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CarlosAlvarezMaia noPrelo HistoricismoXCientificismo

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Academic year: 2021

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O desafio para o historiar as idéias: o hiato historiográfico

Introdução: da negação para a denegação

Neste capítulo pretendo uma investigação genealógica sobre as persistentes dificuldades da disciplina história em se apropriar de objetos que lhe escapam, teimam em lhe escapar. Objetos que recusam a qualidade de serem históricos e se refugiam alhures, camuflados aos olhos do historiador tout court. Assim cada departamento universitário possui os seus especialistas em fazer a história de sua própria disciplina: História da Química, no de Química; História da Arquitetura na faculdade correspondente; e assim prossegue em monotonia: História da Psicologia, da Música, da Economia, da Educação, da ... Todas essas “histórias” apresentam o mesmo formato nas corporações acadêmicas: são “histórias DE ...”, histórias DE algo, firmando sua identidade profissional e mais, e o que é fundamental, redigidas por esse “algo”. São histórias genitivas para consumo reafirmativo local e difusão publicitária global.

O impedimento posto a historiadores por essa ação aparentemente corporativista é aqui avaliado através da análise de um caso exemplar: o da história das ciências, em geral. Por intermédio da história DA história, a história DA história das ciências, refaz-se o percurso historiográfico desde o banimento da qualidade histórica dos estudos de ciência até sua posterior recuperação, acentuadamente ocorrida durante a década da reflexividade, nos anos 1970.

De uma secular primeira fase na qual simplesmente negava-se, ou não se percebia, a historicidade do conhecimento passou-se para a que confeccionou sua denegação. Um marco conceitual – intermediário – dessa mudança de fase deu-se com o assalto mannheimiano, historicizador, na década de 1920. Entretanto tal investida sofreu mediata descontinuidade através da subseqüente reação cientificista à essa ousadia de Mannheim. Construiu-se a sua denegação1. Denegação como sintoma da perversão epistemológica que simula uma negação

lógica à evidência de que o conhecimento possui historicidade, uma evidência exposta pela, então nascente, sociologia do conhecimento. Se até esse momento não se tinha uma clara consciência do processo histórico subjacente e inerente aos atos do conhecimento, após a exposição histórico-sociológica de Mannheim – cristalizada pelas próprias mudanças cognitivas ocorridas nas primeiras décadas do século XX, inclusive no interior da própria física – não era mais possível prosseguir desconhecendo-se a natureza histórica da atividade científica.

1 Utilizo o conceito “denegação” inspirado por seu sentido usual na psicanálise, além da mera negação lógica. Ver,

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O novo discurso defensivo, resistente, aí e assim elaborado teceu a vestimenta da denegação à historicidade. Seus construtores – especialmente os neopositivistas do Círculo de Viena – deram roupagem nova ao cientificismo positivista e levaram ao extremo a partição que incipientemente já habitava o terreno dos estudos sobre a ciência: fortaleceram a ruptura entre reconstrução histórica e reconstrução racional, deram-lhe uma hierarquia. O número dos adeptos desse novo estratagema de ruptura foi imensurável. Cientistas, sociólogos e historiadores, filiados ou não ao neopositivismo, todos, partilharam em alguma medida da demarcação aí erigida, posteriormente reconhecida como divisão dos contextos de Reichenbach.

Durante o período áureo dessa denegação restou somente um leve vestígio semântico da sociologia do conhecimento; esta, desfigurada em seus princípios, demudada na sociologia da ciência funcionalista de Merton, que reinou com serenidade – sem oposições – pelas décadas seguintes. Reinou e construiu uma realidade para a própria ciência. O formato organizacional e compreensivo da ciência que emergiu do pós-guerra – a big science – era basicamente mertoniano e, em sua essência, permanece válido até hoje nos círculos dos agentes diretores da atividade científica.

I - A herança recebida: o cientificismo

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a negação da historicidade

Instaurada a “Revolução Científica”, o saber científico consolida-se como a forma de saber privilegiado tornando-se objeto de interesse generalizado. O mundo intelectual europeu deslumbra-se com a potência demonstrada pelos êxitos explicativos e resultados práticos da “Nova Ciência”. Tal progresso estimulou inúmeras críticas sócio-culturais, presentes desde Rabelais, Erasmo, Montaigne e Comenio, que demandavam novas maneiras de ser e pensar. Como materialização das diversas “UTOPIAS” que então proliferavam, esta ciência é recebida com olhares de reverência e expectativa míticas que lhe atribuem papéis, especificam qualidades, estipulam propriedades. Pronunciadamente em Bacon, o panegírico do conhecimento experimental se dá pelo descrever procedimentos ao lado de prescrevê-los, normatizando suas virtudes, valorando regras metodológicas. Valores, mascarados por uma atitude objetiva, internalizam-se, travestem-se na pureza axiológica do método iluminador do novo saber pelo qual se deveria conquistar e colonizar o mundo, apropriar-se da Natureza. As novas conquistas geográficas fornecem a metáfora viva dos novos poderes e saberes. Planetariamente alargados pelas navegações intercontinentais expandem o quadro de suas possibilidades, por sugestiva analogia, a uma pretensa universalidade objetiva metodicamente estabelecida como objetividade

2 Sobre cientificismo, ver Hilton Japiassu. A revolução científica moderna. Rio de Janeiro: Imago, 1985,

especialmente sua Conclusão, p. 179 ss, com referências aos trabalhos de críticos ao cientificismo, como Habermas, p. 186-188. Ver uma conceituação simples, p. 190/191.

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universal. Em imbricação profunda e dissimulada, o binômio prescrição-descrição passará a ser uma constante nos discursos relativos à atividade científica desde então.

As clássicas histórias das idéias remetem as justificativas de tal êxito para o universo meritório, em si, das idéias científicas. Mas, antes de mais, há a necessidade de avaliar a extensa ramificação das novas formas de ser e pensar observando os próprios instrumentos que permitiram essa ampla difusão pelo tecido societário. O processo de institucionalização da chamada “ciência moderna” expõe, nele próprio, as formas pelas quais esse “novo saber” se firmou, e assim, seu poder se consolidou. Foi com a criação das sociedades científicas e das publicações especializadas (à época) que o processo institucional da ciência-nova inaugura-se e apresenta-se socialmente com seu caráter de obra coletiva. Ainda durante o século XVII esta fase ocorre sendo criadas: “Accademia dei Lincei” (1603), “Accademia del Cimento” (1657), “Royal Society” (1662), “Academie des Sciences” (1665) e a alemã, “Collegium Natural

Curiosorum” (1652),3 sem contar com o “Colégio Invísivel” de Boyle ou o “Círculo” de

Mersenne. Entre os periódicos mais notáveis encontravam-se: “Journal des Savants” e “Philosophical Transactions”, ambos de 1665. Tais como as academias, essas publicações ocupavam-se de temas variados, inclusive descrições de fenômenos bizarros. Particularmente o “Journal des Savants” revelava o entorno mágico e maravilhoso que o deslumbramento desses tempos ocasionava no mundo culto (Daumas. op.cit., 150ss). Diversos outros periódicos seguiram os passos desses dois, “Journal des Savants” e “Philosophical Transactions”,4 disputando

audiências diversas e com perfis ideológicos diferentes. Enquanto o “Journal des Savants” sofria influência dos jesuítas, havia outros heréticos, como os “Acta Eruditorum”, de 1682, editando comunicações de Leibniz. Um sério periódico, concorrente desses, foi o “Mémoires

pour l’Histoire des Sciences et des Beaux-Arts”, de 1701, custeado pelo duque do Maine

(Daumas. op.cit., 155-157).

Entretanto, foi pelas mãos dos secretários das sociedades científicas que as “histórias das ciências” iniciais são produzidas, retratando a atividade contemporânea de seus membros e

3 Maurice Daumas. As Ciências. Lisboa. Arcádia. 1966. p. 130-147. (edição portuguesa, ampliada com trabalhos

e comentários de Luís de Albuquerque). A primeira academia científica nacional oficialmente constituída foi a de Florença, precedendo a Royal Society por alguns anos, segundo Daumas, p. 135: “pensa-se que foi seguindo o seu exemplo (de Florença) que os sábios ingleses transformaram o seu grupo em sociedade real; mas é mais natural que a idéia de solicitar tal consagração oficial lhes tenha vindo mais da França do que da Itália.” Sobre a Royal e o Colégio Invisível que a gestou, ver p. 133-138; sobre a parisiense, ver p. 138-146, esp. p. 142 sobre a datação confusa de seu nascimento oficial. Sobre a academia alemã, reclamada por Poggendorff como a primeira do gênero, ver p. 147. Ver também Hilton Japiassu sobre as mesmas questões, em A Revolução Científica Moderna. 1985. (Op. cit.) p. 103-105.

