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Perspetiva histórica sobre a educação e o movimento de defesa dos animais não humanos na transição do Século XIX para o Século XX

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Perspetiva Histórica Sobre a Educação e

o Movimento de Defesa dos Animais não

Humanos na Transição do Século XIX

para o Século XX

Alexandra Amaro e Margarida Louro Felgueiras

Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto - am.amaro1@gmail.com | margalf@gmail.com

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Resumo

As abordagens filosóficas conservacionista e protecionista atribuem o surgimento de inquietações sociais sobre os maus tratos infligidos aos animais não humanos em diversos países do ocidente, na transição do século XIX para o século XX. Este movimento social desafiou a visão hegemónica antropocêntrica, obteve a criação das primeiras áreas protegidas e organizou-se em associações de cidadãos, inquietos com o sofrimento animal, orientadas para a proteção, prestação de assistência e defesa dos animais não humanos, procurando melhorar as condições em que eram mantidos, pela implementação de várias medidas: aprovar leis de proteção animal, desenvolver projetos para educar a população em geral e sensibilizar as crianças, ajudar a suprimir os maus tratos e promover a adoção de boas práticas na relação quotidiana com os referidos seres vivos. Este trabalho pretende tornar visível o processo histórico de organização de associações de defesa dos animais em Portugal, seus objetivos e ação educativa, analisar algumas medidas propostas e perspetivar historicamente os debates atuais sobre educação ambiental e a proteção animal. A pesquisa teve por base o Zoophilo, os estatutos da Sociedade Protectora dos Animais e da Liga Nacional de Defesa dos Animais, os pareceres e o projeto de lei por ela apresentado à Assembleia Constituinte de 1910.

Palavras-chave: a educação para a defesa dos animais não humanos, história das associações de proteção dos animais em Portugal, educação ambiental e proteção animal

Abstract

Education and the animal protection movement at the turn of the 19th century

The conservationist and protectionist philosophy approaches attribute the growth of social concern about ill-treatment inflicted on animals in various western countries to the turn of the 19th century. This social movement challenged the hegemonic, anthropocentric view, achieved the first protected areas and was organized into citizen associations concerned about the suffering of animals and working for the protection, provision of assistance and the defense of animals while seeking to improve their living conditions by the implementation of a range of measures: the passing of animal protection laws, the promotion of projects to educate the population in general and promote the awareness of children, helping to stamp-out ill-treatment and promoting the adoption of good practice in day-to-day relations with these sentient creatures. These efforts sought to highlight the historic process of the organization of animal protection associations in Portugal, their objectives and educational activities, analyzing certain measures proposed and bringing a historical perspective to the ongoing debates on environmental education and animal protection. Research was based on Zoophilo, the articles of the Sociedade Protectora dos Animais (Animal Protection Society) and the Liga Nacional de Defesa dos Animais (National Animal Defence League), the reports and the draft law submitted to the 1910 Constituent Assembly.

Key words: education for the protection of animals, history of the animal protection associations in Portugal, environmental education and animal protection.

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O Contexto Filosófico Da Emergência Do Movimento De Proteção Dos Animais

No final do século XIX encontravam-se bem definidas duas correntes de pensamento sobre a relação do ser humano com o mundo natural e os seus elementos.

Gifford Pinchot, primeiro chefe dos Serviços Florestais americanos liderou o movimento conservacionista, que defendia uma gestão racional e eficiente dos recursos naturais e a utilização das terras selvagens de uma forma produtiva, promovendo o desenvolvimento económico e o bem-estar social, o que proporcionaria a longo prazo, a prosperidade das nações e a perpetuação dos recursos para as gerações futuras (Lyndgaard, 2009:244 e Magoc, 2009). Neste âmbito, o interesse económico justificaria o domínio da natureza, embora a perceção do carácter não renovável de alguns recursos do planeta afastava a ideia de uma utilização desregrada dos mesmos (Almeida, 2007). É nesta perspetiva que se podem encontrar as bases para o atual conceito de desenvolvimento sustentável e para uma visão antropocêntrica de teor economicista.

