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A democracia e os direitos da criança

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Academic year: 2021

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A democracia e os direitos da

criança

Children's Rights and Democracy

Resumo

Este trabalho situa-se como uma contribuição ao enriquecimento do debate sobre os limites e possibilidades de objetivação dos direitos das crianças, a partir de uma análise sócio-jurídica das políticas para a infância no Brasil. Considerando o contexto histórico-social e cultural em que se move a sociedade, se considera que embora os processos de desenvolvimento dos direitos sejam vividos na história da humanidade em permanentes contradições e violações de direitos, o desafio de implementar os direitos da criança ganha força com a participação do movimento social. Soma-se a este, o desafio de se realizar a democracia em nível nacional e planetário que permita a plena aplicação das diretrizes da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Palavras-chave:

direitos da criança- contexto legal- democracia

Resumen

Este trabajo se presenta como una contribución al enriquecimiento del debate sobre los límites y posibilidades de la objetivación de los derechos de los niños, desde la lectura de las políticas socio-legales de niños en Brasil. Teniendo en cuenta el contexto socio-histórico y cultural de la sociedad en movimiento, se considera que a pesar de que los procesos de desarrollo de los derechos sean vividos en la historia de la humanidad en contradicciones permanentes y en violaciones de los derechos, el desafío de la implementación de los derechos del niño se fortalece con la participación del movimiento social. Sumado a esto, el reto de realizarse la democracia en nivel nacional y planetario para permitir la plena aplicación de las directrices de la Convención sobre los Derechos del Niño.

Palabras clave:

derechos del niño-panorama legal - democracia Alessandro Baratta1

1 Jurista e sociólogo italiano,

falecido em maio de 2002, autor de inúmeras publicações de referência na área da sociologia do Direito , em

particular com uma

contribuição para a

sociocriminologia , o direito penal e o conceito de desvio.

F l á v i Bara tt a.

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Abstract

This work stands as a contribution to enrich the debate about the limits and possibilities of objectification of children's rights, from an analysis of legal policies for children in Brazil. Considering the cultural and socio-historical context that moves society, it is considered that although the processes of rights development are experienced in human history in permanent contradictions and violations of rights, the challenge of implementing the rights of the child gains strength with the participation of the social movement. Moreover, the challenge of realizing the democracy at national and planetary level enables the full implementation of the directives of the Convention on the Rights of the Child.

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A Convenção sobre os Direitos da Criança é um passo fundamental no caminho da humanidade em direção à proclamação e realização dos direitos humanos. Quando falamos sobre direitos humanos, usamos um complexo conceito composto por dois elementos: homem e direito.

Esses elementos estão vinculados entre si por uma relação de complementaridade e também de contradição. Complementaridade no sentido do que pertence ao homem como tal segundo o direito, e contradição no sentido de que o direito não reconhece como sendo do homem o que lhe pertence como tal.

Essa relação reflete o fato de que, na história da nossa cultura, homem e direito são definidos a partir de um ponto de vista ideal com uma remissão recíproca. A realidade e que produz a ideia e não vice-versa. Se a história dos direitos humanos tivesse sido apenas a história de uma ideia, ela teria se dedicado a encher as bibliotecas de folhas impressas antes de deixar o caminho dos povos cheio de violência e sangue, como aconteceu e ainda acontece.

Quando falo sobre a realidade do homem refiro-me a pessoas, grupos humanos e povos em sua existência concreta no contexto de determinadas relações sociais de produção. Considerado em um determinado estágio de desenvolvimento da sociedade, o homem é portador de necessidades reais. Desse ponto de vista histórico-social, as necessidades reais constituem um conceito que corresponde a uma visão dinâmica do homem e de suas capacidades.

Os direitos humanos constituem a projeção normativa - em termos do que deveria ser — das necessidades que representam potencialidades de desenvolvimento dos indivíduos, grupos, povos. O conteúdo normativo dos direitos humanos entendidos com base nessa concepção histórico-social excede, portanto, suas transcrições nos termos da legislação nacional e das convenções internacionais, assim como a ideia da justiça sempre ultrapassa suas realizações na lei e aponta o caminho para a realização da ideia do homem, ou seja, do princípio da dignidade humana.

