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Reminiscências de Dona Baia: uma septuagenária da cidade de Caicó - RN

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – CERES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES – DHC CAMPUS DE CAICÓ

GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA

REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE DE CAICÓ

CAICÓ/RN 2015

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GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA

REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE DE CAICÓ

Monografia apresentada ao Curso de História Bacharelado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CERES, sob orientação do Professor Dr. Joel Carlos de Souza Andrade, para obtenção do título de Bacharel em História.

CAICÓ/RN 2015

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Oliveira, Gleyze Soares Macedo de.

Reminiscências de Dona Baia: uma septuagenária da cidade de Caicó / Gleyze Soares Macedo de Oliveira. - Natal, 2016.

55f: il.

Orientador: Joel Carlos de Souza Andrade.

Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) – Departamento de História.

1. Dona Baia - Monografia. 2. Narrativa - Monografia. 3. Sujeito histórico – Caicó - Monografia. I. Andrade, Joel Carlos de Souza. II. Título.

Catalogação da Publicação

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GLEYZE SOARES MACEDO DE OLIVEIRA

REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA: UMA SEPTUAGENÁRIA DA CIDADE DE CAICÓ

Aprovada em: _____/_____/_______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ Professor Dr. Joel Carlos de Souza Andrade

Professor Orientador / Departamento de História do CERES – UFRN

______________________________________________________________________ Professor Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

Departamento de História do CERES – UFRN

______________________________________________________________________ Professor Dr. José Pereira de Sousa Júnior

Departamento de História do CERES – UFRN

CAICÓ/RN 2015

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AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que me ajudaram enquanto graduanda e que contribuíram direta ou indiretamente para a conclusão deste trabalho. Entre elas, gostaria de prestar meus agradecimentos primeiramente a minha família, que fez todo o possível para a conclusão de mais uma etapa em minha vida. A vocês, muito obrigada pela confiança depositada e pela destreza de estarem me apoiando, sem esse apoio esta vitória não teria o mesmo sabor.

Agradeço ao meu professor/orientador, Joel Carlos de Souza Andrade, pela paciência, dedicação e apoio durante todos esses anos.

Agradeço ao curso de História por me permitir construir tão boas amizades e à todos os meus colegas de graduação.

Um agradecimento em especial a Marianne Shirley, um anjo de luz que a vida me presenteou, obrigada por todo o companheirismo e predisposição em estar sempre pronta a ajudar durante esses anos. Conto com sua amizade por todos os outros anos vindouros.

Muito obrigada também a Rosângela Silva pela linda amizade que cultivamos.

Agradeço em especial também a mais duas pessoas, duas almas maravilhosas que me impulsionaram para chegar até aqui. Silvana Soares da Silva, minha mãe, que nunca mediu esforços para me ajudar, a maior incentivadora em minha vida e que sempre foi minha mola propulsora. Obrigada por estar sempre presente e por ser, desde a minha infância, a pessoal na qual me espelho.

Tiago Araújo de Medeiros, meu namorado, te agradeço por ter sido minha base nessa reta final, por todo o companheirismo, apoio, dedicação e incentivo, sem você eu não teria chegado até aqui. Obrigada pela alegria que me dá em tê-lo ao meu lado.

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Por fim, agradeço a todos aqueles que fizeram parte de minha trajetória nesses quatro anos de história, das meninas da cantina aos meus professores, muito obrigada pela formação e pelas críticas construtivas, foram de muita importância.

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“A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ainda ninguém pensou sobre aquilo que todo mundo vê” (Arthur Schopenhauer).

(9)

RESUMO

O presente trabalho vem tratar das formas pelas quais se constitui as narrativas e suas artes a partir da perspectiva da senhora Maria José da Silva, conhecida como Baia, septuagenária, negra, marginalizada e nascida em Caicó, um personagem singular, “comum” aos olhos do mundo. O mesmo caracteriza-se como um estudo de caso que permitiu, a partir do consentimento da referida personagem, uma análise dos seus modos de discorrer sobre sua vida, assim como os meios encontrados para se sobressair de determinadas situações de desconforto. As demarcações utilizadas para registrar cada acontecimento de sua trajetória é um fato curioso, haja vista que cada passagem se encerra com algum acontecimento trágico precedido de uma “superação”. No decurso deste estudo, falar-se-á a respeito de alguns aspectos sobre as novas abordagens da historiografia, sobretudo, os usos da História Oral enquanto metodologia e a narrativa enquanto fonte, em relação ao sujeito histórico e a relação próxima e tensa entre a História, a memória e a narrativa. Personagem emblemático, Dona Baia será abordada a partir das (des)tessituras de suas vivências em sociedade, construindo para si, um lugar próprio de existência.

(10)

ABSTRACT

This paper deals with the narratives and their arts from the perspective of a septuagenarian lady, black, marginalized and born in Caico, a unique character, "common" in the eyes of many. The same is characterized as a case study that allowed from the consent of that character, an analysis of ways to talk about your life, as well as their means found to excel in certain situations of discomfort. Demarcations used to record every event of his career is a curious fact, considering that each passage ends with a tragic event preceded by "overcoming". During the work will be speaking about some aspects such as new approaches to history, for example, as well as oral history as a source and methodology; the historical subject; and the relationship between history, memory and narrative. Dona Bay, our character, will be analyzed while a "regular guy" who is the margins of society, and that, therefore, have to use the means available to differentiate among so many who are in the same position as the your.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Art. - Artigo Ed. - Edição Nº. - Número P. – Página Rev. - Revista V. - Volume

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

CAPÍTULO 1 - PERSPECTIVAS HISTÓRICAS: ENFRENTAMENTOS DO SUJEITO ... 17

1.1 ANÁLISE HISTÓRICA ... 17

1.2 ESTUDO DA HISTORIOGRAFIA ... 18

1.3 NOVA HISTÓRIA CULTURAL ... 19

1.4 A NARRATIVA HISTÓRICA ... 21

1.5 HISTÓRIA, MEMÓRIA E ORALIDADE ... 23

1.6 HISTÓRIA ORAL, SEUS MÉTODOS E POSSIBILIDADES ... 27

CAPÍTULO 2 - HISTÓRIAS PELAS REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA ... 32

2.1 UMA MULLHER NEGRA NA MULTIDÃO ... 32

2.2 O SUJEITO HISTÓRICO ... 35

2.3 CASAMENTO: DAS AMARRAS À LIBERTAÇÃO ... 37

2.4 A IRMANDADE DOS NEGROS DO ROSÁRIO ... 40

2.5 UMA FIGURA MARGINALIZADA – TECITURAS DE UMA VIDA ... 43

2.6 O HOMEM ORDINÁRIO: BAIA E AS ARTIMANHAS DA VIDA ... 45

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 50

(13)

INTRODUÇÃO

O presente estudo surgiu da necessidade de se trabalhar o coletivo partindo de um caso particular, ir à busca não dos grupos, mas de um indivíduo que o compõe, a fim de captar, por meio de sua perspectiva, como se dá a relação de um sujeito oriundo de uma camada marginalizada, em uma dada comunidade, e os usos que o mesmo faz para se inserir em seu meio e criar as condições próprias de sobrevivência. Foi partindo desta inquietação, e acompanhando as perspectivas de uma abordagem histórico-cultural, que elegemos a senhora Maria José da Silva, conhecida na cidade de Caicó/RN como Dona Baia, a nossa personagem, sobre a qual faremos uma reflexão das suas “reminiscências pessoais”.1

Neste sentido, partimos, também, de uma outra inquietação relacionada aos estudos que têm, no âmbito local, abordado a problemática do negro. Nota-se que há, com regularidade, uma preocupação por trazer à tona o enfoque nas irmandades, em especial, a Irmandade do Rosário, e nos grupos remanescentes (ou não) quilombolas, tais como os Negros do Riacho e a Comunidade da Boa Vista. Ora, se a convocatória de experiências que tratam sobre o Seridó potiguar se constitui como uma experiência extremamente válida, sobretudo, por haver uma tradição de trabalhos (históricos, memorialísticos) que enfocam o “lugar do branco” como o “herói” desta terra, não podemos deixar de levantar alguns questionamentos. É que nas nossas sondagens, percebemos a pouca atenção dada a um personagem específico, pois os interlocutores geralmente foram enredados ao lugar do “grupo”, do coletivo negro e não sobre a sua inserção enquanto sujeito múltiplo na sociedade.