4 Estes dois periódicos seguiam a trilha de inúmeras gazetas, com interesses mais gerais, bastante comuns desde o

início do século (a primeira surgiu em 1605 na Antuérpia, sendo seguida, em 1612, por uma alemã, em 1622, uma inglesa, em 1626 na Holanda, e em 1631 na França. (Daumas. op.cit., 151) Entretanto, nenhuma outra publicação, até a criação do “Journal des Savants”, em 5 de janeiro de 1665, dedicara-se exclusivamente à literatura científica. Já, este, “ocupava-se de literatura, história, teologia, física (entendida então como o conjunto das ciências naturais) e matemática” (Daumas. op.cit., 151).

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expondo a consciência de todos pertencerem a um momento revolucionário.5 “O primeiro manifesto da nova ciência organizada foi a History of the Royal Society, escrita em 1667 pelo bispo Sprat.”6 Na Alemanha, o “Collegium Natural Curiosorum” publica em 1670 um

primeiro volume de memórias (Daumas. op.cit., 147). Na França, em 1692, saem dois volumes e em 1697 imprime-se a história da Academia de Paris por Du Hamel; a partir de 1717 duas atas são impressas (Daumas. op. cit., 153). Memórias épicas como as apresentadas por Fontenelle, a partir de 1697, quando foi nomeado secretário da academia parisiense e redige os Éloges des

Savants,7 edificaram uma interpretação de como se dera tal revolução e que era a tal “nova

ciência”.

revolução científica e revolução política

Esses “revolucionários” podem alinhar entre seus méritos a constituição de uma nova semântica para o termo “revolução” (de “volta”, “rotação”, “movimento em círculo”, para o de designar “ruptura”, “rebelião”). Um termo usual em astronomia significando rotação dos astros em torno da Terra e que durante o século XVII já ganha um novo sentido no plano cultural e político. A afirmação nuclear e inovadora da obra de Copérnico, De Revolutionibus Orbium

Coelestium, 1543, isto é, que os corpos celestes giravam (em torno do Sol), serviu para adjetivar

seus adeptos – os revolucionários – e terminou por caracterizar as mudanças políticas drásticas, as revoluções. Bastante plausível que a transmigração de contexto de referência do termo “revolução” – acompanhada de sua metamorfose semântica – deva-se ao impacto e à importância do desempenho social desses agentes de renovação moderna, os “revolucionários da ciência nova”. No próprio século XVII já se usou o termo em sua nova acepção ao se referir aos acontecimentos ingleses que culminaram na “Revolução Gloriosa” de 1688. O que significava continuidade cíclica – a rotação dos corpos celestes – passou a significar ruptura, e a palavra “revolta” perde o sentido de um retorno e torna-se uma rebelião. Assim, na época de Kant, a “Revolução Científica” já se instituiu como corte inovador e não mais como referência aos adeptos da teoria da rotação, a De Revolutionibus – da Terra revolver em torno do sol –, de Copérnico.8

A ufania generalizada de então reafirmava-se e justificava-se socialmente expondo esse novo aspecto revolucionário, como ato inaugural, da ciência moderna. Declarava-se o término da longa Querela Antigos e Modernos com a proclamação de superioridade de seu vencedor: o

5 Michel Pécheux e Michel Fichant. Sobre a História das Ciências. Lisboa. Estampa, 1977, p. 66. Os dois

textos reproduzidos neste livro referem-se a lições proferidas em Paris, em 1968, no quadro de um “Curso de Filosofia para homens de ciência” (edição original: Maspero, 1969).

6 Japiassu, 1985, 105. Ver também Bernal. Historia Social de la Ciencia. vol.1. 1973. (já cit.) p.348

7 (Bernard le Boyer de) Fontenelle. Entretiens sur la pluralité des mondes. 1686. Empregamos a tradução

brasileira: Diálogos sobre a pluralidade dos mundos. Campinas. Unicamp. 1993. p. 10. Ver também Daumas. Op. cit., 153/154.

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construtor da nova ciência. A confirmação de seus êxitos e de sua ultrapassagem dos Antigos, muito bem exposta nas sessões das diversas academias, consolidava um caráter cumulativo, progressivo do saber. Um progresso percebido como se fosse produto de um único agente histórico, “o espírito humano” (Pécheux e Fichant. op. cit. 70), tal como retrata a célebre frase de Pascal: “A humanidade inteira é comparável a um homem que aprendesse continuamente”. Assim pintava-se o processo do conhecimento com fortes matizes idealistas, onde a presença metafórica de gênios agigantados sobre ombros de outros, formavam pirâmides em cadeia infinita para o passado, antevisão do futuro igualmente dependente de uma certa racionalidade exageradamente posta em evidência.9

A extensão que esta nova ordem de pensamento alcança pode ser verificada em alguns efeitos de sua vulgarização por todo o século XVIII: círculos de cientistas amadores, gabinetes de física (como o célebre, de Nollet), experimentos públicos fantásticos, como o noticiado pelo “Journal de Paris” de 08/12/1783, de sapatos elásticos que permitiam caminhar sobre as águas; afinal era uma ciência que tudo podia.10 O sensacionalismo do período torna indistingüível o

real – o realizável – do imaginário e mostra a crença no poder da “razão humana” desconhecedora de limites para suas conquistas. Neste ambiente de possibilidades fantásticas, o charlatanismo fornece a dimensão da crendice engendrada pelo maravilhamento com a ciência. Franz Mesmer – com seu l’extase magnétique ou le magnétisme animal – talvez seja o caso mais polêmico de idéias, ditas falsas, hoje, tal como as ditas verdadeiras, produzirem efeitos profundos na sociedade do cientificismo iluminista.11

9 Ver Pascal em Raymond Aron. Dix-huit leçons sur la société industrielle. Paris. Gallimard. 1962. p. 79.

Sobre as questões subjacentes aos parágrafos anteriores, observe-se o olhar auto-referente que sábios e filósofos naturais de então lançavam sobre seus próprios trabalhos. Um olhar que não soube desvincular a descrição daquilo que faziam, da prescrição daquilo que supunham, ou desejavam, que tais trabalhos fossem. As incipientes análises histórico-metodológicas permaneciam mergulhadas em normatizações de cunho metafísico e ético, descrevendo a própria atividade através da ótica de prescrição idealizada, descrição-miragem. Esta imagem delineava a fisionomia de uma ciência, nova musa, cujas virtudes controlavam um cenário pictórico no qual, doravante, as possibilidades de conhecimento sobre a natureza e o homem estariam limitadas, orientadas. Como guardiães substancializados em entidades transcendentes, mitos renitentes têm aí sua manjedoura: a objetividade, a realidade, a ordem natural, o fato empírico, a racionalidade etc, fundadores de uma concepção do conhecimento tida como modelar, a das ciências experimentais.

A pretensão do discurso desta racionalidade, de único saber válido e verdadeiro, desqualifica outras formas de pensar e ser. Medicaliza a sociedade. Sua intolerância confirma os despossuídos desta razão em patologias, como desprovidos de razão, impedidos de qualquer razão. Seja pela exclusão dos loucos do espaço público, bem observado por Foucault, ou o abandono pela magistratura das acusações de feitiçaria por desnecessárias, já não representavam mais a ameaça de outrora. Nenhuma feiticeira pode intranqüilizar a estabilidade da racionalidade. Está realizada a “revolução mental” de Bachelard, o império do cogito, da razão, consolida-se. Ver Robert Mandrou. Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII. São Paulo. Perspectiva. 1979. p. 455 e 458.

10 Robert Darnton. O Lado Oculto da Revolução. São Paulo. Cia. das Letras. 1988, p. 22 a 31 e 176. 11 Jean Thuillier. Franz Anton Mesmer ou l’extase magnétique. Paris. Laffont. 1988. E Darnton, p. 28.