No entanto, a história dos povos e das sociedades é apresentada como a história dos constantes obstáculos encontrados ao longo desse caminho, a história da contínua violação dos direitos humanos, da tentativa contínua de reprimir as necessidades reais e as potencialidades das pessoas, dos grupos humanos, dos povos.

O direito é uma forma de regulação do que é, na realidade social, contingente, ou seja, do que pode ser ou não, dependendo não da natureza, mas das ações e atitudes das pessoas. Por sua vez, as ações e atitudes das

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pessoas dependem dos grupos aos quais elas pertencem, do seu idioma e cultura e, em última análise, da estrutura das relações de poder e propriedade entre grupos e nações no que se refere à forma de produção e distribuição dos recursos em uma determinada sociedade e no mundo.

Nas lutas para definir a implementação do direito, o objetivo sempre é, ao mesmo tempo, o comportamento individual dos cidadãos ou trabalhadores e a manutenção ou transformação da estrutura ideológica e material das relações sociais. Há, no entanto, processos de política do direito nos quais estão mais diretamente em jogo as variáveis individuais, e outros nos quais as variáveis estruturais são mais preponderantes.

No segundo caso, estamos acima de tudo na presença do que na tradição da cultura ocidental é vivido e reivindicado como a afirmação do direito justo, cujos princípios e regras são impostos na legislação e na soberania dos Estados. Trata-se da afirmação da existência, ao lado do direito interno positivo dos Estados, de um direito justo que abrange todos os povos, jus

gentium, e faz parte do nosso patrimônio cultural. A história da ideia de

justiça acompanha, desde a origem do pensamento ocidental, o conceito do direito natural. Na longa tradição do direito natural, estabeleceu-se o conceito de uma necessidade jurídica que corresponde a uma necessidade natural. No entanto, no seu desenvolvimento recente, a concepção da justiça dos direitos humanos se autonomiza da concepção jus naturalista e encontra uma nova fundamentação no conceito da necessidade, que difere da natureza ontológica e tem mais a ver com uma dimensão histórico-social.

Nessa nova concepção, essa justiça e os direitos humanos assumem um conteúdo dinâmico e evolutivo que exige uma interpretação das necessidades do homem e dos grupos humanos como possibilidades. A definição do saber jurídico da justiça e dos direitos humanos já não se baseia no que é necessário por natureza ou pela natureza humana, mas nas necessidades do homem e dos grupos humanos que possam ser consideradas como realizáveis em relação ao grau de desenvolvimento das diversas sociedades ou em nível mundial.

A justiça e os direitos da criança

Nesse sentido, necessidades reais não são apenas as necessidades básicas definíveis a partir de uma estrutura antropológica universal e permanente, e sim as potencialidades em termos de existência e desenvolvimento da vida de indivíduos, grupos e povos, que também crescem — como tal — dependendo da satisfação de necessidades que foi possível em uma fase anterior.

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A tensão entre o ser e o dever ser é, portanto, interpretada como a tensão necessária para superar condições produzidas em uma determinada fase da história da sociedade, que Galtung define como a discrepância entre a situação em potencial — positiva — e a efetiva — negativa — da qualidade de vida. Isso não está muito longe do que Marx e Engels definiram em A

ideologia alemã como o potencial de “uma forma humana” de se satisfazer

necessidades, bastante de acordo com o desenvolvimento do saber social e das forças produtivas.

Na perspectiva histórico-social, a afirmação da justiça e dos direitos humanos implica o resgate dessa potencialidade diante da sua negação repressiva, ou seja, diante da imposição, sempre repetindo as palavras de Marx e Engels, de uma forma desumanizante de se satisfazer necessidades, quando as necessidades de uns são satisfeitas à custa das de outros ou quando as necessidades de um povo são satisfeitas sacrificando as de outros povos.

Quando o processo de produção do direito e da articulação dos direitos humanos ocorre em nível internacional, pode haver uma discrepância entre a situação jurídica interna e a internacional. O processo de desenvolvimento dos direitos humanos na sua projeção internacional passou, na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, por momentos de forte contradição entre as duas situações jurídicas, a interna e a internacional, por conta da existência de regimes e legislações autoritários na área. Isso vale também para as etapas anteriores à atual no processo de definição internacional dos direitos humanos da criança.