À procura de trabalhos já feitos com o indivíduo, seja ele negro ou não, encontrou-se alguns escritos locais que tiveram como ponto de partida o coletivo. A monografia de José Jerre Lima da Silva (2002), um dos mais recentes trabalhos feitos a respeito da Irmandade intitulado “A festa da Irmandade do Rosário (Caicó/RN): (des)caminhos de uma tradição”, por exemplo, trata em seu estudo com a preocupação com a defasagem que está ocorrendo na Irmandade e com a consequente diminuição do

1

THOMPSON, Alistair. Recompondo a memória. Questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias. Revista Projeto História. São Paulo, v. 15, abril de 1997.

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porte das festas do grupo. Para a elaboração do mesmo Lima da Silva contou com as narrativas daqueles pertencentes ao grupo, lidando, assim, com a análise do coletivo.

Um outro estudo feito, “Entre Estratégias e Táticas: enredos das Festas dos Negros do Rosário de Jardim do Seridó-RN”, do historiador. Diego Marinho de Gois (2006), retrata a relação entre o sagrado e o profano, tendo como base os depoimentos de membros da Irmandade das cidades de Parelhas – RN e Jardim do Seridó – RN. Um trabalho importante para a historiografia local que também faz uso do coletivo.

Os trabalhos existentes que falam do negro ou de seus grupos, partem de análises que enfocam o grupo e sua força, e não o indivíduo. O negro só é analisado a partir do momento que se insere em um grupo. Trabalhos com o coletivo reforçam ideais pré-existentes e é nessa perspectiva que o trabalho com o individual se difere, é o olhar do micro que toma as grandes proporções e que torna o indivíduo em sujeito histórico.

Portanto, diante do exposto, o objetivo principal do trabalho é analisar, numa perspectiva aberta que possa captar as experiências de vida de Dona Baia convertidas em narrativas, suas artes e modos de narrar e desnarrar, assim como o mundo perante os seus olhos. Isto, provindo de um “sujeito ordinário” ou mesmo “comum”2

, captando, assim, suas “artes e astúcias” no que se refere à maneira de como lida com o cotidiano.

O aporte teórico utilizado foi do historiador e filósofo francês Michel de Certeau, onde nos valeremos de suas discussões referentes a construção do espaço assim como os elementos que o constituem, um estudo da perspectiva histórica e o homem que utiliza de suas “artes e astúcias” para sobreviver. Faremos uso de algumas de suas obras como “A invenção do cotidiano – artes de fazer”, onde, por meio da qual, analisaremos primordialmente as práticas cotidianas e os relatos de espaço trabalhados pelo teórico; assim como também seu artigo intitulado “A operação historiográfica”, presente na obra “A escrita da história” trabalhada na perspectiva de como se produz história e a importância em se trabalhar com as singularidades que abrem margem para novos discursos.

2Nesse sentido, comum refere-se ao indivíduo que leva sua vida de maneira pacata, sem realizar

grandes feitos, que vive um dia de cada vez e que tem como a cada dia seguinte uma batalha a ser vencida.

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Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante, e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma discussão proporcionada a uma pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e de convicções fundamentais. Por aí se encontra, já esboçada, a função dos discursos que podem esclarecer a questão, e que se inscrevem, eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto falam da história, estão sempre situados na história.3

Partindo das discussões feitas por Certeau a respeito do espaço e da construção da memória, analisaremos os meios pelos quais Dona Baia utilizou para se inserir na sociedade, naquele lugar por ela “projetado”.

Numa outra perspectiva, convocamos as discussões sobre a memória cujo marco principal pode ser considerado o sociólogo francês Maurice Halbwachs, pertencente à escola durkheimiana4 que, ainda no início do século XX, inseriu o debate sobre a “memória coletiva”, essencial em discussões a respeito de memórias de um caráter grupal e individual. Utiliza-se de Halbwachs – além de contemporâneos ao estudo – por ele ter sido o pioneiro nas discussões sobre a memória em seu viés coletivo.

Entendemos que toda mudança exige que passemos por um processo de adaptação, sem que, no entanto, se perca as raízes que estão arraigadas ao lugar de origem. Um dos elementos que faz com que haja uma reconstituição de lembranças antigas é a paisagem, a captura da imagem de um lugar, esteja nele contido elementos naturais ou culturais. Um simples traço de semelhança com outro lugar já ascende à faísca da memória, já traz à tona lembranças de uma época remota, evocando, além de memórias, sentimentos e sensações. A cidade de Caicó será o “lugar de memória” a ser abordado a partir das reminiscências de Dona Baia.

A partir da coleta dos depoimentos de Baia percebe-se que uma narrativa tanto pode transformar o lugar em espaço como o espaço em lugar. A construção de espaços está intrinsicamente ligada à formulação da memória. Suas narrações remetem à construção de um espaço que se transformou em lugar, um lugar de memória. O espaço se torna lugar quando deixa e ser habitado e se torna um lugar investido de lembranças, “contemplação”, onde se exerce a rememoração. “O sentimento de continuidade

3

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 23

4David Émile Durkheim, sociólogo do século XX voltado para o âmbito das ciências sociais como a

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se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória”5 . O contar histórias é algo natural no cotidiano de Baia, reforça-se a história para que ela não seja esquecida, para que todo o transtorno e frustração passados não tenham sido em vão.

O curioso nos depoimentos de Baia é que cada demarcação temporal está marcada por algum acontecimento trágico em sua vida, mas sempre precedido de uma superação. Os momentos trágicos não a abalaram, mas a fortificaram e lhes serviram de exemplo e incentivo para seguir em frente.

No compasso de que a memória não só faz parte da vida como ela é vida, a mesma está em permanente “evolução”, em um elo vivido no eterno presente. Na concepção de Pierre Nora, lugar de memória é todo lugar onde há um reconhecimento por parte de um grupo, neste caso, tanto a Irmandade quanto algum outro grupo que tenham uma identificação com a cidade de Caicó, por exemplo, a tomarão como um lugar de memória.

