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PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Relevância; Gênero Textual; Relatórios Psicológicos.

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Academic year: 2021

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A INTERFERÊNCIA DO GÊNERO NOS PROCESSOS INFERENCIAIS DA COMUNICAÇÃO ESCRITA ENTRE PSICÓLOGOS E JUÍZES DE DIREITO, UMA

ANÁLISE COM BASE NA TEORIA DA RELEVÂNCIA E NAS TEORIAS DE GÊNERO TEXTUAL

Liamara Tansini Camargo1

RESUMO: O presente trabalho propõe-se a discutir os possíveis efeitos das diferenças de gênero textual nos processos inferenciais envolvidos na elaboração e na interpretação de relatórios psicológicos aplicados a fins jurídicos. Pretende-se, para tanto, relacionar os preceitos de teorias da linguagem que versam sobre cognição e gênero textual, com ênfase na Teoria da Relevância e nos atos de fala.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Relevância; Gênero Textual; Relatórios Psicológicos.

1. Introdução

Devido à frequência com que representações éticas passaram a colocar em discussão a qualidade dos documentos escritos emitidos por psicólogos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) regulamentou a Resolução 007/2003 com o propósito de subsidiar a elaboração de documentos profissionais da categoria. Desde a sua regulamentação, o laudo ou relatório psicológico passou a ser reconhecido como uma modalidade de documento escrito que visa

apresentar os procedimentos e as conclusões de um processo de avaliação psicológica2. Para

tanto, o laudo deve conter uma descrição detalhada e didática das condições e dos eventos psicológicos analisados, expostos conforme fatores determinantes (históricos, sociais, políticos e culturais), embasados em princípios teórico-filosóficos e técnico-científicos.

Por estar habilitado a empregar métodos, técnicas e teorias do conhecimento com o propósito de descrever e de explicar os fenômenos psicológicos e o comportamento humano, o psicólogo tem sido solicitado a prestar informações decorrentes de seu exercício profissional para diversos fins; e é seu dever informar, a quem de direito, os resultados de sua prática, conforme art. 1º do Código de Ética Profissional.

Os operadores do campo jurídico, diante da necessidade de discutir questões que, em seu grau mais extremo, afetam a liberdade dos cidadãos, utilizam-se eventualmente de relatórios psicológicos para embasar decisões. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de reavaliação da aplicação de medida sócio-educativa de internação, prevista no art. 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por se tratar de um regime de privação de

liberdade aplicável a adolescentes que tenham cometido infrações graves. 3

Nessa medida, em consideração à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, a lei não estabelece um prazo para a liberação do adolescente, exceto pelo limite de tempo (garantindo a liberdade compulsória ao completar três anos de internação ou a idade de vinte e

1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul.

2

A Resolução 007/2003 do Conselho Federal de Psicologia (p. 3) define a avaliação psicológica como “o processo técnico-científico de coleta de dados, estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos, que são resultantes da relação do indivíduo com a sociedade, utilizando-se, para tanto, de estratégias psicológicas – métodos, técnicas e instrumentos”.

3 Salvo a aplicação da medida seja feita por descumprimento reiterado e injustificável de outras medidas anteriormente impostas, quando então o prazo máximo de internação corresponde a três meses, de acordo com o art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

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um anos). O que determinará a manutenção ou não da medida será a reavaliação judicial a cada seis meses, no máximo, mediante decisão fundamentada.

Embora não estejam especificados os critérios para a fundamentação da decisão judicial no Estatuto da Criança e do Adolescente, apreende-se dos termos da lei a importância conferida às ações das equipes técnicas das entidades sócio-educativas na reintegração social dos adolescentes infratores. Em virtude disso, costumam ser requisitados documentos emitidos pelos profissionais envolvidos, dentre eles o relatório psicológico, a fim de acompanhar a evolução dos internos e de embasar a tomada de decisão do juiz de direito.

Nesse contexto, é importante destacar que o laudo se constitui como uma peça comunicativa cuja produção e recepção podem ser observadas sob o olhar cognitivo no domínio de teorias das ciências da linguagem. Entre essas teorias, destaca-se a Teoria da Relevância de Sperber e Wilson (1995; 2001) onde, em resumo, propõe-se que a interação em linguagem é guiada por um princípio cognitivo e um princípio comunicativo de relevância.

