre o modo do paroxismo e mesmo da caricatura, a festa descobre jogos espaciais e territoriais, de natureza social, que não surgem forçadamente na vida de todos os dias. Nesse título, ela confere ao território uma legibilidade inteligente e exemplar, uma espécie de transparência. Essa última pode, no entanto ser errônea e visar à dominação dos mais fracos pelos mais fortes. O que caracteriza antes de tudo o evento festivo, é que ele se inscreve sempre nas lógicas sociais do momento, em uma atualidade intensa e exclusiva. A festa entra então em um processo de

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fabricação permanente de ligações espaciais e dos territórios; ela participa de uma vontade ideológica e política.

Mas vontade de quais autores, de quais grupos? Isso resta sempre elucidar. Trazidas pelo turbilhão da festa, seus atores não descrevem menos, nessa ocasião, um espaço comum, ao mesmo tempo real e imaginário. Eles descobrem assim seu espaço o mais vivido e o mais vivo, esse sem o qual toda vibração ou toda exaltação social seriam letras mortas. O espaço da festa se torna assim, um dos espaços-espelhos entre os mais secretos e sem dúvida os mais sutis de uma sociedade que se funda (ou se refunda periodicamente) o produzindo.

Essas poucas ideias vão agora nos servir de guia, no momento onde, na nossa vez, para as necessidades de nossa busca geográfica, nós nos esforçamos em dar nossas definições da festa... Ou melhor, das festas, já que esse termo genérico comporta formas diferentes.

Antes de atacar a medula de nosso sujeito, convém primeiramente marcar os limites dele. O leitor, geógrafo ou não, só encontrará, com efeito, nessas páginas alguns dos temas e das abordagens às quais ele poderia se deter. A festa é antes de tudo incluída no sentido restrito de um evento localizado o qual tentamos explicar o papel no jogo de relações da sociedade em seu espaço. Nós não abordamos (com algumas exceções próximo à proposta das Feiras do Loiret) o caso dos festivais. Essas manifestações com objetivos artísticos e temáticos (econômicos muitas vezes) muito marcados só oferecem uma dimensão festiva discreta. Justamente quando tratarmos das

Feiras do Loiret, será por referência à seu composto festivo pronunciado: que seus

participantes estejam em busca de contatos sociais, de ocasiões lúdicas, de produtos mercantes ou de emoções artísticas. A frequentação de tais feiras, longe de responder às necessidades de natureza econômica, se imprime ao contrário no tempo não imposto dos lazeres. Sinalemos também que todos os tipos de festas não serão levados em conta nesse livro. As circunstâncias e os meios dessa pesquisa não nos permitiram de levar em conta, por exemplo, o desenvolvimento, no entanto espetacular, das festas associadas aos grandes eventos esportivos contemporâneos: Mundial 1998 e Euro 2000 de Futebol, etc.

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Do ponto de vista das causas e, mais ainda dos efeitos amplificadores das festas atuais, sua ligação ao desenvolvimento do turismo não foi abordado nos nossos diversos estudos. É que se trata de um tema bem específico que exigiria importantes trabalhos somente à ele. No mais, essa questão se distancia de nossas preocupações e da nossa problemática. Nós dissemos que elas são menos centradas sobre os fundamentos sócio-econômicos dos fenômenos festivos que sobre a ontologia sócio-espacial que eles traduzem, ou sobre seu papel na construção das relações sociedade-espaço.

A festa, um código sócio-cultural impresso no espaço geográfico.

Fenômeno social, global e genérico, presente no tempo e no espaço de todo grupo identificado, a festa se impregna dos valores culturais mais profundos das sociedades que a ocultam. Etimologicamente, a festa dhies é um dia de celebração marcada por um contexto religioso. Ele testemunha então, as crenças coletivas, as representações do sagrado próprias a uma comunidade ou à maioria de seus membros. A esse título, estabelece um vínculo dialético entre o universo concreto e profano, a materialidade social que se lê no cotidiano dos lugares e a espiritualidade, a memória coletiva, as ideologias de um grupo territorializado.

Essa relação se exprime em uma linguagem codificada, geralmente esotérica, destinada de toda evidencia a embaralhar as interpretações que procuramos dar à ela. Essas funcionam como tantas escapatórias em relação a uma verdade que a coletividade oculta para que a vida continue, para que a coexistência, a cooperação e a complementaridade dos indivíduos continuem possíveis. Essa verdade escondida, a sociedade se esforça de tudo para livrá-la por fragmentos sucessivos. Ela se alivia assim do esmagador fardo da mentira que ela profere quanto à sua verdadeira natureza. Graças à essa precaução, ela evita de cair na confusão ou na violência dentro de um conflito permanente.

F. A. Isambert notava que os modos de expressão da festa, por sua consistência própria, “se tornavam frequentemente opacos, ao ponto de envolver aos olhos do espectador, e mesmo do participante, sua significação, quer dizer, o objeto que eles

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celebram” (Isambert, 1982). Mais precisamente ainda, Albert Piette distingue na festa “a não coincidência das ordens de significado e significante, como se a transposição no quadro festivo colocasse a mensagem significada (seu verdadeiro sentido social) em um sistema significante autônomo o suspendendo, e mesmo o negando” (Piette, 1988b). Em suma, tudo se passa como se “a explosão significante”, a colisão da festa deformasse o material do significado, às vezes revertendo-o às vezes sublimando-o. Nos dois casos ela o transforma, criando por sua deflagração uma espécie “de excesso permanente (e anárquico) de significante”.

Como o assinala também A. Piett, a festa se inscreve então, em mais de um título, em um interstício ou, mais exatamente, em uma série de interstícios. Primeiramente no interstício do sentido social, entre o significado e o significante de um fenômeno pontuado de festividades que marcam sua significação original como a natureza profunda da sociedade que o produz. A festa imprime também um interstício específico e original no espaço-tempo do sistema social. Mas antes de aprofundar nessa dimensão geográfica, devemos definir a festa de maneira mais explícita, tanto na quase permanência de sua estrutura quanto na sua abundante diversidade cultural (Piette, 1988a).

Existe, lembremos-nos, três grandes tipos de festas, mesmo se a diferença entre elas não é sempre assim tão evidente quanto muitos autores o pretendem. Nessas grandes categorias genéricas, convém ajuntar outras, mais ou menos derivadas desses modelos.

Os grandes tipos de festa, seu sentido espaço-temporal

As festas calendários traduzem o ritmo cósmico das estações. Elas imitam os equinócios e os solstícios. Elas se esforçam, simbolicamente, em favorecer, ou mais simplesmente, em anunciar e celebrar (mas as duas abordagens, as duas intenções vão sem dúvida em par) o renovo da primavera da natureza. Elas homenageiam a abundância, a fecundidade das colheitas do verão e do outono. Elas saúdam o triunfo do dia sobre a noite que exprime à manhã do solstício de inverno. Se trata, para os homens

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submissos às forças ameaçadoras de uma natureza sobre a qual, ele só tem um pouco de domínio, de os exorcizar. Para isso, eles devem se subtrair de um curso ordinário do tempo que os ultrapassa, de um espaço que os arrasa. O tempo e o espaço fabricados da festa respondem à essa exigência. As festas calendários funcionam então, no sentido próprio, como interstícios do espaço-tempo. Elas se plantam como recantos no “tempo redondo” imutável, circular e cíclico das estações. Elas articulam as sequencias.

