A ambigüidade genital e o real do nascimento
Susane Vasconcelos Zanotti1
; Hélida Vieira da Silva Xavier2; Camila Teófilo de Castro Amorim e Luísa Marques de Sá Vilela3
O presente trabalho discute os dados de uma pesquisa acerca do modo como é abordado o real da ambigüidade genital em um Hospital Universitário de um Município do Nordeste. O método utilizado foi o de entrevistas semi-estruturadas e estudo do tema a partir da investigação própria à pesquisa teórica com base nas teorizações de Freud, Lacan, e autores contemporâneos que abordam o tema da sexualidade e da ambigüidade genital. Entrevistamos duas psicólogas, quatro enfermeiras, uma assistente social e seis médicos (um cirurgião pediátrico, um endocrinologista, dois pediatras e dois geneticistas). Após a etapa de realização de entrevistas procedeu-se a transcrição das mesmas bem como a análise qualitativa, a partir do referencial teórico da Psicanálise.
O real da ambigüidade genital em um Hospital Universitário
A partir da pesquisa realizada em um Hospital Universitário de um Município do Nordeste, podemos descrever as seguintes ações evolvidas na atenção a pacientes com ambigüidade genital. Verificada a presença de genitália ambígua em um paciente, informa-se à família a situação. Quando a criança ainda não tem registro civil faz-se a primeira orientação aos pais: não registrar a criança. Concomitante a este período, inicia-se o processo de investigação diagnóstica, considerado de suma importância pelos profissionais entrevistados. Como a ambigüidade genital é um sinal clínico, é crucial que esta seja investigada de forma rápida e diagnosticada a etiologia da anomalia. A investigação e posterior constatação diagnóstica permite identificar casos potencialmente letais, como a hiperplasia congênita das supra-renais em sua forma perdedora de sal (DAMIANI, 2002).
1 Profª Doutora do Curso de Psicologia/UFAL. Orientadora do Projeto de Pesquisa “Ambigüidade Genital”. 2
Aluna do Curso de Psicologia/UFAL. Bolsista CNPq/IC - Pesquisa “Ambigüidade Genital”. 3
Os pais são orientados a não registrar seu filho. Segundo o cirurgião pediátrico entrevistado, essa criança não pode ser registrada sobre pena de problemas futuros”. Os problemas futuros aos quais o cirurgião se refere são relativos à mudança de nome da criança, como ocorre em casos que a ambigüidade genital é diagnosticada posterior ao registro civil, ou casos em que a anomalia é diagnosticada durante a puberdade por não desenvolvimento de caracteres sexuais secundários, como em casos de pseudo-hermafroditismos.
A orientação inicial, segundo Maciel-Guerra e Guerra Jr. (2002) é que o registro civil em um determinado sexo não deve ser liberado enquanto não houver certeza sobre o sexo de criação, e à família deve-se fornece todas as informações necessárias para obter sua colaboração. Para Bittencourt e Ceschini (2002) é relevante que a família sinta-se apoiada e orientada no enfrentamento dessa problemática para que “possa
entender a importância de adiar algumas decisões até que tenham sido coletados todos os dados necessários para a definição e atribuição do sexo” (p. 194). O profissional
geralmente responsável por tais esclarecimentos e orientações é o neonatologista, que ao nascimento é o primeiro a ter contato com a criança.
Seguindo os procedimentos, informa-se o diagnóstico à família, defini-se o sexo de criação da criança, bem como a “correção que deverá ser feita para completar
o que a natureza normalmente faz, deixar a genitália diferenciada” (geneticista
entrevistado). Definido o sexo de criação pela equipe profissional e família, o cirurgião pediátrico irá traçar um planejamento dos procedimentos cirúrgicos para reconstrução a genitália (MIRANDA & SILVA, 2002). O próximo passo é realizar as correções cirúrgicas. A família é orientada, ainda, a respeito de possíveis tratamentos hormonais e recebe esclarecimentos a respeito de prognóstico. Neste percurso, o paciente e sua família recebem atenção de um psicólogo, e quando necessário, um assistente social participa do processo.
A participação da família no processo foi enfatizada pelos profissionais entrevistados. Os pais devem ser informados e esclarecidos sobre o porquê da indefinição do sexo, exames para o processo diagnóstico, prognóstico, de como ocorre o processo de diferenciação sexual e da anomalia que seu filho apresenta. Para Maciel-Guerra e Maciel-Guerra Jr. (2002) ao transmitir as orientações gerais aos pais deve-se “utilizar
evitar mal-entendidos na comunicação com a família” (p. 203). Bittencourt e Ceschini
(2002) enfatizam que estas orientações devem ser claras e objetivas, e a equipe profissional deve preocupar-se em comunicar informações seguras.
