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A responsabilidade penal por omissão imprópria: uma abordagem da imputação na atividade empresarial

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE DIREITO

NATÁLIA GALVÃO DA CUNHA LIMA FREIRE

A RESPONSABILIDADE PENAL POR OMISSÃO IMPRÓPRIA: UMA ABORDAGEM DA IMPUTAÇÃO NA ATIVIDADE EMPRESARIAL

NATAL-RN 2019

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A RESPONSABILIDADE PENAL POR OMISSÃO IMPRÓPRIA: UMA ABORDAGEM DA IMPUTAÇÃO NA ATIVIDADE EMPRESARIAL

Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Profª. Drª. Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya

NATAL-RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Freire, Natália Galvão da Cunha Lima.

A responsabilidade penal por omissão imprópria: uma abordagem da imputação na atividade empresarial /

Natália Galvão da Cunha Lima Freire. - 2019. 108f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN,

2019.

Orientador: Profª. Drª. Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya.

1. Criminalidade de empresa - Monografia. 2. Responsabilidade penal de dirigentes - Monografia. 3.

Crimes omissivos impróprios - Monografia. I. Saboya, Keity Mara Ferreira de Souza e. II. Universidade

Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU

343.1

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Aos Professores Clenio Alves Freire, Diógenes da Cunha Lima, Gustavo da Cunha Lima Freire, Hélio Mamede de Freitas Galvão (in

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AGRADECIMENTOS

Encerro este ciclo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte com um misto de alegria e saudade. Nela conheci pessoas, culturas e mundos que ampliaram o meu... nunca mais fui a mesma. E que bom!

Passei a fazer do estudo do Direito, especialmente do Direito criminal, a minha escolha de vida, e todo texto que eu escreva, agora ou em qualquer tempo, invariavelmente estará atravessado pelos que despertaram, em meu coração, esse desejo. Gostaria, portanto, de agradecer-lhes, porque hoje fazem parte do que eu sou.

À Professora Keity Saboya, minha conselheira favorita, cujas ideias me encantaram antes do Direito Penal, agradeço por ter dado sentido a minha graduação por meio do exemplo de uma das pessoas mais geniais que conheço. E para além disso, por sua amizade, fazendo-se presente de algum modo, por bem querer, em momentos significativos da minha vida, felizes ou não tão felizes assim. Guardo todos, com amor e gratidão.

Ao Professor Walter Nunes, que me possibilitou sua companhia durante seis semestres, enquanto monitora, aprendendo todos os dias algo novo, agradeço pela confiança, atenção e carinho. O senhor é um professor no sentido mais exato da palavra, um incentivador, e tenho muito orgulho de chamá-lo de mestre. Obrigada pelo presente que o senhor e sua família são em nossas vidas.

Ao Professor Erick Pereira, pela referência de advocacia engajada academicamente, que por muitas vezes fez meu olho brilhar em sala de aula. A vontade de aprender mais com sua inteligência e segurança me levou a cursar todas as cadeiras em que lecionou, e essa escolha muito contribuiu para o que penso sobre o papel da defesa no Direito. Sou grata pela gentileza e solicitude com que sempre me recebeu.

Agradeço também aos mestres que, ao longo do curso, se não me ensinaram sobre Direito Penal, me proporcionaram algo igualmente valioso: ampliaram o meu olhar sobre o mundo e foram exemplos vocacionados. Gostaria de representá-los nas figuras da Professora Maria do Perpétuo Socorro Wanderley e do Professor Francisco Barros.

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Professores. Graças a eles, compreendi o valor do estudo, do trabalho e de procurar enxergar as dores do outro. Foi meu pai que me ensinou a amar o ensino público e fazer da Universidade Federal a minha casa, como a sala de aula sempre foi seu chão. Com minha mãe, aprendi a caridade, que guiou diversas escolhas que fiz nesse caminho. O suporte de vocês é a minha maior realização.

Agradeço a Eduardo, meu irmão, por dividir as dores e alegrias da vida comigo, e por mesmo tão diferente de mim, ser a certeza de que nunca estarei só no mundo.

Aos meus avós, Olindina e Clenio, pelo incentivo à continuidade dos meus estudos, e a uma escolha de curso tão parecido comigo, mas que não era capaz de visualizar. Talvez me conheçam mais do que eu. Agradeço a Deus por cruzar a nossa vida e por ser um pedacinho de vocês.

À minha bisavó Maria e minha avó Jacira, responsáveis pelo melhor cartão de visitas que eu poderia sonhar em ter - anotaram em um papel o que eu desejava profissionalmente, e desde então, não há um só conhecido a quem não tenham dito que a neta era “advogada criminalista”, mesmo no primeiro ano de faculdade. Tenho muito orgulho das mulheres que são.

Ao meu tio Diógenes, meu professor e minha inspiração para tudo, agradeço por alimentar os meus sonhos e me ensinar a advocacia “sob o perfil da poesia”. Rogo a Deus que me permita nunca deixar de assim vê-la.

Ao meu tio Rodrigo, agradeço o exemplo de dedicação e comprometimento com o ensino, e por se fazer tão presente, mesmo há tantos anos vivendo do outro lado do país. Sinto muito orgulho de sua carreira.

A Gabriel, que ouviu minhas posições, aqui contidas, com paciência e carinho, mas sobretudo me fez entender o que Valter Hugo Mãe dizia, quando escreveu sobre quem nos faz sentir “o dobro do que somos”. Sinto-me o dobro do que sou ao seu lado, e dividir projetos com você é uma realização para mim.

Aos irmãos que recebi da vida: Bia, Márcia, Ruth, Aryam, Pedro e Gabriella, em Natal, Salvador, São Paulo, Fortaleza ou Toronto - a alegria de vocês com minhas pequenas conquistas

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Fiz verdadeiros amigos na Universidade, que se esforçam, em momentos de ansiedade ou dúvida, para que eu me sinta muito mais inteligente, dedicada e competente do que serei em toda a minha vida. Essa confiança, imerecida, me motivou muitas vezes. É um reflexo do que vocês são. Obrigada pela companhia nessa jornada!

A Alana, Ana e Glícia, agradeço pelo suporte para que pudesse concluir esta pesquisa, pela amizade no dia a dia de trabalho e pela alegria sincera com que me acolheram. Por essa alegria, também, agradeço à equipe do nosso Escritório, que tanto me ajuda, representando a todos nas figuras de João, Mércia e Roberto.

Ao Professor Laércio Segundo de Oliveira, sou grata pelas gentis e valiosas tardes de contribuição neste estudo.

Agradeço, por fim, ao meu bisavô, Hélio Galvão, com quem não me foi permitida a convivência terrena, mas que por inspiração divina, despertou a escolha do tema deste trabalho. Trata-se do assunto de seu último livro publicado em vida, cuja existência só descobri após iniciado o processo de escrita.