Para a concretização do referido trabalho utiliza-se a História Oral enquanto metodologia. Por meio desta, recorre-se aos depoimentos de Baia, que ao discorrer sobre suas lembranças descrevendo as paisagens do passado se torna perceptível a ocorrência de algo como uma sobreposição da imagem, os narradores criam uma imagem a cima da já existente a fim de situar melhor aquele que está ouvindo. Isto, justificado pelo fato de que “a paisagem do presente muitas vezes já não corresponde à paisagem do passado”.6

No primeiro capítulo, “Perspectivas históricas: enfrentamentos do sujeito”, faz-se inicialmente uma análifaz-se histórica tomando como bafaz-se o ano de nascimento de Baia, problematizando as transformações ocorridas no cenário internacional, nacional, estadual e local à época do seu nascimento. Por conseguinte, fazemos uma discussão a respeito da evolução dos métodos de produção e análises históricas, suas novas abordagens, assim como a importância da manutenção da narrativa oral para as futuras gerações. Entra-se em questão também as formas de estudo das novas preleções de abordagens históricas e as artes de narrar de cada indivíduo. Em reflexões a respeito de história e memória, utiliza-se da cidade de Caicó como “o lugar de memória” da personagem. No tocante a metodologia, discorremos sobre a História Oral enquanto

5

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1984, p.7

6

(17)

matodologia utilizada para a elaboração do referido trabalho, além de questões quanto a sua utilização.

No segundo capítulo, intitulado “Estudo de caso de Maria José da Silva”, abordaremos o motivo pelo qual nos levou a escolha do objeto, assim como as peculiaridades que abrangem a personagem. No curso do capítulo é feito um estudo de Dona Baia enquanto um sujeito histórico, onde será levado em conta suas “artes de fazer” no sentido dos modos de agir da personagem, enquanto um sujeito que tece os fios que a ligam ao seu espaço, que faz uso de suas habilidades para se sobressair no espaço onde está inserida. No decorrer do capítulo explora-se um pouco a vida da personagem, seus feitos, crenças, missões e memórias, onde, incorpora-se ao tema questões sobre as figuras marginalizadas e sua função na sociedade enquanto tal. Entra-se em questão também a participação de Baia na política, assim como a subjetividade do personagem e seu olhar para com a vida.

Por fim, faremos uma conclusão expondo as considerações do trabalho, apontando os resultados da pesquisa e o que se conclui a partir deles, apresenta-se também uma possível solução para a problemática, na qual está inserido o ser social marginalizado.

(18)

CAPÍTULO 1: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS: ENFRENTAMENTOS DO SUJEITO

1.1 Análise histórica

De início é relevante uma digressão acerca do momento histórico – regional, nacional e internacional – em que se ambientava a senhora Baia quando do seu nascimento, em 04/07/1945.

Maria José da Silva, também conhecida como Baia, a personagem em estudo, nasceu durante os últimos meses da Segunda Guerra Mundial, a qual tem como data oficial de fechamento o dia 02/09/1945 com a rendição formal do Japão, momento de grande turbulência para a política mundial.

No decorrer do ano de natalício da senhora Baia também ocorreram acontecimentos marcantes para a política interna do Brasil, foi em 1945 que o Brasil saiu da ditadura do “Estado Novo”, regida por Getúlio Dorneles Vargas desde 1937, e começou-se o “Regime Liberal Populista”, cuja gestão inicial coube José Linhares, que passou a exercer a Presidência da República por convocação das Forças Armadas. Logo, Baia nasceu em um período em que o Brasil, assim países internacionais, passavam por transformações políticas e enfrentava importantes movimentos históricos, caminhando para mudanças significativas.

Em âmbito estadual, vivia a capital potiguar o início de uma sensível fase de declínio, decorrente esta do fim da guerra, a qual tinha trazido maciço investimento para cidade desde 1942, quando as tropas Aliadas, lideradas pelos Estados Unidos da América, passaram a utilizá-la como centro de distribuição de mantimentos e armas, face sua privilegiada posição geográfica, tornando a antes ignorada Natal em um exemplo de modernização.

A cidade de Caicó, por sua vez, enfrentava, segundo a autora Paula Sônia de Brito (2004), o processo de implantação da Escola Prevocacional de Caicó, liderado por Dom José Adelino Dantas. O bispo mostrava uma aptidão por implementar na cidade projetos de incentivo a melhoria de vida por meio da educação. Esta Escola Prevocacional, que fazia parte de uma rede de instituições católicas, sucedeu a chamada Escola dos Pobres de São José. A implantação da referida escola teve início em 1944 e seguiu por mais alguns anos, a política de incentivo aos estudos por parte dos clérigos virou reportagem nos jornais A Folha de Caicó e no A Ordem.

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A Escola Prevocacional representava para Dom Delgado o primeiro passo para a criação de uma escola profissional, sua motivação para a implantação da mesma era tanta que o mesmo viajou para o Rio de Janeiro em busca de arrecadar fundos e então inaugurar a tão desejada escola. Sua ida para a até então capital do Brasil virou notícia no Jornal católico A Ordem.

A minha vinda ao Rio de Janeiro se prende ao apelo que desejava fazer ao Governo Federal, as autarquias, aos estabelecimentos bancários, aos católicos em geral ņ e muito especialmente as famílias nortistas que aqui se encontram ņ no sentido de nos auxiliar na construção da Escola Industrial de Caicó. Esta obra que propus realizar com toda minha dedicação de bispo e de filho do Norte do Brasil há de refletir dentro de um pouco mais com os seus benefícios em prol do preparo técnico de centenas de rapazes que se vem a braços com as dificuldades da vida por falta de conhecimentos que os capacitem para exercer qualquer ofício. Esta obra é, como já lhe disse, o ponto crucial da minha gestão apostólica. Faço empenho e renovo aqui o apelo para que todos me ajudem a construir este núcleo de trabalho que tem um fim grandemente altruístico e patriótico porque dotará o Brasil de novos elementos capazes de trabalhar pela expansão do seu progresso, da sua indústria da sua vida econômica. Qualquer óbulo para este fim pode ser entregue ao Dr. José Augusto Bezerra de Medeiros, [...] que está autorizado a receber as dádivas de qualquer pobre ou rico que deseje contribuir para a nossa Escola Industrial (MEU DESEJO…, 1944, p. 3).

Esta escola prevocacional foi mais um dos projetos que tinha como objetivo a educação de jovens e adultos. Já em 1967, no preâmbulo do Regime Militar, criou-se o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), uma iniciativa governamental voltada para a alfabetização de adultos. Baia se alfabetizou no Mobral, aprendeu a ler e a escrever já na sua fase jovem, o que a ajudou muito na sua lida cotidiana, como poder ler uma carta, escrever suas composições, o ato de se alfabetizar agregou-lhe principalmente aos detalhes, que são o que tornam o todo tão mais significante.

O contato com a leitura possibilitou a Baia abranger um pouco mais seu conhecimento sobre o mundo, discorrer melhor a respeito de suas opiniões, crenças e momentos de sua vida, além de dialogar de forma mais clara com o outro.

(20)

A produção histórica tradicional que imperou no meio acadêmico por muito tempo trabalha numa perspectiva de tempo linear e tem um caráter precipuamente literário, sendo marcada por grandes acontecimentos e baseando-se na história dos grandes homens e dos grandes feitos, através da qual a sociedade é analisada da alta para a baixa classe.