Considerando-se que a produção e a recepção dos laudos são guiadas por esses princípios e que a Resolução 007/2003 do estabeleceu critérios que se organizam em torno de um possível gênero textual para os relatórios psicológicos, propõe-se refletir sobre os possíveis efeitos das diferenças de gênero na comunicação da díade juiz/psicólogo.

Admite-se neste trabalho que a interação escrita, embora possa tornar mais explícitas algumas informações, “não é suficiente para minimizar o efeito das variáveis da enunciação, sugerindo que elas exercem influencia significativa na forma como os atores envolvidos compreendem-se nas interações” (RAUEN, 2010, p. 250). Os processos inferenciais podem favorecer ou não a captação das intenções comunicativas enunciadas, especialmente se considerarmos as diferenças no grau de conhecimento dos envolvidos para além da sua área de atuação.

A seguir, o texto será apresentado em mais três seções. Na segunda, revisa-se brevemente a Teoria da Relevância. Na terceira, discutem-se as relações entre Relevância e gênero textual. Na quarta seção serão tecidas algumas considerações finais sobre o tema. 2. Teoria da Relevância: breve revisão

A Teoria da Relevância (TR) parte de dois princípios gerais – o cognitivo e o comunicativo – para descrever e explicar como se estabelece, no campo da Pragmática, o processo de comunicação humana. Com o princípio cognitivo, admite-se que a mente humana busca automaticamente a maximização da relevância; com o princípio comunicativo, indica-se que os enunciados produzem expectativas precisas de relevância, visto que o comunicador tem a pretensão de ser compreendido e emite um estímulo ostensivo com este propósito.

A relevância é o resultado de uma inequação que se constitui na relação custo-benefício entre os efeitos cognitivos e os esforços de processamento gerados por um input (enunciados, pensamentos, lembranças, sensações, entre outros, direcionados ao processamento cognitivo), tal que, em condições iguais, quanto maiores são os efeitos cognitivos produzidos e menores são os esforços de processamento despendidos, maior a relevância do input. A relevância é, portanto, uma propriedade dos inputs capaz de determinar em que medida estes serão processados no ambiente cognitivo de um indivíduo.

Essa capacidade depende, de um lado, das modificações ou reorganizações que podem ser exercidas pelos efeitos cognitivos resultantes do processamento de um input sobre as suposições disponíveis no contexto cognitivo de uma pessoa, quais sejam: a) o fortalecimento das suposições existentes; b) a contradição ou o enfraquecimento das suposições existentes; ou c) a derivação de implicações contextuais, fruto da interação entre o input e o contexto cognitivo. De outro lado, da economia de esforço de processamento cognitivo.

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Dado o princípio cognitivo de relevância, o funcionamento cognitivo humano é espontaneamente dirigido para as informações reconhecidas como mais relevantes. Essa é a noção base para o princípio comunicativo, segundo o qual a própria emissão intencional e aberta de um enunciado, um estímulo ostensivo, comunica ao ouvinte/leitor a presunção de sua relevância ótima. Em outras palavras, isso significa dizer que o enunciado emitido é suficientemente relevante para merecer ser processado e que ele é o estímulo mais relevante que o comunicador estava apto a emitir, nos limites de suas habilidades e preferências.

O ouvinte/leitor, por sua vez, espera interpretar o estímulo de modo a atingir sua expectativa de relevância ótima. Esse processo de compreensão requer, inicialmente, que o ouvinte/leitor recorra ao código linguístico para decifrar o significado do enunciado, que, de todo modo, poderá ser trabalhado contextualmente até gerar uma hipótese para o significado pleno do comunicador, seguindo o caminho do menor esforço.

Veja-se o mecanismo de compreensão guiado pela relevância:

Processo teórico da compreensão com base na relevância.

Seguir um caminho de esforço mínimo na computação de efeitos cognitivos:

a) considerar hipóteses interpretativas (desambiguações, atribuições de referência, suposições contextuais, implicaturas, etc.) seguindo a ordem de acessibilidade; b) parar quando é alcançado o nível esperado de relevância. (SPERBER; WILSON, 1995, p. 255)

O que o processo teórico de compreensão prevê é que a primeira interpretação satisfatória será, então, a única satisfatória, e qualquer esforço adicional de processamento terá de ser compensado por efeitos cognitivos adicionais.