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A presente monografia se propõe a analisar os desafios da atribuição de responsabilidade penal aos dirigentes empresarias, especialmente por meio da teoria do domínio do fato e da teoria dos crimes omissivos impróprios. A partir, inicialmente, de uma análise criminológica, busca-se compreender a forma com que se deu a mudança de paradigma no sistema criminal, passando a alcançar esses sujeitos, historicamente excluídos da repressão estatal. Verificam-se as possibilidades do uso da teoria do domínio do fato enquanto meio de fundamentação da autoria, passando a abordar, ato contínuo, os problemas da identificação de responsabilidade penal individual no âmbito de uma organização complexa, marcada pela divisão de tarefas e funções, como o é a empresa moderna. Postas essas considerações, passa-se à revisitação bibliográfica, a fim de observar as possibilidades de atribuição de responsabilidade valendo-se da teoria dos crimes omissivos impróprios, assinalando os limites à posição de garantidor, o panorama da causalidade e a medida com que podem ser responsabilizados penalmente os dirigentes, por intermédio disso, por condutas praticadas por seus subordinados. Confrontam-se, em seguida, as conclusões parciais obtidas a partir desse sucedido e a aplicação prática, tomando como ponto de partida um conjunto de casos, em que se valeu o parquet, no oferecimento da denúncia, das categorias objeto da presente investigação. O trabalho toca, por fim, a necessidade de revisitação dessas categorias dogmáticas, objetivando demonstrar que um modelo de responsabilidade que considere, unicamente, a posição ocupada pelos dirigentes empresariais no interior da estrutura, é ilegítimo à luz dos princípios penais e das disposições normativas.

Palavras-chave: criminalidade de empresa; responsabilidade penal de dirigentes; crimes

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The present monograph aims to analyze the challenges of the attribution of criminal responsibility to entrepreneurial leaders, especially through the theory of dominion of fact and the theory of improper omissive crimes. Starting, firstly, from a criminological analysis, it seeks to understand the way in which the paradigm change in the criminal system occurred, reaching these historically excluded from state repression individuals. The possibilities for the use of the theory of the dominion of fact as a basis for authorship are verified by addressing the problems of the identification of individual criminal responsibility within a complex organization, marked by the division of tasks and functions, as is the modern enterprise. Having regard to these considerations, we move on to bibliographical revisitation in order to observe the possibilities of attributing responsibility using the theory of improper omissive crimes, highlighting the limits to the position of guarantor, the panorama of causality and the extent to which leaders can be held criminally liable for conduct by their subordinates. The partial conclusions drawn from this event and its practical application, taking as their starting point a number of cases where the accusation offer was used, are then compared to the offer of complaint of the categories subject to this investigation. The work finally touches on the need to revisit these dogmatic categories, with the aim of demonstrating that a model of responsibility that considers only the position occupied by the business leaders within the structure is unlawful in the light of criminal principles and legal provisions.

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A longa noite da repressão que desceu sobre o País, se por um lado protegeu e tornou inabordáveis à crítica todos os homens que – em qualquer posição da engrenagem administrativa – exerceram funções de comando ou gestão de bens e valores, por outro lado criou para eles uma pouco compensadora atmosfera de suspeitas e reservas morais de toda ordem. Apenas prometida de novo, embora com vigoroso enfoque de sinceridade, a tão esperada distensão, os tênues clarões da alvorada democrática, vislumbrados nos distantes e esfumaçados horizontes onde se cruzam tendências

contraditórias, surgem de todos os lados – como nascem da terra molhada as miríades de sementes selvagens que esperavam o momento fecundante de germinação – denúncias, queixas, delações, que aumentam de proporção na sombra em que jaziam os fatos, como aqueles fantasmas folclóricos que surgem, crescem, se avolumam, ficam gigantes e à aproximação se esfumam em nada... é o zumbi. E este processo é um zumbi.

Hélio Mamede de Freitas Galvão, meu bisavô, em introdução da Defesa Prévia de um dirigente, a quem se imputava o delito por mera posição. Natal, setembro de 19751.

1 Defesa prévia, Alegações finais e Habeas Corpus publicadas em GALVÃO, Hélio Mamede de Freitas; GALVÃO, José Arno. Responsabilidade penal de diretores de sociedade anônima: Caso BDRN. Natal: [s.n.], 1976.

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SUMÁRIO

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS ... 12

2 A CRIMINALIDADE ECONÔMICA: MUDANÇA DE PARADIGMA. ... 17

2.1 O subgrupo da Criminalidade Econômica de Empresa e o “espírito criminal de grupo” ... 25

2.2 Imputação individual em organizações descentralizadas: o domínio do fato de Claus Roxin, a experiência brasileira no Mensalão e os problemas da delegação e divisão de tarefas ... 29

2.3 Síntese intermediária ... 39

3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS DIRIGENTES DE EMPRESA POR OMISSÃO IMPRÓPRIA ... 41

3.1 Critérios limitativos a uma posição de garantidor ... 46

3.2 Panorama da causalidade na imputação por crimes omissivos impróprios e as omissões simultâneas e paralelas ... 58

3.3 Síntese intermediária ... 70

4 ANÁLISE DAS DISTORÇÕES NA IMPUTAÇÃO DE DIRIGENTES POR CRIMINALIDADE ECONÔMICA DE EMPRESA: PROBLEMAS PRÁTICOS ... 73

4.1 Situação A – Responsabilidade de dirigentes de empresa por meio do domínio do fato e “aparatos organizados de poder” ... 77

4.2 Situação B – Responsabilidade por omissão imprópria fundada em mera posição... 85

4.3 Situação C – Responsabilidade por fatos praticados por subordinados no contexto empresarial ... 90

4.4 Síntese intermediária ... 94

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 96

6 REFERÊNCIAS ... 100

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1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

O interesse midiático sobre o poder punitivo o torna, não raro, terreno fértil para a espetacularização. A publicidade do processo, imprescindível em um Estado de Direito, convive com os olhares não apenas das partes, mas das esferas políticas e da opinião pública, situando os operadores desse sistema em uma complexa relação.

De um lado, nos julgamentos penais, os conceitos e garantias impõem limites à pretensão acusatória, enquanto de outro, enfrentam uma sociedade que se pauta pelo medo e pela insegurança, reproduzindo um discurso emergencial. A esse discurso não interessam garantias fundamentais, marcos teóricos para imputação, standards probatórios: o que não se pode é deixar de aplicar a lei e condenar.

Volátil por essência, a vontade pública modifica, também, os alvos de seu raciocínio condenatório. O fim da impunidade como demanda popular, se antes se referia apenas à cifra negra dos crimes violentos ou à perseguição de grupos marginalizados, no panorama atual, repercute nas classes outrora imunizadas, detentoras do poder econômico e político.

No caso brasileiro, o “Mensalão” (Ação Penal 470/STF) inaugura, ao menos se considerado o impacto nacional, a ascensão de uma responsabilidade penal direcionada às mais altas classes sociais, o que se perpetua, no atual momento, por meio da “Operação Lava Jato”. A dogmática, no entanto, parece ter sido relegada a um segundo plano.

A importação de teorias do direito estrangeiro, oriundas de outros âmbitos de cultura jurídica, na ânsia de suprir as lacunas existentes no ordenamento brasileiro e atender ao clamor das ruas, fez morada na jurisprudência do país. Não se trata mais de lograr um resultado seguindo a trilha da imputação, mas de determinar essa trilha a partir do resultado que se almeja. E a criminalização dos “poderosos” parece ser, por ora, esse objetivo.