Proveniente do romantismo europeu, o movimento preservacionista associado a John Muir sustentava que determinadas regiões selvagens deveriam permanecer intocadas e com um mínimo de intervenção humana, reconhecendo assim o valor intrínseco do mundo natural, à margem dos interesses económicos (Lynddgaard, 2009). Esta visão holística da natureza, que incorpora a atribuição de valor intrínseco aos ecossistemas e o reconhecimento de uma profunda interdependência entre todos os elementos naturais, aproxima a conceção preservacionista do atual paradigma ecocêntrico. Estas ideias traduziram-se no desenvolvimento de campanhas para a criação de reservas florestais e parques nacionais, dando início ao movimento preservacionista americano, que mais tarde se alargou a outros países (Lynddgaard, 2009 e Magoc, 2009).

Paralelamente a estas correntes filosóficas, o século XIX ficou igualmente marcado pela emergência das primeiras associações de cidadãos preocupados com o bem-estar e o sofrimento animal, na senda da conceção utilitarista defendida por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, na passagem para o século XIX. Esta visão, centrada no animal não humano e na sua senciência, insere-se na atual abordagem biocêntrica, segundo a qual o ser humano não é o único objeto de consideração moral, uma vez que os seres vivos possuem valor por si mesmos, independentemente da sua utilidade sob o ponto de vista humano, devendo integrar deste modo a comunidade moral (Attfield, 2009).

Embora a industrialização fosse uma realidade em vários países ocidentais, no século XIX, a mecanização dos veículos ainda não era uma prática corrente, pelo que toda a sociedade se estruturava forçosamente a partir da força animal, quer a nível dos processos agrícolas, quer no transporte de bens e pessoas. A estes animais de tração era exigido um trabalho e um esforço muito superior às suas capacidades físicas, sendo muitas vezes mantidos em condições impróprias e tratados pelos seus proprietários com violência. O excesso de carga, a permanência durante longos períodos de tempo a temperaturas excessivas, a carência alimentar e hídrica por largas horas correspondiam a situações correntes no quotidiano urbano e rural. Nos casos em que os animais se vergavam perante as duras condições de trabalho, com frequência eram estimulados a retornar às suas funções com o auxílio de chicotes e aguilhões, abrindo feridas na pele e na musculatura, que não eram sujeitas a qualquer tipo de tratamento. A estas situações aliavam-se ainda, a prática da vivisseção, a morte lenta de animais destinados à alimentação humana e desportos sangrentos, como por exemplo a luta de cães, a bull-baiting e a bear-baitingi. Este era o contexto dos costumes da sociedade ocidental no século XIX em relação aos animais, de um modo geral, uma sociedade em busca de progresso, de desenvolvimento económico e científico, à custa do sofrimento e da morte de

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inúmeros animais não humanos (Zoophilo, 1877; Sociedade Protetora dos Animais do Porto, 1909 e1911 e www.animalrightshistory.org).

Na tentativa de alterar estas rotinas, consideradas degradantes da natureza e da moral humana, pela habituação à crueldade que promovia, cidadãos e associações de defesa dos animais procuraram atuar em duas áreas distintas: na aprovação e cumprimento de legislação orientada para a proteção dos animais não humanos e ao mesmo tempo, através de ações educativas, despertar a consciência das pessoas para os inúmeros atos de crueldade quotidianamente cometidos, em especial no que se refere aos animais domésticos (Sociedade Protetora dos Animais do Porto, 1909 e 1911;

www.

animalrightshistory

.org

).

A Emergência do Movimento de Proteção dos Animais em Portugal

O contexto português do final do século XIX era muito semelhante ao acima descrito. À população era permitido assistir à morte dos animais nos matadouros; nos bairros urbanos do Porto era usual a captura de ratos e gatos, que regados com água raz, era-lhes depois ateado fogo, sob o olhar deleitado de grupos de pessoas que se juntavam para apreciar o espetáculo. Existem mesmo relatos de situações correntes em que os animais eram esfolados vivos e as aves depenadas ainda com vida (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909). No entanto, o que mais de destacava no contexto urbano português eram os carros de bois de eixo móvel, utilizados no transporte de mercadorias e que conferiam às cidades, em especial de Lisboa e Porto um aspeto rural, considerado estranho aos olhos dos visitantes de outros países (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909).