A informação aos pais é fundamental na atenção a pacientes com genitália ambígua, uma vez que a ausência da mesma pode resultar no abandono do tratamento, como afirma um dos geneticistas entrevistados:
Essa questão de dizer: ‘Ah! A família abandona, a família não liga, a família não quer’, eu discordo terminantemente e não acredito nessa possibilidade, porque só quem abandona, não segue um tratamento ou não quer, negligencia, é quem não foi esclarecido sobre o que se passa exatamente com ele ou com os seus filhos, por que se alguém tem informação e sabe que é possível ter tratamento e solução essa pessoa não vai embora.
Como vimos em relação ao modo como é abordado o real da ambigüidade genital em um Hospital Universitário, o atendimento de um paciente que porta a marca da ambigüidade genital é acompanhado por questões delicadas em relação ao diagnóstico e tratamento adequado. No entanto, mesmo após solucionado o problema inicial de definição do sexo anatômico do sujeito, as questões relacionadas ao tratamento em casos de ambigüidade genital não chegam ao fim. Como ressalta um cirurgião entrevistado “são crianças que temos que acompanhar para o resto da vida”. Essa é uma especificidade dos casos de ambigüidade genital à qual reforça a importância do acompanhamento desses casos por diversos profissionais da área de saúde, inclusive psicólogos. Isso porque como afirma Ansermet (2003), a ambigüidade genital reforça o efeito de obstáculo do desconhecido característico de toda busca sexual. E a marca em conseqüência da ambigüidade genital permanecerá no sujeito mesmo em casos de correção cirúrgica.
O encontro dos pais com o real do nascimento
Segundo os profissionais entrevistados, a indefinição sexual suscitada pela ambigüidade genital é uma das questões que cria silêncio, traz à tona conflitos familiares, receios, estranheza, e principalmente frustração e angústia. Por esses motivos, ressaltam que a atuação do psicólogo na condução desses casos é indispensável para pacientes e familiares. Alguns entrevistados ressaltaram ainda, a importância de um apoio psicológico para o profissional que atende os casos de
ambigüidade genital, pois estes encontram-se em uma situação angustiante. Para um dos geneticistas entrevistados:
é uma situação extremamente delicada no momento em que a gente tem que tomar uma postura de não atender a grande expectativa de um casal que tem uma criança e quer saber se é menino ou menina, e a gente não tem o que dizer pra eles, ou a gente tem que dizer que eles têm que aguardar, mexer com isso é muito complicado.
O processo de definição do sexo do sujeito provoca a emergência de algumas implicações subjetivas para os pais. Tais implicações escapam aos parâmetros objetivo que regem os procedimentos médicos, pois a intervenção cirúrgica, por perfeita que resulte, não tem controle sobre os efeitos simbólicos na família e na criança (ANSERMET, 2003). Tomemos a fala de um dos geneticistas entrevistados para exemplificar esse encontro dos pais com o real do nascimento de um filho com genitália ambígua:
[...] as mães sonham com os filhos, ou vai ser menino ou vai ser menina, os pais também, e essa é a primeira grande coisa que já frustra de saída, passou a gestação inteira lá fazendo bordadinho azul ou cor-de-rosa, [...], escolhendo o nome da criança, que vai ser Maria, que vai ser João, vai ser isso, vai ser aquilo, vai ganhar brinco, vai ganhar boneca, vai ganhar carrinho, e ai na hora aquilo se desfaz, é muito complicado.
Assim, para os profissionais entrevistados, a ambigüidade genital caracteriza um sério e complexo problema de ordem física. Trata-se de uma alteração morfológica da genitália externa do indivíduo acompanhada da frustração, angústia e negação dos pais. O afeto vivenciado pelos pais diante do nascimento do filho com genitália ambígua e em relação ao diagnóstico e decisão cirúrgica foi evidenciado por outro geneticista:
Angústia, minha percepção é essa. Angústia no sentido da vontade, primeiro de compreender que tem grandes implicações se não for resolvido logo, a vontade de resolver logo e as dificuldades enfrentadas até se conseguir chegar no diagnóstico e na conclusão, então é angústia. É aquela angústia que as vezes se manifesta de modo muito simples somente com o desespero da mãe de querer colocar um nome de menino ou de menina, ou as vezes se manifesta pelo peso de ter tomado uma decisão precipitada e daí são aqueles casos que já vem depois que se definiu que ia ser menino ou menina e ai complicou mais na frente.