De acordo com a Teoria da Relevância, o processo de interpretação requer a conformação de cada enunciado em uma forma lógica, constituída por conceitos (por hipótese, uma espécie de endereço ou rótulo) dotados de três entradas: a entrada lógica (de caráter computacional); e as entradas linguística e enciclopédica (de caráter representacional). Silveira e Feltes (2002, p. 32) afirmam que essas entradas podem ou não conduzir ao disparo de uma série indeterminada de suposições potenciais; e que são as relações de relevância as responsáveis por restringi-las, por meio da seleção daquelas que se referem ao contexto de processamento das informações.

Sperber e Wilson (1995, p. 125 e 278) explicam que a forma linguística de um enunciado é, em nível representacional, uma forma lógica não proposicional, por ser semanticamente incompleta (visto que o conteúdo explícito não está restrito ao linguisticamente codificado). Para o funcionamento do mecanismo de compreensão, a forma linguística precisa ser enriquecida por processos pragmáticos baseados em um contexto acessível (inferências), transformando-se em uma forma proposicional, uma explicatura, que é uma proposição semanticamente completa para a qual podemos atribuir o valor de verdade.

Em alguns casos, a forma lógica proposicional equivale a uma premissa implicada, que, ao combinar-se com o contexto cognitivo do indivíduo, gera por dedução uma conclusão implicada, a implicatura, uma proposição que possivelmente tenha sido a interpretação pretendida pelo comunicador.

Para tanto, o mecanismo de interpretação parte de um conjunto de suposições, input, e constrói, pela aplicação espontânea de regras lógicas dedutivas, todas as conclusões possíveis desse conjunto. Sperber e Wilson (1995; 2001) argumentam que nesse mecanismo o processo de compreensão é não-demonstrativo (pode ser confirmado, mas não provado) e segue uma rota não trivial, por ser sensível à força das suposições.

Na Teoria da Relevância, as regras que operam nesse processo são do tipo: a) eliminação-e, quando, em uma conjunção simples, dadas duas proposições verdadeiras,

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elimina-se o ‘e’ e cada uma delas permanece verdadeira (na linguagem formal: P∧Q, P ou P∧Q, Q); b) modus ponens, quando em uma relação de implicação entre duas proposições, se a primeira for afirmada, emprega-se necessariamente a segunda (formalmente: P∧Q, P, Q); ou c) combinando-se as duas regras, como eventualmente é possível fazer, obtém-se o modus ponens conjuntivo: (P∧Q)→R, P→R, R ou então (P∧Q)→R, Q→R, R.

3. Relevância e gênero textual

Conhecidas as conceituações centrais da teoria, propõem-se traçar nesta seção algumas reflexões sobre a interface entre a Teoria da Relevância e a análise de gêneros textuais. Temos que o contato entre o juiz e psicólogo ocorre por meio de uma modalidade de conversação escrita em que: a) cena 1 – o enunciador magistrado emite uma ordem ao leitor psicólogo; b) cena 2 – o enunciador psicólogo emite um relatório ao leitor juiz; e c) cena 3 – o enunciador juiz usa o conteúdo do relatório para fundamentar a tomada de decisão.

Essa interação na esfera judicial/psicológica constitui-se como uma prática dotada de propósitos comunicativos múltiplos que tangenciam intenções particulares, mas que ressaltam a dimensão social reconhecida da ação. É o que se pode supor a partir das definições de Bezerra (2009, p. 467) acerca dos propósitos comunicativos, com base na concepção de Swales (2004, p. 71). Nesse sentido, associada à ação social, é que a noção de linguagem interessa a este estudo, o que justifica a discussão das análises de gêneros.

Bazerman (2005) propõe que a atividade e a organização dos grupos sociais constituem-se, em parte, pela produção, pela circulação e pelo uso de textos. Se bem sucedidos, os textos geram fatos sociais por meio da linguagem – tornam-se ações sociais significativas, atos de fala, que são realizados de acordo com as formas textuais padronizadas, típicas e inteligíveis: os gêneros. Para além disso, os gêneros estabelecem entre si redes de relações, formando sistemas de gêneros que integram sistemas de atividades humanas.

A ideia de que as palavras fazem e não somente significam coisas teve seu início com Austin, em 1962. A importante contribuição desse autor com a tricotomização dos atos de fala servirá de base para, a partir da revisão de Rauen (2009) no âmbito da relevância, analisar como se processa a compreensão desses atos nas interações da díade juiz/psicólogo.