Comumente, as revoltas populares que ocorreriam eram vistas pelos historiadores tradicionalistas, até o início do século passado, como atos marginais, logo, tais movimentos por serem tidos como maus exemplos para a sociedade eram omitidos ou pouco explorados, além do que o individual não era reputado como algo relevante à ser analisado a época. Desta feita, o que se fazia era a “história totalizante”, os grandes acontecimentos. “Baczko o observou: ‘a história das idéias’ nasceu de reações comuns, particularmente contra o parcelamento que levou, no âmbito de uma obra ou de um período, à compartimentação das disciplinas”.7

A citada metodologia de se estudar e registrar o tempo e suas interações com o meio social dominou de forma quase pacífica até o início do Século XX, mais precisamente no ano de 1929, quando surge na França a chamada Escola dos Annales, uma revista que trouxe uma nova perspectiva de análise histórica, marcando um processo de transição da História Clássica para a Nova História.8

O Annales caracterizou uma renovação nos moldes de se analisar e fazer história, principalmente no período da primeira e segunda geração, quando ocorre uma inovação nos conceitos históricos e começa-se a trabalhar não só com os grandes homens, mas com o coletivo, os grupos, o pedinte que faz parte de uma rede de outros pedintes. Atenta-se então para as particularidades de cada um. Dialoga-se então, com a ideia de uma “nova história”. Essa nova perspectiva de ver a história encaixa-se na nossa temática, visto que estamos tratando aqui de um sujeito em particular, Dona Baía. Nesse sentido, o homem deixa de ser o sujeito da história para tornar-se um objeto, produto dela. Desta feita, Certeau afirma a interdisciplinaridade ser algo plausível a ser considerado a partir do “entrecruzamento das disciplinas e dos métodos, associando à história e à antropologia os conceitos e os procedimentos da filosofia, da linguística e da psicanálise”.9

7

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.31.

8 REIS, José Carlos. Escola dos Annales – a inovação em história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. 9

(21)

Proporcionando um novo olhar sobre o tempo, a Revista inseriu num primeiro momento ao estudo histórico, o princípio da interdisciplinaridade, onde, a História poderia dialogar com outras ciências e não mais se restringir apenas ao seu espaço. É nesse momento que surgem novos conceitos como “Geo-história”, “tempo histórico” e “conhecimento histórico”.

Além de proporcionar inovações no campo histórico, a Escola dos Annales propiciou também o surgimento de novas linhas de pesquisa não só no campo da História, mas de outras artes. A Nova História Cultural é uma dessas inovadoras linhas de pesquisa que será abordada a seguir.

1.3 Nova História Cultural10

Tendo seu surgimento no final dos anos 70, a Nova História Cultural é uma linha de pesquisa que se difere um tanto quanto das demais por dar maior visibilidade às camadas populares, por se preocupar em retratar os conflitos existentes na sociedade através de uma análise das culturas. A História Cultural é uma história plural que apresenta caminhos diversos para a pesquisa histórica, analisando o homem comum, sua cultura e vivência.

A Nova História começou a se interessar por toda ação humana. Com esses novos olhares sobre a prática histórica ocorreram muitas mudanças nas pesquisas, nos procedimentos e nas abordagens dos estudos históricos. O que vem possibilitando uma visão maior para essa nova linha de pesquisa é, segundo Sandra Jatahy Pesavento, “a renovação das correntes da história e dos campos de pesquisa, multiplicando o universo temático e os objetos, bem como a utilização de uma multiplicidade de novas fontes”.11 Seguindo a linha de pensamento da referida autora, “uma das características da História Cultural foi trazer à tona o indivíduo como sujeito da História, recompondo histórias de vida, particularmente daqueles egressos das camadas populares”12

. É nesse sentido que se insere nossa personagem, Baia, vista por ela mesma como um sujeito que vive as margens da sociedade e que, a partir da recomposição de suas memórias, terá sua história de vida problematizada.

10História Cultural na concepção de Emília Viotti da Costa, trata-se de uma corrente histórica que se

preocupa com a subjetividade dos agentes históricos.

11

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2º Edição. Belo Horizonte: Autêntica. 2003, p .69

12

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A proposta desse novo modelo historiográfico visava o rompimento com a história dita tradicional, que se restringia ao estudo da política como forma de valorizar uma preleção e sentimento de identificação com o meio social, utilizando como vestígios somente documentos escritos e oficiais13. Desse modo, na concepção de Febvre e Bloch, fundadores da Revista dos Annales em 1929, a História não poderia restringir-se somente ao político e utilizar como fonte apenas as tradicionais, mas também abrir-se para diferentes objetos, como por exemplo, o estudo da cultura, que analisa as representações artísticas feitas pelo homem.

Por ser uma vertente que dialoga com as demais áreas, diversas outras correntes podem se aglomerar dentro dessa história. Um dos contratempos com o qual o historiador pode vir a se deparar ao optar pela História Cultural é o modo difuso no qual o campo se apresenta, onde, segundo Peter Burke, não existe conformidade entre os métodos e objetivos desse tipo de narrativa. No momento em que há espaço para o método quantitativo14, novos tipos de fontes e objetos de análise surgirão.

Os historiadores adeptos ao novo modelo de História preocupam-se em analisar as relações existentes entre as mais diversas artes, integrando-as, tentando manter uma ligação entre os elementos estudados, originando, assim, o que caberia chamar de “retratos de uma época”.15

A História Cultural surgiu como uma opção à história dita tradicional, pois as tendências atuais direcionam-se às práticas culturais da vida cotidiana. Trata-se agora das particularidades; os grandes homens da história dão vez a sujeitos ordinários que também compõem histórias, sejam elas individuais ou coletivas.

O estudo da cultura e do social trabalha com o individual como afirma Fernand Braudel, é importante conhecer o meio em que vive para, então, se compreender a sociedade.

1.3 A Narrativa histórica

13

BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: Editora UNESP, 1992, 360.

14Segundo Peter Burke, o método quantitativo baseia-se na quantificação de dados, tanto na coleta de

informações quanto no tratamento dessas para as diversas técnicas, o que possibilita uma gama de novas abordagens.

15BURKE, Peter. O que é história cultural. Trad. Sergio Goes de Paula – 2ºed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

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O atentar-se para a interpretação que o personagem faz de sua narrativa permite ao pesquisador dialogar com seu objeto, problematizá-lo e conceituá-lo, visto que toda trajetória de vida está propensa a altos e baixos.

A narrativa histórica está voltada para os esquecimentos da história, assim como para as lembranças . Essas construções formulam-se em cenas arranjadas da história onde a escrita também está inserida nesse cenário passível de imaginação. Como afirma Certeau, a narrativa histórica assim como a escrita da história

tem uma função simbolizadora, permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe na linguagem um passado e abrindo espaço próprio para o presente: marcar um passado é dar um lugar à morte, mas também redistribuir o espaço das possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e, consequentemente, utilizar a narratividade que enterra os mortos como meio de estabelecer um lugar para os vivos.16

Nesta perspectiva, a escrita da história toma a forma de uma narrativa histórica por esta também se remeter a experiências temporais.

Um dos pontos chaves a serem analisados em uma narrativa é a especificidade da construção do discurso, a aproximação que se faz do passado com o tempo presente. Walter Benjamin afirma, em 1936, que o narrador se mantém cada vez mais distante da atualidade, ele está submerso em seu tempo, na nostalgia que lhe traz suas rememorações. A narrativa, embora algo nato do ser humano, tem se mostrado cada vez mais rara. Esse fator tanto pode se dar por uma falta de interesse em narrar, como pôr a forma de contar de histórias já não cativar mais o ouvinte.