No final da década de 1980 e no presente, juntamente com o processo de democratização e pacificação da região da América Latina e os avanços proporcionados pela Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas de 1989, a distância entre a situação jurídica nacional e internacional ficou menor após a ratificação da Convenção pela maioria dos países da região e também em decorrência do desenvolvimento de propostas legislativas importantes, que constituem o tema do nosso encontro. No entanto, ainda prevalece nas legislações internas de diversos países da área uma contradição entre a norma interna resultante da ratificação da Convenção e partes da legislação e da prática administrativa interna que não foram revogadas e são incompatíveis com a Convenção e, em muitos casos, com a própria legislação desses países. Assim, a Convenção colocou fora do direito internacional, mas também do interno, uma boa parte da legislação, mas principalmente da prática administrativa e judiciária interna dos Estados que a ratificaram. Na América Latina, era enorme a distância entre a situação real da infância e a ideal, prevista na Convenção e também nas constituições dos países e muitas novas leis para menores de idade.

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No entanto, devemos considerar a tensão entre a situação jurídica e efetiva dos direitos do menor como um momento necessário e muito importante para o processo de transformação da realidade social da América Latina. A assinatura da Convenção e seu processo de ratificação e de reforma legislativa representam uma condição não suficiente, mas importante e necessária, na luta para a transformação da realidade dos direitos humanos das crianças. Para apreciar o significado dessa afirmação, referimo-nos à dinâmica particular e à realidade dos três componentes ou três classes de atores envolvidos no processo: o aparelho estatal, a sociedade civil, ou seja, o movimento social, e o mundo jurídico oficial.

Emilio García Méndez apresentou, em minha opinião, uma imagem muito eficaz da década de 1990, quando ocorreu o processo de definição dos direitos humanos das crianças desde que o primeiro tribunal de menores foi estabelecido em Illinois, em 1899, até a Convenção de 1989.

Afinando com outros autores, ele define esse processo “como uma longa marcha que pode ser resumida na mudança na forma de se ver o menor como objeto de compaixão-repressão para a de se considerar crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos”. Na verdade, com o movimento dos reformadores e o desenvolvimento da autonomia da justiça juvenil, afirmava-se entre os dois séculos a ideia de uma série de prerrogativas peculiares do menor que impõem privilégios e exceções à sua proteção jurídica e ao controle de seus desvios.

Os limites dessa fundamentação original do direito do menor continuaram a afetar todo o processo até os últimos anos. Esses limites são, principalmente, dois. Por um lado, a consideração da criança como objeto (de proteção privilegiada e controle especial) e não como sujeito pleno de direitos. Por outro lado, a sobreposição do conceito de menor infrator ao de menor em situação irregular, em decorrência da ainda persistente teoria positivista da periculosidade social, expressa na chamada teoria da situação irregular. Consideremos a nova proteção da infância para ilustrar o avanço representado nesse processo pela Convenção no que diz respeito à superação daqueles dois limites. A Convenção enfoca, em diversas normas, a criança, ou seja, pessoas abaixo de 18 anos, como sujeito de direito no sentido pleno e não somente como pessoa incapaz representada pelos adultos aos quais se imputa a competência e o dever de cuidar dela. Isso significa que, com a única limitação substancial decorrente das diferentes fases de desenvolvimento da sua capacidade de expressão e linguística, a criança é respeitada como portadora de uma percepção autônoma das suas necessidades, da sua situação e da situação ao seu redor; como portadora de um pensamento, de uma consciência e de uma religião; como sujeito do qual dependem livremente a comunicação e a associação com outros sujeitos.

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A Convenção confere à criança, efetivamente, o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela (art. 12; o direito de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo (art. 12.1); o direito à liberdade de expressão e de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo (art. 13); o direito à liberdade de pensamento, de consciência e descrença (art. 14), à liberdade de associação e de realizar reuniões pacíficas (art. 15); o direito de acesso a informações (art. 17), de pertencer a minorias étnicas, religiosas, linguísticas ou indígenas e de ter sua própria cultura; o direito de praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma (art. 30), de participar plenamente da vida cultural e artística em condições de igualdade (art. 31).