Segundo as crenças antigas, “o entre-duas-estações” (sobretudo aquele que se transcorre entre o inverno e a primavera) se acompanharia de uma espécie de vazio no universo. Ele ofereceria um vazio propício à circulação de espíritos, não alimentado sempre de boas intenções a respeito dos humanos. Para lhes caçar, para liberar o interstício de sazonal de sua inquietante presença, o fluxo poderoso dos ventos do oeste se abatendo sobre o Ocidente não é suficiente. É preciso também o concurso de mais modestos sopros. Alguns se esgueiram em bolhas infladas em bloco que vibram e que pressentem os Brancos Moussis do Carnaval de Stavelot (Bélgica). De outros provêm os foles que manipulam os soufflaculs3 de Nontron (Dordogne) e de Saint-Claude

(Jura). O sopro fétido do simples e trivial pet-en-gueule4 que trocava ainda sem jeito em Dijon no século XVIII, não desempenhava um papel idêntico?

As festas calendário apreciam os contrastes e oposições: da sombra e da luz, do branco e do preto, do civilizado e do selvagem, do masculino e do feminino, do profano e do sagrado, etc. Elas encorajam a inversão dos papeis, das funções e dos gêneros. Elas simbolizam o triunfo da claridade sobre a penumbra, aquela da primavera sobre o inverno enfim afastado, aquele do dia sobre a noite que recua com o avanço da bela estação... Em Prats-de-Mollo, nos Pirineus Orientais, o homem-urso com o rosto pintado de fuligem preta, vestido de uma escura pele de carneiro, representa as forças nebulosas. No período do carnaval, os barbeiros todos de branco vestidos e maquiados o capturam e o limpam, o purificam. Eles traduzem assim a vitória da luz sobre a obscuridade, essa da civilização sobre a selvageria. Assim se anuncia a primavera, portadora do renovo da natureza e da vida.

3 Uma festa típica das regiões de Nontron e Saint-Claude 4 Um tipo de jogo

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Mais radical ainda que esses jogos é a inversão dos gêneros e das espécies que afixam certas máscaras ao curso do carnaval (Fabre, 1997). Os homens fantasiados de mulheres, os humanos de animais contribuiriam com a melhora do tempo, ao retorno mágico do ano novo, da primavera e do dia. Passar de um ano à outro, se engajar em um novo ritmo sazonal, encontrariam um equivalente simbólico nessa inversão provisória da ordem social e de seus valores, de suas realizações em aparência mais estáveis. Esse abandono momentâneo da condição de cultura (essa da humanidade civilizada) para a condição da natureza, para a animalidade, para a selvageria, para o estranho planeta do outro sexo seriam o modo de melhorar o pêndulo do tempo, de preparar um novo ciclo. Conservemos simplesmente que o princípio de inversão faz parte da maioria das festas (não somente calendários). O espaço, com mesmo título que as manifestações, registra os efeitos.

Assim, em Barétous, as festas de verão que comemoram os antigos tratados de

lugares e de passagens, concluem outrora entre as comunidades das duas inclinações

dos Pirineus, se deslocam na margem do vale. Elas aconteceram sobre os cumes fronteiriços onde se efetuavam os encontros tradicionais de vereadores e de pastores vindos dos dois lados da montanha. Sempre em Barétous, na ocasião desse dia de festa, a periferia se torna centro (fenômeno de inversão). É a mesma coisa para o bairro pericentral de Mayolis, em Pau, a noite do carnaval estudante, quando ele joga toda a juventude de uma cidade cujo centro se esvazia.

É, em todo outro caso, a mesma estrutura de inversão que opera quando comunas rurais muito modestas, toda justa de burgos-centro, ao melhor de minúsculas cidades, organizam festivais de renome nacional, e mesmo internacional? Pensemos no

Festival de Jazz de Marciac, àquele da salsa que anima Vic-Fezensac, todos dois no

profundo Gers5! Assim se esclareceria o paradoxo que vêem esses lugares sem capacidade real de polarização, sem atratividade verdadeira, se tornar centros muito freqüentados de festividades prestigiosas.

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Serge Collet sublinha também que durante o tempo da festa e de seus cortejos, na ocasião dos desfiles, “a ordem urbana (ou ao menos a ocupação do espaço urbano) se inversa”. A rua, a calçada, as grandes artérias cessam de acolher os automóveis para deixar o campo livre aos pedestres, aos manifestantes e aos seus acessórios. Os barulhos da circulação não se pagam diante da algazarra da multidão, os slogans e os cantos, as zombarias que explodem?

Bem que escritas no calendário, às festas de padroeiros nos revestem da mesma significação que as festas de calendário. Elas não endossam o caráter universal daquelas. Elas privilegiam, com efeito, uma comunidade localizada de longa data sobre o patronato e sobre a proteção de um santo. Isto vale para a tradição dos países cristãos que cortam as velhas malhas paroquiais, mas também como nós veremos por um número de localidades do mundo islâmico. As procissões e os cortejos de tais festas sacralizam o território. Elas afixam de certa maneira sua inviolabilidade. Elas legitimam sua apropriação coletiva.

Nessa conta, as festas só teriam sua significação profunda se elas possuíssem as coletividades humanas a demonstração de sua própria existência e de sua própria pulsação. Elas só fariam plenamente o papel se conduzissem a se colocar como concorrentes das comunidades vizinhas e de seus territórios. As festas de calendário desenvolvem muitas vezes sobre os lugares públicos, os conflitos e as fraturas de seu endogrupo. Elas se alinham para melhor resolvê-los, para os regular simbolicamente dentro do bom humor depois de tê-los deformados, transformados e muitas vezes os caricaturados. Ao oposto as festas de padroeiros dissimulam essas tensões internas. Elas ocultam (no seu particularismo) um cimento do interior com o objetivo de consolidar a unidade social, a identidade ao redor da terra, ao redor do território.

A festa de padroeiro define uma entidade geográfica em relação à outras. Ela cerca também outros laços, aqueles das famílias e linhagens em particular. No Sudoeste da França, a festa de padroeiro fornece a oportunidade de reconstituir uma “casa” outrora esvaziada pela lógica testamentária da transmissão de bens, hoje desagregada pela mobilidade sócio-espacial dos herdeiros. “Durante uma jornada – escreve Bernard Traimond- nas consumações suntuosas, a linhagem se reconstitui; irmãos e irmãs, seus

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cônjuges, primos se encontram e as crianças serão particularmente marcadas por esses reagrupamentos que aliam as circunstâncias excepcionais, encontro e festa. Nessa ocasião, eles se beneficiam de uma liberdade que eles perderam; nesse dia, eles dispõem da possibilidade de escapar da guarda dos pais. Sozinhos com os ritos de passagem (comunhões, casamentos, enterros) as festas de padroeiros geram tais oportunidades”. (Traimond, 1987). O sentido da festa de padroeiro não se opõe sempre à festa de calendário. Isso aconteceria porque o ciclo calendário, no Ocidente, foi muito cedo absorvido pelos ritos cristãos.