Nos dias atuais vivemos situação semelhante, basta recordar o espaço ocupado no noticiário leigo, há poucos anos, de uma “novidade” científica revolucionária: o boimate. Seria um novo tomate que conteria as proteínas do boi obtidas pela engenharia genética. Tudo não passava de uma “brincadeira” de pesquisadores veiculada em periódicos especializados e que a “grande” imprensa tomou como verídica, impossibilitada de perceber (como qualquer não especialista) a diferença entre o realizável – ovelha Dolly – e o meramente fantasioso – boimate.

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Neste percurso, a atividade científica molda a sua roupagem, forja o invólucro que a acompanhará em sua entrada pelo século XIX. A História da Ciência, uma eficiente publicista, compõe o hinário orquestrado com acordes ufanistas de progresso e positividade. Em Bailly, “Histoire de l’Astronomie Ancienne”, 1775, a visão de progresso dos feitos deste herói, o espírito humano, já apresenta a necessidade de recompor a visão histórica por uma reconstrução racional, mais fidedigna da ordem natural – fornecida pela compreensão racional posterior – que exporia a “regra do progresso” (Pécheux e Fichant. op. cit. 72 e 161). Por esse instrumento já se estabelece uma recusa ao conhecimento como evento histórico. A reconstrução racional exclui tudo aquilo que os agentes posteriores reconhecerem como erros do passado, depurando o evolver ziguezagueante dos acontecimentos, linearizando-o em direção ao presente.

Nessa incipiente institucionalização da ciência configura-se um papel para a sua história negando a historicidade e restringindo-se como memória seletiva viciada em um “presentismo” primário – eis aí o lugar possível para o discurso histórico. Neste momento, a história da ciência já se encontra “naturalmente” domesticada, constitui-se como o laboratório que verifica, empiricamente nos fatos, o progresso. Assim nasceu e cresceu tal história, na instância da produção científica, integrando o círculo de seus produtores diretos, os cientistas, e de seus filósofos que ali vão buscar os fundamentos gnosiológicos para a construção de uma epistemologia a-histórica.

O século XIX simplesmente ratificará essa inclinação. Comte, em suas “memoráveis

tentativas de criação da cátedra de História das Ciências no Colégio de França” expunha a

Guizot (1832) a necessidade de “tornar a unidade científica mais completa e mais sensível”.12

A busca desta unidade reflete a idéia subjacente que confunde o objeto d’A Ciência, “A

Natureza”, consigo mesma e, osmoticamente, com o objeto deste conhecimento sobre a atividade

científica – sua história –, onde a pretensa unidade daquela (A Natureza) devia estar representada na unidade destas (A Ciência, tomada no singular, e sua história). Exigência de homotetia entre “natureza”, “unidade das ciências” e sua “história”, permitindo a circulação transferencial de diversos mitos, o que, afinal, não era novidade. As supostas qualidades d’A Natureza migravam para A Ciência: uma Natureza absoluta cujos fatos capturados em Leis pela Ciência tornavam-se fatos científicos verdadeiros, veri-ficados, como nos ensinou Japiassu. Tais transferências já estavam presentes no embaralhamento entre prescrição-descrição que retratava a mixagem de ciência com sua história. O fazer ciência ou o fazer sua história eram duas atividades exercidas no mesmo quadro mental como atividades complementares, em simbiose. A história da ciência

12 Na carta a Guizot, 1832, afirma Comte: “Somente nos nossos dias é que tal cátedra se poderá criar

convenientemente, na medida em que, antes deste século, os diversos ramos fundamentais da filosofia natural ainda não tinham adquirido o seu caráter definitivo, nem manifestado as suas relações necessárias ... Neste estado da nossa inteligência, a ciência humana naquilo que tem de positivo, pode pois ser encarada como uma, e por conseguinte a sua história desde logo ser concebida. Impossível sem essa unidade, a história das ciências tende reciprocamente a tornar a unidade científica mais completa e mais sensível”. Pécheux e Fichant. op. cit. 74

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prescrevia implicitamente enquanto descrevia o que já estava prescrito nas normas internas do fazer ciência. A história funcionava como se fosse a confirmação empírica dos valores da ciência: dava-lhe o aval.

Dessa maneira, a busca de similitude entre o objeto de seu trabalho, a natureza exterior, e a sua própria atividade ao historiá-la, personificava uma concepção filosófica e historiográfica das Idéias, absolutizadas. Em “L’Histoire d’une Science est autre chose que l’exposé de cette

science selon l’Ordre Historique”, de seu Curso de Filosofia Positiva, Comte desenvolve os

fundamentos já presentes em Bailly do que, posteriormente, o Círculo de Viena e Popper se apropriarão e Kuhn criticará. Segundo ele,

“qualquer ciência pode ser exposta segundo dois caminhos essencialmente distintos,

dos quais qualquer outro processo de exposição apenas seria uma combinação: a via histórica e a via dogmática. Pela primeira, expõem-se sucessivamente os conhecimentos na ordem efetiva pela qual o espírito humano as obteve, e adotando, na medida do possível, as mesmas vias. Pela segunda, apresenta-se o sistema de idéias tal como poderia ter sido concebido hoje por um único espírito, que, (...) se ocupasse a refazer a ciência no seu conjunto.” (Pécheux e Fichant. op. cit. 165, grifos meus.)

A clara referência e defesa da “reconstrução racional” do saber, tão a gosto dos cientistas como uma necessidade para compreenderem o evolver disciplinar e disseminarem seus ensinamentos – o que foi muito bem retratado por Kuhn ao referir-se aos “manuais da ciência normal” – é, para Comte, “a tendência constante do espírito humano” em substituir a ordem histórica pela “ordem dogmática, a única que pode convir ao estado de aperfeiçoamento da

nossa inteligência” (Pécheux e Fichant. op. cit. 166). Assim, a via dogmática é a maneira pela qual se confirmará o ideário de progresso iluminista, um progresso registrado por um observador posterior que tentasse reproduzir o encadeamento necessário das idéias para chegar ao resultado final – mais verdadeiro – de seus contemporâneos. Comte, entretanto, faz uma única objeção a esta “história dogmática”, reconstruída, a de “deixar na ignorância a maneira como se

formaram os diversos conhecimentos humanos, o que, embora diferente da própria aquisição destes conhecimentos, é, em si, do maior interesse para todos os espíritos filosóficos” (Pécheux e Fichant. op. cit. 166, 167, grifo meu).

Uma tal demarcação pronunciada – reconstrução histórica versus reconstrução racional – ganhará ainda novas e mais fortes cores em Reichenbach, na década de 1930, orientando um forte eixo no qual gravitarão sociólogos, filósofos e historiadores até e após o ensaio de Kuhn, em 1962.

Após Comte, um outro marco historiográfico encontra-se na vasta e erudita obra de Pierre Duhem (1861-1916). Neste, a tese do contínuo é explicitada não só enquanto pré-condição teórica de análise histórica como também nas conclusões coerentemente estabelecidas. Coerente, sim, mas, circular: “Se a história das ciências parece dar a Duhem a confirmação da

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terá de cumprir” (Pécheux e Fichant, op. cit. 84, 90 e 98). Há que se identificar, para ultrapassá-las, as motivações de permanência da cadeia prescrição-descrição-prescrição desde a utopia baconiana. São os a priori elaborados na filosofia espontânea dos cientistas que levam a fazer a seleção “histórica” adequada, filtrando o que a legitima, confirmando-a. A utilização de critérios informadores do que deva ser exaltado ou excluído forma a base descritiva que, por fim, a reafirma. Romper com este vício é um desafio teórico a ser transposto pelos historiadores futuros. Isto é:

uma História das Ciências vista como História das Teorias Científicas – estrita e exclusivamente como um evolver orientado por mecanismos internos das ciências, fruto de um puro espírito racional – é o produto a ser demolido para que outra arquitetura mental possua um território a edificar novas concepções do conhecimento, em geral, e da atividade científica, em particular.