Os contadores de histórias mantêm em sua lida saberes e fazeres que são perpassados de uma geração para outra. Com o avanço tecnológico se tem, atualmente, um acesso maior à informação, o que se revela como um contraste presente nessa nova geração, como se pode ir diretamente ao ponto que se deseja saber o acesso é bem mais fácil, porém, ela não permite uma tecelagem daquele dado ou mesmo estender-se sobre outras perspectivas analíticas; já “com a narrativa é diferente: ela não se esgota. Conserva sua força reunida em seu âmago e é capaz de, após muito tempo, se ‘desdobrar’”, afirma Walter Benjamin.

A arte de narrar requer prática e apresenta em si características únicas de cada indivíduo. Uma mesma história, se contada por duas pessoas diferentes, não será

16

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descrita da mesma forma. É possível perceber, a partir de uma história narrada, a carga emocional que o narrador deposita sobre aquela lembrança. Em certos momentos das entrevistas realizadas com Baia, percebeu-se sua voz embargada, pausas na fala afim de degustar melhor aqueles sentimentos invocados a partir de suas rememorações.

Ao relatar, o narrador apropria-se de algo que lhe pertenceu: o tempo. Ecléa Bosi, em seu livro Memória e sociedade, trabalha com a narrativa de pessoas mais velhas, especificamente por elas trazerem consigo uma “responsabilidade” maior em seus contos e por buscarem rememorar elas mesmo suas lembranças. Seguem suas considerações sobre o tema.

Ao lembrar o passado ele não está descansando, por um instante, das lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida.17

A partir de uma discussão anteriormente feita a respeito da História Cultural, as novas abordagens da história, as artes de narrar e os novos olhares para com a História e a historiografia, optou-se por trabalhar a história de vida da senhora Maria José da Silva, popularmente conhecida por Dona Baia, buscando, a partir de seus relatos de vida, estabelecer um diálogo entre suas vivências e o contexto histórico-social no qual está inserida.

Nesse sentido, o presente trabalho trata-se não de uma biografia, mas das artes de narrar, do que se faz presente no discurso daquele que usa de “táticas e astúcias” para burlar certas barreias que a vida lhe impôs, tomando por base a história de um indivíduo, sendo este uma mulher, negra, septuagenária e marginalizada, nascida na década de 1940 na cidade de Caicó – RN.

1.4 História, memória e oralidade

17

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

(25)

A construção de espaços está intrinsecamente ligada à formulação da memória assim como a mesma está ligada à narrativa. É sabido que a memória não é linear, mas sim algo que está sempre em construção e propenso a receber influência de elementos exteriores. Nela estão presentes lacunas, partes de uma história que tenta se costurar por meio da narrativa.

O personagem narra suas lembranças que a posteriori serão lapidadas através de uma reflexão e análise da carga sentimental que aquela reaparição da memória representa. Temos em nossa pesquisa uma narradora que se difere justamente pela forma como expõe suas narrativas. Enquanto narra suas histórias, Dona Baia faz uma volta ao passado, rememora e traz ao tempo presente suas memórias e lembranças, por ora felizes, por ora não.

A lembrança de uma pessoa de mais idade é mais contemplativa e menos ativa, no sentido de que o seu tempo de atuação profissional já passou, as atividades outrora exercidas já não lhe pressionam mais. Este apenas revive o passado.

A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte.18

A figura de Baia se faz importante tanto na Igreja Católica quanto na Irmandade do Rosário onde ocupa a posição de Rainha Perpétua da Irmandade, por ela ser uma guardiã das tradições religiosas. Em suas narrativas fica clara a tentativa de repassar seus antigos cultos e crenças para as gerações futuras. Reforça-se a história para que ela não seja esquecida, “multiplicam-se as casas de memória, centros, arquivos, bibliotecas, museus, coleções, publicações especializadas (até mesmo periódicos)”19

para que as lembranças não se percam no tempo, mas resistam a ele. Desta feita

A memória não pode ser entendida como apenas um ato de busca de informações do passado, tendo em vista a reconstituição deste

18

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

19MENESES, Ulpiano B.de. apud ORIÁ,R. Memória e ensino de História. In BITTENCOURT, O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto,1997.p. 129.

(26)

passado. Ela deve ser entendida como um processo dinâmico da própria rememorização, o que estará ligado à questão de identidade.20

A memória constitui, ainda que de forma lacunar, um elo entre as sociedades. A narrativa permite a constituição do passado em sua totalidade.

A arte de contar histórias por parte dos mais velhos tem decaído pelo fato dos mais jovens não terem mais tempo ou interesse de ouvilos a arte da oferta, da troca de experiências tem sido deixada um pouco de lado.

Em suma, a memória é uma construção consciente e/ou inconsciente que exerce uma relação direta com a personalidade do sujeito, seja pela percepção individual que têm de si ou a imagem que se quer passar para os outros. A memória se torna um elemento de reconhecimento identitário, que propicia ao sujeito encontrar-se e reconhecer-se no meio em que vive.

Memória e História, mesmo estando ligadas uma a outra, são linhas que em muito se diferem.

A história é compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. No entanto, lidos nos livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados, comparados e classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram seu repositório vivo. Em geral a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social. Enquanto subsiste uma lembrança, é inútil fixá-la por escrito ou pura e simplesmente fixá-la. A necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade e até mesmo de uma pessoa só desperta quando elas já estão bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrança. Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, [...] então o único meio de preservar essas lembranças é fixá-las por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e os pensamentos morrem.21

A Memória começa no momento em que a História finda. A estreita relação entre História e Memória tem sido objeto de análise já há alguns anos.

20

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4º ed. São Paulo: Edusp, 2003.

21

(27)

Questões como essa têm moldado análises e reflexões no tocante à produção historiográfica, mais enfaticamente, à escrita da história. Pierre Nora traz uma outra definição sobre a afinidade da história com a memória que diz muito sobre cada uma. A autora nos lembra que memória é vida e, por estar em uma eterna construção, a mesma está vulnerável a lembranças e esquecimentos.

A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vi-vido no eterno o presente; a história, uma representação do passado. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrá-rio, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a histó-ria só conhece o relativo.22

História, lugar, memória e oralidade mantêm uma relação de reciprocidade. As mesmas não existem isoladamente, precisam de uma comunhão para acontecerem. A memória só se faz a partir da construção de um lugar, que se dá através da existência de um espaço, já a história se faz e “reproduz”, além da forma escrita, também por meio da oralidade, isto desde os tempos remotos. Memória, assim como História, precisa da nar-rativa oral para que suas lembranças não se vão com o tempo.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste senti-do, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulne-rável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. 23

A Memória não é algo fechado, isolado em si, mas partilhado, onde precisa da participação de outros para ser reforçada e difundida entre os seus.

22

NORA, P. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: n. 10. 1993.

23

(28)

Uma preocupação com a memória emerge quando sua perda começa a ser sentida e isto inquieta os depositários da memória. São os respon-sáveis por mantê-la e dinamizá-la, ressignificando-a. Mesmo fragmen-tária e seletiva, a memória constitui uma das formas pela qual as soci-edades se mantém ligadas por um elo comum de experiências culturais e, portanto, de identificação.24

Ao rever antigas fotos de alguns lugares da cidade de Caicó, como a Igreja do Rosário na década de 1960, imagens do Cine Alvorada, da Praça do Coreto e de outros lugares, percebe-se a carga de sentimentos evocados junto as lembranças. Com a fala embargada e os olhos encharcados, Baia se remete ao tempo onde não havia inveja, de-sigualdade, um tempo de pureza e inocência. A imagem a seguir foi uma das mostradas a ela no momento de uma das entevistas.