A tricotomia defendida por Austin (1962) classifica os atos de fala em locucional, ilocucional e perlocucional. Define-se um ato locucional como a emissão de um estímulo linguístico cujos elementos podem ser conformados em uma proposição, ou seja, trata-se daquilo que foi dito literalmente. Um ato ilocucional consiste no que o escritor pretendia dizer com o enunciado que disse, refere-se ao ato intencional do escritor. E um ato perlocucional consiste no efeito real do ato de fala: retrata o conjunto de efeitos provocados no leitor pelo ato de fala.

Rauen (2009) retoma a tricotomia de Austin e se propõe a repensá-la segundo os princípios da pragmática cognitiva. Conforme a Teoria da Relevância, vimos que os processos inferenciais de compreensão envolvidos no desenvolvimento da forma lógica proposicional compõem a explicatura do enunciado. Vimos também que a explicatura resulta da ação de várias operações pragmáticas, tais como a atribuição de referência, a desambiguação, o preenchimento de elipses, a interpretação metafórica, etc.

O que Rauen (2009, p. 65) destaca é que “nesse processo, podem-se incluir descrições de alto-nível, que contêm, por exemplo, a atitude do escritor em relação ao enunciado, por tanto, o ato de fala subjacente”. Não apenas isso, nesse processo encontram-se evidências de que existem inferências que ultrapassam a composição da forma lógica e integram as implicaturas de um enunciado, ou seja, originam uma premissa implicada que gera, por dedução, uma conclusão implicada – provavelmente a interpretação pretendida pelo escritor.

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Apesar de a maior parte das classes de atos de fala não requerer princípios ou mecanismos pragmáticos especiais ou diferentes dos que já são aplicados nas interpretações de elocuções de um modo geral, o pequeno grupo que inclui o dizer, o ordenar e o perguntar demonstra particularidades (SPERBER e WILSON, 2001, p. 357).

Veja-se o exemplo.

(A) Emitirás o relatório pelo período de seis meses. (B) Emitirás o relatório pelo período de seis meses? (C) Emita-se o relatório pelo período de seis meses.

Considerando-se as sentenças acima, é possível verificar que existem semelhanças entre si, supondo-se que possuam formas lógicas iguais ou similares. As diferenças, por sua vez, podem ser comprovadas a partir dos pressupostos da teoria dos atos de fala, conforme Sperber e Wilson (2001, p. 361).

O que os autores sugerem é que parece haver correlações sistemáticas entre tipos sintáticos de frases e atos de fala. Poderíamos estabelecer, nesse caso, que uma declarativa como (A) estivesse correlacionada com o ato de fala do juiz de dizer que o psicólogo irá emitir o relatório pelo período de seis meses. Do mesmo modo, poderíamos correlacionar uma interrogativa como (B) com o ato de fala de o juiz perguntar se o psicólogo irá emitir o relatório pelo período de seis meses. Por fim, teríamos a correlação de uma imperativa como (C) com o ato de fala de o juiz ordenar ao psicólogo para emitir o relatório pelo período de seis meses.

Sperber e Wilson (2001) propõem uma suposição equivalente, ao indicar que a forma proposicional P de uma declaração qualquer se integra em um esquema de suposições da forma o falante disse que P, onde o pensamento interpretado por P descreve um estado de coisas real. Ou seja, há uma relação descritiva entre o pensamento do falante/escritor e um estado de coisas do mundo. Ao dizer que P, comunica-se que se está dizendo que P, e, em consequência, pode-se obter relevância não pelo fornecimento de evidência para P, mas propriamente pela expressão da atitude do falante para com P.

Podemos pensar sobre a importância desse fator na comunicação que se estabelece entre o juiz e o psicólogo por meio do relatório psicológico. Imagine-se que ao ler as declarações do psicólogo no documento, o juiz considerará que o psicólogo disse/escreveu que P. Mais ainda, o juiz provavelmente irá supor que se o psicólogo disse que P, então o psicólogo crê que P. Logo, P ganha força de verdade como descrição de um estado psicológico/social real do adolescente sobre o qual se fala. Evidentemente, a descrição de uma declarativa pode obter relevância de várias maneiras, mas, como primeira hipótese, parece acessível prever que o juiz confiará suficientemente no psicólogo, do contrário não o teria consultado. Em decorrência, o magistrado poderá gerar uma série de implicações contextuais a partir daquilo que o psicólogo disse que P para a sua tomada de decisão.