Este primitivo sistema de transporte carecia de travão, o que associado ao inadequado carregamento de veículos, sem consideração pelo excesso de carga, distribuição da mesma ou pela resistência ao atrito tornava o percurso pelas ruas inclinadas das cidades, extremamente atroz e pungente para os animais, verificando-se um quase estrangulamento dos mesmos. O som do chicote fazia-se ouvir assiduamente e os animais eram estimulados a continuar pelo uso do aguilhão e pela aplicação no seu corpo de diversos objetos pontiagudos, muitas vezes sobre feridas expostas, onde se realizavam frequentes investidas. Como consequência destas práticas, os animais que percorriam as ruas das cidades apareciam suados, ensanguentados, feridos, sedentos e muitas vezes magros, o que contribuiu largamente para a construção, entre as nações estrangeiras, da representação de um povo inculto, de bárbaros costumes (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909).

Dado que “(…)todos os povos consideram que os pobres seres, zoologicamente a nós inferiores, merecem ser defendidos da malvadez humana que sobre elles criminosamente se exerce(…)” (in

Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911) e à semelhança do que já tinha ocorrido noutros países, um conjunto de cidadãos portugueses e ingleses, insatisfeitos com o panorama português descrito, constituíram em Lisboa, no ano de 1875, a Sociedade Protetora dos Animais, à qual se sucedeu a sua congénere portuense, em 1878 (Zoophilo, 1877 e Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909).

Esta associação de defesa dos animais não humanos veio preencher uma importante lacuna na sociedade portuguesa da época, com o intuito de “(…)moralizar o povo, chamar-lhe, sem estrondo mas com perseverança, a attenção para coisas em que elle nunca attentára; vinha suavisar-lhe a indole” (inZoophilo, 1877), propondo novas formas de servir um povo que se quer civilizado,

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“(…)proteger os irracionaes (…), inocular na puenicia tendencias compassivas para com

entes sensitivos como ella (…) reconhecer direitos relativos ao irracional, como nós filho

da terra, habitante como nós do mesmo planeta, respirando o mesmo ar, e aquecido

do mesmo sol; tudo isso (…) é servir a Deus e aos homens, é acompanhar os que mais

acertadamente caminham para o bem geral, para o progresso, para a liberdade” (in

Zoophilo, 1877).

Os fundadores da Sociedade Protetora dos Animais largamente apoiados pelos seus congéneres ingleses defendiam que “(…)supprimir os tratos consuetudinarios a essas victimas necessárias, é abreviar-lhes as agonias, é deixar de fazer por uso e costume das angustias de um ente indefezo, a quem tudo falta, visto faltar a luz da razão (inZoophilo, 1877) e ainda,

“(…)minorar as sevecias inuteis contra os animaes prestadios, melhorar as condições

da sua, forçadamente curta e precaria existência entre nós, seus senhores naturaes, e

em summa, e principalmente, por meio do irracional civilisar o homem; essa é a nossa

questão; a isso tendem os nossos esforsos (…) levantar o seu nível moral” (in Zoophilo,

1877).

A Ação da Sociedade Protetora dos Animais

Na consecução das suas intenções, a Sociedade Protetora dos Animais definiu um conjunto apreciável e diversificado de medidas destinadas à sensibilização e consciencialização da população para a forma cruel e desumana concedida ao tratamento de muitos animais não humanos. A dinamização de concursos de natureza diversa, a publicação de um periódico, a manutenção de uma biblioteca, a fundação do Museu de Instrumentos de Tortura de Animais e a criação de infra-estruturas destinadas à melhoria do bem-estar animal correspondem a algumas das mais notórias estratégias desenvolvidas nos anos de transição para o século XX. De salientar que a implementação de muitas destas medidas assentou numa elevada consideração e confiança no trabalho desenvolvido pelo professor de instrução primária, como se pode verificar na afirmação,

“(…)mais proficuo e salutar do que castigar os martirizadores de animaes com as

dispozições repressivas da lei, é trabalhar por tornar esta inútil e desnecessária pela

cultura dos sentimentos afectuosos no homem, e esse trabalho, enquanto os paes

forem o que são, incumbe naturalmente ao professor primário(….)” (in Zoophilo, 1918).