Imagem 1: Vista parcial de Caicó – RN, Igreja do Rosário na década de 1960.

1.5 História oral25, seus métodos e possibilidades

A metodologia a ser utilizada no presente trabalho enquadra-se na perspectiva da História Oral, onde a análise dos depoimentos de Dona Baia nos permitiiu compor a pesquisa.

24ANDRADE, Joel Carlos de Sousa. Os filhos da lua: Poéticas Sebastianistas na Ilha dos Lençóis – MA.

2002. P. 132.

25

A História Oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea. www.cpdocfgv.br.

(29)

A prática de trabalhar com depoimentos não é de todo inovadora historiadores da Antiguidade como Heródoto e Tucídides, já recorriam à História Oral para registrarem os feitos de sua época porém, esta só veio intensificar-se em 1948 com o surgimento do gravador portátil, utilizado nas entrevistas.

Apesar do desenvolvimento da escrita ao longo dos séculos (notadamente durante o Império Romano), um meio de conhecimento histórico valorizado pelos antigos historiadores correspondia ao que Tucídides havia defendido: a observação direta pela visão (opsis) e pelo ouvido (akoê). (2007: 23).26

Há pesquisadores consideravam a História Oral como uma ferramenta que daria voz aos oprimidos, uma possibilidade de tratar a existência de uma história dos sujeitos ordinários. “Não há dúvida de que a possibilidade de registrar a vivência de grupos cujas histórias dificilmente eram estudadas representou um avanço para as disciplinas das Ciências Humanas”.27

Uma das características da História Oral é o trabalho com o individual feito a partir de um estímulo, onde o pesquisador vai à procura do narrador para lhe fazer perguntas. Neste caso particular, o consentimento e vontade por parte do entrevistado em narrar foi de suma importância. Baia, com toda sua predisposição em ajudar, contribuiu de forma positiva com a pesquisa.

A pesquisa com fontes orais apoia-se em pontos de vistas individuais. A mesma permite ao sujeito estabelecer um contato direto com seu objeto de pesquisa. Utilizou-se a História Oral enquanto uma técnica, disciplina e metodologia. Essa metodologia permite uma compreensão das experiências vividas por outros. É um campo onde se encontra várias possibilidades de trabalho, como também grandes desafios. Nessa ótica, cabe destacar a importância da história oral. Segundo Meihy (2007):

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimulam a professora e alunos a se

26

CADIEU, François [et al.]. Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

27

PINSKY, Karla. Fontes históricas. In: ALBERTI, Verena, BORGES, Vavy, Pacheco. 2 ed. Ia reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008.

(30)

tornarem companheiros de trabalho. Leva a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Ela ajuda os menos favorecidos, especialmente aos idosos, a conquistarem dignidade e autoconfiança. Propicia o contato – e a compreensão – entre classes sociais e entre gerações. E para cada um dos historiadores e outros que partilhem das mesmas intenções, ela pode dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada época. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, à história oral propõe um desafio 13 aos mitos consagrado da história, ao juízo autoritário inerente à sua tradição. E oferece os meios para uma transformação radical no sentido social da história.28

Dessa forma, o ato de contar histórias induz a uma reflexão sobre os anseios coletivos e individuais, o que possibilita a aquisição de experiências em contribuindo para uma visão subjetiva, em união com o registro único do narrador. Há uma reciprocidade entre a escrita e a oralidade.

O emprego da História Oral permite que se construa fontes e questionamentos em relação à memória coletiva tradicional, bem como, acerca da influência do tempo e seus acontecimentos na vida da comunidade ou indivíduos estudados, acessos esses que não seriam possíveis com a utilização de outras metodologias de estudo.

Partindo-se da premissa de que o trabalho de inserção de seus personagens e suas peculiaridades materiais é um meio para o estudo de como as memórias coletivas são modeladas, desconstruídas e refeitas, o procedimento contrário, aquele que, utilizando-se da História Oral – parte das memórias individuais – destaca os limites desse trabalho de enquadramento e, concomitantemente, demonstra uma análise psicológica do indivíduo, o qual tem a predisposição de esconder seus dissabores, contradições e tensões entre a narrativa oficial do passado e suas memórias.

No curso das entrevistas, havia uma preocupação por parte da entrevistada em contar sempre bons momentos de sua vida, o que inicialmente foi um “problema”, haja vista que esses bons momentos não eram tantos assim, mas eram os melhores que Baia recordara. Após se render as lembranças, os percalços pelos quais passara começaram então a surgir.

Alguns dos questionamentos que se remetem a esta linha de pesquisa estão ligados ao uso que se faz da memória, isto pelo fato das lembranças não seguirem um tempo linear e por estarem inseridas num contexto social, familiar e coletivo. Para

28

(31)

Maurice Halbwachs, toda memória individual existe a partir de uma memória coletiva, logo, toda memória está sujeita a modificações.

Em uma narrativa há alguns pontos que são importantes de serem analisados, como por exemplo, o porquê do narrador estar relatando uma devida parte de sua história, por que está falando sobre isso, para quem está contando e de que maneira. Nesse momento o objetivo é analisar a imagem do narrador e sua performance ao contar sua história.

A narrativa permite o diálogo com diferentes dimensões uma sociedade que se conserva arraigada a tradições orais dá vez ao coletivo uma vez que essa precisa de pessoas para que tenha significado. Desse modo, a valorização do coletivo está diretamente ligada à tradição oral.

A oralidade é uma das mais antigas formas de comunicação e ensino da humanidade. A palavra falada além de som tem força, poder e intensidade. O filósofo americano Walter Ong nos afirma em seus trabalhos sobre oralidade e escrita que

As nações orais preferem, especialmente no discurso formal, não o soldado, mas o soldado valente; não a princesa, mas a bela princesa; não o carvalho, mas o carvalho robusto. Assim a expressão oral está carregada de uma quantidade de epítetos e outras bagagens formulares que a cultura altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente redundantes em virtude de seu peso agregativo.29

Oralidade e a escrita possuem uma relação dicotômica e mútua ao mesmo compasso, ambas possuindo critérios de análise diferentes. Há quem diga que a história começa no momento em que a escrita surge; já outros contrapõem essa tese baseando-se no argumento de que a oralidade já existia bem antes, logo, já existiria história. Albán faz uma ressalva em seu texto a respeito da escrita e narrativa oral afirmando que:

O suporte físico do papel tem contribuído para a ‘permanência da voz’, como gosta de dizer o medievalista Paul Zumthor, mas por outro lado, nem a representação escrita nem a icônica conseguem aprisionar a voz. Ao contrário, renovam-se continuamente, emprestam-lhe novas cores, novas perspectivas, abrem-lhe novos caminhos, que cada

29

(32)

contador/cantador sabe traçar com sua percepção de co-autor dessa produção oral.30

Histórias alimentam a alma, entrevistas que utilizam da história oral buscam em sua completude uma maior nitidez dos fatos. Em decorrência deste, o objetivo no presente momento é analisar as formas de narrar e a arte que há por trás de cada narrativa, acoplando-se a isso a utilização da História Oral tanto como fonte quanto metodologia.