Considerado como um produto autônomo, o conhecimento torna invisível o processo que o produziu, dissolve-o em dois pólos simplificadores: as teorias acabadas e os indivíduos excepcionais. Únicos habitantes da UTOPIA, universo de idéias sincrônicas, justapostas em cadeia progressiva, afastadas para além da diacronia social. Um verdadeiro Império U-crônico e U-tópico da racionalidade, de idéias fora de qualquer tempo e de qualquer lugar. Sua desconstrução solicita a escavação dos alicerces filosóficos que o embasam. Destes, quatro elementos fundantes são facilmente identificados; articulados entre si, formando uma teia protetora inconsciente, camuflando o processo de conhecer. Fornecem uma naturalidade absoluta às prescrições e constituem a matriz gnosiológica do círculo prescrição-descrição: utopias antecedendo o trabalho científico; a substancialização das teorias; a homotetia entre constructos científicos e “A Natureza” e a autonomia das idéias.13

Precedem prescritivamente, com expectativas míticas, as construções do conhecimento em cada momento histórico; assim se supôs a experiência como fiel da verdade, além de estar entrelaçada com a crença na realidade objetiva do mundo exterior, uma natureza povoada por fatos empíricos, puros e neutros;

13

1 – UTOPIAS

o caráter ontologicamente mágico das utopias vê uma natureza, inclusive a humana, povoada por ENTES: a razão, a realidade, a ordem natural, a verdade, a ciência, o método, a experiência, etc... Todos, coisificados, seres estáticos e perenes, à espera de serem descobertos em sua plenitude e imanência;

2 – SUBSTANCIALIZAÇÃO

entre ciência e natureza; confunde-se o objeto do conhecimento com o próprio conhecimento, transferindo para este o que supunham pertencer à natureza exterior. Transubstanciação que a-historiciza as atividades humanas, retirando-as de sua típica temporalidade axiológica, neutralizando-retirando-as;

3 – HOMOTETIA

pela presença dos elementos anteriores, fundamenta-se a independência dos fatos, do pensamento e do conhecimento quanto aos processos que os produziram. A reconstrução histórica das teorias serve somente de elemento ornamental à reconstrução racional, a única realmente explicativa; sendo parametrizada por: continuidade, lógica interna e acumulação progressiva. 4 – AUTONOMIA

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Garantida a posse dessa fórmula para o historiar as Idéias, produzia-se a História das Ciências como uma Épica Cavalheiresca da Genialidade dos Cientistas ou como uma Cronologia das Teorias Científicas, sendo até hoje típica na História das Idéias. Duas ordens topológicas de submissão das teorias são aí identificadas, e reafirmam a reconstrução racional em oposição à reconstrução histórica:

• uma lógica interna articula as idéias em sistemas consistentes;

• global e externamente, as teorias definem uma linha contínua ascendente cujo ponto de fuga as conduz assintoticamente, por aproximações sucessivas, à realidade do mundo exterior.

primeiras investidas contra as idéias absolutizadas

Ao lado desta maneira de tratar o conhecimento, enfatizando sua independência das condições de sua produção, ainda no século XIX, ocorre uma notável inflexão nos procedimentos historiográficos. Há a presença marxista e suas influências, seja no economicismo, seja no culturalismo que, isolados ou entrelaçados, analisam a produção do saber como expressão de alguma espécie de “determinismo”, termo polissêmico empregado com doses de imprecisão e ambigüidade. Se por um lado as “determinações econômico-culturais” ineditamente evidenciavam relações de dependência entre o pretenso mundo autônomo das idéias e os acontecimentos terrenos da sociedade, ferindo aquela autonomia; por outro, padeciam do reducionismo de traduzir uma ampla gama de complexidades teóricas em um simplificado esquematismo que, apressadamente, buscava compatibilidades imediatas com o instrumental utilizado. Mostravam-se, assim, incapazes de ultrapassar a formulação de tendências muito gerais; ótica de superfície cuja impotente resolução não atingia o nível de detalhamento necessário para tornar esta proposta de análise mais satisfatória.

A inegável força explicativa da teoria marxista, seu grande poder de traçar uma compreensão mais geral do evolver histórico ainda necessitava de maiores desenvolvimentos para atacar questões especializadas, como a atividade científica que, mesmo no século XIX, já se integrara à uma diversificada rede social com nexos bastante específicos e heterogêneos. Essa atividade não se resumia como uma força produtiva material, ou um ingrediente nas relações de produção dentro do modo capitalista de produzir; nem, também, se constituía simplesmente como um conjunto de idéias refletidas daquela base socioeconômica; nem, muito menos, se confinava a ser um mero aval de verdade absoluta do qual todos se mostravam dependentes. Não, já não era tão simples. A expressão social d’A Ciência não é singular, é plural. Sua singularidade está em sua pluralidade, na sua multiplicidade de “papéis”. Afinal, a atividade científica possui uma verticalidade percorrendo e penetrando todos os andares do edifício marxista simplificado: ela habita desde o mundo das idéias até o das máquinas e ferramentas.

Mas foi exatamente a partir da orientação marxista que se tornou possível lançar novos olhares sobre aquela Ciência outrora absoluta. Estavam lançados, com Marx, os elementos

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conceituais que permitiriam trazer as idéias para os chãos da história. O desafio para os próximos estudos (marxistas ou não) era o de detalhar como se dava esse enraizamento das idéias na malha societária. Ou, para o caso da atividade científica, expor seus diversos nexos desde a produção material na qual se inscreve até seus processos de produção específicos, institucionais e coletivos. Inclusive desvendando a ideologia cientificista em sua própria historicidade, desde a inauguração da chamada Ciência Moderna, pela qual se edificou a noção de um saber absoluto e puro. Desvendando-a também em sua sobrevivência e nas suas vestimentas contemporâneas, até mesmo nas diversas correntes marxistas que percorreram grande parte do nosso século.

Assim, em sua continuidade, outros momentos emblemáticos de desafio à hegemonia da discursividade metacientífica de uma não temporalidade utópica d’A Ciência, para além do marxismo (ou, por sua presença) ocorreram em 1903 com Durkheim buscando a gênese das categorias básicas do pensamento nas estruturas e relações grupais. E mais. Segundo ele, tais categorias variavam com as mudanças ocorridas na organização social. “Idéias tão abstratas

como as de tempo e espaço se acham em cada momento de sua história, em estreita relação com a correspondente organização social.”14 Uma das mais importantes suposições de Durkheim

prende-se ao fato de a linguagem adquirida pelos indivíduos já conter e absorver termos conceituais que são produtos da sociedade.15 Entretanto, o grande destaque dado à objetividade

do conhecimento científico, com suas propriedades transcendentais, ainda o tornava “impróprio” como objeto de análise sociológica. Os próprios trabalhos franceses, liderados por Durkheim, não focavam o núcleo deste reduto, as ciências da natureza.

No mesmo período, do outro lado do Atlântico, nos EUA, a presença do pragmatismo de Peirce, James e Dewey, ainda que exercesse grande influência, era insuficiente para produzir alterações mais notáveis na compreensão da atividade científica tipificada pelo século XIX (Dolby, op. cit. 303). Thorstein Veblen em seu notável artigo de 1906, “The place of science in

modern civilization”, evidenciava as origens pragmáticas da ciência moderna referindo-se ao

século XVI onde a imagem do artesão servia de modelo para a elaboração de diversos conceitos científicos “humanizados”, tais como: leis naturais, causa-efeito em ciclo vital etc. Posteriormente, segundo Veblen, quando o artesão é substituído como arquétipo pelo processo mecânico, “a interpretação dramática dos fenômenos naturais se faz menos antropomórfica.” Isto favorece ainda mais a construção de um conhecimento “neutro e objetivo”.16

14 Robert K. Merton. La Sociología de la Ciencia. Madrid. Alianza. 1973. V. 1. P. 58 e 67; e Merton.

Sociologia - Teoria e Estrutura. São Paulo. Mestre Jou. 1970. p. 587. Ver ainda: R. G. A. Dolby. La sociología del conocimiento en la ciencia de la naturaleza. in Barry Barnes et al. Estudios sobre Sociología de la Ciência.

Madrid. Alianza. 1980. 302-313, p. 303 e 312.

15 Merton. La Sociología de ... . 1973. p. 67 e 69. A ênfase no papel intermediador entre as idéias e as práticas

humanas realizada pelo aparelho lingüístico é também desenvolvida por Marcel Granet em “La pensée chinoise”, 1934. Ver Merton. Sociologia - Teoria e Estrutura. 1970, p. 553; e Merton in Horowitz (org.). Historia y

Elementos de la Sociología del Conocimiento. Buenos Aires. Eudeba. 1964. vol 1, p. 65.