Observem-se agora as questões acerca das elocuções imperativas, que nos processos judiciais antecedem e sucedem ao relatório psicológico. Temos que o diálogo psicólogo/juiz inicia-se usualmente com uma ordem do juiz para que o psicólogo emita um laudo sobre determinado adolescente. É a partir da interpretação do psicólogo acerca dessa ordem que toda a elaboração do laudo estará orientada.

Sperber e Wilson (2001, p. 368) postulam que os atos de fala imperativos dividem-se em requisitivos e consultivos, onde se representam, respectivamente, um estado de coisas desejável pela pessoa falante/escritora e um estado de coisas do ponto de vista do ouvinte/leitor. Portanto, pode-se dizer que o psicólogo, ao recuperar a forma proposicional de P da elocução imperativa do juiz, iria integrá-la numa descrição tal que: O juiz ordena que eu faça P. Uma ordem como essa pode ser analisada como uma comunicação de que P interpreta

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um pensamento referente a uma descrição de um estado de coisas desejável do ponto de vista do juiz.

O problema maior no processamento cognitivo dessa ordem é que ela contém outra elocução imperativa implícita. Quando o juiz ordena que o psicólogo faça um relatório sobre um adolescente, o estado de coisas desejável não se resume ao psicólogo fazer o relatório. É preciso que o psicólogo apreenda o que o juiz pretende saber com o relatório para compreender devidamente a ordem. Assim sendo, pode-se supor, por exemplo, que P representa que o psicólogo emita uma posição conclusiva acerca da possibilidade de progressão do regime de internação de um adolescente por meio de um relatório psicológico.

Algumas vezes, com intenção comunicativa semelhante, o juiz utiliza-se de uma forma interrogativa, para a qual o leitor psicólogo deve recuperar a forma lógica e fazer a integração numa descrição com a forma O juiz escritor pergunta Qu-P.

Lembrando que a relevância é uma relação de dois pólos, Sperber e Wilson (2001, p. 370) destacam que o grau de relevância varia de uma pessoa para outra. Portanto, enfatizam que, ao interpretar uma pergunta, o ouvinte/leitor “deve sempre formar uma suposição sobre quem é a pessoa para quem será relevante a resposta a essa pergunta segundo o que pensa a pessoa falante”, dado que diferentes suposições formulam perguntas diferentes. Se considerarmos que o juiz e o psicólogo muitas vezes não se conhecem e nem sequer partilham o mesmo campo de conhecimento prático e teórico, podemos ter ideia do quão difícil pode se tornar essa tarefa de compreensão mútua.

Considerando-se os termos da Resolução 007/2003 do CFP, temos que a finalidade do relatório psicológico destina-se a apresentar procedimentos e conclusões referentes a um processo de investigação científica de fenômenos psicológicos analisados. Há, portanto, uma delimitação para que o psicólogo emita conclusões a respeito das condições psicológicas da pessoa avaliada. Isso significa que a conclusão quanto à progressão de regime dependerá de uma implicatura do juiz a partir da declaração acerca do estado psicológico atual do adolescente. Em decorrência, será necessário investigar quais os critérios utilizados pelos magistrados para interpretar o conteúdo de um laudo psicológico como relevante.

Conforme a Teoria da Relevância, admite-se que o enunciador juiz, ao redigir a sua ordem, produz um estímulo ostensivo de modo a explicitar sua intenção comunicacional, na medida das suas habilidades e preferências, tendo em vista a redução do esforço cognitivo do leitor psicólogo (2). Mas por que o juiz ordena ao psicólogo que emita um posicionamento conclusivo sobre a possibilidade de progressão de regime de um adolescente se ele tem legitimidade para decidir a questão? Supostamente, por duas razões: primeiro porque ele deseja obter elementos para fundamentar a sua decisão, conforme prevê a lei, que é a dimensão relevante; segundo, porque a existência de práticas sociais de emissão de documentos psicológicos para fins jurídicos viabiliza a interação.