Ela afirma, de maneira muito ampla, os direitos econômicos e sociais da criança à vida, ao desenvolvimento, à educação e à formação profissional (arts. 28, 29 e outros), particularmente o direito à educação, à prática dos direitos humanos e dos mesmos direitos da criança. A Convenção afirma o direito à saúde, à previdência social, a proteção em conflitos armados; os direitos da criança refugiada, da criança com deficiência, da criança abandonada, semi-abandonada e de família uni parental, e o direito à recuperação e reintegração após incidentes de abuso, tortura e conflitos armados.

Em relação ao segundo limite histórico do processo de desenvolvimento dos direitos da criança, a Convenção — antecipada nesse particular por outros recentes documentos internacionais, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores de 1984 — garante uma série de direitos a adolescentes acusados ou condenados por violações de leis penais. O principal limite histórico — a confusão entre violação do direito penal por parte de um menor e situação irregular, ou seja, desvantagem social, pobreza e abandono —, que era e ainda é convertido em criminalização da pobreza e do abandono, foi decididamente superado pela Convenção.

O estatuto brasileiro e outras leis adotadas na América Latina baseiam-se exemplarmente nesse campo dos princípios previstos na Convenção, garantindo uma distinção substancial e processual entre medidas de prevenção, em resposta à desvantagem social do menor, e medidas socioeducativas, em resposta à violação de leis penais, e admitindo, mesmo nesse caso, que o juiz recorra a uma das medidas de prevenção e não às socioeducativas.

A Convenção e as leis mais avançadas da América Latina garantem respeito ao princípio do Estado de Direito, da presunção de inocência e do protagonismo do menor em processos na condição de réu e prevêem a garantia dos seus direitos humanos, da sua dignidade pessoal e da sua

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reintegração social durante e após uma detenção, que seria uma medida excepcional de uso absolutamente limitado.

A Convenção de 1989 prevê um conjunto orgânico e detalhado de princípios e normas de proteção da criança que, nos 90 anos precedentes, foram expressas em mais de 80 documentos de direito internacional que abordaram a questão da proteção da criança de um modo geral ou em áreas específicas. O único texto universal anterior à Convenção foi a Declaração dos Direitos da Criança da Assembléia das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1959. No entanto, era uma declaração que podia ser aceita pelos governos, mas não tinha a força jurídica vinculante para os Estados, como tem a Convenção. Os princípios fundamentais da Declaração expressos no preâmbulo da Convenção são os seguintes: a proteção especial da criança, a não discriminação e o direito da criança ao desenvolvimento físico e moral. Após a entrada em vigor da Convenção, o documento internacional mais importante para a proteção da criança foi a Declaração e Plano de Ação adotado por 72 chefes de Estado e de Governo reunidos nos dias 29 e 30 de setembro de 1990 em Nova York na Cúpula Mundial da Criança com o objetivo de promover novas iniciativas em benefício da infância na comunidade internacional. O significado e a intenção da cúpula diante da trágica conjuntura mundial da situação da infância (milhares e milhares de crianças morrem diariamente em decorrência da pobreza e de doenças) podem ser expressos com uma formulação do Relatório sobre a Situação Mundial da Infância elaborado pelo UNICEF para a Cúpula: “A renovação dos esforços para proteger a vida e o desenvolvimento das crianças e pôr fim às manifestações mais severas da pobreza seria o melhor investimento que a raça humana poderia fazer para garantir sua prosperidade econômica, estabilidade política e desenvolvimento integral no futuro”.

No entanto, qual poderia ser o eixo de esforços eficazes para aproximar a situação real ao desenvolvimento normativo ideal logrado na definição jurídica dos direitos humanos da criança na América Latina? Um trabalho muito bom e sintético escrito por Antonio Gomes da Costa sugere que as experiências dos últimos anos revelam que nem os Estados, nem o mundo jurídico oficial têm a capacidade e a vontade política necessária para envidar esforços eficazes. Sem um movimento social forte, enraizado na sociedade civil, não será possível implementar efetivamente os princípios e normas da Convenção na legislação e, principalmente, na prática administrativa e judicial dos Estados.