Medidas no domínio da educação humanitária

Norteada pela convição da necessidade de uma “(…)educação moral da mocidade e, consequentemente, aperfeiçoamento dos costumes públicos(…)” (in Zoophilo, 1912e), a Sociedade Protetora dos Animais promoveu no ano de 1912, o primeiro concurso inter-escolar destinado a todos os alunos que frequentavam as escolas públicas e privadas do território português. As provas selecionadas, que consistiam em textos elaborados pelos alunos sobre as boas práticas relativas aos animais não humanos, foram publicadas no periódico da associação ao longo de diversos números (Zoophilo, 1912e). Dando continuidade a este importante trabalho decorreu em 1914, o segundo concurso inter-escolar (Zoophilo, 1914a).

O tratamento apropriado dos animais domésticos era incentivado na população em geral, mediante a promoção, por parte desta associação em colaboração com a Câmara Municipal de

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Lisboa, de concursos destinados aos condutores de gado de tração. Neste domínio e com o objetivo de,

“(…)melhorar a condição e o tratamento dos cavallos de vehiculos; incitar os

conductores a tomar um interesse compassivo pelos animaes confiados à sua direcção;

e fomentar o emprego de cavallos de tiro corpulentos e poderosos, os mais

convenientes para o serviço do trafico de mercadorias e de passageiro nas grandes

cidades” (in Zoophilo, 1911b).

eram atribuídos prémios anuais aos condutores que dessem provas de bom trato dos seus animais tendo, posteriormente, sido criado um concurso de cavalos de carroça, no qual se premiavam os animais que apresentassem as melhores condições de robustez e refletissem um bom tratamento por parte dos seus proprietários (Zoophilo, 1911a e 1912d).

O Boletim da Sociedade Protectora dos Animaes foi editado pela primeira vez em 1876, com a designação de Zoophilo a partir de 1877. Este periódico veio colmatar uma omissão na sociedade portuguesa da época, a nível da divulgação e consciencialização da população para a importância da implementação de boas práticas no tratamento daqueles seres. Notícias de natureza muito diversa eram veiculdas por aquele órgão de comunicação, desde a publicação das atividades desenvolvidas pela associação, incluindo de algumas congéneres estrangeiras até à publicação de poemas e histórias, umas de ficção e outras verídicas, sobre as capacidades e as emoções animais. No sentido de desconstruir as representações sociais associadas a alguns animais, como por exemplo os morcegos, surgia com alguma regularidade uma rubrica semanal denominada “Animais caluniados”. De salientar, ainda, a publicação de diversos artigos contendo conselhos, especificamente orientados para o tratamento dos animais de tração, durante a sua labuta quotidiana (Zoophilo, 1911a e 1912f). Na mesma linha de pensamento eram efusivamente publicadas todas as recentes invenções destinadas a auxiliar o trabalho dos animais, proporcionando uma redução do esforço desenvolvido pelos mesmos, como por exemplo, carroças e tirantes elásticos (Zoophilo, 1911b e1914a).