Embora, nesse caso a festa calendário tende a recolher a coletividade sobre um território reforçando sua dimensão identitária, a festa de padroeiro a inscreve em um tempo e em uma historicidade muito mais complexos. Evadindo-se da prisão do tempo redondo e cósmico, ela encontra lugar (e a comunidade com ela) no tempo duradouro do mito ou da religião. Ela se desabrocha na longa duração em série e fragmentada de história, real ou mítica. O capitulo de Anna Madoeuf sobre os mûlid-s do Cairo (festas religiosas), nas páginas dessa obra, sublinha quantos, à sua ocasião, “por um tempo, os vastos bairros da cidade antiga vivem a seu próprio ritmo, se inscrevendo em um tempo mítico”. O tempo religioso, o tempo do mito os territorializa. Por outro lado, tanto o território quanto a festividade religiosa singular se posiciona em uma rede alargada de lugares profanos e sagrados. Essa rede confere a cada território um significado novo.

Terceira grande categoria festiva comumente distinguida, as festas comemorativas representam outro registro. Mesmo quando elas relembram a lembrança de eventos ou de personagens locais, tais como a Batalha de Castillon, sobre os rios de

Dordogne, que põe fim à Guerra dos Cem Anos, esses fatos têm frequentemente valor

de sinédoque. Isso quer dizer que eles alimentam um símbolo que opera à outras escalas geográficas, em geral superiores e mais globais: aquela da nação francesa no caso de Castillon.

De fato, as grandes comemorações voltam frequentemente à nação e a exaltação de seu território: 14 de julho, 11 de novembro, 8 de maio. Elas se referem também aos valores universais, de significação mundial: o “ler-Mai”, a festa das mães, etc. Certas, em certos casos, como em, Saint-Malo hoje, a organização de festas comemorativas, em

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honra de personagens tão celebres como François René de Chateaubriand, Félicité Robert de Lamennais, Jacques Cartier ou Jean Charcot, visa sem dúvida confortar a identidade local. Mas elas a consolidam em um contexto francês, num quadro nacional (e não estritamente local) cujas personalidades são fiadoras e as quais ela traz a marca indelével.

Modelo secundários da festa e territorialidades incertas

Sobre esses três ramos principais do modelo festivo (festas de calendário e de padroeiros, festas comemorativas), entram outros ramos, mais ou menos singulares. As feiras, esses grandes mercados especializados ou não, caracterizados por seu retorno periódico em um mesmo lugar, partilham a etimologia da festa. Além disso, elas se juntam freqüentemente à ocasião de celebrações religiosas. Elas aliam as trocas comerciais ao divertimento, ao ponto de certas feiras (a de Trône, e diversas “feiras aos prazeres”, por exemplo) conservarem apenas essa segunda função. Sua estrita utilidade comercial se tornou caduca com o melhoramento dos transportes e das comunicações, com a transformação do negócio. Notemos que esse fenômeno é observado outras vezes desde o período moderno.

As feiras do Ocidente, os souks da África do Norte cujo espírito festivo surpreende o observador menos avisado, se inscrevem também no seio das redes regionais. Esses últimos conferem as manifestações uma característica geográfica ultrapassando as fronteiras da localidade. E uma situação parecida que descreve Christine Romero, no presente volume, sobre as feiras renascentes do Loiret.

As feiras decaem em uma versão negociante e regionalizada (à geografia bem desfocada) da festa de calendário ou de padroeiro. Os festivais desenham por sua parte uma forma mais cultural, não excluindo nem o comércio, nem a festa. Quanto às manifestações, notadamente políticas, elas afixam as opiniões coletivas à ocasião de semelhanças mais ou menos festivas. Como o observa, justamente, Michelle Perrot, as manifestações se situam sempre ao lado da atualidade. A esse titulo, elas se diferenciam da s festas que tomam mais o lugar da tradição, da longa duração ou da repetição.

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“Conjuntural, pontual, mais voluntarista e fugaz” que a festa stricto sensu “a manifestação, mesmo se ela não é espontânea, da alugar ao imprevisto” (Perrot, 1982).

Se ela aspira esticar os laços que existem entre seus membros, os que organizam e os que participam, a manifestação política, sindical ou social se endereça de início ao exterior e aos outros. Ela quer seja os convencer seja os assustar, seja os ameaçar seja os tratar com sarcasmo. Distintas, festas e manifestações tendem, no entanto, a se interpenetrar: a festa se transforma em manifestação, essa empresta de bom grado o ritual àquela. A festa se distingue da manifestação ou do espetáculo (mesmo se às vezes ela o integra) na medida onde ela faz constantemente referência a memória social (Bayle, 1990) e a suas transcrições espaciais.

A manifestação nos reenvia à uma das etimologias possíveis da festa, o latim ferino, “atingir”. Em latim os dies festus , é o dia “atingido” de um sinal especial. É o dia da demonstração pública pela qual esperamos atingir o espírito dos outros, atrair com força sua atenção, em resumo, mostrar a evidencia, fazê-la triunfar, a “manifestar”.

Quanto ao espaço da manifestação, se ele casa freqüentemente o espaço da festa, sua conquista, sua legitimação dependem dos jogos sócio-políticos de outro modo mais violentos. Ao ponto que suas fronteiras se confundem às vezes com as verdadeiras frentes que marcam (casos extremos) os cortes, ou as barricadas. Manifestações por excelência, os cortejos políticos, sindicais ou categorias ‘acampam’ também um espetáculo eficaz. “O aspecto ritual dessas procissões aos itinerários frequentemente idênticos, o respeito de uma hierarquia que impõe uma ordem de presença nos desfiles, impressionam as populações por seu espetáculo que mistura ao fervor religioso uma organização militar [...] O espectador decifra a linguagem falada e gestual, armazena a mensagem, basicamente maniqueísta, das alegorias sociais que o permitem estigmatizar seus inimigos reconhecendo seus dirigentes” (Hastings, 1986).

De maneira ainda mais geral, seria conveniente também opor as festas fechadas, organizadas entre até mesmo por uma pequena ceia de pais ou de conhecidos, e de festas abertas à imagem dessas que nós definimos mais acima. À maneira das festas

rave, certos encontros fechados e ilegais, cerimônias secretas destinadas à uma

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participantes. Existem também as festas privadas bom garoto, amigos ou familiares, com participação seletiva ou filtrada. Fechadas ou não, embora reservada a públicos precisos e relativamente limitados, essa são frequentemente manifestações de um dia. Sua reprodução coloca o problema da intensidade de emoções que elas veiculam, o raro ambiente de conivência que elas causam, tem dificuldade de se renovar fora ou em outros tempos. A imagem do místico festival de música pop que aconteceu em

Woodstock, no estado de Nova Iorque em 1969, os lugares, as circunstâncias

atmosféricas (a chuva em Woodstok) se carregam de um incomparável valor simbólico. Eles tendem a se confundir com o evento. Eles modelam o conteúdo retrospectivo e a memória.

No total, se a festa conserva uma dimensão sócio-espacial irredutível, ela tende cada vez mais a revestir-se de uma dimensão individual. “Fazer a festa” permanece, mais que nunca, um estado de espírito ou de consciência. A festa nos leva constantemente ao sujeito construído por seu ambiente social, de outro modo dito ao indivíduo. Fora todos os convites sociais, todas as solicitações hedonistas ou as diversas pulsões que impulsionam os indivíduos no seu turbilhão, a participação de cada um na festa continua um ato de vontade. Ela resulta da ligação triangular e interativa entre uma consciência responsável e competente, um contexto social e um lugar. Ora, essa participação voluntária que fabrica o evento casando sua estrutura coletivamente representada e memorizada, forma, de fato, o essencial, o acesso sem o qual a festa não poderia acontecer. Ela é antes de tudo um transbordamento (geralmente controlado) do “eu” (tanto como subjetivado) sobre o social (compreendido no sentido de uma realidade objetiva). Ela entra em uma alta dialética do sujeito e do objeto. Ela encontra uma boa ilustração com o modelo do habitus de Bourdieu que forja a reciprocidade da “interiorização da exterioridade” e da “exteriorização da interioridade”. Em um universo antes ávido de exageros do sujeito, a festa faz exceção.