Quando o Direito cede lugar à mídia, o manejo de conceitos e noções teóricas conta menos. As importadas teorias de que se falou, portanto, aplicam-se ainda quando incompatíveis – entre si ou entre elas e os limites normativos –, e seus resultados são aterrorizantes. É nesse contexto que se insere a problemática deste estudo.

Alguns dirigentes de empresas figuram, desde o “Mensalão”, entre os acusados dessas grandes operações. Os delitos supostamente praticados referem-se, em quase totalidade, a práticas no exercício de sua atividade econômica. Afirmar a responsabilidade penal, individual e subjetiva, diante dessa circunstância, enfrenta como desafio as características típicas da organização empresarial, a exemplo da intervenção de diversos sujeitos no curso dos acontecimentos e a divisão de tarefas.

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Analisando esse ciclo, evidencia-se um distanciamento entre os que possuíam o poder de decidir e os sujeitos que, efetivamente, praticam a conduta delituosa. A solução adotada na Ação Penal 470, para simplificar o percurso rumo à autoria, deu-se com o uso da Teoria do Domínio do Fato, nos termos desenvolvidos pelo jurista alemão Claus Roxin, escolha que permanece preponderando.

Aos poucos ganha espaço, contudo, o uso dos delitos omissivos impróprios e a posição de garante como meio de atribuição de autoria, muito embora a doutrina pátria ainda apresente, nessa temática, poucas contribuições. Talvez por isso, quando visualizada em denúncias, também se valha o órgão de acusação das teorias estrangeiras. Apesar de encontrar amparo normativo no Código Penal brasileiro, trata-se de categoria controversa, pela ausência de clareza do texto legal aos seus parâmetros de imputação.

Uma reafirmação democrática da justiça penal, especialmente no campo do Direito Penal Econômico, em que se englobam as condutas aqui referidas, reclama uma análise tripla. Inicialmente, sob o viés criminológico, é preciso compreender os caminhos que conduziram a essa expansão penal; no plano dogmático, extrair suas justificativas e as possibilidades de preenchimento material dos conceitos e, antes de verificar as eventuais falhas de sua transposição ao campo prático, confrontar as opções dogmáticas disponíveis com os limites impostos pelo legislador.

O capítulo primeiro desta pesquisa propõe-se a observar a mudança de paradigma no sistema criminal da globalização, a partir de um enfoque social, no intuito de verificar de que maneira essa mudança orientou o aumento da repressão à criminalidade econômica. Bem assim, serão examinadas as características desse conjunto de ações e os pontos em que se distinguem da criminalidade clássica, para então, abordar a solução pela Teoria do Domínio do Fato e seus percalços em âmbito empresarial.

No segundo capítulo, cuida-se do estudo da omissão imprópria, com recorte em sua aplicação relacionada à imputação de dirigentes de empresa. Em uma revisitação doutrinária, serão analisados os critérios limitativos da posição de garantidor, em paralelo às possibilidades contidas no art. 13, §2º, do Código Penal, e sua harmonia com os princípios e garantias desse sistema.

Prosseguirá o mesmo capítulo com um panorama da causalidade nos delitos omissivos, demonstrando o incremento de dificuldade nessa temática quando diante de estruturas empresariais organizadas, que ocasionam problemas atípicos, como as omissões paralelas e simultâneas.

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Por fim, o derradeiro capítulo enfrenta um grupo de casos e os caminhos eleitos, em cada um deles, para a atribuição da autoria e a construção da responsabilidade penal. O marco teórico para confrontá-los, verificando os acertos ou equívocos da aplicação de cada categoria, será o resultado obtido nos capítulos imediatamente anteriores, precedendo com um exame de adequação ao ordenamento vigente.

A metodologia deste trabalho consiste na aplicação do método de abordagem dedutivo, haja vista partir das teorias que envolvem a temática em questão, e o método de procedimento predominante é o monográfico. Trata-se de uma pesquisa dos tipos exploratório e bibliográfico, baseada em fontes secundárias, como: livros de doutrina jurídica, artigos científicos, sítios eletrônicos, Constituição Federal de 1988, legislação e denúncias do Ministério Público Federal.

A ausência de uma reflexão dogmática, que também seja adequada às soluções legislativas disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, conduz às mais diversas interpretações, por vezes tortuosas.

Não se nega uma transformação na perspectiva política e criminológica, mas se verá, preliminarmente, que essas mudanças nem sempre correspondem à idoneidade do uso do Direito Penal, e tampouco bastam para fundamentar uma imputação. Distanciá-la de uma justificativa dogmático-jurídica prévia finda por situar essa responsabilidade fora do espectro legítimo.

Para trazer maior clareza à problemática, serão utilizados, no último capítulo, os casos práticos que motivaram o presente estudo: distintas denúncias, oferecidas pelo Ministério Público Federal, que se valeram de conceitos cuja adequação, no contexto em que foram aplicados, será objeto de análise neste trabalho.

Embora sejam expostos em momento último, em virtude de não se desejar, metodologicamente, a realização de um estudo de caso, cumpre desde logo apresentá-los:

A) Denúncia Samarco

Ref. Inquérito Policial nº 183/2015 SRPF/MG

Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal referente ao rompimento da barragem de Fundão, situada no município de Mariana/MG, gerenciada à época dos fatos

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pela pessoa jurídica SAMARCO MINERAÇÃO S/A. Afirma o parquet, de acordo com as investigações, que os denunciados “atuavam na condição de diretores, administradores, membros de conselhos e de órgãos técnicos, gerentes, empregados, prepostos, mandatários ou contratados da VALE, BHP e Samarco”, e que possuíam “conhecimento dos diversos problemas, falhas ou “não conformidades” operacionais”, bem como do “progressivo incremento da situação típica de risco, mesmo devendo e podendo agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão e os resultados penalmente desvalorados”, incidindo nas figuras típicas por meio de condutas omissivas.

Atribuiu-se o dever de garante, além das pessoas jurídicas VALE, BHP e SAMARCO, aos membros do Conselho de Administração da Samarco, da VALE e da BHP, aos representantes da VALE e da BHP nos Comitês de Operação e Desempenho Operacional, aos Diretores Executivos (Diretor Presidente e Diretor de Operações e Infraestrutura), aos gerentes e engenheiros da SAMARCO (Gerência Geral de Geotecnia, Gerência de Geotecnia de Barragens, Gerente Geral de Mina) e ao Engenheiro Sênior da VOGBR Recursos Hídricos e Geotecnia Ltda., totalizando 3 (três) pessoas jurídicas e 21 (vinte e uma) pessoas físicas sob a imputação de violação a deveres de garantia, nos termos do Art. 13, §2º, CP.