Os instrumentos de tortura ilegais aplicados no corpo dos animais de tração, para incentivar de uma forma bárbara e penosa a continuação do seu trabalho quotidiano, eram com alguma regularidade objeto de apreensão por parte dos membros desta sociedade e dos agentes da autoridade. Estes objectos, testemunho da fértil e cruel imaginação popular, foram progressivamente ampliando a coleção da Sociedade Protetora dos Animais, a qual em 1909 possuía já cerca de 500 exemplares, muitos deles contendo ainda vestígios de sangue e pele (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909). No ano de 1911, esta associação decidiu organizá-los e facultar o seu acesso aos cidadãos, mediante a criação do Museu de Instrumentos de Tortura de Animais, sediado nas instalações da referida sociedade, em Lisboa (Zoophilo, 1911a e 1912c). Durante a sua existência, este museu recebeu inúmeros visitantes de todas as faixas etárias (Zoophilo, 1911a), incluindo alunos provenientes de diversos estabelecimentos de ensino do país, contribuindo fortemente para “(…)incutir no espírito das creanças, como tão necessário é, o amor pelos animaes e a repulsa que causam os bárbaros que maltratam esses nossos dedicados e fidelissimos companheiros e auxiliares na travessia da vida” (inZoophilo, 1912d).

Propostas Legislativas

A nível legislativo, os primeiros anos da República foram marcados pela promulgação da lei da família a par com a lei de proteção das crianças. Neste âmbito e com o “(…)intuito patriotico de apagar do espírito dos estrangeiros a ideia desfavoravel que de nós ficam fazendo, ao presencearem

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no nosso paiz constantes scenas de requintada selvageria(…)” ( in Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911), a Sociedade Protetora dos Animais do Porto pede a promulgação de uma lei de proteção dos animais não humanos mais eficaz e humanitária. Na época, o tratamento daqueles seres encontrava-se regulamentado pelo Código de Posturas Municipais, pelo Regulamento Geral de Saúde Pecuária, pelo Decreto da Organização dos Serviços do Fomento Comercial e ainda pelo Código Penal (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909), que se revelavam claramente insuficientes na repressão da crueldade humana. Por exemplo, as disposições constantes no Código Penal consideravam crime os maus tratos particados contra animais domésticos, no entanto eram considerados como delitos de ofensa ao direito de propriedade, deixando completamente desprotegidos os animais sem dono e aqueles que eram vítimas de más práticas por parte do seu proprietário (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911).

A iniciativa foi assim justificada: “Com o seu trabalho, a Sociedade tem por fim concorrer para que o Código Penal seja dotado com uma lei semelhante á de todos os paizes civilisados do velho e do novo mundo, onde os seres irracionaes teem merecido dos legisladores medidas de defeza” (in

Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911).

Cem anos após a apresentação da primeira proposta de lei de proteção dos animais na Câmara do Comuns, em Inglaterra, pela mão do Lorde Erskine, a Sociedade Protetora dos Animais do Porto redige um projeto semelhante (www.animalrightshistory.org e Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911).O referido projeto lei foi apresentado à Assembleia Nacional Constituinte pelo deputado eleito por Lisboa, o cidadão Fernão Botto-Machado a 1 de agosto de 1911, tendo sido acompanhado por palavras de elogio, pois o trabalho “(…)merecia ser impresso e distribuido por todas as escolas primarias.” (in Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911). A Assembleia enviou-o à Comissão Parlamentar a fim de dar o seu parecer, tendo sido publicado na folha oficial da República Portuguesa, nº 178, de 2 de agosto de 1911 (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911).

A proposta legislativa visava a punição dos maus tratos infligidos aos animais não humanos, domésticos e selvagens, resultado de ações humanas violentas e que fossem passíveis de produzir sofrimento desnecessário (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911)ii; previa a aplicação de punições de natureza pecuniária, a qual podia ser acompanhada pelo encarceramento do prevaricador (artigo 2º, Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911) e insistia numa fiscalização efetiva desenvolvida pelas autoridades policiais, administrativas e municipais, as quais deveriam prestar apoio aos elementos da associação, bem como a cedência de dois guardas fiscalizadores, mantidos ao serviço daquela organização (artigo 5º, Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911). As multas pecuniárias seriam divididas em duas partes iguias: metade para a corporação de origem do agente da autoridade que levantou o auto de transgressão e a outra metade para a câmara municipal, a fim de que anualmente, possa ser aplicada na aquisição de “(…)premios aos alumnos das escolas primarias dos respectivos concelhos que mais se distinguirem em actos de protecção e de bondade para com ao animaes” (artigo 7º, in Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911), sob a forma de bens de primeira necessidade, como roupa ou material pedagógico, designadamente livros; em caso de excedente numerário ou por falta de motivo na atribuição do prémio, o dinheiro seria utilizado no auxílio a cantinas escolares, creches, maternidades ou asilos de infância locais (artigo 7º, Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911).