A tipologia relativamente clássica das festas que nós transportamos e expomos ao mais alto parâmetro também o mérito de oferecer inflexões geográficas interessantes. Ela não é, no entanto, nem universal, nem exaustiva. Estudando a França da época moderna, Yves- Marie Bercé estabelece uma classificação bastante diferente. Ele

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distingue “as festas religiosas cujos principais aspectos eram a procissão e a peregrinação”. Ele identifica as “festas cívicas” mostrado os desfiles “onde os magistrados os pronunciam e os corpos dos profissionais em armas desfilam nas ruas”. Ele vê também “as festas da juventude, ritos da sexualidade” presidindo os encontros entre gente jovem. Enfim, ele diz “as festas da abundância fazem correr o vinho, fluir os alimentos e caminhar os bois gordos” (Bercé, 1994). Bem entendido, encontramos nessas categorias de tipos festivos os que nós já descrevemos. Aquela próxima que eles se inscrevem em Bercé numa lógica histórica mais datada, essa do período moderno. Nós desejávamos, por nossa parte, propor um modelo mais atemporal. Lembremos que nosso objetivo visa dotar as especulações da geografia social de um quadro fecundo de reflexão, ancorado numa atualidade bem alegre.

A festa, interstício singular do espaço-tempo

São todas essas facetas, todas essas naturezas diferentes da festa que entram por inteiro em sua definição. A festa constitui um espaço-tempo intersticial da vida social. Ela faz parte desses “contextos” (produzidos) da interação social e espacial que fala Anthony Giddens. Ela se esgueira ente as “fronteiras espaço-temporais que delimitam (para cada um de nós) os topos de interação e que possuem marcas simbólicas ou físicas” (Giddens, 1987). À esse título, a festa participa, por sua vez, da determinação e da regulação das ligações sociais. Nesse quadro, o que mais caracteriza sem dúvida o espaço–tempo da festa, é sua limitação perfeita, sua separação radical do espaço-tempo ordinário, banal e rotineiro. De um ponto de vista humano e social, essa distinção sem rebarba nasce de uma espécie de intumescência sócio-espacial própria da festa. Ela surgiu do “superávit simbólico” que acompanha e parece a subtrair do cotidiano. Durante a festa, os comportamentos humanos adquirem uma textura particular. No entanto, sem serem iguais aos da vida cotidiana, eles não criam uma ruptura forçadamente total com esses. Uma vez mais a metáfora do interstício (comportamental aqui) vem a propor.

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Se a festa não se fixava nos seus limites, a sociedade se esgotaria (literalmente) em seu desenrolamento permanente. A festa incessante perderia seu caráter (extra) ordinário, sua atração de eclipse referindo ao tempo, à sua marcação e sua reprodução pela magia de um eterno retorno das datas, das estações. Ela não possuiria mais essa propriedade de lembrar-se dos eventos e das crenças, só os lugares emblemáticos ao mesmo tempo quadro e atores da festa, transfigurados por seu brusco surgimento contribuem a imprimir na memória coletiva.

Entende se, no entanto que a festa se instala nos lugares por alguns dias (festas feiras), por algumas semanas (Mûlid-s); mais duráveis ainda até colonizar o centro da cidade (Las Vegas), um de seus bairros (Burbank em los Angeles) ou um espaço urbano mais circunscrito (Tivoli em Copenhague, Coney Island em Nova Iorque, etc.). Contudo, mesmo nestes casos de aparente continuidade a festa fica para aqueles que a freqüentam como um interstício, uma seqüência de seu espaço-tempo. Vamos “enterrar a vida de garoto”, entre amigos, em Las Vegas. Passamos em família, dois dias inesquecíveis em Mane-la-Vallée (Eurodisney), em Annheim (Disneylândia) ou em Orlando (Disneyworld). Nessas condições, imaginar o evento universal, sistemático e generalizado de uma “cidade festiva” nos parece excessivo (Gravari-Barbas, 2000). Certas das ruas e dos bairros que já arvoram em sua arquitetura, sua paisagem e suas funções, essa vocação durável. Lugares “festivos” ou “lúdicos”, “de laser”, poderíamos discutir longamente sobre o termo mais apropriado. Eles residem todos de mesmo dos espaços delimitados da cidade. O caso de uma cidade totalmente consagrada ao prazer e ao jogo, Las Vegas ou Atlantic-City, constitui sempre uma relativa exceção, o objetivo de uma viagem, de um deslocamento que aumenta a atração de sua frequentação. Ajuntemos que a festa é sempre, de uma maneira ou de outra, a homenagem em um lugar limitado. A festa define o lugar. Entramos nos lugares da festa e saímos. A festa produz uma fronteira, ao mesmo tempo social, geográfica, cultural e vivida, temporal também. Uma festa alargada na totalidade dos lugares e do tempo, uma festa global não se cobriria mais de sentido.

O espaço da festa não faz esse papel de interstício e só se transfigura nos limites sempre rígidos do tempo de celebrações. Trata-se sempre de um espaço mais ou menos

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comum cuja função festiva, por essência temporária, só se transforma excepcionalmente em afetação definitiva e categórica. Essa temporalidade dos espaços da festa se verifica nos lugares mais marcados por seu espírito. É o que mostra o capítulo que Anna Madoeuf consagra, nesse livro, aos velhos bairros do Cairo literalmente sublimados pelos mûlid-s: essas festas religiosas que pressentem uma espessa massa ao redor dos túmulos dos santos do Islã. Anna Madoeuf indica também de qual maneira os velhos bairros centrais voltam a ser lugares quase ordinários, uma vez que a festa e as cerimônias terminaram.

Malha ou rede de lugares, o espaço territorializado pela festa entra em uma configuração simbólica, ao mesmo tempo efêmera (temporária então) e reproduzível (ritmo cíclico das festas). Assim, a festa inteira se torna “território do efêmero” (Rieucau, 1988). Às vezes esse território tão frágil adquire a dimensão de uma cidade inteira. É o caso da Festa da Humanidade que arruma seus cenários, cada outono, na

Courneuve6. “Ela comporta (ao mesmo tempo) a quermesse, e a reunião, da manifestação e do baile de máscaras (carnaval?) o megaconcerto e a feira internacional, sobretudo é uma cidade efêmera” (Champiat, 1990). Essa quintessência de todas as formas festivas traça um espaço-tempo tão breve quanto intenso. Ela delimita um território preciso, metrado e planejado, repertoriado ao metro quadrado próximo por causa de locações deliciosas; mas um território fugitivo, um território eclipse, desmontado em alguns dias, a quermesse terminada. Território apagado, relegado ao departamento das lembranças para seus simples participantes; abstração, memória coletiva e fermento de identidade para os membros do PCF. Esse território exprime a contradição do ser para a festa e do nada para o retorno ao cotidiano. Ele lembra o destino intersticial de todo espaço-tempo festivo, mesmo quando ele é vivido com uma rara intensidade. No entanto, esse território-evento sequencial se inscreve duravelmente nas representações sociais. Ele contribui para forjar uma ideologia com forte marca territorial ao redor do PCF, de seus lugares emblemáticos (A Corneuve, a praça do

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coronel Fabian, diversas comunas-feudos da periferia vermelha parisiense ou de fora...) e de suas redes espaciais.