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Assim, a objetividade e autonomia das idéias científicas recebiam o seu endosso como meta prescritiva a ser observada pela ciência, abissalmente separada do conhecimento mundano, este sim, profundamente pragmático, porém inadequado como base própria – ou modelo – para o desenvolvimento daquela. “A atitude mental da sabedoria mundana está em conflito com o

espírito científico desinteressado e sua permanência gera uma parcialidade intelectual que é incompatível com a visão científica” (Veblen, op. cit., 322). As relações entre ciência e sociedade vistas como prejudiciais ao desenvolvimento científico, formarão parte integrante da maioria dos futuros enfoques sociológicos, restringindo a sociologia da ciência a uma sociologia do erro, ou a uma análise meramente institucional. Provavelmente, Veblen, na constituição desta postura, alinha-se com o futuro da sociologia norte-americana ao se afastar, diferentemente da pesquisa européia, dos temas ligados à formação do conhecimento, de seu conteúdo. Sua visão do profissional de ciência é caricata, seu agente mobilizador fundamental é o que chama de “curiosidade ociosa”, identificada com o “espírito científico”, desinteressado; o trabalho de investigação é tão “ocioso” como o do indígena fabricante de mitos.17 Entretanto, ainda que tais

trabalhos representem as tentativas iniciais de um estudo mais estreitamente sociológico, o aval de “cientificidade” que transmitem fortalece a imagem da ciência pura e afastada, em seu mirante de marfim, do evolver social. Assim a mitologia cientificista permanecia como um sólido agente da mentalidade da cultura ocidental.

Já na Alemanha, há o notável esforço de Dilthey em escapar ao modelo imperial das ciências da natureza. O historicismo diltheyano quebra essa hegemonia realizando a clássica separação entre as ciências compreensivas (Geiteswissenschaften, ciências do espírito) e as explicativas (Naturwissenschaften, ciências da natureza), abrindo assim alternativas para as ciências históricas. Com Dilthey, além do que é usual listar entre suas contribuições para o pensamento histórico, encontra-se seu uso da “compreensão histórica” associado à noção de “experiências da vida coletiva”, de “valores compartilhados”, da “vida em comunidade”.18

incidental sobre a investigação científica, influência que consiste basicamente na inibição e extravio.” Thorstein Veblen. La curiosidad ociosa en la sociedad (1906). In Barry Barnes et al. Estudios sobre Sociología de la

Ciência. Madrid. Alianza. 1980. 314-322, p. 318 e 322.

17 Veblen, op. cit., p. 317 e 320. Veblen faz críticas sem reservas ao “esquema moderno de conhecimento, análogo

à educação em teologia, direito, assuntos militares, como estranha ao espírito científico cético, o subvertendo”; ou ainda: “Sem dúvida, o generalizado espírito pragmático das civilizações velhas e não européias condicionaram mais que qualquer outro fator seu escasso e lento avanço em conhecimentos científicos.” (p. 322) Ver Merton.

Teoria e Estrutura. 1970. (Op. cit.) p. 582.

18 Ao relacionar compreensão e experiência de vida Dilthey expõe a vinculação existente entre ambas, na qual a

compreensão supera a limitação da vida individual: “Como [a compreensão] se estende a diversos homens, a criações espirituais e a comunidades, amplia o horizonte da vida individual e abre a via que, nas ciências do espírito, conduz ao universal através do que lhe é comum.

A compreensão recíproca nos aproxima da ‘comunidade’ que existe entre os indivíduos. Estes encontram-se vinculados entre si mediante algo comum e no qual se encontram enlaçadas a coparticipação ou conexão e a homogeneidade ou afinidade. A mesma relação de conexão e homogeneidade atravessa todos os círculos do mundo humano. Esta ‘comunidade’ se manifesta na identidade da razão, na simpatia da vida afetiva, na vinculação recíproca pela obrigação e o direito, que é acompanhada da consciência do dever. A ‘comunidade’ das unidades de vida representa o ponto de partida para todas as relações do particular e o geral nas ciências do

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II - A ofensiva contra o cientificismo

da negação para a denegação

Agindo neste cenário e trilhando esta noção – de indivíduos e de pensamentos inseridos em um coletivo de idéias e valores – é que o historicismo acoplado à presença marxista, nas primeiras décadas de nosso século, produzirá as mais inovadoras análises da ciência, gestando uma historiografia revolucionária. Esse novo olhar parte de uma postura “não domesticada” procurando manter independência em relação às míticas cientificistas presentes nos círculos produtores d’A Ciência: os cientistas, seus historiadores e filósofos.

Assim, o mundo germânico realizará o desafio mais contundente e efetivo ao cientificismo, com a procura de uma relação entre conhecimento e sociedade, olhando a forma de produção do saber – inclusive o científico, institucionalizado – como um processo social. Essa, a direção na qual tanto o marxismo quanto o historicismo já se inclinavam. Entretanto, com o modelo marxista simplificado de base-superestrutura pouco se avançava na tarefa de “enraizar as idéias” na base material, expondo com rigor o que estava preconizado no reducionismo de uma “determinação” social das idéias. A dificuldade a ser vencida estava em detalhar as formas de produção do saber, identificando nos grupos produtores os instrumentos e agenciamentos de sua mediação. Ou seja, explicitar efetivamente como as idéias, em geral, e as científicas, em particular, estavam imersas no caldo societário.

Mas esse embate não foi e não é simples. Nem o marxismo nem o historicismo constituíam-se como correntes de pensamento livres do jogo ideológico mais amplo, desembaraçados da trama da ideologia cientificista, sendo, talvez, mais próprio dizer justamente o contrário. O marxismo de então, durante as primeiras décadas do século, apoiava-se – como constructo intelectual – sobre os alicerces de uma cientificidade “transferida” das ciências da natureza. Foi somente com e a partir de Mannheim, redirecionando Scheler, através da Sociologia do Conhecimento que o desafio ao cientificismo conheceu maiores atrevimentos.19

Porém, tal iniciativa despertou ataques generalizados (à “esquerda” e à “direita” da topografia acadêmica), comprometendo seu desenvolvimento. Das reações à postura mannheimiana, duas foram particularmente potentes, e ambas dentro do mesmo universo germânico. Uma, mais restrita ao métier das ciências sociais, especialmente na sociologia – a disputa da Sociologia do Conhecimento: “Der Streit um die Wissenssoziologie” –, e outra, mais

espírito. Esta experiência fundamental da ‘comunidade’ atravessa toda a captação do mundo espiritual e nela se entrelaçam a consciência do eu unitário e a consciência da semelhança com os outros, a identidade da natureza humana e a individualidade. Constitui o suposto da compreensão.” Wilhelm Dilthey. El mundo histórico. México. Fondo de Cultura Económica. 1978. p. 164-165.

19 Evidentemente, não se pode esquecer, nesse quadro, da presença de Gramsci e Lukács (este, o antigo professor e

orientador de Mannheim). Na década de 1920, Lukács, Gramsci e Mannheim foram talvez as vozes mais dissonantes da tendência cientificista predominante no marxismo de então.

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próxima da área de atuação das ciências naturais, especialmente da física “revolucionária” naqueles dias. Uma física que colocava questões filosóficas inquietantes para o próprio cientificismo de base comteana, mais simples. No contexto das preocupações trazidas por essa “nova física” é que se constituiu um grupo notável e poderoso nos meios acadêmicos, o chamado Círculo de Viena, com diversas ramificações nas suas vizinhanças temáticas e geográficas. Daí partiram duras rejeições ao “sociologismo” de Mannheim que, associadas às dos cientistas sociais alemães, frearam o impulso inicial da nascente Sociologia do Conhecimento, recalcando-a.