A memória é algo moldado, construído tanto no coletivo quanto na individualidade. A tradição oral baseia-se na história humana, na reconstrução de sua memória. A mesma seria uma construção sempre lacunar de fragmentos do passado. A lembrança não pertence à apenas um indivíduo, mas a um coletivo, haja vista que a vida é marcada pelo encontro com outras pessoas, logo, o contato com o outro faz adquirir lembranças que não são suas, mas que se se incorporam a memória daquele que ouvi, Thompson faz uma ressalva quanto à importância da utilização dessa metodologia:

[···] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos.31

O trabalho com a História Oral se enquadra em um diálogo direto com memórias e narrativas, constantemente referentes a acontecimentos do tempo presente.Vemos que

[...] a história oral apenas pode ser empregada em pesquisas sobre temas contemporâneos, ocorridos em um passado não muito remoto, isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que se possa entrevistar pessoas que dele participaram, seja como atores, seja como testemunhas. É claro que, com o passar do tempo, as entrevistas assim produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas sobre temas não contemporâneos.32

30

apud Almeida e Queiroz. 2004, p. 142

31THOMPSON, Alistair. Op. Cit. 32

(33)

Essa metodologia de trabalho possibilita o pesquisador ter um maior contato com o seu objeto de pesquisa. A afinidade criada entre ambos se torna imprescindível para o bom curso das entrevistas e consequentemente produção da pesquisa, além de lhe permitir perpassa por tantos outros segmentos de análise.

(34)

CAPÍTULO 2: HISTÓRIAS PELAS REMINISCÊNCIAS DE DONA BAIA

2.1 Uma mulher negra na multidão

O trabalho com as narrativas de vida de um personagem ordinário – assim tido aquele que não encabeçou grandes feitos nem desempenhou funções de destaque para a coletividade – permite a compreensão de que o registro histórico não deve contemplar exclusivamente a percepção coletiva, registrada a partir da análise técnica e política de cientistas sociais, do tempo e seus acontecimentos, mas as particularidades do indivíduo, posto que também, e provavelmente tão fulcral, sejam as percepções individuais daqueles que viveram uma época e seus acontecimentos.

Inobstante a visão clássica do estudo histórico ordinariamente ignore as passagens e opiniões daqueles que não protagonizaram os feitos reputados, muitas vezes posteriormente, como os mais relevantes para o todo social, esses pontos de vista marginalizados trazem elementos “de bastidores”, essenciais à formação de uma real e coletiva análise, posto que os citados acontecimentos influem de forma diversa em cada indivíduo, variando de acordo com sua situação financeira, origem étnica, colocação social, gênero, engajamento político, crença religiosa, dentre inúmeras variantes possíveis. Desta feita, sendo a ciência da História a responsável pela guarda da memória da sociedade e, não sendo a sociedade mais que uma conjunção de indivíduos, devem os inúmeros ângulos de percepção ser reputados essenciais à formação de um registro verdadeiro.

No intuito de trabalhar com os sujeitos ordinários33 da história buscou-se para tal um caso particular, a narrativa de um indivíduo marginalizado que conseguiu se sobressair aos percalços que a vida lhe impôs, buscando na religião um meio de amenizar suas dores e traumas.

Nas andanças pela cidade de Caicó ouve-se falar da figura de Dona Baia, uma mulher negra de setenta anos, muito devota à religião católica – com características de hibridismo com religiões de matriz africana – e uma boa contadora de histórias, que não se deixa abater-se pela idade e que crê na importância da conservação da memória para as futuras gerações.

Em investigações a respeito da referida pessoa descobre-se nela todos os elementos a serem abordados na pesquisa, entre os quais se destaca o discurso de um

33Definição utilizada por Certeau para tratar dos marginalizados, daqueles que se encontram as margens

(35)

“sujeito ordinário” assim como sua forma particular de narrar, o que faz se utilizando do coloquialismo, decorrente de pouca instrução formal e espontaneidade.

Baia caracteriza-se como uma mulher que esteve à margem da sociedade durante toda sua vida, a qual traz consigo as marcas e memórias de toda uma vida de pesares e ardores. Suas maneiras de driblar determinadas perguntas e situações em seu discurso são características que vem a serem analisadas.

Atos “marginais” cometidos por Baia é um ponto de análise que leva a demasiadas discussões sobre os usos e desusos de táticas e estratégias, os modos de fazer que o “sujeito ordinário” utiliza para sobreviver.

A seguir a imagem da senhora Baia, uma mulher que traz em seu rosto as marcas de expressões de uma vida de superações. Um sujeito que traz o pesar em seu olhar, um olhar carregado de memórias e passagens. Um olhar perdido em meio ao seu tão vasto e, contrariamente, recolhido espaço.

Imagem 2 – Foto cedida por Maria José da Silva (Baia). Ano: 2005 Fonte: Arquivo pessoal.

Optou-se por falar sobre essa personagem devido também à sua “necessidade” em narrar, em deixar registrada sua história para que ela não se perdesse no tempo. Aliado a isso, conta-se o fato de ser uma septuagenária que se mantém arraigada ao seu espaço apesar de todos pesares pelo qual passara.

Quando indagada a respeito de sua atual função na sociedade enquanto uma mulher septuagenária que já passou por momentos consideráveis, e o que espera de sua

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vida, temos a seguinte resposta: “Ficar na minha casa, com tranquilidade”34. Os caminhos pelos quais passara continham pedras e arbustos, ultrapassar essas barreiras requer-lhe muito esforço, agora enquanto uma mulher de certa idade o que esperava da vida é poder desfrutá-la na companhia de seu esposo, Seu Severino Romualdo, e rememorar juntos os feitos de suas vidas.

A arte de narrar caracteriza-se como uma troca o narrador por mais que conte sua história dezenas de vezes ela, ainda assim, contará com novos elementos, narrador e ouvinte, ambos se modificam no decorrer do discurso. Como afirma Bosi, “narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte pelo que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de rememorar”.35

Baia, é vista na cidade como uma mulher guerreira, alguém que sofreu muito na vida e que ainda hoje luta pelo seu reconhecimento, uma senhora que possui características físicas que expressam um pouco de sua vida e cultura. Abaixo, um trecho da entrevista feita com Gabrielle Lúcio, residente na cidade de Caicó e que por vezes tem contato com Dona Baia, fala sobre a sua visão acerca da senhora.

Quando conheci Baia, ela me pareceu ser uma pessoa que aparentemente tem ou teve uma vida sofrida, o rosto dela parece ser de uma pessoa que ou sofre ou já sofreu muita coisa na vida. Eu vejo nela também uma pessoa muito carente de atenção e de muitas outras coisas também, mas o que eu vejo nela uma de suas maiores carências é carência social, de atenção, porque ela fica de certa forma querendo chamar a atenção da gente, ela se sente especial quando a gente dá qualquer coisa a ela. […] E assim ela tem o perfil de uma pessoa de cultura diferente, apesar dela ser católica, mas as vezes você olha pra ela e imagina ser uma pessoa de uma cultura diferente, tipo assim uma cigana, alguém que mexia com Candomblé, mas aí depois eu descobri que ela era uma pessoa católica, mas eu tive essa visão quando conheci ela, e ela tem uma energia diferente, eu não sei explicar que tipo de energia é essa, mas é uma coisa um pouco pesada, as vezes, bem pesada assim que você olha para os olhos dela e dá medo, dá uma angústia assim que eu não sei explicar.36

34

Maria José da Silva, 70 anos, entrevista realizada no dia 05 de Dezembro de 2015.