A festa confere aos seus componentes topológicos e topográficos uma qualidade particular e nova. Em retorno, o sentimento da festa parece como suspendido ao planejamento judicial dos espaços. Sua ambiência nasce em parte da qualidade de seu traçado. Ela resulta, também, da utilização excepcional que eles vão conhecer nessa ocasião, dos fatos às vezes insólitos que vão se desenrolar lá, da emoção que eles suscitam, das decorações que eles ornam então... Para Anna Madoeuf, como veremos no capítulo VIII, “as celebrações festivas, momentos cíclicos que ritmam o curso da existência dos seres e marcam o sentido dos lugares, resultam da fusão e da superposição de um lugar consagrado e de um lugar celebrado”.

A alternância dos espaços estreitos (ruas e alamedas diversas) e dos espaços abertos (praças e parques) fabrica essa estrutura territorial. Os primeiros desobstruem os segundos. Eles são propícios aos desfiles e aos cortejos que fazem exibição da festa, de sua ordem ou de sua desordem, de seus valores, de suas hierarquias desenroladas e de sua retórica. Por outro lado, praças e esplanadas formam grandes aberturas do espaço público onde se encontra a dramaturgia festiva: julgamento de carnaval ou de Sent

Parnçard, “tomada da espada e da bandeira” em frente à prefeitura pela Bravade de Saint-Tropez (Var), combate de São Jorge contra o dragão ou Lumeçon em Mons

(Hainaut), cargas da Tarasque sobre as praças de Tarascon onde a massa se acumula, a corrida do palio em Sienna, etc.

Selecionados e agenciados da sorte, presos no cenário da festa, seus lugares desengrenados se recompõem. Eles tomam um sentido novo do fato de sua integração em seu território global e temporário, escrupulosamente delimitado. Eles formam de vez em quando uma estrutura única e nova, quase emblemática. Nós a recomporemos noutro lugar, para as necessidades de entretenimento festivo ou por puro fetichismo. O encierro de Pampelune, na Espanha, corresponde ao circuito das ruas estreitas nas quais se efetua cada ano, em San Firmin, a louca debandada dos touros. Ele faz o objeto de muitas reproduções, todas muito fiéis, em muitas contrariadas dos Estados Unidos da América. Graças à essas reconstituições, os aficionados americanos se levam ao lazer, todo o ano,

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à tomar a exata medida dos lugares. Eles trabalham da melhor maneira para evitar, até se lançando na frente dos chifres, o furor cego dos touros.

Nesse tempo de fortes mobilidades humanas, os territórios domésticos de antes desaparecem diante as inumeráveis territorialidades vividas de hoje. Mais representados (e mesmo subjetivas) ou virtuais que objetivas, elas se revelam em nossos imaginários sobre o modelo das Mille Plateaux com inumeráveis ligações em rizomas que evocam antigamente Guattari e Deleuze (1980): territórios nas fronteiras incertas, se não inexistentes. As “festas reencontradas” de nosso tempo desenvolvem ao contrário uma gramática territorial mais precisa, mais rigorosa. Elas funcionam sobre a base de temporalidades estrangeiras nos ritmos do cotidiano. Traçando marcos indeléveis que os ancoram na duração, essas festas imprimem sua marca de maneira tenaz no espaço. Elas preservam assim sua memória social e favorecem seu retorno, sua reaparição.

De fato, na condição de poupá-los e de fazê-los evoluir com sua flexibilidade, a sociedade, o poder, sobretudo que a governa, ganham nessas regularidades, nessas reproduções sem risco de eventos enraizados em um espaço tutelar. Nesse título, todos os lugares do espaço social não testemunham um valor idêntico. Os que recebem um conteúdo patrimonial ou simbólico já notável (se entende fora da festa) oferecem mais aptidões para entrar de livre direito no território festivo. Assim ele é desses “lugares atribuídos”, alegorias concretas de territórios mais vastos: os Champs-Élysées ou a Torre Eiffel para Paris, por exemplo. Assim ele é ainda “lugares de condensação social e territorial”, “lugares de memória” como o Panteão na ocasião da transferência das cinzas de um homem ou de uma mulher ilustre, dupla sinédoque social e espacial (Debarbieux, 1995b). Esses diferentes lugares se tornaram então, ao acaso calculado dos eventos, espaços privilegiados de um bicentenário universalista da Revolução francesa. Eles não dissociarão mais da lembrança de uma tomada histórica do poder pela esquerda, na França, na primavera de 1981.

No entanto, na situação nova, recusando as referências do passado, se impõem também os lugares emblemáticos e festivos novos. A história é rica desses retornos geográficos, dessas inversões de lugares simbólicos no percurso das comemorações. Nesse caso é a cerimônia, mais exatamente os valores que ela representa, que fundam o

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lugar e o conferem sua distinção. São elas que embutem em um espaço-tempo único e codificado, modelado, rigorosamente demarcado.

Mona Ozouf mostra de qual maneira as festas revolucionárias, entre 1789 e 1799, inventaram, em Paris ou em Caen, seu próprio espaço. A festa organizada pelos homens da Revolução buscou um modo de expulsar os traços da memória e dos lugares do passado, compreende aquelas primeiras manifestações revolucionárias. Em Paris, os cortejos da Revolução ignoram a praça das Vitórias, apesar de coração vital da cidade, desobstruída entre os bairros antigos e os bairros novos. Ela não teria acolhido as últimas festas do Antigo Regime monárquico? Doravante, é a praça Luiz XV (futura praça da Concorde), muito mais ocidental, ainda exterior à Paris, que tornou-se o lugar geométrico dos cortejos. Esses que emprestavam as brechas e as obras, as artérias bem desobstruídas da época clássica: o curso de Vincennes, o curso a Rainha, os pontos novos (esse da Concorde, todo exatamente terminado), os bulevares recentes quase não tocados pela urbanização. Os revolucionários desejavam antes de tudo que o espaço da festa fosse aberto, perfeitamente desobstruído, sem barreira para os olhos ou o deslocamento dos homens.

De maneira geral, a partir de 1970, “busca-se celebrar as Federações fora da cidade, sob os muros, sobre a estrada, sobre as charnecas, na planície, sobre a causse7” indicam os textos provenientes de toda a França. “Quando eles têm a possibilidade, os organizadores preferem a selvageria e o grande vento do espaço aberto à intimidade familiar da praça aldeã e à penumbra da igreja” (Ozouf, 1976). Nessas condições, em Paris, o Campo-de-Março, centro metafísico mais que geográfico, em razão de sua excentricidade de fato, tornou-se, “pela graça da Federação, o verdadeiro centro nacional”. No entanto, esse lugar brevemente clássico dos cortejos era apenas um “campo” quase ignorado dos parisienses, escolhido antes de tudo por sua qualidade de “deserto (...) submisso á todas as transfigurações”. Em tal lugar, alguns marcos simbólicos foram erguidos: coluna colossal ou altar quadrado central, estátuas ritmando o espaço, obeliscos, pirâmides e, logo, árvores da liberdade... Nem uns nem os outros

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não parariam verdadeiramente o olhar. Rapidamente, a montanha montada em honra do Ser Supremo será demolida, não seria “uma protestação eterna contra a Igualdade?”. À esse título, toda verticalidade que para duravelmente o olhar se torna escandalosa, somente a horizontalidade parece tolerável.