As experiências de diferentes países revelam que o movimento social pode se tornar um mobilizador das instituições do Estado, contar com seus juristas e incentivar ações a partir do mundo jurídico formal. A experiência revela que a ação dos serviços públicos e dos juristas só é eficaz quando se

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aproxima das pessoas e conta com uma participação adequada dos cidadãos, da sociedade civil.

A descentralização dos serviços públicos, a participação das comunidades e a coordenação interinstitucional são princípios de uma prática de implementação dos direitos da criança com a experimentação necessária, também em nível local. Mudanças institucionais e legislativas, mudanças nas relações sociais e na produção e distribuição da riqueza em nível nacional, mas principalmente em nível internacional, a participação da sociedade civil e a realização do direito ao desenvolvimento dos povos são os princípios de uma ação em nível nacional e regional no sentido de apoiar e multiplicar experiências locais exitosas e, posteriormente, transferir o seu potencial para o âmbito das relações internacionais.

Somente seguindo esses princípios, acredito, poderemos evitar que o trabalho social no nível local e o trabalho jurídico e administrativo no nível nacional fiquem restritos ao que Antonio Carlos Gomes da Costa uma vez chamou de “gracioso artesanato”. Trata-se, portanto, de evitar a reprodução dos padrões de uma visão assistencialista do trabalho social e de uma concepção tecnocrática da ação institucional, de modo que não haja espaço para se reduzir a força vinculante da Convenção a um valor meramente simbólico e a prática dos direitos da criança a uma nova retórica oficial. A partir desse ponto de vista, acredito que o desafio de implementar os direitos da criança insere-se, basicamente, no desafio de se realizar a democracia em nível nacional e planetário.

Apresentarei agora uma definição simples, baseada na teoria das necessidades, que expus acima. A democracia é a auto-organização da resposta a necessidades por parte de seus portadores e, acrescentando um adjetivo, da resposta pública, não privada. A democracia é a auto-organização da resposta pública a necessidades por parte de seus portadores. Acredito que esse desafio impõe uma reflexão sobre três níveis: nacional, local e internacional. Não me deterei no nível nacional, porque jamais poderei concorrer com a autoridade do professor Bidart Campos. Acredito, no entanto, que as dimensões locais e municipais e a dimensão internacional da relação entre o desenvolvimento dos direitos da criança e a democracia são muito importantes.

Simplesmente traçarei algumas linhas. Duas frases emblemáticas orientam estas modestas observações. A primeira é uma frase do diretor executivo do UNICEF, James Grant, que afirmou: “A democracia é boa para as crianças e [...] avanços logrados na proteção das crianças são seguidos de avanços na democracia”; a outra é uma frase que espelha a citada acima, de Emilio García Méndez, que é a seguinte: “as crianças são boas para a

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movimento social que promove esses avanços talvez constituam a aprendizagem mais importante para um processo de realização da sociedade democrática em nível nacional e internacional.

Disse que me ocuparia das dimensões locais e internacionais. Também nesse caso, parece-me que o Estatuto do Brasil deu um norte à revisão da prática dominante até o momento na América Latina, mas também no mundo. Se observarmos a estrutura administrativa do direito juvenil em quase todos os países da América Latina nos quais ainda existe ou existiu uma confusão entre abandono e transgressão, vemos também que ela é acompanhada por uma centralização muito acentuada da organização da lei juvenil e dos órgãos responsáveis pela sua implementação e administração. O Estatuto é profundamente inovador ao introduzir a instância do município e a instituição dos conselhos tutelares integrados por pessoas que não são nomeadas hierarquicamente pelo poder central, e sim diretamente por eleitores no nível municipal. O Estatuto também indica uma ideia importantíssima nesse desenvolvimento: a da participação da comunidade civil.