A proposta constante no artigo 8º pode ser considerada bastante inovadora, pois visa a educação para a proteção dos animais não humanos no âmbito da educação formal,

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“Com o fim de incutir no espírito das creanças o sentimento de piedade para com os

seres que, zoologicamente, nos são inferiores, o Governo da República providenciará

para que os professores de ensino primário lhes ministrem, de par com os preceitos da

fraternidade humana, noções de protecção e amor pelos animaes, preleccionando-as

sobre os serviços que prestam ao homem.” (in Sociedade Protectora dos Animaes do

Porto, 1911).

A proposta de lei foi discutida a 18 de janeiro de 1912, na Câmara dos Deputados. Perante o distúrbio gerado, fruto da perplexidade de alguns deputados perante a discussão de uma proposta de tal natureza, a discussão foi adiada a fim de ser novamente enviada à Assembleia Nacional Constituinte para posterior remodelação do projeto. De salientar que a reação dos deputados portugueses assemelhou-se bastante à postura revelada no século anterior pelos seus homólogos ingleses, na sessão destinada à análise da proposta legislativa de proteção dos animais não humanos apresentada na Câmara dos Comuns, acima referenciada (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1912).

Perante este sucesso parcial, mais tarde, nesse mesmo ano de 1912, a Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa apresentou uma nova proposta de lei, consideravelmente mais simplificada que a anterior, a qual foi aprovada na generalidade na Câmara dos Deputados, mas não na especialidade, tendo sido sugerido o seu retorno à comissão para o seu aperfeiçoamento (Zoophilo, 1912a e 1912b). A aprovação de uma lei de proteção dos animais não humanos de natureza semelhante à existente noutros países europeus era crucial para a época. A crueldade e os maus tratos infligidos eram correntes, como aliás se pode verificar nos dados publicados pela Sociedade Protetora dos Animais, a qual registava por ano, em média, 1000 repreensões por excesso de carga, 300 autuações por ferimentos de animais, 500 imposições de açuladas por excesso de carga, 100 apreensões de instrumentos ilegais (serrilhas, espetos e varas) e 10 prisões por desobediência ao agente, existindo inclusivé, casos de manifesta violência contra o agente da autoridade (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909). Em 1911, a Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa interviu em 259 casos de maus tratos, dos quais 203 foram detetados pelo agente de serviço da mencionada instituição, enquanto que os restantes 60 resultaram de queixas apresentadas por cidadãos (Zoophilo, 1912a). Importa também salientar que durante os primeiros anos da sua existência, a referida associação conseguiu erradicar das grandes cidades algumas das práticas populares anteriormente descritas, através da execução de diversos processos judiciais, o que veio reforçar a necessidade de uma legislação orientada para a proteção dos animais não humanos (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909).

Petições E Protestos

A apresentação dos projetos de lei acima descritos foi complementada com a elaboração de sucessivas petições e protestos relativamente ao tratamento concedido aos animais não humanos, em diversos quotidianos. No ano de 1912, o deputado Fernão Botto-Machado apresentou na Assembleia Nacional uma proposta de lei destinada à abolição das touradas no território português, por ser considerado um “(…)deprimente espectaculo que nos envergonha aos olhos das nações cultas” (in Zoophilo, 1912d). Dois anos depois, a Sociedade Protetora dos Animais enviou ao Governador Civil de Lisboa uma petição relativa ao divertimento tauromáquico regularmente realizado no Campo Pequeno, argumentando que “(…)tal espectáculo além de deprimente para os povos que o toleram, é desmoralisador das populações onde se exhibe, no que estão de perfeito acordo com

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todos os grandes pensadores e os mais notaveis pedagogos do nosso e dos outros paizes” (in Zoophilo, 1914a). O mencionado documento solicitava a abolição das touradas à moda espanhola, o picar à vara larga, bem como a prática de outros métodos que brutalizem um espetáculo “(…)que as nossas leis ainda não quiseram suprimir de todo, como tanto seria de applaudir” (inZoophilo, 1914a). O governador civil de Lisboa revelou-se sensível aos argumentos expostos, aceitando as propostas constantes na petição (Zoophilo, 1914a).