No caso dos lugares da festa revolucionária, de sua articulação territorial tão particular, a ideologia parece o conduzir sobre o jogo político. Mesmo se esse não está totalmente ausente da persistência em apagar os espaços festivos do passado, em ignorar a grande decoração arquitetural da cidade clássica que acampam os palácios de Mansart e de Gabriel.

Por outro lado, a razão política se impõe sob a Monarquia de Julho. O dia 29 de julho de 1831, dia da grande revista da guarda nacional, o rei acha-se sobe a praça Vendôme. Ele designa assim o lugar geométrico do espaço festivo, no centro de um bairro que se torna então o coração da capital. Alto lugar de Restauração, as Tuileries são, com efeito, abandonadas por Louis-Philippe. A praça de Notre-Dame perdeu sua função de centro privilegiado de emoções coletivas. O recuo da religião católica ajudando, descerá mesmo no escárnio do carnaval. De fato, é em Saint-Germain o Auxerrois que se celebrará o serviço fúnebre comemorando os mártires das jornadas revolucionárias de julho de 1830 e, pela mesma ocasião, o décimo aniversário do regime. Nesse 28 de julho de 1840, “a escolha do itinerário seguido pelo carro fúnebre – Tuileries, Madeleine, grandes bulevares, Bastilha – consagra o primaz do Paris popular no desenho do espaço cerimonial. A festa oficial da Monarquia de Julho é primeiramente aquela da revolução sobre seu teatro mesmo; encenado dos cadáveres sobre os lugares onde o sangue foi vertido” (Corbin, 1994).

Essa vontade política de pousar a legitimidade difícil da Monarquia de Julho sobre um espaço revolucionário comportava riscos. De certa maneira, o espaço-tempo da festa monárquica preparou aquele da Revolução de 1848. Assim, o cortejo fúnebre improvisado pela massa, na noite de 23 à 24 de fevereiro de 1848, no caminho da fuzilaria do bulevar dos Capucinos, se dirigia espontaneamente à Bastilha, praça promovida à lugar de memória pela Monarquia de Julho.

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O regime da família de Orleans mudou os lugares simbólicos tradicionais para se legitimar junto ao povo. Ele desejou edificar seu próprio espaço festivo de referência, fundado sobre os bairros populares de Paris. Procedendo desse modo, ele só fez preparar o espaço das jornadas revolucionárias de 1848. Espaço-tempo totalmente novo, tempo da tradição monárquica, tempo do povo e de seus bairros, espaço-tempo sempre fabricados, sempre meticulosamente orientados, demarcados e repertoriados... Todos desenham, em marca d’água diferentes escolhas históricas que revelam apostas centrais de sociedade, ao mesmo tempo ideológicas e políticas.

O espaço da festa constitui justamente, em certas ocasiões, uma aposta política essencial. No fim do século XIX e no começo do XX, tolerava-se na França que as manifestações do Primeiro de Maio ocupassem o centro das cidades. Por outro lado, os lugares de Paris simbolizando a Nação eram rigorosamente interditados. Quando um cortejo da festa do trabalho se lançava sobre um itinerário imprevisto, quando seus organizadores se afastavam do percurso negociado com as autoridades, elas viviam esse transbordamento como um começo de rebelião. Elas o interpretavam como uma tentativa de subversão que suscitava imediatamente sua réplica. Mesmo quando no século XX os cortejos do Primeiro de Maio entraram na legalidade, a delimitação negociada de seus trajetos continuaria a regra.

Se as manifestações são dispersas pela policia, em Lyon, em 1906, se violentas disputas explodiam em Lens, em 1929, é que os manifestantes (grevistas na ocasião) aventuraram além dos limites fixados pelos poderes públicos (Rodriguez, 1990). Ele ainda deve matizar essas correspondências entre manifestação e festa e não confundir os dois fenômenos. Na origem, a manifestação permanece um evento político, na dimensão festiva menor. Quando à manif-festa, ela só data verdadeiramente dos anos 1970. Qualquer um que ele seja, o espaço-tempo da festa política é, de todos seus semelhantes festivos, o mais hermético, o mais simbolicamente fronteirado.

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A festa, espaço das posições sociais e (sempre) do poder

A fim de evitar as derrapagens da festa, sempre ameaçadoras para o poder na ocasião, esse deve imperativamente controlá-la, canalizar seus fluxos e solidificar seu espaço, confiar sua organização à uma instituição social sólida, estável, responsável e hierarquizada.

Assim, da Idade Média ao século XVI, no Ocidente, as mascaradas às vezes violentas de carnaval parodiavam mais e mais grosseiramente os modos e os costumes das cortes reais e principescas. Diante isso que elas julgavam um excesso da festa, a igreja e as autoridades civis procuravam um modo de colocá-la sob o controle das confrarias muito conformistas de artesãos e comerciantes. Esse ajustamento intervém sobre tudo nas cidades onde os transbordamentos carnavalescos ameaçavam a ordem pública e o poder em vigor.

Até então, sobretudo de fato até a entrada do século XIV, a organização das festas carnavalescas dependiam de grupos de jovens solteiros gravitando em volta das abadias ou das universidades. Com o apoio de burgueses facetos e anticonformistas, eles fizeram de alguns desses lugares de oração e de estudo espaços de contestação. Esses eram fortemente mal percebidos pelas autoridades. As denominações que se davam esses jovens mal sofriam a ambiguidade sobre esse ponto. Se chamar os Tolos em Amiens, os Imbecis em Rouen e, sobretudo os Maugoverno em Mâcon, não faltava segundas intenções políticas.

O poder municipal substituía as corporações e as organizações nesses grupos de jovens mal controlados. Elas transpunham seus modelos sociais muito hierarquizados, notáveis e muito conservadores, nas associações emanando de suas categorias às quais elas confiavam doravante o cuidado de organizar o carnaval. Portanto, participar dessas sociedades se traduziu frequentemente por um ganho apreciável de status social. Acender à um posto de responsabilidade em seu seio foi muitas vezes interpretado como uma estratégia de conquista do poder local. Essas associações constituíam, com efeito, ferramentas susceptíveis de detectar, depois neutralizar as tensões de todas as ordens: sexual, econômica, política, ideológica, ou simplesmente relacional. O poder sabe bem

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que essas tensões fendem sempre as sociedades prisioneiras de um território extremamente restringido, caixa de ressonância de todos os conflitos. Melhor vale para ele que ele os controle.

O jogo político do controle de tais associações parece então evidente. Ele não se desmente em nossos dias. Ele é, com efeito, freqüente em se observar, na cidade como no campo, a facilidade do deslizamento das responsabilidades do universo associativo em direção ao mundo político. Não se conta mais as passagens, para tal ou tal responsável, de um escritório ou de uma presidência de associação sobre um assento de conselheiro municipal e mesmo sobre uma poltrona de prefeito ou de conselheiro geral.