O desenvolvimento desse processo de recalque ocorreu em outro cenário, transferindo-se de contexto lingüístico, com a evasão dos intelectuais para os EUA e a Inglaterra após Hitler chegar ao poder, em 1933. Nessa transplantação, a obra de Mannheim enfrenta, especialmente em 1936, nos EUA, uma revitalização das críticas de seus contemporâneos germânicos que terminam por completar seu recalque, construindo para Mannheim e para a sociologia do conhecimento um estigma duradouro.20

Assim consolidou-se a denegação da proposta mannheimiana e a afirmação das teses dos círculos neopositivistas que perduraram ao longo do período de hiato historiográfico que se seguiu, até o resgate de um enfoque mais historicizador realizado incipientemente por Kuhn, em 1962. Como subproduto dessa denegação e do recalque que a acompanha, ocorre a transmutação de corpos na sociologia: a estigmatizada Sociologia do Conhecimento de Mannheim transfigura-se em uma outra sociologia menos insubordinada, a Sociologia da Ciência, detransfigura-senvolvida nos EUA, em especial, pela linhagem funcionalista de Merton.21

20 Este episódio será melhor explorado adiante. Trata-se do impacto ocorrido, nos EUA especialmente, com o

lançamento da edição de Ideologia e Utopia no idioma inglês e da publicação das resenhas dos autores alemães. O abalo produzido por essas críticas (especialmente a de Alexander von Schelting) no ambiente de sociólogos americanos foi desastroso para Mannheim; essas críticas investiam contra a intromissão da sociologia em aspectos epistemológicos do conhecimento. Marcou-se assim uma vitória para as “teses” do movimento neopositivista que passou a exercer forte influência nos EUA, inclusive pela imigração de seus mais prestigiados adeptos.

21 Este é um ponto nuclear desse trabalho. O “vetor denegação” da historicidade incorporado nos anos 1930

germânicos, especialmente pelo Círculo de Viena (dos neopositivistas ou empiristas lógicos), silencia a nascente sociologia do conhecimento. Por sua vez, o marxismo então predominante tornou-se, na “prática historiográfica”, um componente “aliado” das corrrentes neopositivistas enquanto ambos eram adversários de um inimigo comum, a análise sociológica dos conteúdos cognitivos (especialmente quando se tratava das hard sciences). A historiografia das ciências daí decorrente não abre espaço para a orientação mannheimiana e se divide em internalistas e externalistas. Entre os externalistas encontram-se sociólogos americanos (como Merton) e marxistas (como o grupo liderado por Bernal); em uma “aliança” que se opunha à sociologia mannheimiana. Somente na década de 1970 ocorre o resgate de uma postura menos cientificista na história das ciências. Uma questão a ser elucidada no contexto da história das ciências é a das nuances cientificistas dentro do próprio marxismo, coisa que à época (na virada das décadas de 1920/1930) foi fortemente combatida por Gramsci e, em especial contra Bukharin, que dirigiu a comitiva soviética ao II Congresso de História das Ciências em Londres, em 1931. Este congresso é em geral colocado como marco inaugural da disputa entre internalistas e externalistas, referindo-se à apresentação de Boris Hessen, aí realizada, como a primeira “história externalista”.

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Mannheim e sua premonição do hiato historiográfico

Mannheim é apontado, por diversos aspectos, como um marco na constituição de novos paradigmas para a sociologia, propiciando o aparecimento da Sociologia do Conhecimento e a penetração das ciências sociais em áreas de domínio praticamente exclusivo de filósofos, a chamada teoria do conhecimento ou gnosiologia. Ele abre uma nova vertente para os processos cognitivos: sua historicidade. Retira da epistemologia a sua exclusividade para a análise do conhecimento, enfrenta seu poder territorial, quebra sua hegemonia instituída largamente no pensamento ocidental. Aquela explicação simplificada do conhecimento como produto do logos, um segmento de reta ligando o ato cognitivo exclusivamente à análise epistemológica, é subvertida. Mannheim desestabiliza esta geometria do cogito iluminista mostrando que o “ato” de conhecer é um momento do devir histórico, dando-lhe diacronia; porém um devir interativo e coletivo construído na sincronia das tramas sociais.

Desde o início do século que a compreensão do conhecimento humano já se submetia a novos enfoques, em particular, por analistas da psique e por antropólogos. Aqueles, trazendo à cena o indivíduo, suas pulsões, suas motivações inconscientes, os processos de internalização dos valores sociais, presentes em seus produtos; estes, iluminando o papel da cultura, e não só a de elite, no processo civilizatório. Tais esforços, oriundos de disciplinas academicamente bastante diferenciadas, convergiam para a problematização de aspectos deste mesmo objeto, o conhecimento. Várias dessas convergências deram-se em torno de algumas características subentendidas no conceito de “ideologia”. Por exemplo, através da teoria do inconsciente e da terapia analítica de verbalização as pesquisas de Freud esclareciam, em nível do indivíduo e dos seus laços societários, processos subjacentes, ocultos, que apontavam sugestivos indicadores para o entendimento de facetas do elemento ideológico – como o papel das coerções sociais introjetadas nas existências individuais, e não só como falsa consciência alienante.22

Assim, por itinerários inesperados atacou-se o conceito de ideologia, descobrindo-se uma profundidade de dificuldades bem maior do que as que estavam expressas no termo “ideologia” ao ser cunhado por Napoleão em conhecido e anedótico episódio, um século antes.23

Esta é a herança que Mannheim recebe no interior do mundo acadêmico, nos anos 1920, uma incipiente “teoria da ideologia” marcada pelos processos psicológicos individuais e naturalmente com a forte presença de sua raiz marxista.24 Mas os anos 1920 são também anos

22 Dois ensaios de Freud tratam particularmente dessas questões: The Future of an Illusion e Civilization and its

Discontents (traduzido em português como o Mal-estar da cultura).

23 Mannheim. Ideologia e Utopia. Rio. Guanabara. s. d., p. 98. Ver também Naess, A. Historia del Término

“ideologia”, desde Destutt de Tracy hasta Karl Marx. in Horowitz, Buenos Aires, 1964,p.23.

Os principais trabalhos de Mannheim foram reunidos em Essays on the Sociology of Knowledge. Routledge & Kegan Paul. Londres. 1951.

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de crise profunda, a revolução de 1917 lança enorme sombra ameaçadora em todo continente europeu. Em seu livro mais famoso, Ideologia e Utopia, originalmente em Bonn, em 1929, Mannheim faz diversas referências a seu próprio momento como “a crise que vivemos”, enfatizando a coloração deste episódio.

No quadro de disputas políticas, “ideologizadas”, onde o próprio e recém-inaugurado marxismo de Estado recebia o contra-ataque ideológico, fazer a análise dos processos de conhecimento do ponto de vista de seus matizes sócio-políticos relativizando as certezas positivas e liberais, era uma tarefa hercúlea, à qual Mannheim se dedicou com grande habilidade intelectual e profissional nem sempre apreciada em toda sua profundidade.

Desde seus primeiros trabalhos Mannheim delineia uma direção apontando para a historicidade do conhecimento. Entre o material publicado ainda em vida, três artigos inaugurais articulam-se entre si em um crescendo operístico: Sobre a Interpretação da Weltanschauung (1923), O Historicismo (1924), e O Problema da Sociologia do Conhecimento (1925). Nessa evolução, Mannheim desloca sua base explicativa da Weltanschauung, como categoria homogeneizadora, para a tentativa de colocar as “ciências do homem” de Dilthey em outro universo semântico-ontológico. Sua meta: escapar do caráter estático da metafísica substancialista (que embasa as ciências da natureza) e aninhar-se em uma ontologia dinâmica que consiga expor o mundo da história em seu devir processual.

Ainda que se possa concordar quanto ao fato de Mannheim não ter erigido uma “epistemologia nova” (provavelmente nem era esta a sua intenção), é por seu intermédio que as lacunas da teoria do conhecimento são severamente expostas. A ausência de uma fundamentação consistente, precisa e rigorosa que acobertasse também as Ciências Humanas e Sociais da cáustica do solo epistemológico cientificista, impedia que essas ciências do homem aflorassem no patamar respirável da confortável legitimidade já alcançada pelas Ciências Naturais. Prisioneiras fragilizadas da heterogeneidade movediça e do pântano das inconsistências teóricas, as ciências históricas do homem urgiam construir bases mais sólidas para seu desenvolvimento e pleno desempenho.