B) Denúncia Lula - Sítio de Atibaia

Ref. Inquérito Policial nº 5006597-38.2016.4.04.7000

Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal que, dentre outros, imputa a Luiz Inácio Lula da Silva, em razão de sua função, a prática do delito de corrupção passiva qualificada, por 3 (três) vezes, que teria se dado por meio de um esquema sob seu comando. Assevera o parquet que cabia ao denunciado a nomeação e manutenção dos ocupantes da Diretoria de Serviços e Abastecimento da Petrobras, sociedade de economia mista, em cujo mandato foram assinados contratos e aditivos “comprometidos com a geração e arrecadação de propinas” e garantindo o enriquecimento ilícito de “parlamentares dessas agremiações, de si próprio, dos detentores dos cargos diretivos da estatal e de operadores financeiros”.

Para tanto, na temática que interessa a este trabalho, valeu-se a denúncia de imputações de autoria e participação por meio da aplicação de conceitos de domínio do fato e aparatos organizados de poder, além de domínio da organização, atribuídos ao denunciado em destaque, tanto referente à estatal petroleira quanto aos atos de diretores da empresa.

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C) Denúncia IESA Óleo e Gás e construtora Queiroz Galvão

Ref. Inquérito Policial autos nº 5016060-38.2015.404.7000

Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal referente a supostos crimes de organização criminosa, cartel, fraude à licitação, corrupção ativa e lavagem de dinheiro, aos quais atribui o parquet autoria a 3 (três) executivos da IESA ÓLEO E GÁS e 5 (cinco) prepostos da construtora QUEIROZ GALVÃO.

Com relação aos executivos da IESA OLÉO E GÁS, os cargos ocupados pelos denunciados correspondiam a Diretor, Diretor de operações, Diretor Presidente e, em momento posterior, Diretor de desenvolvimento de novos negócios. Quanto à construtora QUEIROZ GALVÃO, os denunciados exerciam cargos de Diretor, Diretor subordinado, Diretor de óleo e gás, Presidente e Conselheiro da área offshore e naval da construtora.

Para a imputação das supostas condutas delituosas, utilizou-se como fundamento o

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2 A CRIMINALIDADE DE EMPRESA – MUDANÇA DE PARADIGMA

“A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um avanço. O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o discurso que está tocando agora”. (George Orwell, A Revolução dos Bichos).

Transformações marcam o nosso tempo, mas a tentativa de compreendê-las exige um olhar sistêmico. O avanço da modernidade, com a produção social de riquezas, assim como advertiu Ulrich Beck, conduz, também, à produção social de riscos2. De acordo com seu entendimento, o novo paradigma dessa sociedade, agora chamada de sociedade do risco3, coincide com a problemática da divisão de classes e da produção capitalista, presentes em “O Capital”, no qual Karl Marx assentou sua teoria sob as evidências de que essa ordem econômica, orientada pela indústria moderna, nortearia o ponto culminante de uma crise geral4.

Se é verdade que, para Karl Marx, a crise de legitimidade residia na própria formação econômica capitalista e no desenvolvimento industrial, que acarretava as “misérias modernas”5 a partir das “paixões mais violentas, mesquinhas e execráveis do coração humano, as fúrias do interesse privado”6, solucionável apenas pelo fim da sociedade capitalista, para Ulrich Beck o

desafio consiste em buscar uma via de compatibilização. Enfrenta o autor o desafio de compreender de que modo os riscos, também advindos do processo de evolução capitalista, podem ser limitados, de maneira que não criem obstáculos à própria modernização e, simultaneamente, não ultrapassem os limites do suportável7.

Decerto, as obras de Marx e Beck devem ser situadas no tempo e espaço correspondentes, mas, embora se refiram sistematicamente a épocas distintas do processo de modernização, persevera o núcleo comum: tratam das consequências do desenvolvimento técnico-econômico. A continuidade desses processos conduz, mais cedo ou mais tarde, aos conflitos sociais, sejam eles de repartição de riqueza, outrora situados no centro do problema,

2 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. Traducción de Jorge Navarro, Daniel Jiménez e M° Rosa Borras. p. 25.

3 A terminologia “sociedade do risco” ou “sociedade industrial do risco”, no contexto empregado neste trabalho, corresponde, em brevíssima síntese, à modernidade que se desprende da sociedade industrial clássica, constituindo uma nova figura. Trata-se de conceito amplamente desenvolvido por Ulrich Beck, na construção de sua teoria sociológica.

4 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. (Livro I - O processo de produção capitalista). p. 91.

5 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. (Livro I - O processo de produção capitalista). p. 78-80.

6 Ibidem. p. 80.

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sejam de repartição de riscos, a exemplo do cenário com o qual presentemente nos defrontamos8.

A irreversibilidade da globalização e suas ameaças reclamam do Estado um redimensionamento, que só será possível quando revisitados os meios para tanto. Não se pode resumir as soluções que busquem estabilidade, no contexto atual, a uma “aceitação pragmática” ou a um “pessimismo cínico”9; devem ser analisadas dentro da complexidade apresentada, para que as respostas advenham de uma elaboração estratégica. Essa conjuntura impacta também o Direito, e para o interesse maior desta pesquisa, o ramo do Direito Penal.

A legislação penal brasileira, com forte tendência à proteção do patrimônio privado e de repressão, principalmente, a condutas típicas de grupos sociais marginalizados, foi conduzida por um processo de criminalização primária10 que, enquanto criminalizava ações típicas de determinados grupos, excluía, de forma deliberada, outros sujeitos da seleção penal11. Com um

recorte que priorizou, então, a tipificação de condutas a partir da divisão de classes, com probabilidade maior de imunizar infrações típicas das classes burguesas, revela-se um dos aspectos do caráter fragmentário do Direito Penal12, pelo qual certos comportamentos jamais serão alcançados pelo sistema.

Esse fenômeno é visto, em um de seus primeiros enfoques, a partir dos estudos de Edwin Sutherland. A análise de Sutherland utilizava, como ponto gravitacional, a constatação de que o status econômico influenciava tanto na tipificação de condutas delitivas - processo de

8 BECK, ULRICH. La sociedade del riesgo. p. 27.

9 D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

10 Com o conceito de criminalização primária e secundária, neste trabalho, adota-se o sentido empregado por Ela Wiecko Castillo, correspondendo a processos de definição e seleção de sujeitos criminalizados, bens jurídicos que merecem tutela penal e comportamentos ofensivos a esses bens, dignos de repressão. A criminalização primária, assim, se fará pela produção de normas penais, enquanto a criminalização secundária se dará na aplicação dessas normas penais. Nesse sentido, CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o

sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16.06.86). 1996. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de Curso de Pós-

graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996. p. 25-26.

Ainda, Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, em ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. v. 1. p. 43.

11 Ibidem. p. 25.

12 A opção por abordar, neste momento, a ideia de fragmentariedade, em detrimento de um conceito de seletividade penal, deve-se ao fato de que a criminalização primária é processo conduzido por agências políticas, que selecionam, em regra, os bens jurídicos abarcados pela tutela penal, e embora permitam uma maior predisposição a incriminar determinados grupos, em virtude do teor desses atos e condutas proibidas, não se dirige exclusivamente a eles. A seletividade penal, que diz respeito à seleção de pessoas submetidas à coação penal, com o fim de imposição de pena, é refletida com maior intensidade na criminalização secundária, que trata efetivamente da ação punitiva sobre pessoas concretas, por intermédio de uma agência judicial.