Constituído e exercido pela sorte, o controle político se esforça sempre para apagar a inversão social e espacial que provoca a festa. Essa empresa persistente de regulação procede algumas vezes pela introdução no cerimonial das celebrações e das cavalgadas de personagens imponentes e tolerantes. Eles são encarregados de assumir um papel de apaziguamento e de mediação. Assim, em Bailleul, no Norte, um Gargantua8 muito rabelaisien9, imagem da boêmia flamenca, figura do bom vivant não violento, garante a unidade da cidade, desprovido de todo espírito contestatório ou reivindicativo, preside de sua alta estatura o carnaval. Esse personagem de criação suficientemente recente só foi introduzido em 1855 no carnaval nortista, sendo uma época onde o poder imperial autoritário velava para interromper todo transbordamento festivo. Gargantua equilibra, no curso dessa jornada de grande alegria coletiva, o peso de um curioso personagem mais antigo (introduzido sem duvida no século XVII se referirmos à seu costume), todo direito saído da Commedia dell’arte, Se trata do Doutor Piccolissimo. O Doutor apresenta, com efeito, à muitos curiosos tratamentos curativos sobre as máscaras e os tensores. Na ocasião de uma troca de discursos com o prefeito, ele não se priva de evocar os problemas mais chocantes da cidade. É lá que reside o risco político. De fato, dois efeitos reguladores o atenuam. Primeiramente o humor, o tom brincalhão da fala que desenvolve o Doutor; em seguida a presença apaziguadora

8 Gigante de um apetite desmesurado, herói da obra de Rabelais.

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de Gargantua, um pouco afastada durante os discursos, mas rapidamente recolocada no centro da festa e de suas preocupações lúdicas.

Em certos carnavais do Norte da França, de Flandres ou de Wallonie, um gigante muito mais marcial que Gargantua encena o papel de moderador de eventuais derivas. Em Dunkerque, o gigante Reuze contempla de um olhar muito mais severo a mascarada de domingo deleitoso e o rigaudon10 (cantos e danças) que a segue. Esse guerreiro escandinavo legendário teria sido outrora recolhido e tratado pela população de Dunkerque. Convertido por Saint-Éloi, ele se tornou o emblema da cidade, a garantia da paz que lá reina. Trata-se do símbolo suficientemente evidente da ordem pública e dos poderes que o fazem respeitar. Ele vela pelo bom comportamento da manifestação.

O poder local, essa vez sob os traços dos eleitos, intervém uma segunda vez no carnaval de Dunkerque. No término da festa, prefeitos e conselheiros largaram à multidão unida em frente a prefeitura as fermentações de arenques secos. Esses evocam sem dúvida a capacidade desses idílios em fazer reinar a prosperidade econômica na cidade portuária. Eles testemunham sua aptidão em velar a solidariedade e a redistribuição equitativa dos recursos. Por trás da mesquinhez tutelar da violência pública sempre ameaçadora, representada por Reuze, descobre-se assim a outra face, o rosto mais afável do poder. “Federador” 11 e caridoso, depósito do bom andar dos negócios e da economia, da justiça social, ele brilha por seu carisma. Intervindo no fim das celebrações, ele só pode impor sobre seu contrário, a face coercitiva do poder, essa que traz a máscara marcial de Reuze. Ele a eclipsa. O poder como a festa, no coração mesmo da festa, enfrenta então, por sua vez, efeitos dialéticos da contradição e da inversão.

Menos sujeitos aos transbordamentos que os carnavais, as festas patronais e

votivas não constituem menos sólidas apostas políticas. É que elas encenam a

sacralidade dos lugares e sublinham suas ligações com o corpo social. Portanto, para o poder local, a habilidade consiste em colonizar, em se apropriar os elementos da festa. Ela repousa também sobre sua capacidade em associar de maneira estreita e quase

10 Dança francesa dos séculos XVII e XVIII sobre um ar vivo e em dois tempos. 11 Que federa ou favorece uma federação.

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fundida o objeto sagrado das procissões (estátuas de santos ou relíquias, por exemplo), a história mítica que elas exprimem e a hierarquia social do lugar. Uns e os outros confortados, se for necessário, por uma legitimidade histórica mais ou menos fabricada.

Em Bruges, dentro de Flandres, ao menos depois de 1291, a procissão do

Santo-Sangue (segundo a lenda, algumas gotas do sangue coagulado de Cristo) mobiliza os

corpos constituídos da cidade que desfilam ostensivamente atrás da relíquia. Notou-se muito tempo na procissão, e mais do clero, as organizações e as corporações, os arqueiros e os magistrados, enfim, todos os detentores do poder. Hoje, após inúmeros eventos históricos, a procissão efetua o dia da Ascensão. História viva, seu cortejo evoca episódios do Antigo e do Novo Testamento, tão bem quanto cenas históricas edificantes. O santuário contendo a relíquia, escoltada pela nobre confraria do

Santo-Sangue, percorre as principais artérias de Bruges. Ciumenta dessa prerrogativa, a

confraria une a alta sociedade burguesa, suas autoridades civis e religiosas. A mensagem sócio-política não falta clareza: as camadas sociais dominantes não investiram o sagrado sobre os mesmos lugares da festa?

A festa, da catarse à inovação sócio-espacial

A festa age também como uma verdadeira catarse. Mais frequentemente, ela desativa os conflitos em uma espécie de ritual. Além das disputas, das desigualdades, das injustiças, das lutas e das clivagens sociais, espaciais, religiosas ou políticas, esse ritual indica que a unidade do grupo acaba sempre por ter sucesso. Essa unidade se impõe em tanto valor essencial e existencial quanto necessidade profunda de sobrevivência territorial tanto quanto social. Melhor ainda, seguindo os ensinamentos de uma tradição sociológica que afunda suas raízes em Durkheim e em Caillois, o processo festivo se aparentava com um movimento liberador entregando à sociedade seus encargos cotidianos. Ele revelava assim sua verdadeira substância, reduzida à seu conteúdo sagrado.

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Sem ir assim tão longe, nos contentaremos em observar que a ritualização quase sistemática do significante festivo tende à normalizar as relações sociais que os sub-tendem.

Ela permite expressar as ambigüidades e as contradições sociais, de corrigi-las, de combatê-las simbolicamente na cacofonia e no escárnio. Ao término desse tratamento, as tensões sociais se apaziguam. As injustiças descobertas e escarnecidas parecem por um tempo mais aceitáveis, mais suportáveis.

O que quer que seja, o imperativo de uma mobilização coletiva inclinada para a reprodução do sistema sócio-espacial tem necessidade de rotinas, mas também de variedade e de inovação. A festa, tanto como instituição social, responde à essas exigências contraditórias. Ela participa da reprodução social como da reprodução espacial dos grupos territorializados. Seu modelo ritual, as normas muito precisas que definem (em geral) seu desenrolar, seu ritmo calendário, seu espaço mais ou menos incrustado fazem dela uma ferramenta de reprodução de fenômenos sociais e territoriais. Por outro lado, ela rompe com o cotidiano. Ela cria um espaço-tempo governado provisoriamente pela ficção, pelos derrubamentos ou a inversão das situações, dos papéis e das posições, às vezes pelo absurdo e pela loucura. Desse fato ela cria a novidade. Ela oferece oportunidades de mudança. Para Jean Duvignaud a festa não constitui, como para Durkheim, um momento de paroxismos e regenerador do social. Ela despeja “um mundo sem estrutura e sem código, o mundo da natureza onde se exercem somente as forças do ‘isso’, as grandes instâncias da subversão” (Duvignaud, 1991). Se bem que da festa brotaria, o caso descoberto, “uma imprevisível invenção”, breve a inovação social no estado puro.