A investida de Mannheim pode ser considerada como uma tentativa neste sentido. Ao buscar um caminho que transformasse a Teoria da Ideologia, de então, em Sociologia do Conhecimento, Mannheim confronta-se com o obstáculo que o leva ao impasse teórico-metodológico: a presença imperial de uma teoria da ciência centrada na Física, com padrões ontológicos e metafísicos restritivos e insustentáveis para a nascente disciplina. Realizar esta ultrapassagem é uma necessidade perseguida por Mannheim que, sem maiores ousadias, restringe-se a explicitar a inadequação deste quadro para dar conta da discursividade histórica,

Entretanto, nesse momento ainda não alcançara nenhuma beca dentro da academia. O próprio Lukács, um dos universitários pioneiros, já era bastante criticado pelas esquerdas “oficiais”, institucionalizadas nos partidos comunistas. Uma exceção na participação acadêmica foi o Institut für Sozialforshung, criado em 1923, de onde se originou a “Escola de Frankfurt”, ver Martin Jay. The Dialectical Imagination. Boston. Little, Brown. 1973.

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da temporalidade social. No que foi preciso, expôs o calcanhar de Aquiles que a positividade das Ciências Naturais bisonhamente cultivava e desnudou as bases metafísicas e sociais na ontologia que as informava. Mas seu sucesso não foi prolongado na efervescente sociedade alemã de então.

A imediata defesa protecionista que Reichenbach fez em 1930, em nome do Círculo de Viena, alterou possíveis rumos dessa história. Por enquanto, estamos em 1929, com o lançamento do Ideologia e Utopia em Bonn, composto só pelos capítulos II, III e IV da versão definitiva inglesa de 1936, que se difundiu. Esta versão primitiva pode ser resolvida, em seu conteúdo de crítica epistemológica pelo seguinte esquema simplificado(dor):

1 o pensamento se realiza por categorias historicamente constituídas, e a linguagem é uma forma pela qual se expressa;

2 a atividade científica é prescrita por uma epistemologia, explícita ou implícita, e esta expõe uma ontologia e uma metafísica;

3 a visão de mundo presente como suporte dos critérios e axiomas então vigentes é fruto de uma ontologia substancialista e estática, considerada adequada para as Ciências Naturais; 4 as ciências históricas do homem necessitam de uma outra base que expresse o caráter

processual (Mannheim utiliza preferencialmente o termo relacional) e dinâmico em lugar do substancialismo, isto é, as ciências humanas necessitam de uma ontologia social dinâmica; 5 o relativismo é um erro teórico, fruto da inconsistência em tratar um objeto dinâmico,

processual, segundo uma base estática e substancialista, estreita e insuficiente para contê-lo, a solução de Mannheim contrapõe ao relativismo o seu relacionismo;

6 é necessária uma nova epistemologia mais ampla e genérica, de tal modo que se reduza a das Ciências Naturais como caso limite e localizado.

Essas proposições de Mannheim causaram um largo impacto. Deram-lhe prestígio e também serviram para polarizar um enorme e diversificado contingente de opositores. O exame de algumas produções desse período mostra os enfrentamentos intelectuais ocorridos que trazem uma melhor compreensão de sua importância para o destino futuro da sociologia. Evidencia igualmente a importância e a extensão teórica de seu questionamento e de seu inesperado eclipse subseqüente, ocasionado pela “solução vitoriosa” apresentada por seus oponentes. A solução bem-sucedida desse confronto entre cientificismo e o historicismo sociológico de Mannheim, a “divisão de Reichenbach”, percorreu inabalavelmente os meios culturais, adquirindo o status de uma evidência só questionada – na realidade, de forma bastante sutil – a partir do paradigmático ensaio de Kuhn, em 1962, que possibilitou a retomada da “crítica epistemológica de Mannheim” por algumas correntes historiográficas e, mais notadamente, pelo programa “forte” de Edinburgh. Este programa seguiu a mesma rota de colisão com a Teoria do Conhecimento, sem que esta sua trajetória comum – com a antecedente mannheimiana – seja mencionada, ficando obscurecida por uma longa descontinuidade silenciosa de quase meio século. Assim, o hiato

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recém-ultrapassado, graças a seu resgate em Edinburgh, amplifica, por sua dimensão, os méritos do questionamento de Mannheim sobre o modelo epistemológico vigente (e ainda sobrevivente), mostrando a insuficiência deste estatuto gnosiológico em equacionar as dificuldades advindas de problematizações que transcendiam a barreira das Ciências da Natureza. Tudo isto ocorria num quadro de hostilidade cultural pronunciada, em função do qual o próprio Mannheim mostrava preocupação e grande sensibilidade histórica, como analista de seu próprio tempo. Previra que aquela oportunidade de mudança do evolver teórico era única e necessitava do esforço dos cientistas sociais para a sua continuidade.

“Torna-se imperativo, no atual período de transição, fazer uso do crepúsculo

intelectual que domina nossa época e no qual todos os valores e pontos de vista aparecem em sua relatividade original. Devemos compreender, de uma vez por todas, que os significados de que nosso mundo se compõe nada mais são do que uma estrutura historicamente determinada e continuamente evolui a estrutura em que o homem se desenvolve, não sendo absolutos em nenhum sentido.

Neste ponto da história, em que tudo o que concerne ao homem, bem como a estrutura e os elementos da própria história se nos revelam subitamente sob uma nova luz, cabe a nós, em nosso pensamento científico, nos assenhorearmos da situação, pois não é inconcebível que mais cedo do que possamos suspeitar, como muitas vezes tem sido o caso na história, esta visão possa desaparecer, a oportunidade possa perder-se e o mundo mais uma vez venha a apresentar uma aparência estática, uniforme e inflexível” (Mannheim, I.U. sd. 111, grifo meu).

III - A contra-ofensiva do cientificismo

o historicismo recalcado

A querela internalismo-externalismo como maquiagem da não-historicidade da ciência

Imediatamente após a edição alemã de Ideologia e Utopia, em 1929, seguiu-se um amplo debate nos meios sociológicos: “Der Streit um die Wissenssoziologie” (a disputa da Sociologia do Conhecimento).25 Essa disputa, precedida e acompanhada pela forte oposição dos

25 Volker Meja and Nico Stehr. On the sociology of knowledge dispute. in Volker Meja and Nico Stehr (ed.).

Knowledge and Politics. The sociology of knowledge dispute. London. Routledge. 1990. 3-13, p. 3: “In the past

one hundred years, the social sciences in Germany have distinguished themselves by several major methodological controversies that are without precedent or parallel elsewhere. Three of these controversies are generally recognised as especially momentous. They are the Methodenstrei (dispute on methods) initiated in the 1880s by the economists Carl Menger and Gustav Schmoller; the Werturteilsstreit (dispute on value judgements), which was initiated in 1909 at the annual meeting of the Verein für Sozialpolitik and is associated especially with the names of Max Weber and Werner Sombart; and the more recent Positivismusstreit (positivist dispute). The last of these three began with the two presentations on the “logic of the social sciences” by Karl Popper and Theodor W. Adorno at the 1961 Congress of German Sociologists, and turned - especially as a result of the intellectual

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neopositivistas à Wissenssoziologie, envolveu mais de 30 artigos em resposta a Mannheim cobrindo uma variada gama de posições teóricas:

“The majority of responses and critiques come from Marxist or socialist scholars of

various orientations, among the orthodox Marxists Karl Wittfogel, Otto Neurath, and Adalbert Fogarasi; the anti-positivist Marxists Max Horkheimer, Herbert Marcuse, and Ernst Lewalter; the religious socialist Paul Tillich; and the Social Democrats Hannah Arendt and Hans Speier. The interest in the relationship between Marxism and the sociology of knowledge (with its implicit practical consequences) constitutes the major point of unity in the responses to Mannheim’s book. The positions range from seeing in the sociology of knowledge a sophisticated reformulation of the materialist conception of history to linking its sudden popularity to a neutralisation and betrayal of Marxism.”26