Apesar dessas considerações, para um entendimento diverso, ver ZAFFARONI, E. Raul et al. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011. p. 45, para o qual “considera-se

natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário”.

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criminalização primária -, quanto no número de condenações criminais - via da criminalização secundária. Passou a conceituar, então, sob a terminologia white collar crime, as violações legais praticadas por pessoas de status social alto, no curso de sua ocupação, destacando que o termo se referia, principalmente, a “empresários e executivos”13. A característica primordial

para a seleção, em outras palavras, dizia respeito à classe social, e a expressão empregada pelo autor é vista como um sinônimo do que se trata como criminalidade econômica.

Parcela do grupo a que se referia Sutherland domina, ainda, o setor industrial, organizando a produção de bens em um sistema de livre concorrência. O surgimento de novas tecnologias e a busca por maior produtividade, necessários para a acumulação do capital desses indivíduos, no cenário hoje experimentado, torna o risco fator indispensável ao desenvolvimento econômico14. Nessa medida, o risco constitui, também, um referencial político, e dessa forma, situa os que o administram como destinatários de normas jurídicas limitativas e de coerção15. O contexto escapa do controle de órgãos de proteção anteriormente

suficientes, uma vez que os processos de produção passam a ser vistos como fontes potenciais de perigo16, sejam eles políticos, ambientais ou individuais.

A compreensão repercute no uso do Direito Penal como instrumento gerenciador dessas situações, implicando uma transformação dupla. Por um lado, a globalização da economia, especialmente dos fatores produtivos, amplia o fenômeno da delinquência econômica, pela extensão das lesões possíveis, ocupando um espaço antes pertencente, em maior escala, à criminalidade violenta, com repercussão corporal clara. De outro ponto, a vítima, antes individual, é substituída pela “vítima-coletivo”, “vítima-sistema” e “vítima-mercado”17.

A dinamicidade dos fenômenos econômicos, a perda de controle sobre a técnica e até mesmo as decisões equivocadas, adotadas pelos que gerenciam essas “fontes potenciais de perigo”, passam a repercutir como efeitos prejudiciais diretos ou indiretos a uma coletividade.

13 SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Traducción del inglés de Rosa del Olmo. Madrid: Ediciones La Piqueta, 1999. 339 p. p. 65.

14 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 26. 15 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 27.

16 Conforme alerta Bottini, em Crimes de Perigo Abstrato, o risco não implica que as técnicas sejam, em um primeiro momento, lesivas e prejudicias, mas o estado de risco gera uma expectativa de perigo. No mesmo sentido, Ulrich Beck: “Risks are not the same as destruction. They do not refer to damages incurred. However, risks do threaten destruction. [...] The concept of risk thus caracterizes a peculiar intermediate state between security and destruction, where the perception of threatening risks determines thought and action”. BECK, Ulrich. Risk society revisited: Theory, politics and research programmes. In: ADAM, Barbara; BECK, Ulrich; VAN LOON, Joost (Edits.). The risk society and beyond. London: Sage Publications, 2000. p. 211-229.

17 SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do Direito Penal Econômico: Fundamentos Constitucionais da Ciência Criminal Secundária. Curitiba: Juruá, 2010. p. 27.

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Configuram, em outras palavras, o risco da procedência humana como um fenômeno social estrutural18.

Esse sucedido no Direito Penal, enquanto ramo do saber que, por essa mesma razão, não pode ser estático, exige um aprimoramento de categorias, diante de resultados lesivos que se apartam da delinquência dolosa tradicional19, abalando a própria construção de conceitos que, apartados dessa problemática, aparentavam razoável consenso, a exemplo da criminalidade organizada. É o desconserto das ideologias do Direito Penal clássico, na terminologia empregada por Zaffaroni, para o que não há caminho, diante da complexidade apresentada, que não implique revisitar a própria função do Direito Penal contemporâneo, de seus elementos fundamentais e, especialmente, de seus limites formais e materiais20.

Inegavelmente, a resposta penal tem sofrido influências da dimensão subjetiva da sociedade do risco: uma ausência de domínio, socialmente sentida, do curso dos acontecimentos; uma falta de critérios decisórios que ocasiona angústia e insegurança21.

Em verdade, conforme lecionam Hassemer e Muñoz Conde, a opinião pública concebe, não raramente, o delito enquanto um mal, exsurgindo ideias de luta. Luta que reivindica, de acordo com a maior ou menor ameaça intuitivamente atribuída a cada delito, a elaboração de uma política repressiva, caracterizando um direito penal do inimigo22.

O que se notará, ao analisar delitos econômicos, é uma hipertrofia do sistema penal para, finalmente, alcançar os sujeitos dessa criminalidade23. Sujeitos que no sistema criminal, como evidenciam os já citados estudos de Sutherland e, no contexto brasileiro, com destaque especial na também referida pesquisa de Ela Wiecko Castillo, fizeram parte historicamente da “cifra dourada”24, desaparecendo das estatísticas de crimes em virtude de seu status

socioeconômico25.

18 SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 27.

19 Ibidem. p. 28.

20 D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 30.

21 A respeito da sensação social de insegurança, ver SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 32-42. 22 HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989. p. 37-40.

23 SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do Direito Penal Econômico: Fundamentos Constitucionais da Ciência Criminal Secundária. Curitiba: Juruá, 2010. p. 39.

24 CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16.06.86). 1996. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Direito, Centro de Ciências

Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996. p. 27. 25 Ibidem.

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Em termos políticos, ao analisar a tendência criminal sócio-democrática na Europa, identifica Silva Sanchez um fenômeno peculiar, que como se demonstrará neste trabalho, reflete o cenário brasileiro: em uma concepção inicial, os grupos popularmente identificados como “direita” buscavam o incremento da segurança por meio da pressão punitiva, ao passo que os rotulados de “esquerda” buscavam sua redução.

Quando assume na Europa a social-democracia, o discurso de segurança, por meio do Direito Penal, passa a integrar ambos os grupos, ao que denominou o autor de “ideologia da lei e ordem em versão de esquerda”; uma manipulação do sistema criminal como forma de transformação social, utilizando os instrumentos punitivos de maneira antigarantista, para que incidissem sobre os grupos mais poderosos.

Ao tratar de semelhante mudança de pensamento, dessa vez na da América Latina, destaca Maria Lucia Karam, discorrendo a respeito da esquerda punitiva, que o conceito de poderosos limita-se, para os que aderem a esse “histérico e irracional combate”, unicamente a uma visão dos acusados enquanto sujeitos enriquecidos26. Independe, portanto, de qualquer

poder efetivo, ou de qualquer conduta sinalizadora de que operem, concretamente, um perigo, inserindo-se na já aludida problemática da divisão de classes e da reflexividade dos riscos.

Retomando o paradoxo com Karl Marx, o fenômeno aqui tratado se traduz na inversão do discurso: essa esquerda punitiva27, farta de uma malha penal mais estreita aos marginalizados

que às classes dominantes, passa a desejar, sob protestos contra a impunidade, que os mecanismos repressores enfrentem, com severas condenações, os abusos do poder econômico28. Substituem-se os ideais de direito penal mínimo29, anteriormente defendido, pelo furor persecutório, similar ao que a distopia de George Orwell, na literatura, qualificou como “mentalidade de gramofone”30.