Acredita-se, entretanto, que as configurações das estruturas de gêneros que caracterizam diferentemente práticas textuais jurídicas e psicológicas podem interferir no processo de comunicação. Não apenas isso, partindo-se do construto de que gêneros estruturam-se por meio de práticas sociais, pretende-se verificar se existem diferenças entre os moldes que caracterizam a prática da redação de laudos psicológicos e os movimentos retóricos instituídos pela Resolução 007/2003 (gênero “ideal” x prática “real”).

Para que o enunciador juiz e o leitor psicólogo (cena 1) e o enunciador psicólogo e o leitor juiz (cena 2) recuperem e produzam as formulações necessárias para a interpretação das intenções comunicativas, várias suposições têm de ser mentalmente mobilizadas. Nessas interações, que se estabelecem por meio de textos escritos, é possível constatar, de acordo com Blass (1990), que os textos constituem peças de evidências para o processo de compreensão. A interpretação textual, nesse caso, decorre de um conjunto de conhecimentos

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enciclopédicos sobre avaliação psicológica, transtornos psicológicos, direito do adolescente, práticas jurídicas e psicológicas, dentre outros, além da noção, por vezes intuitiva, do funcionamento dos gêneros envolvidos. Portanto, ultrapassa a interpretação baseada somente em elementos textuais.

Observando-se a comunicação hipotética da cena 2, temos que cabe ao psicólogo, constrangido pelas condições de produção de relatório psicológico e pelas suas habilidades técnicas, formatar os resultados decorrentes de uma avaliação psicológica para que o leitor juiz considere o conteúdo do documento relevante o suficiente para merecer ser processado cognitivamente. O psicólogo, conforme prevê a Teoria da Relevância, terá em vista dois objetivos: gerar modificações ou confirmações no ambiente cognitivo do juiz e reduzir os custos desse processamento.

Sperber e Wilson (2001) admitem que o processamento dos enunciados ocorre em etapas, passo a passo. Assim, em sequência, o leitor acessa alguns dos constituintes do enunciado, movimentando suas entradas lógicas e enciclopédicas associadas. Os autores, portanto, consideram essencial explorar essa cadeia de sucessões, demonstrando que quanto antes forem concluídas as hipóteses interpretativas, menor será o gasto de processamento.

A ideia central é a de que, ao interpretar um enunciado, os seres humanos formulam hipóteses antecipatórias sobre a sua estrutura lógica geral. Baseados nessas hipóteses, eles aplicam processos pragmáticos para resolver as ambiguidades e as ambivalências possíveis. Nesse sentido, do ponto de vista lógico, há relações que se estabelecem entre as hipóteses antecipatórias corretas, fazendo com que uma hipótese seja implicada pela outra. Forma-se, dessa maneira, uma escala focal. Nas palavras de Sperber e Wilson (2001, p. 310), “o conjunto de hipóteses antecipatórias forma uma escala, em cada membro implica analiticamente o membro que se encontra em posição anterior e é analiticamente implicado pelo membro que vem logo a seguir”.

Vejamos o seguinte exemplo para ilustrar esse processamento, de acordo com a escala apropriada para ‘O adolescente admitiu ter matado’:

(a) O adolescente fez alguma coisa – Que fez o adolescente?

(b) O adolescente admitiu alguma coisa – Que foi que admitiu o adolescente? (c) O adolescente admitiu ter matado.

Ao classificarmos ‘O adolescente’ na categoria sintática sintagma nominal, formamos a hipótese sintática antecipatória que teremos na sequência um sintagma verbal como em (a). Processada a primeira palavra, após a atribuição de referência para ‘adolescente’ (precisamos identificar sobre qual adolescente se está falando), a segunda palavra a ser processada será ‘admitiu’. Temos, nesse caso, uma conjugação do verbo ‘admitir’. Considerando-se que existem dois sentidos possíveis para esse verbo – confessar e deixar entrar –, ambos transitivos, formamos a hipótese sintática antecipatória de que teremos, em seguida, outro sintagma nominal: alguma coisa ou alguém, respectivamente. Por fim, se atingida a relevância ótima, ‘ter matado’ deverá confirmar as escolhas provisórias do processo de interpretação.

A escala apresentada acima é composta por um subconjunto rigorosamente ordenado pela relação de implicação analítica das hipóteses sintáticas antecipatórias possíveis para a sentença ilustrativa. Seguindo essa lógica, consideraremos agora a proposta de Rauen (2009, p.71) para noção de escala focal em termos de gêneros textuais.