A presença de Otto Neurath como integrante do grupo de sociólogos “marxistas” mais ortodoxos, e igualmente como um aguerrido membro do Círculo de Viena (considerado “l’âme

politique” do Círculo),27 materializa a “associação” referida entre os dois conjuntos, nada

homogêneos, de opositores a Mannheim. No contexto da história das ciências, o fato mais notável que esse momento produziu foi o confronto, que se tornou costumeiro, entre a teoria d’A Ciência e a história das ciências, com fortes prejuízos para esta. Neste embate, deu-se roupagem nova para a denegação cientificista à historicidade, opondo mais fortemente a reconstrução racional (fundamento de uma teoria da ciência) à reconstrução histórica. Dá-se, assim, a tradução atualizada das possibilidades comteanas entre a via dogmática e a histórica, realizada pelos adeptos do empirismo lógico, especialmente por Carnap, e difundidas por Hans Reichenbach (um integrante do “círculo” de Berlim, uma “delegação” do de Viena) e por Karl Popper. Reichenbach apresentou a noção de um duplo contexto da investigação científica, duas etapas consecutivas: os contextos da descoberta e da justificação. No primeiro localizavam-se as motivações existenciais (sociais e psicológicas) da criação teórica, que eram “justificadas exchanges between Jürgen Habermas and Hans Albert - into a systematic confrontation between critical theory and critical rationalism in which the role of value judgements and the issue of theory formation in the social sciences as well as the problem of the social function of the social sciences were once again taken up and posed anew. A fourth controversy, the Streit um die Wissenssoziologie (sociology of knowledge dispute) was more short-lived than other three disputes, not least because it was brought to premature closure by the events that led to the victory of fascism in Germany. In it, the relationship between politics became a major focus of attention and conflict, and the radical reformulation of the problem of ideology as well as the relativism question were vigorously debated. While beginnings of a sociology of knowledge are already evident in the Marxian critique of ideology, in the Durkheim school, in Weber, as well as in Nietzsche and Pareto, the sociology of knowledge owes its eventual emergence and full development during the Weimar Republic to Max Scheler and specially to Karl Mannheim. It may be seen as the symptomatic intellectual expression of an age the crisis and as a characteristically German product of mind.”

26 Meja and Stehr. 1990, p. 6: “In context, Mannheim appealed not to the Right but mainly to people of the Left

who believed that the conservative and neo-romantic critique of liberalism and rationalism had valuable contributions to make to socialist theory” p. 6.

27 Jan Sebestik. Le Cercle de Vienne et ses Sources Autrichiennes. in Jan Sebestik et Antonia Soulez (org.). Le

Cercle de Vienne: doctrines et controverses. Journées internationales, Créteil-Paris, 29 septembre - 1er octobre 1983. Paris. Meridiens Klincksieck. 1986, p. 22.

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racionalmente” no segundo. Separava-se, assim, a reconstrução histórica da reconstrução racional, forjando-se um instrumento da denegação cientificista da história.28

Essa ruptura garantiu a predominância de uma teoria do conhecimento substancialista sobre as concepções históricas no interior da história das ciências, dando um balizamento teórico para a disputa maior na historiografia das ciências: a querela internalismo-externalismo, a querela e

. Essa querela predominou, desde então, entre os profissionais na historiografia, sendo em geral noticiada como tendo origem, e como conseqüência da presença da comitiva soviética, no II Congresso de História da Ciência, em Londres, 1931. A instalação dessa querela apresentou-se como se fosse a inauguração de uma visão histórica das ciências em contraste com a até então hegemônica visão internalista; como se fosse uma disputa entre duas explicações antagônicas: os externalistas – inicialmente o grupo marxista de cientistas naturais ingleses engajados em uma história social da ciência – em choque com a antiga história das idéias e teorias científicas.

Entretanto, aqui, neste trabalho, promovo dois deslocamentos na compreensão ortodoxa da historiografia e caracterizo essa querela de uma outra forma, como um falso problema, mera aparência de um outro e mais efetivo problema. Um dos deslocamentos refere-se à questão de a querela ser tomada como “origem” do enfrentamento historicizador da ciência: desloco do Congresso de 1931 para a disputa contra a tentativa mannheimiana. O Congresso foi simplesmente um desvio enganoso da questão bipolarizada. O outro deslocamento dá-se em relação à “causa” ou ao “motivo” da querela: as razões que embasam a querela são outras e devem ser encontradas em outra parte. A querela não passa de uma maquiagem do desafio autêntico que permaneceu inatacável. Há alguns sintomas desse quadro mais complexo.

• Primeiro, ela não representa a disputa entre os que efetivamente “historicizavam” a ciência e os “idealistas”, que negavam essa historicidade.

• Segundo, não há antagonismo de fundamentos; em essência ambos os grupos partilham da mesma base conceitual, são cientificistas. São duas aparências de uma e mesma concepção de ciência, uma visão historicamente precária da atividade científica.

• Terceiro, a oposição que ocorre entre os querelantes, e com bastante freqüência, é a divergência ideológica transvestindo a querela numa disputa entre esquerda e direita, entre uma visão coletivista e outra, individualista.

Assim, aqui, remeto a questão basilar da historiografia, não para as inquietações decorrentes da querela internalismo-externalismo, mas para a “Streit um die

Wissenssoziologie” e de seu corolário reichenbachiano. Esta, uma de nossas questões centrais,

marcando o renascimento, a renovação, do vetor cientificista positivista pelos trajes do empirismo lógico. E este, sim, é o obstáculo mais efetivo para a realização de uma história

28 Ver Hans Reichenbach. Experience and Prediction. Chicago. University of Chicago Press. 1961, p. 6/7. Ver

também Augustine Brannigan. A Base Social das Descobertas Científicas. Rio de Janeiro. Zahar. 1984. (Original de 1981) p. 67.

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“histórica” das ciências. Um obstáculo que orientou o desenvolvimento do hiato historiográfico, a “rede 33”, e que somente foi atacado, mais consistentemente, na década da reflexividade. Dir-se-ia, como reforço à importância dessa posição, que o “verdadeiro” desafio para a constituição de uma história das ciências, efetivamente histórica, não foi a ruptura “inaugurada” no Congresso de 1931, com a gênese de um discurso externalista marxista, mas sim o confronto teórico no seio da historiografia germânica. A “alma” daquilo que a querela internalismo-externalismo oculta encontra-se na disputa inaugurada pela Sociologia do Conhecimento. O obstáculo historiográfico não é a querela, em si, mas o que lhe é sub-reptício. A querela torna-se um disfarce do verdadeiro desafio para a história. Não são os internalistas os adversários únicos de uma história histórica das ciências, mas, sim, ambos, os externalistas e os internalistas. Essencialmente, as duas correntes historiográficas permaneceram em regime de fidelidade com o cientificismo e com seu vetor denegação embasado sobre a divisão de contextos de Reichenbach; esta dicotomia, sim, constituiu-se como núcleo hard de resistência à historicidade do processo cognitivo. E este processo dá-se em sociedades e momentos específicos, em conjunturas que favorecem e alimentam essa bipartição: a querela externalismo-internalismo reveste-se nas ambigüidades do/no jogo esquerda-direita entre perspectivas orientadas por uma visão liberal-individualista e uma outra, a do coletivismo, na qual o próprio marxismo e o historicismo encontram suas raízes (eis, aí e assim, um conjunto de propostas de interpretação, componentes da hipótese de trabalho da pesquisa aqui apresentada).29

A demarcação vienense: intolerância fisicalista e banimento histórico

Nas décadas de 1920 e 1930 ocorriam grandes e numerosos conflitos, eram dias de instabilidade econômica e social. Incertezas e novidades proliferavam em policromias ideológicas: stalinismo, psicanálise, feminismo, gestaltismo, historicismo, cientificismo, ... Tudo é embalado na agonia do laissez-faire à procura de seu paraíso perdido; o analogon (Debrun) da sociedade “pós-industrial” ainda não fora construído. Mas aquelas policromias associavam-se a tempos compreensivos próprios. Um desses tempos eram os mannheimianos, mas houve outros, muitos outros. Acompanhando o compasso da nova física, o mundo científico abria-se em discussões, grupos de pesquisadores diferenciados tentavam cadenciar os seus ritmos disciplinares, sincronizando dúvidas e questões. De todos, o grupo mais proeminente e duradouro, o que mais expandiu suas influências – tanto internacionalmente, por um largo período, quanto interdisciplinarmente – foi o Wiener Kreis, O Círculo de Viena. Ainda que não

29 As questões históricas em torno da dicotomia de Reichenbach, desde o esclarecimento mais sistemático de sua

gênese: suas razões de ser, seu caráter reativo ao trabalho de Mannheim, até sua permanência explícita ou sub-reptícia na historiografia posterior, etc., se constitui em um eixo fundamental deste trabalho. O núcleo dessa dicotomia consolida - esta, a minha interpretação - o principal eixo sob as malhas da “rede 33” em oposição à tarefa de historiar as ciências segundo os parâmetros de uma história efetivamente histórica, tal como celebrada por Pomian e aqui, nesse trabalho, defendida como uma possibilidade da história sociológica.

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