Acerta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho ao destacar que, “para a infelicidade de todos, está-se conseguindo o milagre da (des)razão”. Uma sociedade que, com medo, passa a integrar o coro punitivista: “Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!”. Trata-se de

26 KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.79-92, jul. 1996.

27 Ibidem. 28 Ibidem.

29 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Vários tradutores. p. 83. “O direito penal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza.”

30 ORWELL, George. A revolução dos bichos: Um conto de fadas. Tradução de Heitor Aquino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 137. “A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um avanço. O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o discurso que está tocando agora”.

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metáfora extraída de “O Senhor das Moscas”, de William Golding, para demonstrar que, mesmo de forma inconsciente, tende-se a reproduzir, após a crise, a mesma sociedade que se tinha31.

Não se nega, no sentido apontado por Pierpaolo Cruz Bottini, que as construções dogmáticas se atrelam a ideologias específicas. Agora, no entanto, “o elemento político que sustenta o preenchimento normativo dos conceitos é descortinado, deixa as entrelinhas, perde a roupagem aparentemente técnica”, surgindo como “referência necessária a materializar e preencher os elementos de referência normativa”32.

O descrédito a outras instâncias, sua falta de abrangência e uma desconfiança à Administração Pública como meio de proteção, conduz a uma ideia corriqueira de que seria o Direito Penal o “único instrumento eficaz de pedagogia político-social”, valendo-se desse sistema como um mecanismo de “civilização”. Essa concepção, repetidamente, afasta o freio da ultima ratio, como se as bases do sistema criminal e suas garantias fossem móveis, disponíveis, em todo caso, às correntes políticas dominantes, ou à neutralização do sentimento negativo, presente na opinião pública.

De um modo ou de outro, a urgência por respostas penais à criminalidade econômica, se é seguro que se funda, em partes, pela real impotência do sistema, pensado para um período histórico diverso do que se vivencia, também corresponde a uma demanda de criminalização, para solucionar a insegurança dessa sociedade do risco ou, como dito, para intentar pôr fim à “criminalidade dos poderosos”, ainda que de maneira simbólica, mas em todo caso, valendo-se de instrumentos igualmente afastados das garantias tradicionais do Direito Penal.

Em outras palavras, a lógica empregada na persecução de determinados crimes, em particular, para este trabalho, nos crimes econômicos, considera um objetivo final, tido como elogiável, mas desconsidera que a legitimação do poder estatal não se preenche por esse objetivo, senão por critérios de idoneidade dos meios empregados, necessidade e proporcionalidade33, requerendo uma justificativa em face dos princípios limitadores desse mesmo poder34.

31 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Estado de Polícia: Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!

In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: Interlocuções a partir da literatura.

Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 85-100.

32 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O paradoxo do risco e a política criminal contemporânea. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BOTTINI, Pierpaolo Cruz; PACELLI, Eugênio (Orgs.). Direito Penal Contemporâneo: Questões controvertidas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 109-134. (Série IDP). p. 129.

33 SCHUNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 77.

34 Caso contrário, ademais, se incide no “açodamento de discursos e decisões que mais encerram o condão de refletores pessoais que refletores do justo”, crítica apresentada por PEREIRA, Erick Wilson. Lei da Precipitação.

In: PEREIRA, Erick Wilson. Consciência Democrática. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Cap. 17. p. 70-72,

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Nesse universo, onde emergem discussões sobre a responsabilidade penal por ilícitos de perigo abstrato, por delitos de mera desobediência e antecipação da tutela penal35, o ilícito típico praticado por omissão é retomado, com maior relevo, enquanto técnica de tutela. Não se trata de uma categoria nova. As inquietações sobre sua aplicação e limites, e da necessária revisitação acadêmica, já eram antecipados, no país, por Tobias Barreto, desde 1879, quando desejava provar, em suas palavras, que a ideia dos delitos omissivos não era comum entre nós, mas que em virtude disso, necessitava de “abrir caminhos através das verdades feitas na academia, como pílulas de botica”36.

Ultrapassados mais de cem anos da advertência de Tobias Barreto, Heleno Cláudio Fragoso afirmava, ainda, a incerteza quanto aos princípios regentes da omissão no Direito brasileiro, ao surgimento de um dever de atuar e, de todo modo, à inadequação de que os crimes omissivos se refiram, exclusivamente, a deveres morais37.

A preocupação persiste, e não se pode admitir, para solucioná-la, a criação de um “Direito Penal do risco”, no intento único de alcançar grupos que julgam não serem alcançados pelos atuais limites do Direito Penal. Embora a criminalidade econômica acarrete um inegável custo, exige-se um Direito Penal fiel a princípios fundamentais, que salvaguarde garantias, inerentes ao próprio sistema, sob pena de pôr em risco a construção jurídico-doutrinária alcançada38.

Com o necessário reconhecimento de limites inultrapassáveis no sistema criminal clássico, não se defende a manutenção da “cifra dourada”, mas que as respostas penais se

governante, Pilatos, a “passar à história como exemplo de magistrado pusilânime e insensível”. Retome-se, aqui, a inidoneidade do “clamor público” enquanto fundamento de repressão criminal, inclusive por sua volatilidade. 35 Características que, de acordo com Winfried Hassemer, especialmente no que se refere aos delitos de perigo abstrato, marcam o “moderno direito penal”, ampliando seu âmbito de aplicação através de uma “redução dos pressupostos do castigo”. HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputacion en derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde y María del Mar Díaz Pita. Bogotá: Editorial Temis S. A., 1999. p. 24-25.

36 BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. Pg. 190:

“Eu me recordo de já ter assistido ao julgamento de um processo celebre, no qual os defensores do accusado, quasi todos tidos em conta de juristas abalisados, allegavam seriamente que a melhor prova da innocencia do reu era que, no momento do facto arguido, ele nada praticára de positivo, mas ao contrario, se distinguira pela inação; e quando se lhes oppunha que nesta mesma inação, que nesta mesma falta de um acto positivo, que no caso teria servido para obstar o morticínio (trata-vase de tal delicto), consistia o crime questionado, os bons juristas riam-se com emphase, como diante de uma extravagância. Elles não comprehendiam a solução do problema, senão envolto nesta velha casca: A mandou por B, C, D, E, matar F? [...] Tudo isso dirige-se a um fim: provar que a ideia dos delictos omissivos não é commum entre nós, e, como tal, necessita de abrir caminho através das verdades feitas na academia, como pílulas na botica.”

37 FRAGOSO, Heleno Claudio. Crimes omissivos no Direito Brasileiro. Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, p. 41-47, jan. 1982.

38 D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

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sujeitem, em todo caso, a sua própria limitação. É preciso aceitá-la, para que não se esvaziem as “regras do jogo”, a partir da criação de um sistema paralelo, unicamente para afastar ou flexibilizar os limites impostos à intervenção estatal39.