Outros protestos foram sendo apresentados às entidades competentes, dos quais se destacam os protestos contra a prática da vivisseção (Zoophilo, 1911), contra o tiro aos pombos (Zoophilo, 1914a), contra a permanência de cães errantes durante longas horas nas esquadras de polícia, antes de serem recolhidos pelos seus proprietários ou enviados para abate (Zoophilo, 1914b) e ainda, contra a passagem da carroça dos cães, destinada à captura dos animais vadios, os quais, posteriormente, eram mortos por envenenamento com estricnina no Instituto Bacteriológico (Zoophilo, 1915).

Promoção Do Bem-Estar Animal

As constantes inquietações com o bem-estar animal refletem-se na implementação de um conjunto de disposições destinadas a minorizar o sofrimento inerente ao trabalho quotidiano. Neste sentido, a Sociedade Protetora dos Animais cedeu diversos fontanários a algumas câmaras municipais, em especial na área de Lisboa e Porto, para que os animais de tração podessem saciar a sede. Curiosamente, após colocação destas infra-estruturas, a população com frequência furtava as torneiras e os baldes colocados nos diversos locais (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909), o que indicia o seu grau de pobreza.

A assistência aos animais não humanos consubstanciou-se com a fundação de postos veterinários, a que os sócios e os não associados acorriam com os seus animais de pequenas e grandes dimensões, encontrando à sua disposição uma grande variedade de serviços que incluíam, para além das consultas, cirurgias, inspeção e avaliação de animais, atestados de sanidade, certidões de óbito, entre outros, como a possibilidade de deslocação ao domicílio (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909). Sempre que possível, às câmaras municipais eram ofertados carros-ambulância destinados à recolha dos animais feridos ou doentes, que se encontravam nas ruas das cidades (Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1909).

Considerações Finais

De acordo com Sociedade Protetora dos Animais “um dos meios mais seguros de conhecer o grau de cultura e de mentalidade collectiva de um povo, em todos os seus multiplos aspectos, é compulsar os textos da legislação em que esse mesmo povo se move dentro da sua orbita social” (in Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911). A urgência de uma legislação que regulamentasse o tratamento dos animais não humanos, protegendo-os da crueldade humana, precede o século XIX e é rastreável já na Antiguidade Clássica (

www.animalrightshistory.org

). No entanto, e apesar das sucessivas tentativas que se registaram ao longo da história da humanidade, a pós-modernidade ainda se encontra marcada pela urgência desta necessidade: a de proteger o animal não humano. Apesar do panorama pouco animador, as inquietações relativamente ao bem-estar animal encontram-se já patentes em alguns documentos políticos, nomeadamente, no artigo 13º das Disposições de Aplicação Geral do Tratado de Lisboa, que refere:

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“(…)a União e os seus Estados-Membros terão plenamente em conta as exigências em

matéria de bem-estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando

simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos

Estados-Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e

património regional.” (in Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2008).

A nível da educação, a Sociedade Protetora dos Animais, pioneira no movimento de defesa dos animais em Portugal, considerava essencial alertar e despertar a consciência da população e reconheciam a importância de sensibilizar as crianças e os jovens para esta causa. Contribuíram, através de estratégias muito diversificadas, para o desenvolvimento de sentimentos de compaixão e bondade para com os animais não humanos, atuando por isso junto dos professores. A escola, ao promover o desenvolvimento integral da criança e ao dar-lhe a conhecer as leis da natureza, despertaria nela sentimentos de justiça face aos humanos e de justeza na atuação face à natureza – logo face aos animais não humanos. Procuravam por diversas formas que estes seres não fossem olhados como um objeto, sujeitos à vontade e interesse do seu senhor, percecionando-os como seres sencientes, capazes de experienciar sofrimento.