O autor propõe que:

Se os gêneros são estruturas relativamente estabilizadas de modos de dizer, que configuram ações sociais, esta estabilização deve decorrer de arranjos que, seguindo o princípio de relevância, aumentam efeitos cognitivos e diminuem esforços. Assim, se a escala focal permite descrever como a organização estrutural de uma sentença

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diminui o esforço de processamento e amplia os efeitos cognitivos, a mesma coisa se dá nos arranjos sintáticos que configuram os gêneros.

Nesse sentido, é possível identificar as pistas para a dimensão relevante das interações nos movimentos retóricos que caracterizam o gênero em que ocorrem. As pistas funcionariam como hipóteses antecipatórias, sugerindo que as estruturas genéricas manifestas no texto estão atreladas às relações de relevância.

Bonini (2007), em consonância, afirma que o gênero, para além de ser apenas uma maneira de transmitir uma mensagem, é um princípio capaz de unificar um conjunto de ações e práticas sociais, definidor de modos de edição e de formas específicas de leitura. É com base nessa argumentação que se pretende analisar, dentre outros, o processamento dos relatórios psicológicos, do ponto de vista judicial, em comparação ao modelo de documento psicológico regulamentado pelo CFP.

4. Considerações Finais

Nos últimos anos, os estudos sócio-cognitivos no campo da linguagem têm enfatizado a interação social da relação escritor/leitor, atribuindo destaque ao contexto nos processos de produção e compreensão de textos. Mundó e Badia (1997) defendem que o uso da linguagem escrita "representa a inserção da linguagem em um novo contexto em que o locutor e o destinatário não compartilham da situação de enunciação (no mesmo lugar e tempo)" (MUNDÓ e BADIA, 1997, p 242). Entretanto, é nesse novo contexto que se dá o compartilhamento entre escritor e leitor de um sistema cultural e social no qual a comunicação escrita exerce funções mutuamente conhecidas. Os autores consideram, portanto, o escrever como um ato de comunicação - ainda que o escritor esteja sozinho no momento da sua escrita.

Temos de admitir que atreladas aos relatórios estão as interações comunicacionais entre psicólogos e juízes de direito, que não compartilham a situação de enunciação, porém integram em comum um sistema de proteção a adolescentes e trocam informações que podem ser determinantes para o andamento dos processos judiciais. Observar somente os elementos de escrita e os processos cognitivos isolados de produção e de compreensão de texto mostra-se, nesse caso, insuficiente para explicar a complexidade da comunicação que se estabelece na díade psicólogo/juiz por meio da escrita.

O entendimento da escrita como um conjunto de processos cognitivos foi amplamente estudado e pesquisado nas décadas e 70 e 80, quando o aprender a escrever voltou-se para o domínio das técnicas e dos procedimentos de composição textual. Por outro lado, essa abordagem não enfatizava "as diferenças entre gêneros, contextos de produção e recepção textuais, e objetivos textuais" (FIGUEIREDO e BONINI, 2006, p. 427). Foi somente a partir do final dos anos 80 que uma nova perspectiva da escrita surgiu, ampliando o conceito de escrita e incluindo fatores sociais na produção textual. A noção da escrita passou a ser delineada como um conjunto de gêneros, moldados de acordo com um contexto de produção.

Uma vez no campo da dimensão social da linguagem, podemos citar ainda outras duas correntes: a perspectiva da escrita como prática social, que preconiza a aprendizagem não apenas da composição e da construção linguística de textos, mas o entendimento de "por quem, onde, quando, em que condições, com que recursos, e para que fins o texto é escrito" (FIGUEIREDO e BONINI, 2006, p. 428); e o discurso sociopolítico sobre a escrita, também voltado para o contexto da produção escrita, com ênfase nas forças sociais e de relações de poder que moldam a escrita.

Nos princípios da Teoria da Relevância encontram-se propósitos que coadunam com as concepções sociais da linguagem. Sem extremos, parece possível estabelecer uma análise

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cognitiva da comunicação escrita que leve em consideração a influência dos aspectos sociais que interferem na interação, destacando o papel do contexto social e a influência das diferenças de gêneros textuais nas práticas jurídicas e psicológicas.

Referências

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Referências

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