Desastrosamente, essa criação paralela, na temática dos crimes omissivos impróprios e, com mais força, quando empregada junto aos delitos econômicos, tem-se verificado pela via da criminalização secundária40. O estudo dessa responsabilidade por omissão envolve, conforme leciona Juarez Tavares, “questões relativas ao adequado e ao inadequado, ao simbólico e ao intuitivo”41, razão pela qual sua utilização, sem parâmetros fixados, tende a se distanciar da face

liberal e do mínimo ético, tornando-se meio de controle para problemas sociais, características compartilhadas com o Direito Penal simbólico42.

Em nossa legislação criminal, os delitos de omissão imprópria se associam a normas proibitivas, infringidas por um sujeito que ocupava, na data do fato, posição de garantidor de um dado bem jurídico, razão pela qual estaria obrigado a impedir o resultado43. Por ser forma de realização típica, submetida às regras do sistema criminal e seus princípios, a utilização do Direito Penal será possível apenas quando se verificar, em um primeiro momento, a existência de fato típico relevante (desvalor da ação), possível de ser atribuído a um indivíduo concreto, em respeito às fronteiras da culpabilidade e da proporcionalidade.

Dentro do largo espectro do Direito Penal Econômico, o subgrupo da criminalidade de empresa possui particularidades que dificultam sensivelmente essa atribuição. É que o eventual delito, realizado no interior de empresas, enfrenta problemas que, escapando das fronteiras desse Direito, referem-se à própria estruturação empresarial; aspectos como a divisão de tarefas, as organizações hierárquicas e a interferência de um sem-número de sujeitos na cadeia causal. Na premissa de que a atividade dos atores envolvidos no processo de criminalização secundária – especialmente os órgãos de acusação e o Poder Judiciário - não se justifica

39 A respeito do assunto, Silva Sanchez, A expansão, p. 73: “Pues ya proliferan las voces de quienes admiten la necesidad de modificar, al menos en ciertos casos, las <<reglas del juego>>. Em ello influye, sin duda, la constatación de la limitada capacidad del Derecho penal clásico de base liberal (com sus princípios de taxatividad, imputación individual, presunción de inocencia, etc.) para combatir fenómenos de macrocriminalidad. Pero quizá lo debido sea entonces asumir tales limitaciones”.

40 BARATTA, Alessandro. Criminologia critica y critica del derecho penal: Introduccion a la sociologia juridico penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004. p. 95, aponta a criminalização secundária como o processo de aplicação das regras gerais, enquanto a criminalização primária, já referenciada neste trabalho, refere-se à elaboração de tais regras, isto é, ao processo imediatamente anterior, de penalização e despenalização. 41 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 28.

42 Hassemer, Winfried, «Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos», en Varios Autores «Pena y Estado», Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, pg. 4-5. “No se trata sólo de la aplicación instrumental del Derecho penal y de la justicia penal sino (tras ellos) de objetivos preventivos especiales y generales: transmitir al condenado un sentimiento de responsabilidad, proteger la conciencia moral colectiva y asentar el juicio social ético; se trata de la confirmación del Derecho y de la observación”.

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legitimamente quando afastada de derivações dogmáticas e de limites normativos, buscando sua salvação em uma jurisprudência casuística44, que impede, pelo distanciamento de limitações e categorias claras, o próprio exercício do direito de defesa45, é que a questão da criminalidade econômica necessita ser analisada.

Trata-se, mais do que de uma simples mudança de paradigma, que transporta a discussão sobre crimes puramente comissivos, predominantemente dolosos, à imputação cada vez mais alargada de modalidades omissivas, da retomada, nesse cenário, de métodos tipicamente inquisitivos46, buscando maior eficiência das leis por meio da ação repressiva do Estado, e regressando a ideias de primazia da tutela social em detrimento de garantias individuais47.

2.1 O subgrupo da Criminalidade Econômica de Empresa e o “espírito criminal de grupo”

A partir das considerações feitas, é possível observar a criminalidade econômica em diferentes frentes. Por sua amplitude, quando tomada de forma genérica, corresponde a um problema inicial, do qual podem surgir diversos subgrupos. É que o termo se refere a determinados tipos delitivos, com características e particularidades semelhantes, em uma noção de “familiaridade”48.

Alguns desses tipos, contudo, compartilham entre si características ainda mais específicas, que os diferenciam dentro do núcleo genérico, sobrevindo os subgrupos. Por isso mesmo, sua abordagem gera um leque de problemas, inalcançáveis se intentada uma solução comum, que sirva para todo e qualquer delito econômico, sem considerar os inconvenientes dessas condutas delitivas. É o caso, por exemplo, do ocupational crime e corporate crime.

44 SCHUNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luis Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 160.

45 A respeito do direito de defesa, cumpre esclarecer que não se refere à mera defesa formal, satisfeita pela oportunidade de manifestação nos atos do processo, mas do direito a uma defesa efetiva e eficiente, que só é possível quando os parâmetros do jogo processual são claros, quando as categorias são previamente definidas, inseridas em limites formais e materiais. Sobre a diferenciação, em âmbito processual penal, ver SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações. 3. ed. Natal: Owl, 2019. p. 60.

46 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Vários tradutores. p. 80-81. Ao caracterizar os modelos de direito penal autoritário, trata como ponto comum entre os sistemas subjetivistas a privação de referências empíricas, construídas as figuras legais do delito predominantemente a partir da “subjetividade desviada do réu”, alegando o Autor que o mesmo esquema pode ser cumprido pela via judicial, a partir do abuso jurisprudencial das macroinstituições, inclusive com base na colocação social e política do acusado.

47 Similar ao que se observa no perfil antidemocrático do Código de Processo Penal de 1941. Ver SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações. 3. ed. Natal: Owl, 2019. p. 38.

48 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 27.

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No primeiro agrupamento, dos delitos ocupacionais, estaremos diante de situações nas quais o decisivo não é a posição social do sujeito infrator, mas que a conduta delitiva tenha se dado no transcurso de uma atividade determinada. Já na segunda situação, de delitos corporativos, o diferencial consiste em a prática delituosa estar inserida numa organização, podendo sujeitar-se a responsabilidades de caráter distinto (comumente, responsabilidade penal e administrativa)49.

Essa última hipótese, de delitos corporativos, praticados por um grupo de pessoas sob hierarquia ou em divisão de funções, assim posicionadas, originalmente, não para o cometimento de delitos, mas para fins de atuação empresarial, é a perspectiva que mais interessa a este estudo.

Esse modelo é trabalhado sob a noção de criminalidade de empresa50 ou criminalidade econômica de empresa, determinada pelos mais diversos fatores, como a associação de pessoas sob um código de valores empresariais e a busca de um objetivo comum, que se sobrepõe aos objetivos dos sujeitos individualmente considerados.

Assim, a razão para o surgimento de condutas delitivas, nessas estruturas, diz respeito também a fatores ambientais, por meio dos laços de solidariedade entre os integrantes. Essa forma de conduta é denominada de “espírito criminal de grupo”51, bastante similar às construções de Sigmund Freud, na psicanálise, sobre a psique coletiva.

Para ele, as massas, enquanto sinônimo de indivíduos postos em situação de coletividade, são capazes de “atos elevados de renúncia, altruísmo e dedicação a um ideal”, sob a influência da sugestão, mas podem, também por isso, alterar seu comportamento ético tanto acima quanto muito abaixo do que se esperaria de cada um52.