Com base nas teorizações de Lacan (1962-1963/2005) acerca da angústia que o encontro com o real suscita Solano-Suárez (2004) sintetiza: “a angústia é um afeto que
ambigüidade sexual afirma que a ambigüidade genital é um real impossível de suportar,
cuja assimilação é marcada pela angústia dos pais.
Segundo alguns profissionais, a angústia dos pais presente no nascimento de um filho com genitália ambígua, atravessa todo tratamento médico. Os profissionais justificam para isso as incertezas referentes à funcionalidade do órgão genital, fertilidade, orientação sexual do filho e estigmatização social. O diagnóstico de genitália ambígua acentua a angústia dos pais no que tange à sexualidade do filho. Este impasse é abordado por Ferrari (2002) quando afirma que “os pais têm a fantasia de que no futuro
o filho possa manifestar homossexualidade por não ter o sexo anatômico correspondente ao sexo biológico ou genético” (p. 427). A fantasia acerca da orientação
sexual do filho foi retratada na entrevista de uma psicóloga que expõe: “o pai logo acha
que (a criança) vai ser homossexual”.
Quanto à negação dos pais, segundo o endocrinologista:“temos pais que querem
dar os seus filhos, pai, principalmente pai que rejeita o filho, que quer que a mãe dê, que acha aquilo um absurdo, que aquilo foi um castigo de Deus”. Ainda referente à
negação dos pais um dos psicólogos relata: “se o pai é machista, nega muito” essa ambigüidade genital.
Para concluir, vale ressaltar que o nascimento de uma criança com ambigüidade genital instala impasses que perpassarão não apenas a conduta dos profissionais de saúde envolvidos no processo, mas também da família do paciente. O diagnóstico de ambigüidade genital, recebido pelos pais, provoca a emergência de uma oscilação na relação pais-filho, relação esta, nodal na constituição subjetiva da criança. Trata-se de um diagnóstico inesperado para a família, que reage com um sentimento de estranheza em relação ao filho que não pode identificar com o filho imaginário, filho idealizado antes e durante a gestação. Além disso, surge o medo de que o filho seja homossexual e estigmatizado socialmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANSERMET, F.(2003). A ambigüidade sexual. In: ANSERMET, F. Clínica da
origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. (pp.147-162). Rio de Janeiro:
Ed. Contra capa.
BITTENCOURT, Z. Z. L. C. & CESCHINI, M. (2002). Diagnóstico das ambigüidades genitais: Avaliação social. In: MACIEL-GUERRA, A.T. & GUERRA-JUNIOR, G. (2002). Menino ou Menina? – Os distúrbios da diferenciação sexual. (p. 191-201). São Paulo: Ed. Manole.
DAMIANI, D. (2002). Anomalias da diferenciação sexual. In. SETIAN, N. (2002).
Endocrinologia Pediátrica: Aspectos Físicos e Metabólicos do Recém-Nascido ao Adolescente.(2 ed.) .(pp.425- 432). São Paulo: Ed Sarvier.
FERRARI, V. P. M. (2002). Anomalias da Diferenciação Sexual: Aspectos Psicológicos. In: N. Setian (2002). Endocrinologia Pediátrica: Aspectos Físicos e
Metabólicos do Recém-Nascido ao Adolescente. (2 ed.) (pp. 425- 432). São Paulo: Ed
Sarvier.
MACIEL-GUERRA, A.T. & GUERRA-JUNIOR, G. (2002). Menino ou Menina? – Os
distúrbios da diferenciação sexual. São Paulo: Ed. Manole.
MIRANDA, M. L. & SILVA, J. M. B. (2002). Tratamento: correção cirúrgica das ambigüidades genitais durante a infância. In: MACIEL-GUERRA, A.T. & GUERRA-JUNIOR, G. (2002). Menino ou Menina? – Os distúrbios da diferenciação sexual. (pp. 222-231). São Paulo: Ed. Manole.
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário: livro10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
SOLANO-SUÁREZ, E. (2004). A criança em questão no final do século. In: A. Murta e colaboradores (Org), Incidências da Psicanálise na cidade. (pp. 11-48). Vitória: EDUFES.