35BOSI, Ecléa. Op. Cit. p. 61 36

(37)

O discurso de Gabrielle Lúcio nos ajuda a perceber qual imagem essa senhora transmite para as pessoas. Por ser alguém que já sofreu muito, Dona Baia carrega em si as marcas desse sofrimento. Como diz Gabrielle, “a senhora passa uma energia pesada, como se já remetesse as dores do seu passado”.

2.2 O sujeito histórico

Maria José da Silva, mais conhecida como Baia, nascida no dia 4 de julho de 1945 na cidade de Caicó, filha de pais paraibanos, ambos nascidos na cidade de Brejo de Areia, interior da Paraíba, é uma personagem local singular. Narra a senhora Baia ter tido uma infância feliz, fase que relembra com nostalgia, em que pese aponte ter vivido diversos dissabores e sido vítima de atos de violência.

Indagada acerca de sua tenra infância, correspondente à década de 1950, a senhora Baia relata que costumava brincar nas ruas da cidade de Caicó com as demais crianças vias estas, quase em sua totalidade, ainda não pavimentadas, afirmando que era usual entre seus amigos descer correndo as ladeiras de terra da cidade.

Foi abusada aos quatorze anos de idade pelo até então namorado e posta para fora de casa devido o ocorrido. Uma mostra de uma sociedade em que a mulher ainda era vista de forma inferiorizada. Ao invés daquele que cometeu o abuso ter sido penalizado, Baia foi quem sofreu as consequências, sendo expulsa de sua casa pelo seu irmão, como se a mesma tivesse sido a responsável pelo ocorrido.

Aos vinte e três anos casou-se com o senhor Manoel Fernandes, ela com vinte e três e ele com sessenta e cinco, e aos trinta e quatro ficou viúva após a morte de seu esposo, possivelmente causada por uma crise de asma. Cantora e compositora de cânticos religiosos e de outras vertentes, encontrou na Igreja um lugar de refúgio.

Seus pais se chamavam José Manoel dos Anjos e Maria Antônia da Conceição. Ao rememorar sobre suas lembranças mais tristes e os momentos de saudades Baia fala sobre seu pai. “Sinto saudade do meu pai. Ah meu Deus… Meu pai partiu no dia 21 de 1961, morreu numa Quinta-feira. […] A coisa que eu sinto saudade foi quando ele disse assim: tchau, vou embora”.37

Mesmo aos dezesseis anos, sua dependência para com seus pais era tamanha que, ao perder seu pai, que era para ela sinônimo de proteção e confiança, perdeu

37

(38)

também sua “identidade”, em depoimento constata-se que até o seu nome era algo que ela desconhecia de fato.

Por tanto quando ele faleceu, muito tempo que aconteceu aquilo comigo, aquele cabra safado me estuprar, aí eu fiquei sem saber o meu nome, se era Maria José Meira, se era Meira, se era Meira, até que quando eu fui casar no primeiro casamento eu fui tirar o batistério na Igreja de Santana, na casa paroquial, aí o padre nesse tempo era Pe. Antenor. Padre Antenor disse: Como é o seu nome? E eu disse: é Maria José Meira, procure aí Jacinto, não encontrou nada não. Baia você vai fazer o seguinte, você vai pra casa pergunte a sua mãe, por que você não se batizou-se aqui não. […] Quando eu fui saindo aí Jacinto disse: Oh Baia volte aqui. E eu voltei. Oh Baia, você não tem outro nome não? Eu disse: eu não sei não. Aqui tem 4 de Julho de 1945, mas o nome é Joana. Pronto, era o nome que mamãe queria comigo.

Dona Baia é uma figura emblemática, Rainha Perpétua da Irmandade dos Negros do Rosário, realizou muitos trabalhos religiosos, viajou levando sua dança, canto e crença pela região do Sertão Potiguar.

Suas melhores lembranças de infância são as de brincadeiras de boneca, algo singelo em meio a um período marcado por traumas e superações. Atos de violência sem razões ou motivos aparentes era o tipo de cena que costuma ver em seu dia a dia.

Quando ainda jovem Baia tivera de lidar com a falta da única irmã que havia conhecido, Ester. Sua irmã tinha um relacionamento com um rapaz, um homem loiro e de olhos claros, o que causava certo estranhamento até mesmo por parte da família o fato de um homem branco querer algo com uma mulher negra e sem recursos. Por ser um homem de pele branca e se achar superior, o mesmo se via no direito de violentar Ester, que acabou fugindo para São Paulo ainda jovem, no ano de 1967, na tentativa de se livrar dos maus tratos do companheiro, deixando toda sua família sem notícias suas até os dias de hoje.

Em depoimentos, Baia relata um fato de sua adolescência do qual foi testemunha, um ato de violência acometido pelo seu cunhado à sua irmã Ester. A mesma tivera dois filhos com aquele que foi seu companheiro por três anos, o primeiro faleceu ainda bebê, e o segundo se chama Sancler.

(39)

No dia 8 de Setembro, no dia que ele completou um ano o outro nasceu, morava em Nova Descoberta e ele judiava muito com a minha irmã, mas meu pai já tinha falecido né, e eu era frangota ainda não sabia o que era nada e nem brigar com ninguém, ficava só chorando e ela apanhando, pegava a cabeça dela minha fia, as panela no fogo fervendo e botava a cabeça dela assim, só faltava botar dentro da panela no fogo, mas tirava e ficava a cara dela toda pipocada, esse cara era muito safado viu38. (sic)

A ausência do pai trouxe à tona a Baia e seus irmãos uma realidade que eles não tinham consciência, como o esforço que seus pais faziam para dar-lhes uma vida digna. Somente com a falta do patriarca que foi possível e preciso que Baia e seus irmãos trabalhassem para ajudar na subsistência da família. Aos 16 anos quando perdera seu pai, que trabalhava fabricando fogos de artifício, tivera que começar a trabalhar cedo em casas de família para ajudar nas despesas da casa, o que até então era impensável, visto que, apesar das dificuldades o pai não permitia que as filhas trabalhassem fora de casa. Enquanto trabalhava como babá sua mãe fazia bonecas de pano para vender, e assim iam levando a vida.

2.3 Casamento: as amarras da libertação

Ainda enquanto jovem, o casamento foi uma tábua de salvação encontrada por Baia para sair da situação na qual se encontrava, uma jovem, desamparada e marginalizada, como conta em sua narrativa.

Aí eu tava chorando detrás de casa e um senhor vai me chamou: Ei, ta chorando porque Baia? É por causa que meu irmão botou eu pra fora. Vamos morar comigo Baia? E eu fui morar mais o véi. Eu com vinte anos e ele bem com uns quarenta por aí assim, mas graças a Deus me deu nome, casei, morei com ele do dia 19 de Novembro de 1967, 25 de Outubro de 1968 casemo no civil.39 (sic)

Baia casou-se jovem, motivada pelo abuso sofrido, e mesmo estando junto ao seu parceiro ainda era vista com maus olhos pela sociedade, até o momento em que Frei

38Maria José da Silva, já citada anteriormente. 39

Referências

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