Assim se perfila uma festa metáfora do caos, portadora de incerteza, de questões potenciais, mas também de inovação ante a fantasia criadora que a caracteriza. Essa interpretação da festa nos convém muito melhor do que a visão estruturalista clássica pintando essencialmente o avesso das realidades, sua caricatura, com um objetivo ao mesmo tempo demonstrativo e expiatório.

Algumas vezes, como em Romans em 1580 (O Rei Ladurie, 1979), a subversão latente faz balançar a festa na violência. O mais frequentemente, sem também ir longe à

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contestação, sem tornar ao afrontamento ou ao combate, o evento festivo gera, na culpa de novo, o movimento e a agitação. Ele promoveu em permanência novas elites: organizadores e heróis da festa que não são sempre (ainda não?) os depósitos do poder institucionalizado. A festa autoriza reencontros insólitos, novas sociabilidades entre garotas e garotos, entre gerações...

Em Villefranche-sur-Saône, a antiga festa dos recrutas, aberto doravante à todos, lembra o tempo que decorre, a sucessão necessária das gerações. Ela mistura as classes de idade diferentes. Ela aproxima também os representantes de classes sociais ou de comunidades diferentes (mais raramente?), as pessoas daqui e de lá (papel tradicional do forasteiro na festa). Todos esses contatos favorecem a inovação social.

Sobre um tom brincalhão, o cineasta Jacques Tati mostrou de qual maneira o

Dia de festa interrompe o curso das coisas, introduz a confusão e a mudança em um

cotidiano de aparência imóvel. De maneira mais violenta, em seu romance A canção dos

mendigos, o romancista egípcio Naguib Mahfouz descreve os combates de rua que

opõem outrora no Cairo os clãs dos diferentes bairros. Essas lutas explodiam quase todos os dias no coração da festa, na ocasião das bodas do chefe de uma dessas bandas. No caminho as batalhas ordenadas pontuam essas cerimônias, a hierarquia do poder das forças ocultas avança sobre a cidade do Cairo e sobre seus bairros se encontra modificada.

Fiel à essas lógicas, a festa termina às vezes no sangue. Ele chega a favorecer a mudança política, a transtornar as micro-hierarquias locais. O inverso é igualmente verdadeiro. É o que mostra Bernard Traimond a respeito de Mont-de-Marsan. Ele nota que a primeira atividade de uma municipalidade nova consiste em dar, com toda prioridade, um novo brilho à festa patronal. Ele nota que “o renovo dessa corresponde por sinal, cada vez, à uma mudança de prefeito” (Traimond, 1987). É que a festa bem-sucedida e surpreendente, nova ou renovada, traz uma satisfação popular imediata e simples. Ela encoraja a emergência de novas ligações, essa de novas solidariedades no seio do endogrupo. A agitação, em particular essa que pontua numerosas festas patronais (as famosas festas de vila), solda os membros da comunidade. Ela consolida o

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grupo que encare os homens da vila vizinha, esses da cidade vizinha, de outro bairro, e mesmo de outra etnia...

A festa faz então um papel ambíguo com respeito à alteridade. Ela se quer aberta e abertura, lugar de trocas e de doações, de alegria compartilhada. Ao mesmo tempo, ela cultiva particularismos. Ela faz voltar a identidade, quer dizer, ao mesmo tempo o ser e a diferença de um grupo. Ela joga constantemente dessa ambivalência identitária, como se o contato e a partilha oferecessem a todo grupo territorializado novas capacidades criadoras. Mas também como se precisasse colocar simbolicamente um fim à essa extroversão para que a sociedade local não se dilua em seu ambiente no infinito sem limite, na “in-diferença”.

Na ocasião de numerosas festas, os costumes e as composições permitem os participantes de fazer um papel muito diferente daquele que eles tinham hábito. Assim, mesmo se só se trata de uma experiência efêmera, a festa recoloca em causa a ordem de valores social estabelecidos. Ela torna a comunicação possível entre posições sociais muito distanciadas umas das outras. Sobre esse plano, ela produz também a novidade. Contudo, na sua configuração retórica particular, a festa refunda imediatamente uma ordem provisória. Mesmo invertida, caricatural ou zombeteira, a festa segrega tudo de mesmo uma hierarquia. De relance, ela valida o princípio geral da estruturação social e inevitáveis posições que ela implique no espaço social. É bem lá uma de suas duplicidades maiores.

Como justificar esse curioso interesse que nós manifestamos aqui pela festa? Sobretudo na sua dimensão geográfica que alguns julgarão podendo ser secundária, se não insólita? Esse interesse se inscreve na nossa preocupação, maior, de uma (re) fundação da geográfica social e cultural (Di Méo, 1991, 1996, 1998). Ele parte mais ainda de uma constatação: aquela do sucesso crescente das associações com objetivos culturais, lúdicos e festivos. Sua audiência traduz um gosto muito pronunciado de nossos contemporâneos pelo patrimônio. Não somente esse dos objetos e dos monumentos, mas também aquele dos territórios herdados do passado, muitas vezes mais representados do que vividos: ideologias mais que realidades tangíveis. O importante eco desse movimento associativo reflete também uma verdadeira inclinação

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para as festas, os festivais, as festas, as manifestações diversas, inventadas ou “reencontradas” (de Villaines e d’Andlau, 1997). Eles não mobilizam contingentes sempre mais numerosos de folias e foliões?

Como o mostra Isabelle Garat nesse livro, as Festas estivais de Bayonne, essas de Dax ou de Vic-Fezensac reúnem cada ano muitas dezenas, e mesmo muitas centenas de milhares de pessoas. Essas festas são vividas como momentos de alegria livre, de sociabilidade ou de sociedade intensas, de autenticidade, às vezes de descoberta dos “verdadeiros valores”. Tendemos, aliás, um pouco facilmente demais, a confundir essas, com a tradição, efetiva ou reinventada. O turismo em plena ascensão fornece contingentes inumeráveis de participantes. Eles são um tanto mais prontos a “fazer a festa” que eles espalham, no quadro de seus feriados, uma existência necessariamente ociosa.

Essas festas constroem novos territórios “pluricomunais”, intercomunais, regionais ou mais simplesmente “de projeto”, na escala dos espaços vividos de diversos tamanhos. Em retorno, as associações culturais e suas festas participam intensamente da produção das ideologias territoriais contemporâneas. Elas recuperam nesse objetivo as heranças histórias mais variadas: essa de um velho sindicato pastoral para o Carnaval

do Josbaig (apresentado aqui por Colette Ducournau), aquele (bem real) dos aterros e

(totalmente mística) dos mosqueteiros para as celebrações estivais do Barétous (em Béarn nos dois casos). Ajuntemos que não é raro que esses territórios forjados pela festa se transformem em territórios políticos: sindicatos ou comunidades de comunas, distritos... É então que a responsabilidade associativa desliza frequentemente em direção ao engajamento político e à conquista do poder local.

A festa acompanha, prepara ou fortifica essas recomposições territoriais ao momento onde, paradoxalmente, o espaço social explode. Ela continua a cristalizar o território, na hora onde os indivíduos afixam mais e mais mobilidade. Ela valoriza a proximidade quando as relações espaciais se liberam em parte das limitações da métrica topográfica (Lévy, 1994), no instante onde os valores transnacionais, mundiais ou globais ganham terreno. Assim, a festa contribui para fabricar uma ideologia territorial

Referências

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