Adán Nieto Martín destaca que, no âmbito das empresas, esse comportamento pode ser racionalizado até mesmo por usos linguísticos compartilhados entre os membros de sua

49 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas

jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad

Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 63.

50 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 35.

51 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 64.

52 FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&M, 2019. 176 p. p. 52.

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estrutura, atribuindo às condutas delituosas nomenclaturas de maior aceitação geral, como “economia fiscal”, “contabilidade criativa”, dentre outros53.

A postura comportamental adotada pelos dirigentes dessa estrutura, assim como a imagem ética que projetam na empresa, presta-se a criar uma cultura da organização. Quanto pior seja essa cultura corporativa, mais o sistema de benefícios, incluindo a busca por promoção e remuneração maiores, será direcionado pela adoção de determinadas condutas negativas. A título ilustrativo, Nieto Martin menciona a repetição de argumentos favoráveis a práticas delituosas, como afirmar que “leis são um estorvo para os negócios”, fazendo com que os demais membros da corporação atrelem o sucesso de seu trabalho a ações que coincidam com esses ideais.

A sensação de pertencimento e de integração ao local, o maior prestígio e a autoafirmação podem facilitar tanto a adesão quanto a lealdade a tais apelos criminógenos54,

passando a incorporar no indivíduo pautas comuns, relacionadas a valores do grupo. É que a empresa, tida como a congregação de esforços em prol de um objetivo, conforme definição de Faria Costa, não se limita a expressar uma realidade social, mas “se racionaliza através de um conceito de manifesto valor instrumental”55.

A competitividade e o livre mercado, juntamente com a busca por benefícios a curto prazo, exigem dos administradores uma tomada de posição estratégica. Essa atividade, que deve ser limitada por balizas que assegurem o Estado Democrático de Direito56, quando em desequilíbrio, tende a afetar bens jurídicos de ordem coletiva, impossibilitando a individualização da vítima57 e “desumanizando” os efeitos de uma eventual prática delituosa.

53 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 64. Em trabalho no mesmo sentido, BARAK, Gregg. Unchecked coporate power: why the crimes of multinational corporations are routinized away and what we can do about it. London: Routledge, 2017. 54 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 39.

55 COSTA, José de Faria. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos: ou uma reflexão sobre a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 2, n. 4, p. 537-559, 1998.

56 CARVALHO, Ivan Lira de. A empresa e o meio ambiente. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, n. 25, p. 37-61, abr./jun. 1999. p. 39.

57 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 39.

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Essas características, se de fato se prestarem a uma concepção da empresa como ambiente propício ao surgimento de um delito estrutural58, por meio do dito “espírito criminal de grupo”, embora tenham relevância no plano criminológico, não servem para racionalizar psicologicamente a pena59. Ao contrário, sua verificação destaca parte da problemática à imputação de responsabilidade individual em uma estrutura organizada e complexa.

O debate sobre alternativas sancionatórias, diante dessa constatação e motivado, muitas vezes, pelo discurso de “combate à criminalidade”, tem retratado uma despreocupação com as bases do Direito Penal e sua inidoneidade para a resolução de problemas sistêmicos60.

Paralelamente às discussões acerca de uma responsabilidade da pessoa jurídica, enquanto ente coletivo, uma tendência a responsabilizar em primeira linha os órgãos de direção empresarial tem se verificado no plano internacional61. Exemplo se observa no art. 28 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em especial na alínea “b”, com a previsão de responsabilidade do superior hierárquico pelos crimes de competência do Tribunal, quando cometidos por subordinados sob sua autoridade, em virtude de não ter exercido sobre esse um “controle apropriado”.

A concepção abarcada pelo supracitado artigo se traduz na ideia de que, em determinados contextos, a lesão ao bem jurídico, realizada por determinada pessoa física, pode ser imputada a outrem, em virtude de sua posição hierárquica. Necessário saber, portanto, em que ponto ou sob quais condições esse dirigente sofrerá a persecução criminal62.

Assevera Schunemann que a responsabilidade penal “do dono do negócio” tem sido adotada pela jurisprudência e pela doutrina majoritária, mas seus fundamentos dogmáticos

58 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 66;

COSTA, José de Faria. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos: ou uma reflexão sobre a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 2, n. 4, p. 537-559, 1998.

59 TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas de segurança pública. Ciências Penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 1, n. 1. p. 127-142, jan./jun. 2004. p. 18. 60 COSTA, Helena Regina Lobo da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um panorama sobre sua aplicação no direito brasileiro. In: IBCCRIM et al. IBCCRIM 25 anos. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017. p. 106.

61 SOUSA, Susana Aires de. A responsabilidade criminal do dirigente: algumas considerações acerca da autoria e comparticipação no contexto empresarial. In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA, Suzana Aires de (Orgs.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Dias de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. v. 2. (Studia Iuridica, 99. Ad Honorem, 5). p. 1007.

62 SCHUNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 531.

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permanecem insuficientes e pouco claros63. É que a complexidade da estrutura empresarial, reconhecida pela descentralização das ações e dos processos decisórios, lança dúvidas sobre a afirmativa de que pertence aos órgãos de direção o efetivo domínio organizacional, em todo caso.

Para evitar que a discussão seja reduzida a uma responsabilidade baseada, unicamente, em um mero caráter funcional, é imprescindível a análises dos aspectos objetivos dessa estrutura, verificando de que modo impactam a imputação penal. Exige-se ainda, no cenário brasileiro, um olhar sobre a (in)adequação de aplicar à jurisprudência construções importadas, como as teorias do domínio do fato e da cegueira deliberada64, enquanto forma de ultrapassar limites normativos e garantir maior efetividade ao sistema.

É o que se propõe a fazer este trabalho, tendo como objeto de análise a imputação em autoria dolosa e os dilemas de sua verificação nesses estabelecimentos.

2.2 Imputação individual em organizações descentralizadas: o domínio do fato de Claus Roxin, a experiência brasileira no Mensalão e os problemas da delegação e divisão de tarefas

Para compreender a imputação de autoria em estruturas complexas faz-se necessário, desde o início, demonstrar seus elementos mínimos enquanto categoria dogmática. Apenas com esse esclarecimento se pode trabalhar a participação, uma vez que corresponde a conceito de referência, vazio sem a existência de um autor principal65.

A distinção fundamental entre ambas as categorias – autoria e participação – se dá, nos delitos comuns comissivos dolosos, fundamentalmente em virtude de um critério: o domínio do fato. Partindo da concepção de Claus Roxin para uma definição mais adequada ao estado atual, considera-se autor o sujeito que: a) pessoalmente realize a ação típica; b) execute o fato por intermédio de outro, cuja vontade não seja livre, ou que não conheça o sentido objetivo da ação de seu comportamento ou o compreenda em menor medida que “o sujeito de trás”, ou que

63 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 536.

64 Em virtude do recorte dado a este trabalho, a temática da cegueira deliberada não será abordada. Para melhor compreender sua aplicação prática na jurisprudência brasileira, ver SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, ago. 2016.

65 CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 433.

Referências

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