Ao considerar o aspecto da questão político-social do Estatuto, podemos afirmar que a experiência brasileira é inovadora ao abrir um espaço mais amplo para o movimento social e a participação da sociedade civil. Citando novamente Antonio Gomes da Costa, podemos afirmar que enquanto no período que antecedeu a elaboração do Estatuto ele foi objeto de uma luta para que um projeto de lei fosse levado adiante, após a sua promulgação ele tornou-se o objeto de uma luta para levar adiante um projeto de sociedade. Antecipando-se à própria Convenção e ao Estatuto, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu, pela primeira vez na história das constituições, o princípio da prioridade absoluta dos interesses e direitos humanos das crianças e adolescentes. Essa expressão pode ser retórica, mas se levarmos a sério um artigo de uma constituição, é necessário conferir-lhe um sentido normativo e de projeção política no nível nacional e internacional. E que sentido é esse? Significa que nesse país a luta por uma nova sociedade tem um norte: o dos direitos humanos das crianças e adolescentes declarados na Constituição como o principal aspecto do projeto de sociedade. Esse, e não outro, é o significado do artigo 227 da Constituição. Na sociedade brasileira, os direitos das crianças e adolescentes tornam-se uma frente estratégica na luta pela emancipação de toda a sociedade, não só das crianças, ou pela vigência dos direitos humanos na sociedade brasileira como um todo. O fundamento da legitimidade desse projeto social reside na lei e, consequentemente, a resistência conservadora, que ainda é muito forte atualmente no Brasil e em outros países da América Latina e do mundo, é, em grande parte, uma resistência contra a constituição e a lei, ou seja, é subversão. Esse projeto de sociedade tem suas bases na legalidade e a

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realização dos direitos humanos das crianças e adolescentes é o seu eixo. Para que esses direitos possam ser realizados, a luta é necessária e essa é a dimensão internacional à qual desejo aludir: é necessário que a luta não se localize apenas em um Estado, em particular no Brasil.

Concordo com Maria del Carmen Bianchi na sua colocação sobre os direitos econômicos, sociais e culturais e a necessidade de se mobilizar recursos em prol das crianças nos nossos países. Ela se refere a um problema parcialmente relacionado à redistribuição da riqueza, mas principalmente levanta pelo menos uma discussão séria sobre a distribuição da riqueza no nível internacional, já que a despeito de uma melhor distribuição da riqueza nacional nos países do Terceiro Mundo, nem a Convenção, nem as constituições e legislações nacionais estão sendo aplicadas na íntegra. Observa-se que essa situação tem muito claramente a ver com algo não abstrato, não retórico, também à luz da última conferência de Copenhague. As condições materiais para a realização dos direitos humanos das crianças e adolescentes, proclamados e defendidos pelo Estatuto, pela Convenção e por leis mais avançadas, vão além dos limites de um Estado. As implicações da forma de produzir e não apenas de distribuir a riqueza no nível mundial tornam essa luta global.

Concluirei afirmando o seguinte: quando de uma parte falamos sobre direitos e de outra sobre a situação de fato, não pretendemos estabelecer uma separação, de tal modo que de uma parte exista o direito e, de outra, a sociedade. Essa separação é muito perigosa, entendida a sociedade como o conjunto das relações sociais existentes. Ela não é um ente separado no que se refere a visões normativas, articuladas pelos textos legislativos, constitucionais e das convenções internacionais. A sociedade não é apenas o

statu quo das relações sociais existentes. Ela constitui o lugar da tensão entre

o ser e o dever ser, o lugar no qual se desenvolve a luta para reduzir a distância entre o statu quo e as normas, os princípios, os direitos humanos. Atribuir aos direitos humanos uma função impulsionadora da transformação social, do desenvolvimento humano, significa não apenas reconhecer que o direito nunca pode estar acima da sociedade, como escreveu Marx, mas também que a sociedade não pode estar acima do seu direito. O direito é também um projeto de novas relações sociais internacionais e não apenas a transcrição jurídica das relações existentes.

Se é verdade que os direitos humanos das crianças representam o objetivo da ação de transformação da sociedade, a luta por mudanças e pela aplicação da lei na fase atual de pacificação e negociação de conflitos na América Latina não consiste apenas em levar adiante o processo formal dos enunciados normativos, mas também na construção de instrumentos adequados de transformação social. Assim, partindo da primeira proposta, de que “a democracia é boa para as crianças”, passei gradualmente para a segunda.

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