Apesar desta perspetiva utilitarista e como se pode reconhecer em diversas transcrições apresentadas, os animais não humanos eram concebidos como entes inferiores por serem irracionais, sendo o ser humano o único detentor da racionalidade. Nos últimos anos, a Biologia tem demonstrado que estes seres podem ser extremamente complexos, manifestando emoções muito diversificadas, bem como algumas capacidades cognitivas. Estas pesquisas científicas constituem um dos pilares em que assentam as atuais correntes da ética aplicada aos animais não humanos. De facto, alguns filósofos contemporâneos defendem mesmo que o conceito de pessoa deve ser alargado de modo a integrar outros animais além dos humanos, em especial os grandes símios (Almeida, 2007). Apesar deste cenário atual, o currículo do ensino básico e secundário português apresenta às crianças e jovens, o animal não humano como um recurso biológico, legitimamente utilizado na alimentação, vestuário e entretenimento humanos, ou seja, é apresentado como um objeto, perdendo totalmente, a sua identidade de ser senciente.

Até aos primeiros anos do século XX, os maus tratos e a violência no tratamento dos animais domésticos eram uma realidade perfeitamente visível nos meios urbano e rural. Com a mecanização, a força animal foi em grande parte substituída pelo motor de combustão e os deploráveis cenários de animais cruelmente explorados foram progressivamente, desaparecendo das ruas.Ausentaram-se do quotidiano visível das pessoas, mas alguns permanecem invisíveis em infra-estruturas modermas, como por exemplo os biotérios e as áreas dedicadas à agricultura de confinamento; no entanto, continuam ainda diversos contextos em que os maus tratos são perfeitamente visíveis, como em espetáculos de entretenimento, designadamente lutas de cães, touradas, circos e parques zoológicos. A exploração do animal não humano continua a ser uma prática corrente na pós-modernidade, consequência das práticas consumistas das nações tecno-industriais.

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Sociedade Protetora dos Animaes do Porto (1911). Projecto de Lei apresentado à Assembleia Nacional Constituinte. Porto.

Sociedade Protetora dos Animaes do Porto (1912). Apreciações e Comentarios ao Projecto de Lei de Protecção aos Animaes em discussão no Congresso Nacional. Porto.

Sítios de pesquisa

http://www.animalrightshistory.org

Notas:

i Desporto popular entre os ingleses de todas as classes sociais, no qual determinadas raças caninas eram treinadas para atacar touros ou ursos.

ii A Sociedade Protectora dos Animais considerava maus tratos infligidos a animais não humanos os seguintes: “a privação de limpeza, alimentos, ar, luz e movimento em relação às leis naturais e sociais da saúde pecuária; o trabalho excessivo sem descanso ou transporte de cargas excessivas; o obrigar a levantar os animais que caíam com chicotadas; a exposição ao calor ou ao frio excessivo; a aplicação de instrumentos que causassem feridas; a utilização no trabalho de animais feridos ou famintos; o transporte de animais para alimentação em condições geradoras de sofrimento; a manutenção de animais fechados sem que possam respirar ou movimentar-se, sem comida ou água; o depenar e esfolar animais vivos ou o seu abate através de métodos que provoquem sofrimento; a engorda mecânica de aves; o atiçar de animais uns contra os outros ou contra pessoas; a exibição de animais magros em sítios públicos; o abandono na via pública de animais domésticos feridos ou cansados; a destruição de ninhos; o cegar de aves canoras; o atar aos animais objetos que os enfureçam ou causem sofrimento; o queimar com água ou materiais inflamáveis; o lançamento em casas de espetáculos de pombas ou outras aves; a prática de diversões que causem ferimentos ou morte e ainda, a implementação de qualquer ação violenta que conduza a sofrimento por diversão ou maldade (artigo 1º, ponto 1º, Sociedade Protectora dos Animaes do Porto, 1911).

Referências

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